Capítulo II – Cinema – Cinema

Notes on construction of character in documentaries

Apontamentos sobre a construção de personagens em narrativas documentais

Daniel Brandi do Couto

Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

Abstract

The development of characters in documentary narratives has mechanisms that share, but also diverge from the process adopted in fiction cinema. Through the relationship between the characteristics of a character and his way of acting in the plot, this article analyzes how this relationship is established in different ways in both narrative forms.

Keywords: Character Development, Documentaries, Narratives.

Introdução

As narrativas do cinema de ficção e do cinema documentário pressupõem diferentes características que determinam, entre outros fatores, a forma como são construídos suas personagens. Mesmo que os dois tipos narrativos coexistiam em um terreno fronteiriço, as distinções entre as duas formas se tornam importantes de serem analisadas - em suas aproximações e distanciamentos - para que haja uma compreensão mais clara dos mecanismos a que cada um dos tipos recorre na constituição de seus personagens. Ainda que levemos em consideração a hibridização desses dois campos (ficção e documentário) ao longo da história, nos convém reafirmar a importância de não descartamos a diferenciação dos códigos e processos que compõem a formação de ambos.

O teórico Jean Louis Comolli afirma que “a dificuldade em estabelecer diferenças formais e estilísticas entre documentário e ficção não deveria nos levar a simplesmente abandonar toda e qualquer tentativa de diferenciação” (COMOLLI, 2008, p.48). Ainda de acordo com o pesquisador “ao recusarmos essa supervalorização da indiferença entre os dois gêneros (ficção e documentário), conseguimos enxergar mais claramente as intenções do autor com a obra e desta com o público” (COMOLLI, 2008, p.43-44).

Feito este breve apontamento, é válido considerar que, se por um lado a ficção nos permite a criação de variados tipos e estilos de narrativas, o documentário também se apresenta em diferentes formas, tendo como matéria prima e referencial de criação a realidade em formas objetivas e subjetivas. Se distanciarmos nosso olhar das formas mais diretas de representação da realidade, podemos notar que o documentário também se permite representar questões de natureza imaterial, indo na contramão da ideia de que sua natureza é, em grande parte, de mero registro ou confessionalidade. Nestes filmes, realizadores vivem e revivem suas próprias subjetividades não apenas em sua dimensão íntima, mas também enquanto manifestação pública através do cinema.

Em um momento histórico marcado por uma hipertrofia da subjetividade, ancorada em um verdadeiro mercado de narrativas em primeira pessoa e (auto)biografias, quando a ênfase no âmbito privado, considerado mais autêntico e verdadeiro do que o público, faz com que a exposição da intimidade e a declaração de uma unívoca “verdade sobre si” sejam tiranicamente requeridas e demandadas (…) Está em jogo o privilégio da opacidade, a explicitação da mediação e a tensão entre as subjetividades e seus horizontes ficcionais. Livram-se da estabilidade e da unidade de “eus já acabados” (FELDMAN, 2012, p.61).

Enquanto isso, no campo da ficção, a própria existência das narrativas não-naturais, nos apresenta a possibilidade de romper com quaisquer princípios lógicos, possibilitando a criação de personagens, cenários e situações, que, certamente, não existiriam no mundo real. Desta forma, os princípios de construção das personagens nos dois mundos são extremamente variados.

Estando as personagens, naturais ou nãonaturais, inseridas em um contexto narrativo com diferentes relações de espaço e tempo, podemos pressupor a existência de diferentes mecanismos na construção dos mesmos.

Buscaremos ao longo deste texto, introduzir alguns aspectos que configuram tais mecanismos nos dois tipos de narrativas trabalhadas, para que, adiante, seja possível rever os pontos específicos da atuação destes na construção de personagens, em específico, nas narrativas do cinema documentário.

A personagem nas narrativas ficcionais: um breve olhar

Revisitando a obra do filósofo russo Mikhail Bakthin, diversos autores se propõem a entender a relação dos cronotopos Bakthinianos com o desenvolvimento de diferentes tipos de narrativas em uma estrutura espaço-temporal.

Nesta estrutura, as personagens, o contexto, e a ambientação da narrativa – incluso as audiovisuais - influenciam a construção das personagens, mediadas pelo ponto de vista do autor e também do espectador. Como exemplo, podemos citar a obra de Martin Flanagan, Bakhtin and the movies (2009). O autor desenvolve estudos sobre filmes de diferentes gêneros, ancorando suas ideias nas concepções de cronotopos propostas pelo filósofo russo.

De maneira resumida, para Flanagan (2009), a partir de concepções da interligação dos cronotopos que atuam de forma a demarcar o gênero cinematográfico, o contexto geográfico-espacial, seu respectivo tempo e, por fim, o processo de decodificação do narratário com a narrativa, servem os cronotopos como elemento de intermediação entre real e representação.

O cronotopo é um dispositivo não apenas para analisar métodos da construção narrativa, mas também para medir a relação entre texto e leitor; como o mundo do leitor “cria o texto” e como o texto completa o circuito dialógico ao realimentar o mundo do leitor. (FLANAGAN, 2009, p.68, TRADUÇÃO NOSSA)

Desta forma, as relações dos cronotopos originam nossa forma de olhar o tempo e o espaço, determinando as ações de construção das personagens e sua forma de dar andamento a trama. Mesmo não sendo o objetivo deste artigo um aprofundamento nos estudos dos cronotopos Bakhtinianos, cabe a ressalva, uma vez que cada narrativa precede de diversas manifestações cronotópicas. Assim como um documentário não pode ser categorizado exclusivamente como poético ou observativo, as narrativas ficcionais também não podem ser encaixadas como pertencentes a apenas um tipo de manifestação cronotópica. Cada texto narrativo tem múltiplas manifestações destes cronotopos. Diferentes representações e instâncias medeiam os contextos que a construção das personagens do cinema de ficção desenvolve seus arcos narrativos enquanto propulsores da trama. No cinema documentário, essa construção atravessa questões que hora se mostram convergentes a este “modelo” ficcional, hora divergentes em diferentes aspectos. É sabido que a construção da personagem é de fundamental importância para o funcionamento e desenrolar de uma narrativa audiovisual. A criação de personagens que, possuam motivações alinhadas ao enredo, um background biográfico e outros subtextos, geram e orientam as ações que vão satisfazer as necessidades dramáticas do enredo, mesmo sendo estas ausentes do espaço apresentando:

O quadro é o que institui um fora do campo, outra reserva ficcional onde o filme vai buscar, eventualmente, os efeitos necessários à sua nova impulsão. Se o campo é a dimensão e a medida espacial do enquadramento, o fora do campo é a sua medida temporal, e não somente de maneira figurada; é no tempo que se desdobram os efeitos do fora do campo. O fora do campo como lugar do potencial do virtual, e também da desaparição e do desvanecimento: lugar do futuro e do passo, bem antes de ser presente. (GAUDRELAUT apud AUMONT, 1989, p.30)

No que aqui chamamos de cinema de ficção, expresser que a personagem é um ser fictício (mesmo que esteja representando uma persona ou entidade existente ou pré-existente no mundo real), pode soar como um paradoxo, uma vez que a ficção pressupõe a existência de algo que não existe. De acordo com Antonio Candido e Anatol Rosenfeld,

A criação repousa sobre este paradoxo e o problema da verossimilhança no romance depende da possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, ROSENFELD, 2017, p. 40)

Sendo a construção das personagens nas narrativas de ficção a concretização desta relação, os padrões dos enredos estão ligados aos padrões de ação das personagens da trama. Acreditamos que esta relação direta seja, talvez, uma das grandes diferenças no processo de construção da personagem no cinema de ficção para o cinema documentário.

Todavia, de acordo com Patrick Colm Holgan (2010), esta interligação não necessariamente exprime que as construções dos mesmos sejam iguais em diferentes narrativas de ficção que possuem o mesmo gênero. Tomando como exemplo as histórias de amor, o autor nos lembra que estas precedem de duas pessoas que passam a se amar em algum ponto da narrativa para que a história exista. Porém, nos lembra Holgan, isso não determina que as personagens de todas as histórias de amor sejam construídas de forma igual. Outras instâncias determinam a construção destas personagens como o contexto social, geográfico, político, entre variados outros que as personagens estão inseridas, apesar de compartilharem padrões universais.

A comédia romântica de Bollywod e a comédia romântica de Shakespeare são diferentes. Mas eles compartilham padrões românticos encontrados em outros tempos e lugares também. São esses padrões universais – e as estruturas ainda mais amplas compartilhadas entre os gêneros universais, que devem ser mais fundamentais do que qualquer relato da relação entre trama e personagem. (HOLGAN, 2010, p.135).

Ainda de acordo com os estudos de Holgan, três padrões narrativos se repetem predominantemente ao longo da história: o padrão romântico,o heroico e a tragédia com sacrífico cômico:

O primeiro envolve duas pessoas que se apaixonam, mas sua união é bloqueada por alguma representação social. (...) O enredo do herói pode incluir a usurpação de uma liderança social legítima, seu exílio e posterior restauração desse líder ao poder. Também pode incluir a ameaça da sociedade por alguma força alienígena e, geralmente, o líder desalojado defende sua posição ao defender a sociedade local contra esta ameaça. Finalmente, o enredo de sacrifício, compreende a violação de alguma norma comunitária ou uma devastação social que resulta dessa violação, culminando em um sacrifício (geralmente de uma pessoa inocente), e, tendo como o resultado, a restauração da normalidade. (HOLGAN, 2010, p.135, TRADUÇÃO NOSSA).

Como podemos notar, as características da personagem são intimamente ligadas à sua função narrativa. Elas não só afetam as motivações, sentimentos e decisões da personagem como também - retomando o pensamento Bakhtiano apresentado na introdução deste artigo – alteram e intensificam a relação que o espectador tem com a personagem.

Tais formas prototipais apresentadas por Holgan (paixão, heroísmo, sacrifício), além de nos dar as funções da personagem (pecadores, amantes, rivais etc.), em certa maneira, determinam suas ações nas narrativas de ficção.

Sabemos que a questão da construção do personagem nas narrativas de ficção engloba vasto referencial teórico e outros aspectos não apresentados anteriormente. Porém, se tratando do objetivo do artigo fazer um recorte sobre a construção do personagem nas narrativas do cinema documentário, destacamos até aqui alguns estudos que apontam como a construção das personagens na ficção são determinantes no seu modus operandi no meio em que estão inseridas. Como veremos a seguir, em certo aspecto, nas narrativas do cinema documentário essa lógico se inverte. No documentário, a construção dos personagens é determinada pelo meio que estão inseridos.

A construção das personagens em narrativas documentais

Diferente das narrativas de ficção, o cinema documentário muitas vezes não apresenta algumas regras ou características pré-estabelecidas na construção de suas personagens. A medida que podemos aferir que a construção destes é feita e desfeita durante todo o processo que envolve as etapas da criação do filme, os mecanismos que constroem as personagens em muitas narrativas audiovisuais podem variar de acordo com fatores que vão desde o tipo de documentário que se deseja produzir (observativo, poético, expositivo, participativo, reflexivo, performático), até a relação entre os membros da equipe e personagens, o uso da encenação, entre outros fatores que veremos a seguir.

Diferente do cinema ficcional clássico, o documentário, em boa parte de sua história, não contou com um cardápio fixo de técnica e estilos, reforçados por uma indústria que convencionasse padrões narrativos hegemônicos. Entendemos que a narrativa cinematográfica – seja na ficção ou no documentário - pressupõe de um pacto para sobre o que está sendo assistido enquanto gênero e estilo. Este pacto vai de encontro ao que diversos autores chamam de indexação.

A indexação acontece, principalmente, na etapa de consumo de um filme. Em suas pesquisas acerca dos elementos básicos da narrativa, David Herman corrobora com esta ideia ao propor que

A abordagem retórica sugere, assim, que a “autenticação” (ou não) de situações e eventos particulares como fatos ficcionais depende não apenas de serem apresentados pelos modos de narração em primeira pessoa, terceira pessoa ou figurativos, mas também nas posições do público esses modos narrativos convidam os leitores a ocupar. De maneira mais geral, a abordagem complementa as utilizadas por sociolinguistas e teóricos do posicionamento para estudar a interação dialética entre características textuais específicas e ocasiões de contar histórias, textos narrativos e os contextos comunicativos mais amplos em que são contados e interpretados. (HERMAN, 2009, pp.73-74, TRADUÇÃO NOSSA).

Importante considerar ainda que a presença da personagem em cena seja, talvez, o mais importante elemento da mise-en-scène documentária. É neste momento que as personagens nos dão a ver suas asserções sobre o mundo ou servem ao tema que é objeto do filme.

De acordo com Fernão Pessoa Ramos, a carga de atuação e, de forma correlata, da expressão enquanto personagem, está proporcionalmente ligada a capacidade que estes desempenham na atualização do contexto em que estão inseridos. Esta atualização pode acontecer devido a noção que esses personagens possuem de sua performance enquanto ser social no presente contexto, pela capacidade de rememorar um fato passado e atualizá-lo para o momento em que a gravação acontece ou, até mesmo, pela noção que estes possuem de estarem sendo gravados. Ainda de acordo com o pesquisador, as personagens no documentário trabalham

como atores naturais, pessoas comuns que não são profissionais em expresser personalidades outras que si próprio. A presença da câmera, no entanto, pode transformar seu jeito (e sua personalidade) de ser no mundo, constituindo uma primeira modalidade de atuação: eu sou eu mesmo em face ao sujeito que sustenta a câmera, mas sua presença me transforma em personagem (RAMOS, 2012, p. 26).

Ao pesquisar os documentários focados em personagens, principalmente os da terceira- fase de Eduardo Coutinho, Cláudio Bezerra (2014) estabelece a importância do personagem no acontecimento fílmico, uma vez que “quando o diretor passa a fazer um cinema estruturado na palavra gerada (...) a atuação das pessoas diante das câmeras torna-se o elemento essencial para a existência do próprio filme” (BEZERRA, 2014, p.42).

É importante destacar que, assim como Ramos, o autor também leva em consideração a presença do dispositivo-câmera, e de todos os outros enunciados do filme, para entender a performance das personagens que nele estão inscritos. Assim, quando um filme circunda a questão da personagem, é necessário saber o que está, nas palavras do pesquisador, “aquém e além dele”.

Neste universo podemos citar como exemplo o posicionamento de câmera, a presença de diretor e equipe, a seleção e a montagem das cenas filmadas e a própria recepção do filme. Tudo que o personagem cria e constrói – por meio do seu gestual, fala, fabulação etc. – são espécies de camadas de si mesmo, as quais se constituem e se revelam no filme em determinados momentos, condicionadas por essas instâncias que estão “aquém e além” da personagem.

Podemos dizer ainda, que esta noção de performance é ampliada, visto que inclui, além do corpo natural da personagem, diversos outros fatores que vão além do que está no espaço diegético de um filme. O contexto social, econômico, emocional, por exemplo, medeiam a relação da personagem com o mundo para além da feitura do filme. Assim, pode-se dizer que os mecanismos que envolvem a construção do personagem no documentário “se manifestam por um processo de construção criativa e intuitiva, mas ao mesmo tempo, coletiva” (BEZERRA, 2014, p.98)

A dramaturgia natural na construção das personagens no documentário

Os estudos de Sérgio Santeiro (1978) também nos ajudam a compreender melhor a formação deste tipo de performatividade através de alguns enunciados a qual o pesquisador chama de “Dramaturgia Natural”. Santeiro divide o processo da formação da personagem no documentário – o “ator natural” – em três grandes fases que se complementam, resultando no modo de ação da personagem na cena documentaria. A primeira fase compreende a própria personalidade do personagem do filme em um momento anterior ao processo de filmagem. Este possui sua forma de ser no mundo de acordo com diversos contextos como citamos anteriormente. Essa faceta é revelada no momento do primeiro encontro com o documentarista com a personagem. A grosso modo, é deste processo, dependendo do que a pessoa tem a dizer, da sua expressividade, disponibilidade e outros fatores que o realizador julga importante para a obra, que se é decidido, ou não, pela utilização de um indivído enquanto personagem em seu filme. Ainda de acordo com Sérgio Santeiro

essa fase pode ser mais ou menos intensa. No caso das breves entrevistas realizadas na triagem, ela tem de ser reduzida ao mínimo, pois, muitas vezes, as pessoas estão de passagem e o cineasta deve aproveitar a situação rapidamente. (SANTEIRO, p. 1978, p.19)

A segunda fase na construção deste “ator natural” se dá no momento em que a personagem desenvolve seu padrão dramatúrgico: uma vez disposta às condições propostas pelo realizador, a pessoa age em função da filmagem. Desde questões simples (como e onde irá se sentar, se olhará diretamente para a lente da câmera ou para um interlocutor fora do quadro), até a reencenção de alguma ação de seu mundo cotidiano, por exemplo. Por fim, na terceira fase, o material captado é levado para a montagem e finalização. Aqui, mesmo que ausente, a personagem está submetida a possibilidade deintervenção do realizador frente ao material captado.

Tal material pode constituir novo significado e características às personagens a partir coordenação das necessidades expressivas e das ideias que este tem para o filme no momento da pós-produção.

O desempenho do ator natural visa transmitir, em lugar do papel estético, o seu próprio papel social: o modo pelo qual este assume sua própria realidade enquanto sujeito. O que se deu pela relação de diversos fatores e circunstâncias – encontro, mediação, presença da equipe, atualização da experiência vivida etc.) - no final do processo ganha uma dimensão dramática. Esta dimensão, mesmo que mediada, surgiu pela consciência da personagem que, primeiro foi sujeito de uma experiência vivida e é, agora, sujeito de uma memória revivida, passível de processos de seleção e crítica que, a partir do julgamento do realizador, a faça digna do papel que o sujeito atribui a si mesmo. Nas palavras de Santeiro

Primeiro a personagem vive o confronto cotidiano e absorve todos os códigos e padrões sociais que regem a sociedade onde ocupa uma posição específica. No momento da tomada, ele idealiza o confronto vivido, reflete, seleciona e veste suas características a luz dos valores e normas éticas, socialmente determinadas pelo o que se orienta na vida real. Por fim ele atualiza o momento anterior, em novo confronto com a realidade, já agora numa relação direta em que a espontaneidade cede lugar a encenação (SANTEIRO, 1978, p.93)

Importante ressaltarmos que a repetição ou reencenação de um ato não constitui uma transgressão à representação de uma personagem ou situação. Na repetição, a oralidade do fato contado assina a manutenção de uma tradição cara ao personagem em cena.

Na encenação há um processo de atualização da realidade vivida: o momento vivido é atualizado pela sua rememoração e posteriormente pela sua performance, que é dividida e compactuada com o contrato fílmico pré-estabelecido na segunda fase.

Retornando a Bezerra e seus estudos sobre os personagens, vale lembrar que

“a produção de um acontecimento fílmico no documentário (...) tem por finalidade provocar uma performance diante das câmeras. É, no entanto, na etapa de montagem que essa atuação ganha uma forma propriamente fílmica”.(BEZERRA, 2014, p.77).

Assim, após ultrapassar o registro cinematográfico conferido pela realização do filme, o “corpo-midia, torna-se um simulacro com múltiplas virtualidades”, podendo o filme operar na reduplicação do ato performático, transformando corpo em imagem e, depois, reconstruindo esse corpo na montagem na forma de personagem.

Conclusão

Como podemos ver, apesar de utilizarem de procedimentos e referencias semelhantes, ficção e documentário apresentam características distintas no processo de formação e construção de personagens. Se por um lado, a ficção trabalha, até certo ponto, com procedimentos muitas vezes estruturados na verossimilhança e nas características que suas personagens precisam apresentar para que o enredo se desenvolva, no documentário os fatores extracampo, a dinâmica entre realizador, a rememoração e performatividade determinam a criação do personagem dentro e fora da cena, sendo sua construção atualizada constantemente. A construção do personagem é atualizada desde os contatos do processo de pré-produção, no encontro com o realizador, nas demandas que este tem para com o personagem, na experiência de vida e memória, até o corte-final, onde o que foi captado passará por um filtro que constituirá em uma nova representação da personagem criada na sala de montagem.

Ainda que, sob determinada ótica, as personagens do documentário possam recorrer a elementos da narrativa de ficção - como a encenação ou a reencenação de hábitos cotidianos – é pelo contrato de indexação que podemos ver a representação do real no material final, mesmo que esta tenha passado por diversas intermediações. No documentário, aquele que filmamos pode ter uma ideia do procedimento do fazer fílmico, mesmo que nunca tenha sido filmado. Assim, estes representam para si mesmo, e se preparam-se de acordo com o que imaginam ou acreditam ser enquanto elemento social.

Cabe ao realizador representar esta personagem de acordo com seu direcionamento e repertório ético. No entanto, a concepção da personagem no documentário sempre será coletiva, mesmo que o resultado final tenda a enfatizar pontos divergentes da realidade encontrada e documentada.

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