Capítulo II – Cinema – Cinema

Self-Objectification in Phoebe Bridgers’ Videography

A Auto-Objectificação na Videografia de Phoebe Bridgers 1

Francisco Ricardo Silveira

Centro de Literatura Portuguesa – FLUC, Portugal

Abstract

Focusing on music videos for the songs “Scott Street” (Alex Lill; 2018), “Savior Complex” (Phoebe Waller-Bridge; 2020) and “I Know The End” (Alissa Torvinen; 2020), this text will explore the aesthetic/thematic recurrence of a self-objectification process in the videography of singer-songwriter Phoebe Bridgers. Specifically, the way – through sheets with eyes reminiscing ghosts, skeleton suits, countless people emulating her physical traits or “past/future” identity splits – that she sees herself being seen by others.
In an individual end of the world, in which the artist can be no more than a spectator, this projection as another “I” does not serve a utopian narcissistic function (in a ingenuous “happy ever after” sense), but rather works as a self-commiserative frustration. That is why her own work and her own persona portray Phoebe Bridgers as some kind of instrument with a dark purpose, turning her into an abject object. Such imagery is also seen in the use of psychological disorders that she attributes to herself as song titles and descriptions – from “Savior Complex” to the imposter syndrome in “Kyoto” – or in the employment of lyrics to express her intimate perpetual apocalypse – “I’ve been running around in circles / Pretending to be myself ”.
Coming from the said self-objectification mechanism, in a discography/videography where the idea of “home” is a constant impossibility for the self, the singer-songwriter eventually finds a performative one.

Keywords: Phoebe Bridgers, Self-Objectification, Music Videos, Lyrics, Home.

A Auto-Objectificação na Videografia de Phoebe Bridgers

Algures na série web-televisiva de terror The Haunting Of Hill House (2018) – em que cinco irmãos adultos se revêem atormentados pela mansão onde viveram enquanto crianças e onde a mãe morreu –, apreendemos a natureza da criatura que mais aterrorizou Nell Crain, a mais nova do quinteto. Desde a vivência nessa casa até à maioridade, a frequente sensação de invisibilidade/desacreditação no seio familiar sentida pela personagem parecia materializar-se na “hora de dormir” num momento de pânico imobilizante e asfixiante ao acordar. Sobre si a pairar na horizontal ou rente à cama, avistava uma silhueta humana com o rosto na penumbra. A esse espectro de longos cabelos e com um largo vestido, Nell, ainda criança, chamou de Bent Neck Lady: conforme o deformado pescoço clamava. Só quando em adulta se apaixona reciprocamente pelo terapeuta que diagnostica e trata a sua paralisia de sono tais episódios são desprovidos da sua sobrenaturalidade.

Isto, até à noite em que Nell está em confronto com mais um episódio e o então já esposo colapsa – morte súbita por aneurisma – ao socorrê-la: a Bent Neck Lady regressa no instante em que a personagem perde a sua significação e visibilidade existenciais, no momento-auge de uma “auto-“ e “hiper-“ entendida inutilidade em que, “incapaz de mexer uma palha” para o salvar, perde o “alguém” que acreditava nela. Depressiva e destruída, regressa também Nell à velha Hill House. Aí, um limbo encantatório indistingue-lhe o presente estado de uma carcaça em ruínas com a passada mansão de infância, a sua maioridade/actualidade com recordações das pessoas de então. Veste um “largo vestido” e delira a sua dança solitária no escuro como se fosse recebida pela família numa espécie de final feliz. Quando, por fim, sobe umas altíssimas escadas e coloca ao pescoço um colar entrementes oferecido pela mãe de volta à vida, Nell cai na realidade. Tenha sido o fantasma da figura materna a empurrar, tenha sido puro suicídio, o colar revela-se corda, o pescoço lá atado quebra e recorda: Nell é a Bent Neck Lady.

Caindo no plano fílmico pelo passado fora, numa espécie de verticalidade abismal que ao esconder o corte e a edição pela continuidade e sequencialidade salienta uma interpenetração passado-presente-futuro, revemos então na série, rumo à infância, uma série de aparições da Bent Neck Lady (agora clareada e clarificada). O ruído sucessivo e rangente do nó a falir, apertar, cair e estrangular mais e mais a cada nova memória revisitada, numa oscilação entre primeira e terceira pessoa a fitarem-se mutuamente, edifica e adorna o loop “desexistencial” de uma “Bent Neck Nell”. Ademais, levanta a pergunta… Quem foi, é ou será a primeira e a terceira pessoa? De quem é o ponto de vista de um fantasma-duplo? Mas, antes disso, quem é sequer e afinal o fantasma neste trágico caso de auto-objectificação?

Para o efeito do presente trabalho, esta morte intertextual e inerentes perguntas ganham sobretudo carga retórica, assumem-se antes como um mote intertextual “auto-objectificante” que habita o mesmo espaço mental do da cantautora estadunidense Phoebe Bridgers (1994-). Quer dizer, sem o tom de desolação absoluta encontrado em The Haunting Of Hill House e no evento canónico acima descrito, com um constante cunho auto-depreciativo, fatalista e melancólico mas invadido por ímpetos de ironia mórbida e humor negro, a persona artística desenvolvida por Phoebe carrega idênticos dilemas identitários. Ora, com o intuito último de explorar a recorrência estético-temática de um processo de auto-objectificação na videografia da cantautora em causa – focando os vídeos musicais para as canções “Scott Street” (Alex Lill; 2018), “Savior Complex” (Phoebe Waller-Bridge; 2020) e “I Know The End” (Alissa Torvinen; 2020) – urge em antecipação descrever o seu universo criativo e esclarecer a acepção de “auto-objectificação” hegemónica versus a aqui predominantemente usada.

No que concerne ao segundo aspecto, tal conceito tem sido sobremaneira empregado como um dos pólos da denominada Teoria da Objectificação proposta pelas psicólogas Barbara Lee Fredrickson e Tomi-Ann Roberts no artigo “Objectification Theory: Toward Understanding Women’s Lived Experiences and Mental Health Risks”, de 1997. Conforme sintetizado por uma das autoras, esta teorização, assente numa perspectiva feminista, “centers around the emotional, behavioral, cognitive, and health consequences of the sexual objectification and sexualization of girls and women” (Roberts 2021) (sem que as várias abordagens ao longo dos anos se tenham fechado à masculinidade, a racializações ou a concepções de género não-essencialistas, a intensidade maior do fenómeno no feminino justifica o centramento dos estudos aí).

Assim, dialecticamente, se a objectificação designa um olhar societal – seja a partir de uma simples relação interpessoal, dos média ou de práticas institucionais – que trata o seu corpo como um objecto de prazer (visual) alheio, a auto-objectificação – menos comum na nossa mundanidade linguística – trata-se da internalização consequente disso mesmo. Isto é, a pessoa objectificada desumaniza-se pelos ideais de beleza nela plasmados. Noutras palavras, consiste no engolimento de um olhar pasmado objectificante; na “adoption of a third-person perspective on the self as opposed to a first-person perspective” (Calogero 2012, 575); em alguéns que culminam a “see themselves as not good enough, again, objectifying their identity to a body that needs to be perfect” (Wikipedia 2021). Claro está, a auto-objectificação acaba num ciclo e num círculo, retroalimenta a objectificação de outros que a ela leva.

Mas o espaço ínfimo entre a forca e a fractura em que Phoebe Bridgers situa a sua obra não dá particulares indícios de uma dessatisfação corporal ou distúrbios de imagem à la anorexia, de sequelas psicológicas como vergonha e ansiedade a saturarem a cognição. De facto, o seu “body becomes the site of reparative action and vigilant monitoring” (Calogero 2012, 575), contudo não “to manage the sexual objectification” (575), sim para manejar uma vaga, lata e opressiva abjectificação existencial. Sem casa de partida, num tédio sem prédio, qual personificação de um “não-lugar” (Augé 1992), também os conceitos são virados do avesso. Perante mais uma explicação-tipo do termo psicológico em estudo – “girls and women come to place greater value on how they look to others rather than on how they feel or what they can do” (Calogero 2012, 575) –, a reformulação seria algo na linha de “Phoebe colocar maior valor em como os seus próprios outros ‘eus’ olham para ela para perceber como se sente e o que pode fazer”. Ou seja, o modo como – através de lençóis com olhos rememorando fantasmas, fatos de esqueleto, inúmeras pessoas a emularem os seus traços fisionómicos ou cisões identitárias “passado/presente/futuro” – esta se vê a ser vista pelos outros. Leva, portanto, à letra que “[a]n objectified body is a malleable, measureable, and controllable body” (575) ao internalizar em metalinguagem o preciso processo de auto-objectificação para sua vantagem.

Encenando uma espécie de fim do mundo individual, face ao qual a artista não pode mais que ser espectadora, essa projecção enquanto um outro “eu” não serve uma função narcisista utópica ou um ingénuo “futuro final feliz”, mas faz antes a vez de uma frustração auto-comiserativa que se procura auto-aniquilar. Daí que a sua obra e a sua persona retratem a própria Phoebe Bridgers como uma espécie de instrumento com um propósito escuro, tornando-se esta num objecto abjecto. Tal imaginário revê-se, aliás, no uso de transtornos psicológicos que atribui a si para intitular e descrever canções: desde a “Savior Complex”, cujo vídeo é mais abaixo analisado, à síndrome do impostor e à despersonalização em “Kyoto”, contando esta com um videoclipe sintónico (Nina Ljeti; 2020) em que Bridgers visita o Japão e voa sobre o oceano em green screen. Revê-se ainda no emprego de letras para exprimir o seu íntimo apocalipse perpétuo: “I’ve been running around in circles / Pretending to be myself”, na faixa “Chinese Satellite”, ou “I’ve been playing dead / My whole life”, em “ICU”.

“ICU” que agrega à abreviação mortificante de “intensive care unit” a homofonia de “I see you” no refrão. As referências compulsivas a “morrer” e “olhar” sucedem-se na sua discografia. Quanto à primeira obsessão, deparamo-nos, entre outros, com os excruciantes: “Sometimes I think I’m a killer” e “I hope you kiss my rotten head / And pull the plug” em “Killer”; ou “I’m singing at a funeral tomorrow” em “Funeral”. Num registo irónico ou sarcástico, lemos: “We hate ‘Tears in Heaven’ / But it’s sad his baby died” em “Moon Song”; ou “I hate living by the hospital / The sirens go all night / I used to joke that if they woke you up / Somebody better be dying” em “Halloween”.

No que toca à escopia, notamo-la principalmente em Punisher (2020), o segundo e mais recente álbum de originais: em “Graceland Too”, o bom humor desfalece, qual contagem decrescente, à medida do “cair” das estrelas e do nocturno: “So we spent what was left of our serotonin / To chew on our cheeks and stare at the moon”; em “Kyoto”, a sensação de ser uma farsa patética da cantautora reflecte-se no céu por via de uma das teorias da conspiração mais em voga: “I’ve been driving out to the suburbs / To park at the Goodwill / And stare at the chem trails”; em “I Know The End”, o relato e o retrato apocalíptico em intensidade vocal crescente vai da calmaria de “Out in the park, we watch the sunset / Talking on a rusty swing set” à pré-ofegação de “Windows down, heater on / Big bolt of lightning hanging low / Over the coast, everyone’s convinced / It’s a government drone or an alien spaceship”.

Mas é na supra-aludida “Chinese Satellite” que “olhar” e “morrer” mais densamente se cruzam a partir de mais um entrelaçamento entre astronomia e astrologia: “Took a tour to see the stars / But they weren’t out tonight / So I wished hard on a chinese satellite / I want to believe / Instead, I look at the sky and I feel nothing” e “I want to believe / That if I go outside I’ll see a tractor beam”; “When you said I will never be your vegetable / Because I think when you’re gone, it’s forever / But you know I’d stand on the corner / Embarrassed with a picket sign / If it meant I would see you when I die”. Numa canção em que se critica a religiosidade – “You were screamin’ at the Evangelicals” -, a confissão de Phoebe – “You know I hate to be alone / I want to be wrong” – mostra o desespero de alguém que repetidamente olha a morrer só para morrer a olhar. Quer dizer, diante do negrume e do nada inerentes à contemplação da mortalidade, Bridgers procura um salto de fé por um movimento de visão sincrónica rumo ao céu. Um salto de fé gorado. Os desejos pedidos a estrelas não visíveis devido à opacidade de nuvens passam à imagem celeste interior mas estéril e artificial de um “satélite chinês” que passa à ficção científica de alienígenas com um raio tractor que jamais surge. Não há levitação efectiva para fora de um “aqui” e “agora”, havendo sempre um senão – “I’m always pushing you away from me / But you come back with gravity” (“I Know The End”) – a desempenhar o papel do seu cepticismo.

A tentativa de arrebatamento começa então a deslocar-se para a já mencionada despersonalização – “I wanted to see the world / Through your eyes until it happened / Then I changed my mind” (“Kyoto”) – e, insuficiente, desliza para a auto-objectificação (um despersonalizar multiplicado): “And when I grow up, I’m gonna look up / From my phone and see my life / And it’s just like my recurring dream / I’m at the movies, I don’t remember what I’m seeing / The screen turns into a tidal wave / Then it’s a dorm room, like a hedge maze / And when I find you / You touch my leg, and I insist / But I wake up before we do it” (“Garden Song”). Numa canção em que o “eu” e o “tu” parecem por vezes sinalizar uma troca de mensagens entre passado e futuro da mesma pessoa – como se, por exemplo, a estrofe “I grew up here, ‘til it all went up in flames / Except the notches in the door frame” do “eu mais novo” transitasse para o refrão “I don’t know when you got taller / See our reflection in the water / Off a bridge at the Huntington / I hopped the fence when I was seventeen” do “eu mais velho” –, o ónus reside na multiplicação abismal e labiríntica de ecrãs.

O vaivém de pontos de vista entre “remetente” e “destinatário” abre com alguém a declarar que um “eu futuro” irá ver a sua vida num telemóvel. Telemóvel esse que, não se limitando à avatarização do sujeito de uma rede social ou a rememorações auto-fotográficas/auto-videográficas, aparenta exibir um cenário onírico – a conjunção coordenativa “and” marca a continuidade desse cenário onírico. O “eu por vir” vê no dispositivo um enquadramento reminiscente de um sonho recorrente no qual – regressão infinita – está sentado numa sala de cinema. O filme visto está esquecido, e o ecrã metamorfoseia-se numa onda gigante que impele o corte para o plano de um dormitório com ares de labirinto de sebes. É nessa água capaz de crescer o jardim que o “eu” encontra provisoriamente um “tu”, o toque de um “tu” capaz de o realizar, significar enquanto pessoa.

Nessa senda, analisar sob o âmbito da auto-objectificação os três videoclipes que se seguem é reconhecer isto... Contra o estereótipo de determinar que “[m]usic videos […] almost exclusively show women who […] take on sexually suggestive poses, inviting males to gaze at their bodies” (Vandenbosch 2012, 6), de reduzir o formato a publicidade onde as mulheres “are depicted as being only a body, or part of a body” (Jones 2015, 23), a persona artística “Phoebe Bridgers” senta-se na sala de cinema em que ver-se a ser vista pelos outros faz parte do plano. Neste meio “that places the viewer in the position of objectifier” (Vandenbosch 2012, 6), talvez ela fique na vantagem perspectivista da fila traseira e mais alta para se fitar e resgatar da onda gigante uma unicidade: “o filme visto está esquecido”, monta-se pelo desdobramento dos seus corpos e partes. Não limitados a uma hipotética reapropriação cultural do termo, a um bê-á-bá de empoderamento feminino, os vídeos musicais de “Scott Street”, “Savior Complex” e “I Know The End” são passíveis de ser pensados segundo esta auto-objectificação intimista e existencialista.

Sintomaticamente, Punisher principia com uma faixa (quase) instrumental intitulada “DVD Menu” e que cria um elo com Stranger In The Alps (2017), o primeiro álbum de Phoebe, ao incluir um sample da penúltima da canção desse conjunto. Ademais, as cordas repetitivas a sugerir um vento assombrado e o concomitante estabelecimento de uma aura de terror acabam por se revelar um espelho melódico da secção final de “I Know The End”, a “faixa-desfecho” em Punisher. Por último, para além desse círculo sonoro, ouvimos a certa altura vagos murmúrios espectrais da voz de Bridgers em reverso. Mencionar estes quatro aspectos importa enquanto derradeira justificação de uma leitura integrada da sua discografia e videografia. Adentro deste “corpo mental” tanto retrospectivo quanto prospectivo, a primeira cena a seleccionar no telecomando chama-se “Scott Street”.

Captamos na abertura o plano frontal de uma cortina/pano pendurado com uma mescla cromática esbranquiçada-azulada: talvez um céu nublado. Com a câmara suficientemente afastada para desvelar o artifício de um interior com ares de armazém/cave, uma pequena secretária (ou mesa auxiliar) improvisa um banco ao som de uma guitarra ligeira. Uma rapariga entra em campo nesta indistinção entre fachada e bastidores e, ao sentar-se, temos um plano mais próximo a confirmar o óbvio: uma sessão fotográfica como aquelas destinadas a um qualquer anuário escolar. Dotada de um cabelo loiro-lixívia e de um vestido negro, a pessoa avistada parece um clone mais novo de Phoebe Bridgers – um “eu passado”. Cedo, rola a voz da própria em playback: “Walking Scott Street, feeling like a stranger / With an open heart, open container”.

A canção vai decorrendo monotonamente com as suas vocais confessionais acompanhadas pela guitarra acústica solitária – isto é, no típico registo indie folk da artista, com uma crueza retraída sobejamente característica do seu álbum de estreia – enquanto a imagem assenta numa multiplicação de versões impostoras de Phoebe Bridgers em sincronia labial, desde pessoas mais velhas ou gordas, a outras asiáticas, negras e até homens. Não há farsa a esconder, a presença da sua ausência corporal acentua-se através desta distância progressiva de si que ganha os traços cómicos de um tudo que é nada. Daí que um dos homens satirize com trejeitos excessivos e ridiculamente melodramáticos: a língua a lamber os lábios, as mãos a sinalizarem os seios. O mesmo cabelo afinal peruca da rapariga inicial e um semelhante vestido preto constituem aqui a inteira persona da artista, aproximam-na do imaginário popular de uma bruxa. Nesse nexo, o vídeo materializa um meme originário do Twitter e reconhecido por retweets na página da própria cantautora. “Is this Phoebe Bridgers?”, legendam com essa frase fãs que postam uma foto de alguém com idênticos cabelos prateados. Todo o videoclipe e os seus dois álbuns até à data colocam semelhante questão identitária. Quem é ela? A resposta deste romance de formação passa sempre por um convoluto romance de deformação em que a artista se sente como uma estranha ou uma estrangeira.

Que a câmara seja estática e os cortes para cada nova pessoa pouco notados pela persistência frontal do pano, do cabelo e do vestido só vem reiterar a sensação existencial de repetição de um outro mesmo dia. Idem para o seu truque discográfico recorrente usado em “Scott Street”: double tracking das suas vocais, criando também aí uma multiplicidade espectral de Phoebes. O coração dito aberto, vulnerável, a julgar pelo segundo verso, só o está a reboque de “open container laws”, um mecanismo que nos EUA regula a (i)legalidade de beber álcool em alguns espaços públicos.

Numa canção em que “There’s helicopters over my head / Every night when I go to bed”, a significação encorajadora de uma tabula rasa para as milhentas hipóteses de corpos fotografados com um lençol esbranquiçado em fundo combate com o desgaste que caracteriza esse lençol e com a apatia inescapável do cabelo e do vestido. Posto de outro modo, estes dois sinalizam a prisão interna de uma personalidade, os seus medos, defeitos e obsessões. Daí que vejamos mais que fotografias, vemos os detalhes, as poses e a não-fotogenia entre elas, vivemos futuras memórias auto-biográficas em directo.

Após um minuto e trinta segundos mais um refrão – “Do you feel ashamed / When you hear my name?” – que exclama auto-comiseração como se Phoebe fosse a lente da câmara a ver-se vista pelas suas próprias “manifestações”, há por fim uma mudança drástica na cena. A auto-monitorização conquista protagonismo quando, no meio de um palco circular, como os “helicópteros que pairam sobre a sua cabeça”, uma e outras dessas manifestações vão cavalgando um touro mecânico.

A aclamação eufórica dos “duplos” que observam sugere o termo “punisher”, também uma faixa-título do segundo álbum. Brotante do jargão musical, a palavra define um fã persecutório do seu ídolo – pune-o com excesso de fala - e consoante nessa canção Phoebe, já uma celebridade idolatrada, converge essa atitude verborrágica para si mesma (ao imaginar e admitir que seria assim a sua relação com o falecido cantautor Elliott Smith), também o “duplo” cavalgante rotativo expressa euforia.

De seguida, no topo de um autocarro descapotável a circular pela cidade durante o dia, várias “aparições” da cantautora surgem voltadas para a câmara. Agora com um ar abatido, sentadas enquanto espectadoras de uma reconvergência identitária que parece estar a chegar à primeira pessoa da câmara, continuam qual prece a sincronia labial. Adivinha-se lá ao fundo, ainda mais disfarçada no seio dos “clones” por uns óculos de sol, a “verdadeira” Phoebe Bridgers: a sua primeira aparição no videoclipe. A cena rememora o clímax auto-objectificante da atrás referida letra de “Garden Song”. Poderíamos reescrevê-la destarte: “I’m gonna look up / From my camera and see my life / And it’s just like my recurring dream / I’m on the bus, I don’t remember what I’m seeing […]”.

Desta feita, a “onda gigante” traz-nos um jogo de rua, num exterior primaveril/veranil com árvores e com um grupo “phoebiano” em saltos e palmas de incitação. Em primeiro plano central, baixa de uma corda uma pinhata versão “Phoebe Bridgers”: o mesmo cabelo, o mesmo vestido. Rodada pelas colegas e às cegas por uma banda nos olhos, uma das Phoebes começa a atingir a boneca com o bastão. Logo, todas se juntam. Se a instabilidade do touro mecânico era somente sugestiva disso, aqui a ausência da “verdadeira” cantautora remetida à materialização da boneca epitomiza uma fractura empática entre observador e observado: como na lógica do “punisher”, é fácil ser o fã quando não se é o ídolo, é fácil ser o ídolo quando não se é o fã. O esforço de reconvergência parece passar por mostrar isso a si mesma.

A partir daí, conforme a letra denotava antes a incrédula passagem do tempo e o inerente peso insuportável de uma bagagem emocional crescente (traumas, distâncias e relações falhadas) numa conversa entre velhos conhecidos – “I asked you, ‘How is your sister? / I heard she got her degree’ / And I said, ‘That makes me feel old’ / You said, ‘What does that make me?’ / I asked you, ‘How is playing drums?’ / Said, ‘It’s too much shit to carry’ / ‘And what about the band?’ / You said, ‘They’re all getting married’” –, o videoclipe entra num loop existencial. Para além de um tutti com guitarra, baixo, violino e teclado, até com a campainha de bicicleta e o ruído de locomotiva esporádicos, ouvimos então um contínuo suspenso feito de vocalizos – “Ooh ooh ooh ooh” – e um suplício: “Anyway, don’t be a stranger”. Essa angústia pervasiva discorre com uma quase circularidade imagética. À radiância idólatra de Phoebes a invadir um pavilhão cheio de trampolins que vão e vêm, juntam-se o touro mecânico e quedas, a pinhata estilhaçada em prováveis doces.

O autocarro regressa, desta vez de noite, com a Bridgers “original” mais à frente; o seu protagonismo adensa-se no seu foco quando a bordo de um barco nocturno onde o rosto treme entre o escuro e a luz, onde o seu fitar pálido para a câmara contrasta inicial e sarcasticamente com o champanhe festivo libertado pelos “duplos” atrás. Não obstante encontrar a sua voz ao tornar-se a vocalista única dos “Anyway, don’t be a stranger” acompanhada pelos vocalizos alheios, o projecto de reencontro rumo ao “eu” da câmara gora-se: no autocarro, o anonimato toma os rostos pela escuridão; mais do que isso, um plano traseiro final do autocarro rapta Phoebe para longe. Porquanto no fundo sempre isto: “I’ve been running around in circles / Pretending to be myself”. E recordamos no fecho “o plano frontal de uma cortina/pano pendurado com uma mescla cromática esbranquiçada-azulada”: talvez o manto do fantasma pintado na capa bucólica do álbum Stranger In The Alps, um lençol de tinta fora do mundo ontológico de uma memória fotográfica.

No filme A Ghost Story (2017), o protagonista morre para se transformar num lençol com olhos (semelhante ao do álbum de Bridgers) incapaz de abandonar o seu antigo lar geográfico, retórico e ontológico até ler uma nota deixada pela esposa na brecha de uma parede quando esta deixa a casa. Circulando em assombro entre um passado e futuro longínquo daquele espaço, só consegue capturar a nota e abandonar este mundo de vez quando chega ao cúmulo reflexivo e aprendente de se ver a si mesmo enquanto fantasma/memória. Na obra de Phoebe Bridgers, tal auto-objectificação edifica-se com base no desejo inverso de encontrar esse preciso lar e “Savior Complex” chega um pouco mais perto desse “dentro” que “Scott Street”.

Num videoclipe realizado por Phoebe Waller-Bridge – artista sem qualquer ligação familiar à cantautora estadunidense – o embuste identitário de uma “copycat killer with a chemical cut” (“Punisher”) prenuncia-se aí. Como em “Halloween”, sob o efeito de máscaras, canta “Baby, it’s Halloween / And we can be anything”, visualizamos uma Phoebe Bridgers “ego-tripartida” em mulher, homem e cão. A narrativa situa-se entre uma praia, uma estrada e um hotel num algures tão calmo, solitário e desértico que sinistro. Um preto-e-branco de baixo contraste permeia toda a cena, fazendo jus ao facto de ser uma canção cuja linha melódica surgiu num sonho à artista.5 Em igual senda, a narrativa onírica do “clipe” evoca as fugas psicogénicas de David Lynch – Lost Highway (1997) e Mulholland Dr. (2001) –, filmes em que uma personagem cria internamente uma dimensão surreal remisturada da realidade intradiegética para escapar à culpa e ao trauma de um terrível crime.

Adentramo-nos neste deserto cinzento: um pequeno e aprumado cão fita um homem sentado na praia, mais próximo do mar, e a melodia etérea e romântica que atravessa toda a faixa dá sinais de vida. Chorando, com feridas, o indivíduo, de fato e gravata, vê-se de súbito já com o animal, portador de uma capa e um laço, ao lado. A voz de Phoebe entra hiper-vulnerável, um soporífero em harmonia com as palavras escolhidas: “Emotional affair / Overly sincere”. A personagem desempenhada pelo actor Paul Mescal levanta-se e tenta distanciar-se do cão que o segue “calmamente” pela estrada fora. Phoebe Bridgers tem a primeira aparição no vídeo enquanto condutora de um tractor que passa e observa o cão e o homem. É neste instante que a letra nos oferece o nexo inaugural de um “complexo de salvador”, daquele que, suavizando, para o seu próprio bem-estar emocional necessita de ajudar alguém; daquele que, rectificando, está disposto a criar a situação justificativa de um salvamento só para a masturbação grandiloquente do próprio ego: “Smoking in the car, windows up / Crocodile tears […]”. São as lágrimas – de quem desabafa – em volume aumentado em virtude do salvador que, ao fumar, fecha as janelas do veículo.

Enquanto o indivíduo foge ao canídeo pela estrada rural, o exemplo “phoebiano” de salvação forçada sobe uns bons degraus: “Drift off on the floor / I drag you to the shore / Sweating through the sheets / You’re gonna drown in your sleep for sure”. Ou seja, o “perigo-pesadelo” de alguém que adormeceu no chão e está suado – ironicamente um pesadelo de afogamento – requer o socorro despertador de arrastar o sonhador até à costa. Também as vocais sobem na escala na continuação da estrofe, momento em que o homem avista um carro e sinaliza um pedido de auxílio com os braços. Caindo de joelhos no chão, capta a atenção do condutor já no exterior – único animal humano ou não-humano a participar no videoclipe para além da mencionada tríade – e rouba-lhe o automóvel. A leitura mais imediata e simples é a de um “salvador” ingénuo, vítima de um manipulador emocional, todavia importa mais para a presente análise aventar a hipótese de alguém à procura de fugir de si mesmo. O sorriso de “Paul Mescal” ao volante parece mais de alívio do que de sociopatia, como se utilizasse um velho, antigo truque uma última vez antes de e para tudo acabar. Obstáculo: de algum modo o cão entrou no carro, está no assento ao lado; violinos incham no ouvido da cena e “Mescal” aflige-se com a companhia indesejada. Ela olha-o, serena mas suplicante de afecto, como se saísse de um manual de “fofura”, nada que impeça o sujeito de parar à beira de um edifício e abandonar a viatura. Ela olha-o ainda mais em despedida, a partir do vidro lateral do automóvel.

Percebemos que “Paul” chegou a um quarto de hotel, onde se desengravata, e livra-se do fardo das chaves do carro, dinheiro, cartões de crédito e de um telemóvel algures pela divisão. Da vidraça, vê a persistência do cão a avistá-lo de volta. A letra torna-se mais directa – “Baby, you’re a vampire / You want blood and I promised / I’m a bad liar / With a savior complex / All the skeletons you hide / Show me yours, and I’ll show you mine” – e, não obstante a referência a um “tu”, paira a sensação de um “grande eu mentiroso”. Quer dizer, as características de “um vampiro que quer sangue” são demasiado próximas das de um “péssimo mentiroso com complexo de salvador”: a vítima deste último já deseja de antemão a hemorragia, a situação de perigo forjada da qual deve ser salva. Essa fusão materializa-se, intertextualmente, no fato de esqueleto vestido por Phoebe (sobreposto ao interno): na capa, em concertos e vídeos de Punisher. Em suma, o “salvador complexado” é também aquele que, idêntico a “Mescal” no “clipe”, foge de si, dos seus próprios problemas. Daí que feridas – desde as faciais a um grande golpe na barriga – se exponham enquanto meros adereços entretanto arrancados.

Neste ponto do vídeo, o homem interrompe a “confortabilização” corporal e dirige-se à porta do quarto: vemos um petisco canino em forma de osso e um copo de água servidos numa bandeja. É Phoebe quem isso traz, agora vestida de empregada de hotel e cantando em sincronia labial: “With a savior complex”. Na sua etiqueta identificativa, um absurdamente vago “Woman” impele o momento destes três vídeos mais suscitante de uma auto-objectificação segundo a sua acepção feminista. A etiqueta essencialista com que Phoebe se projecta rememora a expressão “A Woman Looking at Men Looking at Women” (título de um livro e de um ensaio de Siri Hustvedt, 2016) e ecoa as suas críticas extradiegéticas aos encaixotamentos jornalísticos/mediáticos na esteira de “a mulher escreve sobre a condição feminina”:

Same goes for when they’re like, ‘Seems like women in music are really coming back’ […] I don’t lump Conor in the same category as just ‘men of a certain age’. And I don’t want Julien and Lucy and me compared with every other white songwriter on earth. […] People don’t like my music because women in music are en vogue right now, and they don’t like my music because a man made me [or] gave birth to me.2 (Bridgers apud Kim 2020)

Continuando, o homem aceita a bandeja, fecha a porta à “Woman” e observa atentamente o conteúdo da oferenda. Sem que ele o capte, as paredes são tomadas por quadros fotográficos com vida: uma Phoebe auto-objectificada, com um vestido branco e angelical em cenários bucólicos, assombra-o enquanto ideal. De algum modo, o cão entrou no quarto, está no parapeito da janela. Começam a manifestar-se “todos os esqueletos que escondes”, como diz a letra durante esses planos. Ao olhar canino carente, “Mescal” reage agora com um riso e, de novo despercebida na moldura, uma Phoebe mediática cheira uma flor com um sorriso imenso. Deparamo-nos de seguida com uma Phoebe em carne e osso, avistada pelo cão do parapeito da janela. Diferente das aparições anteriores, com um longo casaco e um guarda-chuva, caminha na rua e avista-o recíproca. Quando, num raccord, o homem adormece agarrado ao pequeno cão, sente(-se) que finalmente encontrou um lar retórico e geográfico; cai em sonhos de felicidade e paz nos quais a cama se transfigura, intermitente, num relvado – a canção atinge um clímax quase instrumental via cordas rodopiantes e vocalizos ascendentes de “ooohs”. No robe que veste para dormir, entrevemos inscritas na zona do coração as iniciais “SC”. “SC” de “Savior Complex”, por certo. O tal “tu vampiro que quer sangue” e o tal “eu péssimo mentiroso com complexo de salvador” são um e o mesmo.

Phoebe Bridgers encena-se na pele de um homem misterioso numa narrativa criminal, encena um empolgante fugitivo fílmico para fugir de si mesma, como se só assim se pudesse encontrar. O sonho de “Mescal” dentro do “sonho” que é todo o vídeo traz essa consciencialização. O cão que tem pena de si e que o quer salvar constitui apenas uma materialização do “complexo” do homem, um espelho construtor, é a Phoebe que ao tentar escapar cai em velhos vícios. Daí que o canídeo desapareça repentinamente da cama, do quarto. No momento em que “Mescal” aceitou o cão dentro do seu espaço íntimo (em construção), perdeu a razão de ser. Ele é uma ficção que desaparece com o lar que afinal ainda não encontrou. Daí também que acorde agitado com o desaparecimento do cão, do telemóvel, do dinheiro, das chaves do carro e do próprio carro. Resta-lhe o osso de fazer de conta com que foi enganado, domesticado. Fitando numa solidão pela janela, “Mescal” é passado, menos que uma moldura no quarto.

Na mesma praia do começo, fica estampado: os objectos do quarto (mais uma miríade a sugerir a reprodução passada do acto) em grande plano e, num revelatório retroceder de câmara, Phoebe sentada qual pequena cadela aprumada. Com a sua capa de super-herói e gola vampírica, ela é o cão que a ladeia, a fidelidade de uma personalidade que jamais a abandona. Fica claro: inventou no outro cinematográfico um complexo de salvador para se salvar do seu. Phoebe e o cão, filmados de costas, quase simétricos, fitam-se em cumplicidade final. Quando ouvimos as palavras “All the bad dreams that you hide / Show me yours”, a cantautora já não se digna a mentir com um subsequente “and I’ll show you mine”. O dramatismo da frase musical termina em suspenso, tal como uma face-pormenor do cão a desaparecer pelo nevoeiro cinzento e onírico adentro: tudo isto vai acontecer outra vez.

Em “Savior Complex”, portanto, a paleta acinzentada acaba por não ser o minimalismo existencial de uma tela a preencher, mas antes a cor da ocultação da fraude. A civilização é retratada na “fofura” do cão. E esse cão que é Bridgers na praia corporifica o asseio, o encanto e a cordialidade de um homem efectivamente sujo, manipulador, opressor. Na extradiegese, por exemplo, essa dissonância paraleliza-se com a comuníssima dissonância das celebridades que, em detrimento de abdicarem da sua riqueza, usam a obsessão de fãs (a maioria, óbvio, com poucos ou médios recursos) por marcas suas (e.g. instrumentos, autógrafos) de modo a gerar fundos para uma qualquer boa causa. A publicidade humana “Phoebe Bridgers” não foge a essa regra de auto-proveito imagético que perpetua e aumenta as próprias condições de desigualdade económica, que gera e justifica a própria necessidade de caridade.3

Para lá desse complexo de salvador da “realidade real”, repare-se que a presença do cão, ligada à de um pássaro, configura um motivo temático no álbum Punisher. Em “Moon Song” escuta-se: “So I will wait for the next time you want me / Like a dog with a bird at your door” e, no fecho, “When you saw the dead little bird / You started crying / But you know the killer doesn’t understand”. Trata-se da imagem do cão fiel e desesperado por validação incapaz de reconhecer o “presente” monstruoso e indesejado que oferece ao dono, a morte crua e inútil de outro ser vivo. Indicando a primeira pessoa que Bridgers se considera esse cão, a sua auto-imagem parece falir para o “nada” do pássaro morto. Torna-se, por assim dizer, um pássaro face a um mundo cão, a ausência de casa da qual o hotel foi apenas uma ideia transitória.

“I Know The End”, discográfica e videograficamente, afigura-se um “ponto de chegada” na sua obra. Antes de aí nos focarmos, reparemos no seguinte. Ainda em Stranger In The Alps: “I won’t be home, I won’t be home / I won’t be home with you tonight” (“Chelsea”). Já em Punisher: “Someday, I’m gonna live / In your house up on the hill” (“Garden Song”); “I want to believe / That if I go outside I’ll see a tractor beam / Coming to take me to where I’m from / I want to go home” (“Chinese Satellite”); “Laying down on the lawn / I’m tired of trying to get in the house” (“ICU”); “She can do whatever she wants to do / She can go home, but she’s not going to” (“Graceland Too”). Seja um puro inexplicável, um anseio futuro longínquo, uma nave que não chega para a volver ao planeta natal, um cansaço existencial que se esgota deitado na relva a metros da entrada ou mera falta de desejo, o lar é uma presença ausente.

A canção e o videoclipe de “I Know The End” debruçam-se sobre tal motivo poético. Este segundo inicia com um efeito rodopiante como uma lente em foco ou um ralo metálico em abertura a prenunciar a banheira repleta de água donde fitamos Phoebe Bridgers, deitada, a fitar-nos a nós. Sugere-se o despertar de um sonho, de um período reflexivo à medida da luz vertical que duplica a sua cabeça descoberta no meio aquático. A câmara aproxima o seu protagonismo num corredor apertado, uma linha electrónica ténue e misteriosa e uma semelhante guitarra ainda mais “surda, traseira” fluem atrás de proeminentes vocais suaves, num registo quase falado: “Close my eyes, fantasize / Three clicks and I’m home / When I get back I’ll lay around / Then I’ll get up and lay back down / Romanticize a quiet life / There’s no place like my room”. Uma Phoebe crente no poder dos versos, fecha de facto os olhos quando o diz, suspirando que isso mais três cliques bastassem para voltar a casa. Estes três cliques sugerem a “age of the internet and how everything seems to be available in just a matter of clicks. From video-calling loved ones, to food delivery that tastes like home, or satellite pictures of your old house […]” (Genius 2021). Isto é, um lar desta feita a doer pela proximidade distante da sua representação, uma ausência sobejamente presente. Outra leitura, mais forte pelos versos que sucedem, mostra-nos que:

In the 1939 film adaptation of The Wizard Of Oz, the Good Witch of the North gives Dorothy magical ruby slippers that will transport her back home anytime she clicks her heels three times and recites the phrase, ‘there’s no place like home’. Phoebe spins it to a more mundane sounding ‘no place like my room’, emphasizing the comfort and solitude that her room provides. (Genius 2021)

Dito de outro modo, o lar passado à intimidade suprema do quarto reside agora à distância da fantasia de uma criança num clássico cinematográfico. Cedo, volta a efectivação dessa distância temporal, espacial e dimensional junto com a hiper-normalização adulto-quotidiana de um “eu sei, eu sei”: “But you had to go, I know, I know, I know / Like a wave that crashed and melted on the shore / Not even the burnouts are out here anymore / And you had to go, I know, I know, I know”. Em concomitância, a letra dá os primeiros indícios de um apocalipse por vir com uma onda grande o suficiente para retirar os próprios “queimados”4 das praias; ou, noutra interpretação, há uma mudança tamanha que os sintomas de um colapso mental desaparecem do mapa interior. Trata-se de um aceleracionismo que relembra o verso “The screen turns into a tidal wave” de “Garden Song”, o episódio subjacente de auto-objectificação que aproxima momentaneamente Phoebe de si mesma. É sintomático que no videoclipe a cantautora decida levantar-se neste instante.

Com um casaco de malha cinzento por cima, esta tem vestido o seu típico macacão de esqueleto. Superando a aura parcial de filme de terror em Punisher, que o vídeo actual preme a fundo desde logo pela meia-luz, a estreiteza do presente corredor e a localização aí da banheira, esta vestimenta exprime algo mais. Na capa do álbum, com a “roupa-esqueleto”, Bridgers aparece lateral, pequena e absolutamente só na vastidão. Circunda-a um deserto nocturno, com rochas altas atrás, e um saturado filtro vermelho ilumina-lhe o corpo, a face. Uma face voltada para o azul-escuro celeste, com as suas costas ligeiramente inclinadas para trás a gerarem uma sombra longa confundível com as demais rochas que a fixa como existência verdadeira no mundo. Em jeito de metáfora, a sombra exclama: “eu ajo, eu sou”. A cantautora surge vulnerável, aberta, tranquila, e o estranho cromatismo que a aquece profetiza que, de facto, “não está sozinha” – confome leremos/veremos em “I Know The End”. A busca desesperada por satélites naturais ou artificiais “sabe a coisa” do passado. Ainda, a natureza anatómica contraditória do fato de esqueleto equivale a um processo de ver o “dentro por fora” e, consoante se concluirá neste artigo, a sua obra artística é decisiva para tal.

Retomando a análise do vídeo, um corte apresenta-nos Phoebe a lavar as mãos ao longe num lavatório público, enquanto um insólito ilusionista brinca com cartas em primeiro plano. Inclusive no instante em que a vemos ver-se ao espelho ainda encharcada do banho e o indivíduo é perspectivamente bem visível, ela não aparenta reconhecê-lo enquanto algo de carne e osso. Auto-depreciativamente, a espuma nas mãos da cantautora surge negra quanto mais se vê e se esfrega enquanto objecto abjecto. Captada de costas por um corredor escuro, alcança um balneário. Nos cabides, há inúmeros casacos e macacões de esqueleto tão encharcados como o que usa: o fantasma desabitado dos seus “duplos” de “Scott Street”. E também um símbolo de prisão a uma persona, mil incapacidades de fuga, um impasse existencial e um círculo que leva ao início. Phoebe veste ainda assim um novo casaco e a ferrugem da letra reitera uma vida gasta: “Out in the park, we watch the sunset / Talking on a rusty swing set”. A ironia deste bloqueio é elevada ao cubo, porquanto canta sobre esse bloqueio: “I’m always pushing you away from me / But you come back with gravity”.

Contudo, ao cantar ao cabide de um novo fato “And when I call, you come home / A bird in your teeth”, Phoebe inverte para outrem o seu papel do cão com o pássaro na boca – como ocorrera em “Moon Song”. Desta acumulação de múltiplas perspectivas via trocas auto-objecticantes em Stranger In The Alps e Punisher, algo parece estar a mudar. Para já na letra mais que no vídeo, a ideia de casa começa a tornar-se palpável. Mas logo no “clipe” o status quo também se altera. Enquadrada por uma porta aberta com a placa “EXIT” exposta acima, aparece ao fundo do plano uma rapariga loira com um fato branco que num piscar de olhos se reverte numa idosa com igual roupa. Oscilam enquanto aparição um par de vezes e em segundos: entre a luz que emerge a mais nova e a escuridão que submerge a mais velha. Ouvimos o “tu que tinha de ir” no primeiro refrão transformar-se em “So I gotta go, I know, I know, I know / When the sirens sound, you’ll hide under the floor / But I’m not gonna go down with my hometown in a tornado / I’m gonna chase it, I know, I know, I know / I gotta go now, I know, I know, I know”. Sente-se uma aceitação com pulso e firmeza nestas palavras: uma recusa de clausura ao passado em detritos e ao conforto conformista simbolizados pela protagonista Dorothy de The Wizard Of Oz.

Com metade do rosto tapado por um “cacifo”, a própria Phoebe lampeja, tornando-se evidente que a “velha” e a “nova” são o seu futuro e o seu passado. Apreendemos também no campo/contracampo ulterior: a cantautora troca olhares com elas. A rapariga fixa-se por uns momentos e lança-lhe pelo chão uma maçã vermelha; Bridgers agarra-a, trinca-a – numa variante feminista e existencialista da Bíblia – e segue pela porta do “EXIT”. O tempo, as guitarras começam a acelerar e seguimos a cantautora percorrer uma série de corredores. Acompanham-na duas pessoas estranhas como se a protagonista começasse a exteriorizar-se (pela alteridade) no mundo. Fitamos ao pormenor numa parede passageira cabides vazios, por ocupar e “viver”. A letra volta-se ao longo deste trajecto pedestre para uma viagem rodoviária que deixa para trás a sua vontade de crença constantemente frustrada – “Driving out into the sun / Let the ultraviolet cover me up / Went looking for a creation myth / Ended up with a pair of cracked lips / Windows down, scream along”. Phoebe sobe um elevador, continua por corredores e os versos aceleram, obstinados, para uma indistinção de referências políticas, musicais e paisagísticas: “To some America First rap country song / A slaughterhouse, an outlet mall / Slot machines, fear of God / Windows down, heater on / Big bolt of lightning hanging low”. São também símbolos religiosos e hiper-capitalistas que se confundem com um relâmpago simultaneamente íntimo e universal.

A cantautora atinge a superfície e logo embarca nas traseiras descobertas de um pequeno veículo por mais um corredor. Uma trompa entra no crescendo musical e até as outrora impossíveis conspirações governativas e alienígenas se parecem confirmar: “Over the coast, everyone’s convinced / It’s a government drone or an alien spaceship / Either way, we’re not alone”. Canta isso avistada de peito aberto e, finalmente, a ideia de um lar ganha contornos de um futuro próximo, uma constante possibilidade performativa que não abandona as recorrências dos seus fantasmas e afins: “I’ll find a new place to be from / A haunted house with a picket fence / To float around and ghost my friends / No, I’m not afraid to disappear / The billboard said ‘The End Is Near’”.

O veículo onde Phoebe seguia pára e um homem inidentificável proveniente de outro automóvel persegue-a como se numa derradeira tentativa de a aprisionar ao outrora e a uma espécie de negativo fotográfico existencial. “I turned around, there was nothing there / Yeah, I guess the end is here”: a artista corre e abandona o casaco cinzento, deixando afogar na banheira do início os assombros e vertigens do seu próprio passado e vícios psicológicos. Sincrónica e progressivamente, a proporção de tela sai para fora da “caixa”, abre-se tal e qual a sua mente para a largura do 16:9. “The end is here” repete-se num coro de milhentas vozes e a canção explode apocalipticamente quando vemos Bridgers chegar sã e salva a “casa”, esperada com uma guitarra pelos seus colegas musicais vestindo idênticos “esqueletos”. “I Know The End” ganha palco e glória aí, no centro de um edifício que se percebe um estádio. Um colossal estádio vazio onde todos os caminhos vão dar a Phoebe Bridgers e demais instrumentistas.

Dentre um escasso público entretanto adivinhado no relvado, constituído por algumas das pessoas surgentes ao longo dos corredores, vemos a velha Bridgers a dançar no mesmo fato branco de antes. Assim que a protagonista “presente” a identifica, aproxima-se dela e, após se agarrarem em lampejos mútuos, após um longo, dissonante e horrente “ahhh!” gritado na boca uma da outra, beija contínua o fantasma futuro da sua própria morte. Resta a sua voz ofegante enquanto – surpresa supresa! – mais uma Phoebe “presente”, com o casaco e o esqueleto, vê estarrecida e de holofote na cara tudo isso acontecer.

Quiçá apenas tautologia solipsista e infrutífera, mera expressão empática e relacionável de incompreensão – “chafurdem comigo num abraço colectivo à distopia” –, a casa encontrada por Phoebe Bridgers através de auto-objectificações compulsivas situa-se na própria obra. Perante um tal negativo fotográfico existencial, este outrar-se “pessoano” garante-lhe uma silhueta, um corpo, uma separação mínima entre “eu” e “mundo”. Conquanto “I Know The End”, a faixa final de Punisher, se demonstre um momento catártico, expurgatório, não deixa uma porta fechada. E é por isso, por ser um mito de recriação infinita, que o vídeo “desacaba” com outra Phoebe Bridgers a ver-se num beijo com metalíngua…

Notas Finais

1Este artigo foi financiado pela FCT e desenvolvido no âmbito da bolsa de Doutoramento PD/BD/142771/2018.

2Nesta entrevista à publicação Them, a cantautora refere-se aos trabalhos de Conor Oberst, com quem partilha a banda Better Oblivion Community Center; de Julien Baker e Lucy Dacus com quem fundou Boygenius.

3Vide Tenreyro 2021.

4Para além do esgotamento mental, “burnouts” é gíria depreciativa para um toxicodependente, alguém “fora” da normalidade e normatividade sociais.

5Vide Leas 2020.

Bibliografia

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Fredrickson, Barbara Lee e Roberts, Tomi-Ann. 1997. “Objectification Theory: Toward Understanding Women’s Lived Experiences and Mental Health Risks” in Psychology of Women Quarterly 21(2): 173-206.

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Leas, Ryan. 2020. “The Story Behind Every Song On Phoebe Bridgers’ New Album Punisher”. In Stereogum. https://www.stereogum.com/2086915/phoebe-bridgers-interview-punisher-conor-oberst-1975-boygenius/interviews/footnotes-interview/. Acedido a 20 de Abril de 2021.

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Filmografia

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Kyoto. 2020. De Nina Ljeti. EUA: Youtube. Vídeo Musical. https://www.youtube.com/watch?v=Tw0zYd0eIlk. Acedido a 20 de Abril de 2021.

Lost Highway. 1997. De David Lynch. EUA: October Films. Filme.

Mulholland Dr.. 2001. De David Lynch. EUA: Universal Studios Filme.

Savior Complex. 2020. De Phoebe Waller-Bridge. EUA: Youtube. Vídeo Musical. https://www.youtube.com/watch?v=VJlR3pvgLQA. Acedido a 20 de Abril de 2021.

Scott Street. 2018. De Alex Lill. EUA: Youtube. Vídeo Musical. https://www.youtube.com/watch?v=W-Khe7DInxo. Acedido a 20 de Abril de 2021.

The Haunting Of Hill House. 2018. De Mike Flanagan. EUA: Netflix. Série Web-televisiva.

Discografia

Punisher. 2020. De Phoebe Bridgers. EUA: Dead Oceans. Álbum Musical.

Stranger In The Alps. 2017. De Phoebe Bridgers. EUA: Dead Oceans. Álbum Musical.