Capítulo II – Cinema – Cinema

Philosophy and psychology in Charlie Kaufman’s Work

Filosofia e psicologia na obra de Charlie Kaufman

Marcos De Bona de Carvalho

Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil

Abstract

After writing screenplays for films such as Being John Malkovich (1999), Adaptation (2002) and Eternal Sunshine of the Spotless Mind (2004), exploring human relationships in a very peculiar way, Charlie Kaufman conquered his space in the Hollywood film industry by making works that achieved the rare intention of being both “art films” and commercial films.
The screenwriter usually builds unusual plots that mix fantasy, science fiction and surrealism, creating an evident signature in his films. Among the elements that highlight the creativity in Kaufman’s scripts are: a portal that takes people into the mind of actor John Malkovich, a screenwriter who writes the script for the film we are watching, a couple that erases each other from their memory, a playwright who creates several simulacra of his life in a shed, a man who, in an animated film, sees all the other characters with the same face and a woman who visits the home of her boyfriend’s parents where they seem to grow old and rejuvenate by behaving in a peculiar way.
However, although very important, these characteristics constitute only the most superficial layer of Kaufman’s works. Explored further, they can be studied from psychological and philosophical perspectives, the demonstration of which is my intention in this article.
For that, I will mainly analyse the films Being John Malkovich, Eternal Sunshine of the Spotless Mind and I am thinking of ending things, according to the studies by Nietzsche, Freud, Schopenhauer, among others.

Keywords: Charlie Kaufman, Philosophy, Psychology, Freud, Nietzsche.

Introdução

Charlie Kaufman tornou-se um dos roteiristas mais requisitados de Hollywood no começo deste século após a repercussão dos filmes Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich,1999), Adaptação (Adaptation, 2002) e Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal sunshine of the spotless mind, 2004). Os dois primeiros, dirigidos por Spike Jonze, receberam indicações ao Oscar de melhor roteiro original e melhor roteiro adaptado, respectivamente. O terceiro, dirigido por Michel Gondry, foi premiado com o Oscar de melhor roteiro original.

Com enredos insólitos que misturam fantasia, ficção científica e surrealismo, o roteirista logo se destacou por conseguir imprimir uma assinatura que o diferenciava de seus pares. Alguns dos elementos que compõem tais enredos são: um portal que leva pessoas para dentro da mente do ator John Malkovich (Quero ser John Malkovich); uma mulher com o corpo coberto de pelos que vive na selva (Natureza quase humana, 2001); um roteirista que escreve o roteiro do filme ao qual estamos assistindo (Adaptação); um casal que apaga um ao outro de sua memória (Brilho eterno de uma mente sem lembranças); um dramaturgo que cria vários simulacros de sua vida em um galpão (Sinédoque, Nova York, 2008); um homem que, em um filme de animação, enxerga a todos os outros personagens com o mesmo rosto (Anomalisa, 2015); e uma mulher que visita a casa dos pais de seu namorado onde os mesmos parecem envelhecer e rejuvenescer comportando-se de forma peculiar (Estou pensando em acabar com tudo, 2020). Também em 2020, Kaufman colocou esses mesmos elementos em seu primeiro romance, Antkind, cujo protagonista, após ter contato com um filme com três meses de duração, perde a memória e faz de tudo para se lembrar do mesmo filme.

Esse tipo de enredo costuma agradar a apenas um nicho de adeptos, consumidores fiéis de determinado gênero cinematográfico, porém Kaufman conseguiu transcender essa condição. Seus filmes foram bastante reconhecidos pela crítica especializada e angariaram um público mais amplo, apreciador de filmes que vão além da fórmula repetitiva dos blockbusters hollywoodianos. David LaRocca destaca como essas características contribuíram para o reconhecimento da autoria de Kaufman, subvertendo inclusive um conceito muito comum na indústria norte-americana, o de considerar os diretores como os autores de seus filmes.

Devido ao impacto crítico e cultural de seus roteiros, os filmes são frequentemente chamados de “filmes de Kaufman”, omitindo assim a influência usual atribuída aos diretores que os realizaram. (...) O sucesso de Kaufman como roteirista desafia a noção de longa data do diretor como autor, uma vez que é altamente anticonvencional falar de um roteirista como a principal força criativa de um filme. (LaRocca 2011)

Seus roteiros deram origem a filmes cheios de personalidade, que podem não ter feito o sucesso de bilheteria comum às grandes produções de Hollywood. Contudo os mesmos não deixam de ser filmes comerciais, Patrick Quinn cunha uma curiosa denominação para seus roteiros.

Os scripts de Kaufman exploram relacionamentos e negociam com sinceridade com temas de arte versus comércio. É importante destacar esta característica, pois eu diria que Quero ser John Malkovich é aquele raro unicórnio cinematográfico: um filme de arte comercial. E o seu sucesso de crítica e de público dominariam as expectativas dos futuros projetos de Kaufman. (Quinn 2018, 163)

Apesar de muito importantes, essas características compõem apenas a camada mais superficial dos trabalhos do roteirista. Pois quando explorados mais a fundo, encontramos conceitos de filosofia e psicologia. Meu intento neste artigo é demonstrar a aplicação de tais conceitos nos roteiros de Kaufman.

Filosofia e Psicologia

Os roteiros de Charlie Kaufman já foram analisados à luz de estudos de Freud, Nietzsche, Lacan, Schopenhauer, Kierkegaard, Pierre Janet, dentre vários outros. Zadie Smith afirma que “Os filmes de Kaufman têm sido um tanto Schopenhauerianos, no sentido de que, de uma forma ou de outra, falam sobre sofrimento.” (Smith apud Quinn 2018, 173) De fato, os protagonistas de Kaufman costumam apresentar um grau de sofrimento acima do comum. Patrick Quinn, nos chama atenção para outra característica marcante na obra do roteirista:

como os contos de fadas, os roteiros de Kaufman operam em um nível profundamente psicológico. Muitas das imagens que ele descreve, como a casa de praia em Brilho eterno de uma mente sem lembranças foram lidas como imagens dos sonhos freudianos. (Quinn 2018, 168)

A psicologia e a filosofia são perceptíveis à medida que, apesar da aura de fantasia que permeia seus enredos, Kaufman se preocupa em compor personagens “reais”. Seus protagonistas, principalmente, são homens que apresentam falhas e virtudes, talentos e defeitos, o que os humaniza, tornando-os complexos e mais semelhantes a nós mesmos. Em Quero ser John Malkovich Craig usa sua grande habilidade manual para manipular seus títeres, contudo é carente, ingênuo e inescrupuloso. Em Adaptação, Charlie é um excelente roteirista, porém inseguro, também carente e um tanto covarde.

De certa forma, criamos o cinema para nos ver, para nos encontrar, ou para nos perder, mas se nós mesmos já somos um reflexo do que acontece no cinema, então somos o reflexo de uma reflexão. (...) O interessante é que um tema se repete em alguns dos filmes de Kaufman; seus protagonistas estão criando um reflexo de si mesmos para descobrirem quem eles são. (Dimitrakopoulou, 5)

O reflexo de si mesmo e a investigação da própria mente constituem a principal assinatura do roteirista. Em Quero ser John Malkovich, Craig constrói um boneco de si mesmo para representar suas vontades e John Malkovich chega a entrar em um portal para sua própria mente, onde vê representados seus desejos mais ocultos. Em Adaptação, Charlie Kaufman (o roteirista) cria Charlie Kaufman (o personagem). Em Estou pensando em acabar com tudo, Jake cria uma fantasia sobre sua própria história. O exemplo mais singular aparece em Sinédoque, Nova York, que apresenta Caden Cotard encenando sua própria vida em um galpão, dirigindo um ator que o representa. Sua história chega ao ponto em que temos mais um ator que também o representa, dessa vez dirigido pelo primeiro ator.

Esses personagens fazem, em maior ou menor grau, as vezes de alter ego de Kaufman, o que LaRocca define como pseudoanonimato:

Às vezes Kaufman usa um pseudônimo para nomear um personagem que parece representá-lo, ou substituí-lo. (...) O pseudoanonimato é uma forma de afastar-se do próprio trabalho; e o uso recorrente do pseudoanonimato por Kaufman sugere um desejo aparente de distância a si mesmo como autor ou de trazer tanta atenção para o truque que o nome - ou autor - não é mais o foco. Não podemos ver o que está diretamente à nossa frente, e por essa razão podemos estar em uma posição melhor, mais receptiva, para ver o que ele quer que vejamos: não Kaufman, mas o que Kaufman vê. (LaRocca 2011)

Persistindo no propósito de investigar a mente humana, o roteirista usa do subterfúgio do surrealismo e da fantasia. O cérebro, um órgão cujo funcionamento é bastante complexo e ainda pouco entendido, é pródigo em produzir imagens oníricas e surreais. Por isso Kaufman cria situações surrealistas como catalisador para que os personagens expressem suas humanidades. Patrick Quinn define muito bem o funcionamento dos enredos de Kaufman por meio do uso do que ele denomina “facilitadores mágicos”:

“facilitadores mágicos” são os catalisadores que impulsionam a história para explorar temas abstratos. O dispositivo é semelhante ao visto no gênero realismo-mágico, que expressa uma visão essencialmente realista do mundo, mas adiciona um toque de magia. A natureza realista é importante porque Kaufman está sempre tentando se comunicar de forma autêntica com seu público. Ele precisa que o público acredite na narrativa para que tenha uma resposta sincera a ela. (Quinn 2018, 168)

Visão corroborada pelo próprio roteirista que, para defender a veracidade contida em seus personagens, apesar de os mesmos viverem situações fora da realidade convencional, afirma:

Eu acho que você pode ser tão estranho quanto quiser ou tão surreal quanto quiser, contanto que os personagens sejam baseados em algo real. Você pode colocá-los em qualquer situação ou realidade, desde que suas reações tenham algo a ver com os seres humanos e você esteja focado nesse elemento. Não estou interessado em fazer coisas necessariamente realistas, obviamente. Eu gosto de coisas fantasiosas. Mas não pode ser apenas fantasioso sem pessoas nele. (Kaufman apud Quinn 2018, 167)

Os dispositivos fantasiosos criados em seus roteiros o possibilitam explorar de forma original os temas específicos de cada filme. Os vários galpões, uns dentro dos outros, em Sinédoque, Nova York demonstram o quão absurdo é tentar recriar realidades artificialmente. Caden Cotard, o protagonista, se perde no meio dos seus vários simulacros de vida causando frustrações, dissabores e até a morte de um dos atores que participava de seu projeto. “Caden tenta usar a arte para transformar a realidade em ilusão, demonstrando que pode recriá-la” (Deming 2011).

O portal que encaminha pessoas para dentro da consciência de John Malkovich explora conceitos de identidade e celebridade. A J. M. Inc., empresa criada para explorar a experiência de ser John Malkovich por 15 minutos (os ingressos custavam 200 dólares), proporciona a seus clientes enxergar o mundo através dos olhos do ator. Mesmo assim aquelas pessoas não desenvolviam empatia por Malkovich, elas apenas experimentavam o que não possuíam em suas vidas, fama, sucesso e reconhecimento. A falta de empatia também acomete Craig, o protagonista do filme, e faz com que ele se apodere do corpo do ator para realizar seus objetivos pessoais, pois não era capaz de fazê-lo por si mesmo, usando o sua própria identidade.

Algo semelhante acontece com o aparato de apagar memórias em Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Tal estratagema permite ao roteirista discorrer sobre relacionamentos amorosos, geradores de experiências extremas, que podem ser incrivelmente satisfatórias ou cruelmente traumatizantes, mas sobretudo autênticas. O desejo de extinguir experiências traumáticas é questionado à medida em que o roteiro demonstra que elas, além de inevitáveis, são importantes para o amadurecimento de qualquer ser humano. Mais uma vez encontramos relação com um conceito de Nietzsche “O que não me mata torna-me mais forte” (Nietzsche apud Percy, 2011).

Kaufman chega a brincar com citações e falas filosóficas ditas por seus personagens. Craig, após entrar no portal de Malkovich, diz para Maxine tentando impressioná-la: “Isso levanta todos os tipos de questões filosóficas sobre a natureza do self, sobre a existência da alma. Eu sou eu? Malkovich é Malkovich?” (Quero ser John Malkovich 2000). Em Brilho eterno de uma mente sem lembranças, a personagem Mary reproduz frases aleatórias de um livro de citações. Também tentando impressionar alguém, ela cita Nietzsche “Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram o melhor de seus equívocos” (Nietzsche apud Brilho eterno de uma mente sem lembranças 2004).

Kaufman usa Nietzsche porque ambos querem que as pessoas vivam mais autenticamente. Ambos também têm a mesma visão de vida. A citação de Nietzsche: “Viver é sofrer, sobreviver é encontrar algum significado no sofrimento” também pode ser usada como o tema recorrente do trabalho de Kaufman. (Quinn 2018, 172)

Voltando à questão do sofrimento sob o ponto de vista de Schopenhauer, vamos aos exemplos mais claros na obra de Kaufman: o personagem Charlie Kaufman de Adaptação (o roteirista colocou a si próprio como personagem nesse filme), se angustia para realizar o trabalho de adaptar um livro para um roteiro; Joel, de Brilho eterno de uma mente sem lembranças, luta desesperadamente contra sua própria decisão de apagar a namorada de suas memórias. A partir de Sinédoque, Nova York (quando o roteirista passou a dirigir seus filmes), esse sentimento é ainda mais evidenciado. O filme mostra um dramaturgo extremamente frustrado e depressivo; o protagonista de Anomalisa é infeliz a ponto de projetar seu vazio existencial e sua falta de empatia em todas as outras pessoas com quem convive. O sofrimento chega ao ápice em Estou pensando em acabar com tudo, que conta a história de vida de um personagem que, prestes a cometer suicídio, fantasia sobre como poderia ter sido alguém mais feliz e relevante para o mundo.

Maxine, Lotte, Clementine, Lucy, as mulheres como fonte de sofrimento

A mesma constatação de Zadie Smith citada no começo do tópico anterior versa sobre o papel da mulher com relação ao sofrimento masculino, sua inevitabilidade e a possibilidade de um alívio momentâneo e ilusório: “Esse alívio tende a chegar, para Kaufman, na forma de uma mulher (embora essas mulheres são quase sempre a causa de muito sofrimento)” (Smith apud Quinn 2018, 173). Hessel complementa esse pensamento:

Por pior que seja a miséria humana dos homens de Kaufman, eles nunca perdem sua posição: são intelectuais metropolitanos na maioria das vezes, à beira do reconhecimento do seu gênio ou de colher os louros por seu autoflagelo, sempre cercados de mulheres com diligente espírito maternal. (Hessel 2020)

Sendo o amor uma das maiores fontes de sofrimento de homens (e mulheres), naturalmente Kaufman explora relacionamentos amorosos em seus roteiros. Porém essa exploração vai muito além das comédias românticas de Hollywood, tornando-se uma investigação sobre relações humanas entre personagens realmente complexos. Os exemplos que retratam mais claramente mulheres como causadoras de sofrimento e alívio momentâneo estão em Quero ser John Malkovich (que analisaremos mais adiante), e Brilho eterno de uma mente sem lembranças.

O filme de 2004 começa nos apresentando o casal Joel e Clementine. Ambos se encontram em Montauk (localidade próxima a Nova York) e fazem uma breve viagem de trem quando desenvolvem um diálogo um tanto peculiar, porém amigável. Aparentemente estão se encontrando pela primeira vez. Contudo, no decorrer do filme, descobrimos que o casal já tivera um relacionamento e haviam apagado um ao outro de suas memórias. Na sequência seguinte voltamos no tempo e vemos Joel chorando copiosamente em seu carro e, em outra cena, tentando conversar com Clementine, mas ela age como se não o conhecesse (naquele momento ela já o havia apagado de suas memórias).

Ao descobrir o que sua ex-namorada fizera, Joel decide fazer o mesmo, tentando eliminar a fonte de seu sofrimento. Porém, durante o procedimento, o personagem se lembra dos bons momentos vividos com Clementine (alívio para seu sofrimento). Isso faz com que Joel se arrependa e tente, desesperadamente e sem êxito, burlar o procedimento. Então o roteiro retoma do ponto em que havia parado na primeira sequência do filme. O casal está feliz até descobrirem já haviam tido um relacionamento que acabara mal, com ambos dando depoimentos magoados e rancorosos um sobre o outro. Portanto o roteiro investiga de maneira bastante original uma constatação muito simples já apresentada em tantas outras histórias, parceiros amorosos são fonte constante de alívio e sofrimento uns dos outros. O desfecho do roteiro é (aparentemente) feliz. Depois de tantas idas e vindas, o casal resolve se dar mais uma chance começando um novo relacionamento. Explico o porquê do “aparentemente”.

A eterna ocorrência de Nietzsche em Brilho eterno de uma mente sem lembranças

Esse final nos revela um dos conceitos filosóficos mais evidentes em uma obra de Kaufman, a eterna ocorrência de Nietzsche. Eventos, ações, diálogos, repetem-se, ora sutilmente, ora salientemente, reiteradamente no roteiro.

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças examina explicitamente a noção da recorrência eterna. A escrita de Kaufman também parece refletir o perspectivismo de Nietzsche, bem como sugerindo um conceito fraturado do self que é distintamente nietzschiano. (Shaw, 2011)

Joel e Clementine haviam se conhecido em uma festa de praia em Montauk. Ambos deslocados em um canto travam um diálogo peculiar, porém amigável. Joel e Clementine passam o dia juntos. Já no fim da tarde ela invade uma casa seguida por um relutante Joel. Apreensivo, Joel sai da casa, Clementine pede para Joel voltar. Com medo, ele vai embora deixando Clementine na casa. Em outro dia Joel procura Clementine na livraria onde ela trabalha na tentativa de começar um relacionamento, Clementine fala para Joel: “Muitos caras pensam que eu sou um conceito e que eu os completo, ou que eu os farei sentir vivos. Mas eu sou apenas uma garota problemática procurando minha paz de espírito” (Brilho eterno de uma mente sem lembranças 2004). Joel insiste e, de forma trôpega, o casal começa um relacionamento pela primeira vez.

O primeiro relacionamento entre Joel e Clementine começa bem até começarem as brigas. Em uma espécie de lua de mel, quando observam estrelas deitados em um lago congelado, Joel fala para Clementine: “Eu poderia morrer agora mesmo Clem, eu estou apenas... feliz. Eu nunca senti isso antes. Eu estou exatamente onde quero estar” (Brilho eterno de uma mente sem lembranças 2004). O relacionamento continua bem, Joel e Clementine brincam na neve na praia de Montauk, a neve e o gelo prenunciam o esfriamento da relação. Em um momento íntimo, Joel fala algo e Clementine responde: “Estou bem brava por você ter me dito isso” (Brilho eterno de uma mente sem lembranças 2004).

O que é mostrado no começo e no fim do filme (o roteiro já sugeria a montagem remetendo a reiteradas ocorrências), é um relacionamento entre os mesmos personagens iniciando-se pela segunda vez, da mesma forma trôpega, com sutis e ocasionais inversões de papel. Temos novamente a ida ao lago congelado, novamente Clementine irritada com algo dito por Joel. Por fim, remetendo ao evento da casa na praia em Montauk, o casal está na casa de Joel após uma situação embaraçosa. Clementine fala: “Eu fico realmente magoada por você ter dito isso” (Brilho 2004). Dessa vez é Clementine que está deixando Joel na casa. Como fora atrás dela na livraria para começar o primeiro relacionamento, ele, insistente vai atrás dela, ela repete a fala quase idêntica da primeira ocasião: “Eu não sou um conceito, Joel. Eu sou apenas uma garota problemática procurando minha paz de espírito.” Joel responde “Ok.” (Brilho eterno de uma mente sem lembranças 2004).

O filme termina com Joel e Clementine brincando na neve da praia em Montauk, quando Joel joga neve em Clementine. Percebemos um curioso detalhe na montagem: há um corte no que normalmente seria um plano único, voltamos poucos segundos no tempo e vemos Joel novamente jogando neve em Clementine, depois temos um novo corte, mais uma volta no tempo e Joel novamente jogando neve em Clementine, o mesmo plano aparece três vezes. Um detalhe sutil que evoca mais uma vez a eterna ocorrência de Nietzsche. Aqueles cortes significavam voltas de poucos segundos ou avanços de muitos anos no tempo? Podemos interpretar que novamente a neve prenuncia o esfriamento do relacionamento de Joel e Clementine, então viriam as brigas, um apagaria o outro da memória, ambos se (re)encontrariam e permaneceriam num ciclo infindável (re)começando relacionamentos pela terceira, quarta, quinta vez.

O eterno retorno funciona para Nietzsche como uma medida crucial de übermenschlichkeit (o que é necessário para ser um além-homem). O teste gira em torno de nossa reação à perspectiva de repetir esta vida indefinidamente, sem alteração: “Se este pensamento tomasse conta de você, isso mudaria sua atitude ou talvez o esmagaria. A questão, ‘Você deseja isso mais uma vez e inúmeras vezes mais?’ iria influir sobre suas ações como o maior peso. Ou o quanto você está disposto a transformar a si e a sua vida para não desejar nada mais do que essa confirmação eterna e realizá-la?” Podemos atingir o status de além-homem somente quando abraçamos essa perspectiva como uma consumação a ser devotamente desejada. (Shaw 2011)

Nietzsche defende a eterna ocorrência como algo a ser almejado para conquistarmos a condição de além-homem. Porém em Brilho eterno de uma mente sem lembranças podemos questionar se é isso o que ocorre. O conceito filosófico elaborado por Nietzsche condiz com a trajetória de vida conjecturada para Joel e Clementine? O filme nos faz entender que seus defeitos e suas falhas afloram a incompatibilidade entre ambos. No entanto, devemos lembrar que, sendo ao mesmo tempo a fonte de sofrimento e alívio um do outro, o casal precisa se encontrar para viver seus momentos de plena felicidade. Esses breves momentos de felicidade desfrutados a cada novo começo compensam as brigas e o sofrimento causado pelo término dos relacionamentos? Ao viver esse eterno ciclo de apagar as memórias, é possível interpretar que Joel e Clementine chegarão à velhice sentindo um estranho e incompreensível vazio na alma, a sensação de que pouco viveram, pois a essa altura a maior parte de suas lembranças terá sido apagada. O que diferencia a situação vivida no filme do que é proposto por Nietzsche é que Joel e Clementine vivem a eterna ocorrência sem perceberem, suas vidas voltam sempre ao mesmo lugar sem que eles se deem conta, enquanto o além-homem possui plena consciência de uma consumação a ser devotamente desejada.

A vontade de poder e a representação do self em Quero ser John Malkovich

Questões filosóficas, sobretudo Nietzscheanas, já apareciam no primeiro roteiro de Kaufman. O filme de 1999 nos apresenta Craig, um titereiro talentoso, porém frustrado, casado com Lotte. Ele começa a trabalhar numa empresa chamada Lester Corp. onde conhece Maxine, por quem se apaixona. Pouco depois descobre um portal que o leva diretamente para a mente de John Malkovich. Ele se apodera do corpo do ator, transforma-o num titereiro de sucesso e casa-se com Maxine. Então descobrimos que o corpo de John Malkovich é um recipiente a ser ocupado por Dr. Lester, dono da Lester Corp. para viver eternamente saltando de corpo em corpo, mas para fazer isso ele precisa tirar Craig do corpo de Malkovich. No clímax do filme, Craig deixa o corpo do ator em uma tentativa frustrada de salvar seu casamento com Maxine e o corpo do ator é ocupado por Dr. Lester. Lotte e Maxine se casam e criam a filha de Maxine com Malkovich. Craig tem um fim trágico, fica preso dentro do corpo da filha de Maxine sem conseguir controlar seus movimentos.

Vamos analisar nesse enredo uma característica fundamental para obras que se ancoram na narrativa clássica e que constitui um dos mais importantes aspectos da filosofia de Nietzsche.

A maioria dos estudiosos de Nietzsche concorda que suas realizações filosóficas mais significativas foram sua crítica ao Cristianismo e sua afirmação do Übermensch, bem como os conceitos de eterna recorrência e da vontade de poder. (Shaw 2011)

O último deles é o que nos interessa. As vontades de poder representam os conflitos internos dos personagens elaborados pelo roteirista. As obras de narrativa clássica apresentam um protagonista que almeja um objetivo, e para atingi-lo é necessária uma motivação. “A hipótese explicativa central da visão de mundo de Nietzsche é a ideia da vontade de poder, que funciona como uma teoria do valor, a psicologia profunda que revela a verdadeira fonte de toda a motivação humana” (Shaw 2011).

O primeiro ato do roteiro de Quero ser John Malkovich, como é de praxe, ao apresentar o protagonista revela suas vontades de poder (reconhecimento e amor), neste caso através de frustrações. Ele não possui reconhecimento como artista e vive um relacionamento desinteressante com sua esposa. Partindo deste ponto, Craig viverá uma trajetória incomum. A maioria dos filmes apresenta o que Aristóteles definiu como arco de comédia. Contudo, este roteiro nos apresenta um arco de tragédia. Conceitos assim explicados pela roteirista Jill Chamberlain:

De acordo com Aristóteles uma comédia é quando temos um protagonista que supera uma fraqueza, passa por uma mudança e provavelmente tem um final feliz. Estruturalmente também temos a tragédia, que será o oposto. Então temos o mesmo ponto de partida, o protagonista expressa seu desejo, passa por um ponto sem retorno, mas ao invés de ir cada vez mais para baixo para depois subir e ter um final feliz, ele vai na direção oposta, cada vez mais para cima antes de descer e ter seu final infeliz. (Chamberlain 2019)

Para atingir suas vontades de poder e solucionar seus conflitos internos, Craig adquire motivações específicas, conquistar o amor de Maxine e apoderar-se do corpo de Malkovich para alcançar sucesso profissional. Isso estabelece seus conflitos externos, pois à princípio Maxine o despreza, e naturalmente Malkovich não quer perder o domínio de seu corpo. No segundo ato vemos o protagonista vencer seus conflitos, tendo sua arte reconhecida e casando-se com Maxine. Assim ele alcança o topo de sua trajetória. Porém no terceiro ato, o clímax do filme mostra-o abrindo mão de tudo o que conquistara e seu desfecho é trágico.

Se as principais motivações de Craig são reconhecimento e amor, encontramos no personagem de Dr. Lester praticamente uma síntese de conceitos de Freud sobre sexualidade, medo e morte.

Freud ao discutir em seu texto “A moral sexual cultural e a nervosidade moderna” (1908) dizia que a cultura da época se edificava sobre o “sufocamento das pulsões” e que a pulsão sexual não está, em sua origem a serviço da reprodução, senão que tem por meta o ganho de prazer. Mostrava que a limitação do comércio sexual faz aumentar o medo frente à vida e a angústia frente à morte. Medo e morte se associam aos limites da sexualidade e principalmente nas formas de seu exercício. (Almeida 2017)

A principal motivação de Dr. Lester é o sexo. Porém seus conflitos internos o angustiam por, aos 105 anos, não possuir mais a pulsão sexual da juventude. Além disso, ficam claros o medo da finitude e a rejeição à velhice, expressados pelo personagem sem nenhum pudor. Para resolver ambos os conflitos, o corpo de John Malkovich simboliza para Lester uma espécie de fonte da juventude que o permitirá realizar suas fantasias sexuais. Isso é claramente demonstrado no diálogo travado com Craig quando o personagem fala sobre Floris, recepcionista da Lester Corp.

DR. LESTER. Mas ninguém quer morrer. Ah, ser um homem jovem novamente, hein [Craig] Schwartz? Talvez então Floris me desse atenção. CRAIG. Mas os idosos têm tanto a oferecer, senhor. Eles são um link com a história. DR. LESTER. Eu não quero ser nenhuma porcaria de link. Eu quero sentir as coxas nuas de Floris contra as minhas. Quero que meu corpo inspire luxúria naquela mulher bela e complexa. Quero que ela trema em um espasmo de êxtase enquanto eu a penetro...
(Quero ser John Malkovich 1999)

Amor, reconhecimento e sexo são algumas das principais vontades de poder que movem a humanidade. John Malkovich já possuía o reconhecimento e começava a conquistar o amor e o sexo em um relacionamento com Maxine, que, com sua ganância desmedida e sua falta de escrúpulos, nos apresenta mais uma das grandes motivações humanas, a ambição por riqueza.

Outro conceito de Nietzsche ocorrente neste roteiro é a visão do self, definida por Daniel Shaw como “uma concatenação de impulsos de poder que lutam continuamente pelo domínio dentro de cada organismo humano individual” (Shaw 2011). Kaufman evoca a visão do self de duas formas bastante peculiares. A luta pelo domínio de um organismo humano aparece pela primeira vez sendo travada por outros seres humanos motivados por suas vontades de poder. O organismo em questão é o corpo de John Malkovich, que é disputado por Craig, Dr. Lester e pelo próprio Malkovich.

A segunda representação aparece numa cena em que Malkovich entra no portal e se depara com o que podemos entender como a visão interna de sua própria mente. Ele aparece em um restaurante pleno de “outras” pessoas, porém todas elas possuem o rosto de Malkovich, incluindo a mulher que o acompanha à mesa tentando seduzi-lo, o garçom prestativo, o grupo de amigos que conversam animadamente em uma outra mesa, a cantora que canta sensualmente deitada em um piano de cauda, o próprio pianista e uma criança. Cada uma dessas pessoas representa um impulso de poder que luta para dominar o organismo de John Malkovich.

Voltando à personagem de Maxine, ela se encaixa perfeitamente na visão de Schopenhauer sobre um possível papel da mulher com relação à inevitabilidade do sofrimento e à possibilidade de um alívio momentâneo e ilusório. Percebendo a devoção e a subserviência de Craig, ela põe em prática todo o seu poder de manipulação.

Ainda no primeiro ato do filme, ela convence Craig a explorar o portal para realizar sua ambição de riqueza. Maxine tem a ideia de cobrar duzentos dólares para pessoas que queiram passar pela experiência de serem John Malkovich por quinze minutos. O rapaz leva a ideia adiante, pois entende que tornando-se sócio de seu objeto de desejo, aumentaria as chances de conquistá-la.

Craig se recusa a perceber, apesar de vários sinais recebidos, que Maxine o despreza, e por isso irá se tornar sua grande fonte de sofrimento. O plano inicial não dá certo, ele apenas consegue conquistá-la quando se apodera do corpo de Malkovich. Contudo, após um curto período de felicidade, a relação está desgastada, mas Craig não se dá conta.

No fim do segundo ato ele recebe um telefonema de Dr. Lester, que, juntamente com Lotte (sua outra fonte de sofrimento), havia sequestrado Maxine. Ambos ameaçam matá-la caso Craig não deixe o corpo de Malkovich. O clímax do filme mostra como o protagonista, agora manipulado por Lotte e Dr. Lester, cede às pressões para salvar seu objeto de desejo. Porém Maxine não o quer mais, está apaixonada por Lotte, com quem decide criar a filha que carrega em seu ventre. Craig volta ao portal, mas dessa vez é encaminhado para o corpo da filha de Maxine (o próximo corpo recipiente a ser ocupado por Dr. Lester), onde ficará preso e incapaz de controlar seus movimentos.

A grande ironia do roteiro é que Craig, por ser um manipulador de bonecos, consegue manipular fisicamente o corpo de Malkovich. Contudo ele é vítima de manipulação psicológica dos outros personagens tornando-se refém de suas vontades de poder (Lotte também estava apaixonada por Maxine, por isso ajuda Lester a tirar Craig do corpo de Malkovich). No desfecho do filme, preso no corpo de outrem, ele perde até mesmo sua capacidade de manipulação física.

Também compondo o clímax do filme, temos uma referência à psicologia na cena em que Maxine e Lotte entram no portal e passam pelo subconsciente de John Malkovich. As duas personagens visitam várias experiências traumáticas do ator, como surpreender seus pais fazendo sexo, sua dificuldade em se aproximar de mulheres na juventude e o bullying sofrido no ônibus escolar após urinar nas calças.

Portanto constatamos que já em seu primeiro roteiro Kaufman (não intencionalmente, como ele mesmo afirma) evoca conceitos relacionados à filosofia e psicologia explorados por estudiosos como Nietzsche, Schopenhauer, Freud e Pierre Janet. Característica que estaria cada vez mais presente em seu trabalho.

Estou pensando em acabar com tudo e sua profusão de interpretações

O filme mais recente de Charlie Kaufman, adaptado do romance homônimo de Iain Reid, pode ser considerado o mais enigmático, o que (ao lado de Sinédoque, Nova York) o mais difícil de entender, além de ser o que permite as mais diversas interpretações.

Estou pensando em acabar com tudo brinca com muitos conceitos familiares de Kaufman, como duplas identidades, realidades de sonho, homens frustrados e solitários e as mulheres que eles esperam que os salvem. (...) pode ser seu trabalho mais intencionalmente inescrutável. (Robinson 2020)

O romance que serviu de inspiração para o livro é mais direto em deixar claro alguns fatos incomuns que evocam elementos típicos ao gênero de fantasia e seu caráter surrealista. No entanto, Charlie Kaufman optou por escrever um roteiro em que esses fatos são menos expostos. Exigindo do espectador um maior esforço para entendê-lo e permitindo diferentes interpretações. Como afirmou o próprio roteirista: “Eu deixo as pessoas terem suas experiências, então eu realmente não tenho expectativas sobre o que elas vão pensar. Eu realmente apoio a interpretação de qualquer pessoa” (Kaufman apud Kohn 2020).

Aparentemente a protagonista é a personagem creditada como a “jovem mulher” (Jessie Buckley) cujo nome muda ao longo do filme, ela é chamada de Lucy, Louise, Lucia, Amy e Tonya: “há uma diferença central em relação aos trabalhos famosos de Kaufman: o ponto de vista principal agora é feminino” (Hessel 2020). Realmente temos uma quebra de paradigmas da assinatura do roteirista. Todos os filmes anteriores e também seu romance recém lançado apresentam protagonistas homens, o que é compreensível visto que Kaufman costuma colocar reflexões bastante pessoais em seus roteiros. Porém o protagonismo de Lucy/Louise/Lucia/Amy/Tonya também propicia diferentes interpretações.

O filme conta a história de Lucy (vou referir-me à personagem por sua primeira denominação ocorrida no roteiro) que vai conhecer os pais do namorado (Jesse Plemons) na fazenda onde moram. Começamos com um longo diálogo na viagem de ida. As cenas na fazenda começam a ressaltar o surrealismo característico dos roteiros de Kaufman. Na viagem de volta, o casal pára na escola onde Jake estudara em sua infância. No lugar trabalha um misterioso Zelador (Guy Boyd) que aparece constantemente durante o filme em cenas que entremeiam a trajetória do casal. Cenas que retratam sua rotina insossa num dia de trabalho.

No final do livro de Reid, fica claro que Jake, Lucy e o Zelador são a mesma pessoa. O Zelador, um homem frustrado vivendo o último dia de sua vida, fantasia sobre uma trajetória alternativa e muito mais satisfatória que gostaria de ter vivido. Por isso ele se imagina ainda jovem, com uma namorada culta e inteligente, porém ela é apenas uma projeção de sua mente.

No entanto, é importante não resumir esta “revelação” a uma simples muleta-clichê de thrillers psicológicos – algo que o próprio Kaufman já havia ironizado em Adaptação. Não se trata, aqui, do velho “eles eram a mesma pessoa o tempo todo”, mas da expressão natural da investigação de Kaufman (e de Iain Reid, autor do livro que o inspirou) sobre a formação de nossas individualidades, de nossas memórias e da coleção de dores que nos tornam quem somos. (Villaça 2020)

Durante a viagem de carro no começo do filme, o diálogo desenvolvido pelo casal é permeado por pensamentos de Lucy em narração voice over, outra característica marcante de Kaufman sempre ocorrida com seus protagonistas. Em um dado momento ouvimos seu pensamento: “Estou pensando em acabar com tudo” (Estou pensando em acabar com tudo 2020), significando que ela pensa em terminar o namoro. Um evidente conflito interno, visto que conhecer os pais do namorado significa um passo adiante em um relacionamento. O curioso é que Jake parece ouvir os pensamentos da namorada, perguntando-a logo em seguida o que ela teria dito. Afinal, o diálogo acontece na mente de Jake quando zelador. Apesar de tentar criar uma trajetória perfeita para si, o personagem não consegue fugir de um severo e nada indulgente auto-julgamento, constatando que aquela projeção de namorada perfeita certamente o rejeitaria.

Chegando à fazenda, a situação se torna bastante estranha e desconfortável, principalmente para Lucy. Os pais de Jake parecem bem desacostumados com qualquer interação social, proferindo falas incomuns ou não sabendo o que dizer. Jake também muda sua atitude, tornando-se impaciente e agressivo com seus progenitores. Lucy vê uma foto sua de criança em um porta retrato, que Jake diz ser uma foto de si próprio. Ao indagar sobre o porão da casa, seu namorado demonstra inquietação, e não deseja de nenhuma forma que ela entre ali. O porão de uma casa, algo corriqueiro em filmes americanos, é comumente utilizado para representar o subconsciente de um personagem. Por isso Jake receia que Lucy entre ali e descubra seus segredos. Pouco depois, ao entrar no quarto de infância de Jake, ela se depara com obras de arte que ela mesma pensava ter feito, pois no começo do filme ela é apresentada como pintora. Contudo, da mesma forma que muda de nome, ela muda de profissão. Como explica Joanna Robinson:

Porque ele sabe tão pouco sobre esta jovem que ele nunca realmente conhecera anos atrás, o Jake mais velho criou uma garota de fantasia em grande parte composta de livros que leu e filmes que viu. Ela continua mudando ao longo do filme enquanto ele experimenta diferentes versões para ela, esperando que possa pousar em uma versão em que tudo funcione para ambos, para ele. (...) É por isso que em um minuto ela é uma fisicista e no próximo ela é uma poetisa. É por isso que o poema que ela afirma ter escrito (e recita no carro) é, na verdade, de Rotten Perfect Mouth de Eva H.D. (Robinson 2020)

Por volta do que corresponde à metade do roteiro, o surrealismo característico de Kaufman, até então pouco perceptível, aflora a olhos vistos. Lucy começa a explorar a casa e encontra os pais de Jake com diferentes idades, ambos parecem envelhecer e rejuvenescer a cada nova interação com a jovem, e uma vez a mãe de Jake chega a aparecer morta.

Como é praxe no cinema do autor, uma situação mundana (...) logo se transforma numa espiral de provações da mente que englobam as maiores questões da existência. Aqui, Kaufman acrescenta uma camada intelectualizada de hipertextos, citando de Guy Debord a John Cassavetes, a título de lastro bibliográfico. (Hessel 2020)

Depois de muito insistir, Lucy convence Jake a voltar para casa. A viagem de volta complementa a fantasia do Zelador ao relembrar lugares importantes de sua infância, e mais uma vez Jake não consegue ocultar seus traumas. No meio do caminho param em uma sorveteria, onde duas das atendentes são ex-colegas de escola que praticavam bullying com o rapaz. Jake, incapaz de interagir com as mesmas, pede para Lucy fazer os pedidos que são atendidos apenas por uma terceira atendente, também ex-colega de Jake e também vítima de bullying.

A parada na sorveteria representa mais uma decisão errada na vida de Jake. Além de ter que enfrentar as meninas que faziam bullying na escola, após mal tocarem seus sorvetes, ele conclui que não fazia sentido tomar um sorvete no meio da nevasca que estava caindo. Os sorvetes começam a derreter no suporte para copos em seu carro, causando mais um problema. A câmera mostra os copos reiteradamente.

De volta ao carro, o casal continua sua reflexão quando conversa sobre a influência de mãe de Jake em sua vida:

Jake: Você achou minha mãe fria? Lucy: Não. Ela foi adorável, de verdade. Jake: Porque eu não concordo com essa baboseira de que a mãe é a causa de todos os problemas psicológicos. Lucy: Isso é lorota misógina. Bobagem freudiana. Jake: Mas é tentador ter alguém para culpar. Lucy: Isso é lorota misógina. Bobagem freudiana. Uma pessoa, um adulto, precisa, em algum momento, assumir a responsabilidade por quem é.
(Estou pensando em acabar com tudo 2020)

Como num diálogo interno, Jake demonstra ter consciência de que não pode culpar a mãe por seus fracassos. A tentação é grande, mas ele toma consciência de que não pode. Então imagina Lucy o reprimindo por pensar assim.

O terceiro ato do filme se passa na escola onde Jake estudara e onde agora trabalha como Zelador. O rapaz entra primeiro. Depois de esperar sua volta dentro do carro, Lucy também entra na escola para procurá-lo, porém encontra o Zelador. Ao ser perguntada sobre a aparência do namorado ela responde:

Eu não sei, é difícil descrever pessoas. Foi há tanto tempo, eu mal consigo lembrar. Quero dizer, nós nunca conversamos, essa é a verdade. Nem tenho certeza se eu o registrei, são tantas pessoas. Eu estava lá com minha amiga, estávamos comemorando nosso aniversário, paramos para um drink, então esse cara não parava de me olhar. (...) Não lembro de sua aparência. Por que deveria? Nada aconteceu. Acho que foi só uma das milhares de não interações da minha vida.
(Estou pensando em acabar com tudo 2020)

Nesse momento percebemos que a história de como teriam se conhecido, que Jake e Lucy já haviam contado para os pais, era apenas parcialmente verdadeira. A jovem que Jake ficara olhando em um bar em sua juventude e não tivera coragem de abordar, fora eleita para ser sua namorada imaginária. Mas a interação entre ambos não passara dos olhares incômodos do rapaz.

A sequência na escola continua mostrando um número de dança nos corredores. Os dançarinos, versões idealizadas de Jake e Lucy, simulam um casamento interrompido por um Zelador também dançarino que tenta apoderar-se da dançarina. No ginásio da escola o Zelador mata o jovem que representa Jake.

Chegamos próximos ao desfecho do filme, que significará a morte de Jake. Sua fantasia começa a se desfazer e Lucy se desespera, pois assim como Clementine em Brilho eterno de uma mente sem lembranças, será apagada da mente do namorado.

Por fim aparecem mais imagens evocadas anteriormente no filme. Um porco que teria adoecido na fazenda ressurge em forma de animação para guiar o zelador até um auditório onde Jake recebe um prêmio. Nesse momento ele é representado por um Jesse Plemons envelhecido pela maquiagem. Sua mãe está no palco em uma cadeira de balanço, e vários dos personagens que aparecem no filme aparecem como figurantes na plateia, incluindo seu pai e Lucy, todos também envelhecidos por maquiagem. O discurso de agradecimento de Jake é idêntico ao do filme Uma mente brilhante quando o economista John Nash (Russel Crowe) recebe o prêmio Nobel:

Décadas atrás, minha busca me levou através do físico, do metafísico, do delirante e me trouxe de volta. E fiz a descoberta mais importante da minha carreira. A descoberta mais importante da minha vida. É apenas em misteriosas equações de amor que qualquer razão lógica pode ser encontrada. Só estou aqui esta noite por sua causa, você é a razão de eu ser, você é todas as minhas razões. Obrigado. (Uma mente brilhante 2001)

Assim como no filme de 2001, Jake faz menção à sua (suposta) companheira que está na plateia. Segue-se mais um número musical, desta vez do filme Oklahoma! (1999), e uma vista externa da escola com o carro de Jake coberto pela neve antecede os créditos finais.

Embora a ideia de que a jovem, Jake e o zelador são a mesma pessoa seja deixada clara no romance, está longe de ser clara no filme. Temos certeza de que Kaufman não mudou essa premissa em sua adaptação? Por que veríamos o ator Jesse Plemons com maquiagem de velhice no final, quando já havia um ator mais velho para o papel? (Robinson 2020)

Como visto, o roteiro ainda suscita reflexões e questionamentos não respondidos, e por isso abertos a diversas interpretações. Depois de escrever vários roteiros demonstrando sua criatividade e seus conhecimentos de filosofia, neste filme Kaufman chega ao ápice no que se refere a referências filosóficas e de cultura pop, como pinturas, filmes, músicas, poemas e livros.

Conclusão

Analisamos aqui determinadas obras de Charlie Kaufman nas quais os ecos da filosofia e psicologia são mais perceptíveis. Porém é possível encontrá-los, em maior ou menor grau, em seus demais trabalhos. O mais notável é que tais conceitos filosóficos aparecem na obra do roteirista em uma camada mais profunda, deixando para a superfície os enredos surrealistas e fantasiosos.

A filosofia de Kaufman, “escondida” sob essa aura de fantasia, aflora à medida em que percebemos a humanidade de seus protagonistas. Personagens que se aproximam do real, pessoas que identificamos nos nossos núcleos sociais e familiares. Protagonistas quase sempre homens que, colocados à prova em situações surreais, muitas vezes sucumbem ao sofrimento imposto por mulheres, fontes de alívio momentâneo, porém ilusório.

Por mais que não admita, Kaufman demonstra conhecimento de conceitos filosóficos. O que é compreensível, pois para possuí-los, não é necessariamente preciso recorrer aos estudos de Nietzsche, Freud, Schopenhauer, Lacan e os demais. Tais conceitos estão presentes na nossa vida. E como todo bom roteirista, Kaufman é um exímio observador do cotidiano, identificando alegrias e sofrimentos que, evocados por seus personagens, realizam reflexões sobre os sentimentos mais humanos.

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Filmografia

Adaptação. 2002. Direção de Spike Jonze. Roteiro de Charlie Kaufman. EUA: Intermedia. DVD.

Anomalisa. 2015. De Charlie Kaufman e Duke Johnson. EUA: Focus Features. DVD.

Brilho eterno de uma mente sem lembranças. 2004. Direção de Michel Gondry. Roteiro de Charlie Kaufman. EUA: Focus Features. DVD.

Estou pensando em acabar com tudo. 2020. Direção e roteiro de Charlie Kaufman. EUA: Likely Story. Streaming.

Natureza quase humana. 2001. Direção de Michel Gondry. Roteiro de Charlie Kaufman. EUA: Fine Line Features. DVD.

Oklahoma!1999. Direção de Trevor Nunn. EUA: Universal Pictures. DVD.

Sinédoque, Nova York. 2008. Direção e roteiro de Charlie Kaufman. EUA: Sidney Kimmel Entertainment. DVD.

Uma mente brilhante. 2001. Direção de Ron Howard. Universal Pictures. DVD.