Abstract
Lavra-dor (1968) is a short-film directed by Ana Carolina and Paulo Rufino, inspired by Mário Chamie’s book of poems Lavra Lavra (1962). Both the film and the poems ostensibly use repetitions in their formal constructions. Both the film and the poems are interested in the peasant world. Through a comparative analysis of film and poems we aim to better grasp the process of “adaptation” crafted by Paulo Rufino and Ana Carolina and the importance of repetition in this very process. Repetition, in the film, can be a direct way of quoting the poems, but can also be a differed form of reflecting upon the construction of the film itself.
Keywords: Lavra-dor, Mário Chamie, Poetry, Cinema, Repetition.
Introdução
No Brasil, intercâmbios entre literatura e cinema são frequentes e resultaram em obras bastante emblemáticas de nossa filmografia, como é o caso, por exemplo, de Vidas secas (adaptação dirigida por Nelson Pereira dos Santos, de 1963, a partir de livro homônimo de Graciliano Ramos, de 1938) ou de Macunaíma (adaptação dirigida por Joaquim Pedro de Andrade, de 1969, a partir de livro homônimo de Mário de Andrade, de 1928). O caso do curta-metragem Lavra-dor (grafado também como Lavra dor ou Lavrador), de 1968, dirigido por Ana Carolina e Paulo Rufino, é instigante nesse aspecto. Diferentemente dos canônicos e acima citados Vidas secas e Macunaíma, adaptações, por sua vez, de canônicos livros de décadas anteriores, Lavra-dor é uma espécie de adaptação de obra poética (e não em prosa), de poemas de um livro de um jovem autor contemporâneo: Lavra Lavra (1962) do poeta Mário Chamie (1933-2011). O livro é considerado a obra seminal da chamada poesia praxis, movimento encabeçado e teorizado por Chamie e que bateu de frente com o concretismo do grupo Noigandres, de poetas como Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.
O filme de Ana Carolina e Paulo Rufino, apesar de ter circulado por festivais internacionais e ter conquistado razoável número de prêmios à época, é conhecido hoje principalmente por ter integrado o corpus de documentários analisados por Jean-Claude Bernardet em Cineastas e imagens do povo, demonstrando, nas análises do crítico, a bem vinda incorporação da “voz do documentarista” no filme documentário brasileiro, uma voz que, segundo Bernardet, antes de Lavra-dor, no mais das vezes, neutralizara-se sob uma voz de autoridade sociológica (Bernardet 2003).
Nosso objetivo aqui é menos compreender o lugar do curta Lavra-dor no panorama do documentário nacional e mais apreender a singular forma de encontro entre cinema e poesia que o filme elabora. Como inspiração, bebemos nas hipóteses de André Bazin sobre o que ele chamou de “dialética entre cinema e literatura”, ao escrever sobre o filme de Bresson, de 1951, Diário de um pároco de aldeia (Bazin 2014).
Em seu texto, alçando generalizações teóricas, Bazin enumera três formas distintas de o cinema adaptar um romance. Primeiro, haveria a adaptação por “substituição”, pela qual o filme visa um “respeito pelo espírito do romance”, sem abrir mão de buscar também necessárias equivalências devido às “exigências dramáticas do espetáculo ou da eficácia mais direta da imagem”. Em segundo lugar, haveria a “adaptação livre”, em que o romance original seria “só uma fonte de inspiração”, ou seja, o filme não o substitui de forma alguma. E, por último, em terceiro, levando em consideração o filme de Bresson, Bazin comenta a possibilidade de se “construir sobre o romance, através do cinema, uma obra secundária”, “um ser estético novo que é como que o romance multiplicado pelo cinema” (Bazin 2014, 152–53). Este feito Bresson teria logrado através de uma excessiva fidelidade textual, pela qual o romance de base (escrito por Bernanos) é seguido frase por frase na adaptação, resultando em um filme mais “literário” que o próprio romance – este, por sua vez, “cheio de imagens” (Bazin 2014, 140).
Bazin, ao falar de literatura, tem em mente a forma literária do romance, mas seria interessante expandir o escopo para abordar também a poesia lírica, uma forma literária com um histórico menos volumoso de adaptações para o cinema, mas não menos fértil, atravessando desde o cinema mais convencional até o experimental. Na cinematografia brasileira, um exemplo clássico de adaptação de poesia é O padre e a moça (1965), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, um filme “sugerido pelo poema ‘O padre, a moça’ de Carlos Drummond de Andrade”, conforme se lê em cartela nos créditos de abertura – uma evidente “adaptação livre”, para usar o léxico de Bazin.
O caso da “adaptação livre”, porém, não torna a forma final da obra condicionada à forma literária original, servindo esta apenas de “inspiração” para o filme. Nesse registro de adaptação, não há necessariamente diferença na obra finalizada entre o gesto de adaptar um romance, um poema, uma notícia de jornal ou até mesmo uma pintura, pois a obra “original” é uma simples “sugestão” (temática) à composição da obra cinematográfica.
A adaptação por “substituição” de um texto poético, por sua vez, é mais rara no cinema, principalmente no filme narrativo de longa-metragem, tendendo, muitas vezes, a utilizações de poemas épicos para deles se extrair o “conteúdo narrativo” – vide adaptações de Fausto de Goethe ou de epopeias de Homero. No caso da lírica, porém, a situação parece mais rara e não há, evidentemente, como substituir o poema pelo filme – se é que qualquer “substituição” seja, de fato, possível –, pois o “conteúdo” do poema está sedimentado profundamente em sua “forma”, a métrica, a rítmica, a fonética, a disposição do texto na página etc.
Talvez o terceiro tipo de adaptação exposto por Bazin possa auxiliar a compreender o processo de se adaptar um texto lírico, mas evidentemente sem considerar tal tipo de adaptação como uma “fórmula” a ser replicada, pois Bazin o deduz diretamente das especificidades de Bresson em sua relação com o texto literário de Bernanos. Esse terceiro tipo de adaptação, de toda forma, sugere a existência de outros caminhos para se pensar a adaptação para além da “substituição” e da “sugestão”. A lembrança do cinema do casal Straub-Huillet, cineastas particularmente implicados na “dialética entre cinema e literatura”, é pertinente: um filme como Toda revolução é um lance de dados (1977), adaptação-recitação de Um lance de dados jamais abolirá o acaso de Mallarmé, salta aos olhos no panorama de adaptações líricas por sua fidelidade textual extrema (via recitação) e pela rigidez da mise en scène e decupagem, que sugerem uma possível releitura da métrica e da disposição textual do poema.
Nossa hipótese é, pois, que Lavra-dor, por sua vez, enquanto adaptação de obra lírica, seria uma espécie de “ser estético novo”, uma multiplicação da poesia de Chamie pelo cinema. Os breves 11 minutos do curta apresentam uma fragmentada montagem de elementos heterogêneos no som (recitação de poesia, discursos políticos, falas em espanhol e português, música popular e erudita, depoimentos ficcionalizados) e na imagem (tela preta, cartelas de texto, imagens de arquivo fixas, imagens de arquivo em movimento, cenas filmadas) cujo tema geral é a questão camponesa, um tema mediado pela poesia do livro Lavra Lavra.
A poesia de Chamie é incorporada pelo filme num nível mais imediato através de uma voz (Jofre Soares) que recita versos de Lavra Lavra e de cartelas de texto que jogam com a sintaxe, o léxico e as aliterações características de Chamie (vide as frases “a fome fomenta” e “a fome frustra”, por exemplo, que aparecem em cartelas). Porém, em um nível mais estrutural, o filme elabora a adaptação da linguagem poética de Chamie pela montagem de imagens e sons, adaptação cujo signo mais evidente é a repetição.
Poesia e repetição: texto e filme
Aliterações, assonâncias, rimas, anáforas, metrificações, todas são figuras que operam diferentes formas de repetição no interior da temporalidade do poema: elaboram recorrências que fazem com que uma palavra recupere algo já passado provendo à leitura uma “sensação de retorno” – em geral, através de periodicidades rítmicas. Mais do que apenas integrarem um poema em maior ou menor grau, tais repetições – responsáveis, entre outras coisas, pelo ritmo – são constitutivas da linguagem poética. Para Alfredo Bosi, em Ser e o tempo da poesia, “o discurso poético, enquanto tecido de sons, vive em um regime de ciclo” (Bosi 1977, 116):
a fisionomia do poema é sulcada sempre por diferenças e oposições que se alternam com maior ou menor regularidade, de tal modo que a figura do ciclo e a figura da onda parecem ser as que melhor se ajustam ao todo do poema e ao seu processo imanente. Pelo ciclo que se fecha e pelas ondas que vão e vêm, o poema abrevia e arredonda a linha temporal, sucessiva do discurso (Bosi 1977, 221).
O arredondamento da linha temporal do discurso é consequência da própria sensação de retorno que a repetição como ciclo ou onda contrói. Bosi lembra o sentido da palavra “verso” para encontrar nela esse movimento particular da poesia: “Verso quer dizer caminho de volta dentro de um conjunto verbal em que o ir e o vir demoram o mesmo tempo” (Bosi 1977, 72), comentário um pouco enigmático que talvez sugira que o tempo de “ir” da leitura do verso é, ao mesmo tempo, o tempo de “vir”, pela sensação de retorno nele construída. O próprio Bosi atenta para a “dupla direção” da frase, que sempre vai “para frente”, mas operando retornos “para-trás”, numa linha periódica e espiralada (Bosi 1977, 91).
A poesia praxis de Chamie, embalada como tantas outras pelas dinâmicas de “sensação de retorno”, “ciclos” e “ondas”, elabora uma ênfase particular na repetição de palavras e sons já anunciada no próprio título de seu livro Lavra Lavra. Para além de um uso ostensivo de aliterações, diversos dos poemas do livro apresentam uma simetria métrica e sintática entre suas estrofes que se desdobra por um jogo de alternâncias lexicais, em que uma mesma palavra ressurge e se desdobra em diferentes versos, repetindo-se. O poema que empresta o título ao filme de Rufino e Ana Carolina é, nesse sentido, paradigmático. Pela leitura das primeiras quatro estrofes já se pode ter uma clara noção da organização estrutural de sua poética a partir de repetições:
Lavra:
Onde tendes a pá, o pé e o pó,
sermão da cria: tal terreiro.
Dor:
Onde tenho o pó, o pé e a pá,
quinhão da via: tal meu meio
de plantar sem água e sombra.
Lavra:
Onde está o pó, tendes cãibra;
agacho dói ao rés e relva.
Dor:
Onde jaz o pó, tenho a planta
do pé e milho junto à graça
do ar de maio, um ar de cheiro.
(Mário Chamie 2011, 181)
Além de um léxico delimitado cujas palavras-chave se repetem por todo o poema (e não só nas quatro estrofes apresentadas acima), há uma estrutura quase permutativa, em que diferentes termos se encaixam por uma mesma organização sintática e rítmica nas sucessivas estrofes. Mesmo sem uma metrificação clássica, há uma ordem para os primeiros versos de cada estrofe, outra para os segundos versos e assim por diante; bem como uma ordem para as estrofes ímpares e outra para as pares (rigidez que o poema matiza com assimetrias calculadas). Segundo Tiago Leite Costa, em estudo sobre a poesia praxis e baseando-se nos textos teóricos de Chamie, as redundâncias e os repetidos significantes em repetidas posições a cada bloco – no caso do poema acima, as palavras “Lavra”, “Dor”, “pá, pé e pó”, a conjunção “Onde” – permitiriam às palavras “co-partícipes” (ou seja, aquelas que não são reiteradas) alternarem-se nas outras posições, conotando sentidos conforme tecem relações com os significantes redundantes (Costa 2010, 3).
Mesmo com tantos movimentos de vai e vem propostos pelo retorno de palavras e pelas aliterações, Chamie chegou a afirmar que “Lavra Lavra é um livro sem verso (livre ou não), isto porque não veicula um discurso rítmico-linear e sim signos de conexão no espaço em preto” (Chamie apud Carvalho 2006, 92). Sem aprofundar o conceito de espaço em preto, contraponto ao “espaço em branco” de Mallarmé (e do concretismo brasileiro), é possível especular que a falta de “verso” afirmada por Chamie não exclui o movimento de retornos (ciclos e ondas), mas os subordina à semântica das palavras, cujas conexões justamente se dão pelas repetições no texto. Apesar da colocação categórica do autor, uma rápida leitura de qualquer poema de sua lavra revela, de imediato, uma inegável musicalidade rítmica em sua linguagem (musicalidade quase exaustiva). Ocorre que esse discurso rítmico, organizado pelas estruturas de blocos e redundâncias, se desdobra na veiculação de sentido a partir dos tais “signos em conexão”.
O filme Lavra-dor não segue à risca tal procedimento poético (adaptação talvez impossível), mas sua montagem de imagens e sons propõe jogos que remetem à rítmica do poeta. A primeira sequência do filme, em tela preta, sobrepõe o áudio de uma figura política em palanque discursando em defesa da reforma agrária à fala revoltosa de um camponês (interpretado por Jofre Soares) também em defesa da reforma, colocando os dois discursos em fase e contraponto, numa dinâmica de volumes que acentua certos momentos dentro dos quais os termos “reforma agrária” e “luta” certamente se destacam. Sem nenhuma imagem, o filme tece uma poética a partir de palavras-chaves que não somente se repetem em um mesmo discurso como se repetem entre os dois discursos de ordem distinta, o que aponta para uma convergência de fundo entre o camponês e o líder político, ao mesmo tempo que expõe as suas diferenças de tom, de léxico (as diferentes “palavras co-partícipes”), ritmo de fala etc. Em um paralelo, assim como o poema toma as palavras da realidade e as reelabora e as reordena para compor o seu discurso poético, o filme toma os discursos da realidade (o discurso oficial de palanque e o discurso coloquial camponês) e os reelabora e os reordena para compor o seu discurso poético fílmico.
Repetição-recitação
Em seguida a esta sequência, e após algumas cartelas de texto (uma delas com um texto sociológico e outras com versos poéticos soltos), inicia-se uma sequência acelerada, ritmada pelo som do violão do Estudo Nº1 de Villa-Lobos e pela voz de Jofre Soares a ler a segunda parte do poema Rural de Mário Chamie, enquanto se sucedem imagens de arquivo (estáticas e em movimento) do universo campesino. Eis os versos, que apresentam, além de enfáticas aliterações e repetições de palavras, uma estrutura didaticamente simétrica, respeitando parâmetros do sistema de composição exposto anteriormente:
Medir é a medida
mede
a terra, medo do homem, a lavra;
lavra
duro campo, muito cerco, vária várzea.
Medir é a medida
mede
o sítio, dote do homem, o sêmen;
some
capim seco, muito buço, tosca sebe
Medir é a medida
mede
a área, fundo do homem, a tona;
touça
torto talo, muito valo, frágil cana.
Medir é a medida
mede
a furna, rumo do homem, o torno;
torna
fofo brejo, muito lodo, fértil mofo.
Medir é a medida
mede
a choça, cave do homem, o rancho;
lança
certo olhar, muito azul, longo lanço.
(Chamie 2007, 172)
A leitura bastante ritmada de Jofre Soares no filme orienta o ritmo dos cortes: a cada pausa de respiração, a cada inflexão na frase, a cada ponto final ou vírgula, um corte. Segundo a diretora Ana Carolina, “é a palavra puxando o corte” (Cesar 2016). E assim como o léxico de Chamie lido por Jofre Soares constrói constantes repetições e retornos, a montagem de imagem faz o mesmo: às vezes planos idênticos se repetem e às vezes um mesmo “assunto” em planos distintos se repete. O jogo, porém, ganha uma segunda camada, vertical, na medida em que propõe relações entre as palavras faladas e as imagens mostradas. Por exemplo, a frase da segunda estrofe “mede/ o sítio, o dote do homem, o sêmen” é acompanhada por três imagens, uma a cada vírgula: fotografia em negativo de uma carroça encostada na parede de uma casa rural, fotografia de um túmulo, fotografia de um pé descalço pisando no capim. Se a primeira das imagens ilustra o vocábulo “sítio” de maneira quase direta, a segunda já propõe uma interpretação do “dote do homem” como morte ao mostrar o túmulo. Em uma estrofe mais adiante, a imagem de outro túmulo ilustrará, por sua vez, a “cave do homem”, o que acaba também por aproximar os dois trechos, tanto pela imagem que repete o tema da morte quanto pelo texto que repete a expressão “do homem”.
Outra sequência, mais adiante no filme, será composta de forma análoga, somando outros elementos à equação. A leitura não é mais de um poema específico, mas faz uma colagem de versos de Chamie. A imagem, não mais apenas composta de material de arquivo, mostra, durante boa parte da recitação, um plano que segue as pernas de um camponês a caminhar. Novamente, há repetições de planos, de palavras e de temas. Novamente, cria-se uma atmosfera rítmica de conexões verticais e horizontais entre uma série elementos do mundo campesino.
A experiência espectatorial diante desse tipo de montagem é bastante distinta daquela do leitor dos poemas, conforme explicita Jean-Claude Bernardet, para quem não é possível seguir os poemas recitados como se faz na leitura das palavras dispostas na página de um livro: “Apenas apreendemos palavras soltas, um ambiente temático, um ritmo seco, um martelar”. Porém, ao pensar no todo do filme, Bernardet chega a uma leitura bastante próxima dos efeitos da poesia praxis de Chamie. Segundo o crítico, por apresentar-se “de forma fragmentária”, jogando com “materiais heterogêneos”, o filme, ao invés de uma construção lógica linear, apenas apresenta um “conjunto de células significantes que se sucedem ou são simultâneas (imagem-som, sons mixados)”: “Essas células tendem a ficar justapostas, constituindo uma espécie de constelação e eliminando conexões lógicas, de forma a que o espectador crie circuitos de circulação entre eles” (Bernardet 2003, 89).
A ideia de criar “circuitos de circulação” entre células justapostas, em constelação, é bastante próxima do projeto de Chamie de jogar com os significantes redundantes em diferentes blocos, mas justapostos a outras palavras de forma a veicular “signos em conexão” por uma leitura fora da ordem linear.
Chamie, ao comentar o seu próprio livro, explicita a presença do que chama de “similaridade de ritmo” e “geometrismo móvel” entre os versos de um mesmo poema. É justamente por causa de tais elementos que pode haver o que, acima, chamamos de “estrutura permutativa”. Assim, diferentes enunciados que ocupam geometricamente lugares análogos entre si em diferentes estrofes, podem ser intercambiados na mente do leitor, pela similaridade de ritmo, a fim de interagirem entre si compondo uma série de narrativas simultâneas e possíveis, para além daquela exposta linearmente pelo poema (Chamie 2011, 11–12).
A atenção de Chamie à importância do leitor na construção de seus poemas é espelhada pela importância que o filme Lavra-dor confere ao seu espectador, conforme Bernardet expôs. É, inclusive, por conta disso que o diretor Paulo Rufino fala da vontade de fazer um filme-poema, “em que as peças não constituíssem o discurso de um pregador, mas oferecessem ao espectador elementos que ele pudesse montar à sua maneira, num ato de re-criação prazeroso.” (Rufino in Neto 2010, 64).
Repetição-comentário
Ao longo dos 11 minutos de Lavra-dor, as repetições de palavras e imagens nas duas sequências de recitação poética não são, contudo, aquelas que mais marcam o filme enquanto repetição – marcam-no enquanto ritmo, poesia, montagem, mas não tanto enquanto repetição. Há um outro “bloco” em que as repetições serão exploradas com uma tal ênfase que, somadas às rítmicas recitações poéticas, chegam a conferir ao curta-metragem o estatuto de um filme de repetição, ou seja, um filme em que a repetição é elaborada como princípio de composição para a sua montagem.
Logo após a montagem-recitação do poema Rural e de algumas cartelas de texto, surge a imagem de um casebre visto de um ângulo bastante alto e ao redor do qual caminha um camponês com um microfone de lapela ao pescoço. O fluxo da cena é estilhaçado por inúmeros jump cuts, saltos e recomeços na movimentação do personagem com microfone e na de outros camponeses que intermitentemente surgem caminhando ao seu lado, entrando e saindo do casebre. Pela repetição da ação, a cena adquire um certo ritmo circular e, nas palavras de Bernardet, uma “impressão de inutilidade, de movimento em vão, sem finalidade” (Bernardet 2003, 86). Essa impressão talvez sirva de comentário irônico, por sua vez, ao que se escuta na banda sonora. Apesar do microfone de lapela em quadro, não há som direto: junto a uma trilha musical de fundo, escuta-se um outro camponês (interpretado por Francisco Martins) relatando os conflitos de seu sindicato com a polícia e expondo seus desejos de melhoria na vida camponesa, sublinhando, porém, uma suposta e desejável harmonia entre donos de terra e trabalhadores, e sugerindo que a reforma agrária não deva expropriar a terra dos primeiros em prol dos segundos. Secundando sua voz, há outra (novamente Jofre Soares), murmurando comentários em concordância com tudo o que o camponês lhe diz, numa entonação excessivamente complacente que acentua certa ironia da cena.
O discurso do filme, dados os materiais que mobiliza, parece se solidarizar com a indignação contra a violência policial do camponês, mas não sem um incômodo diante do desejo acanhado de uma harmônica reforma agrária sem expropriações. Ao pintar em seu discurso uma unidade entre trabalhadores e patrões, o camponês parece opor-se à “voz” do filme, que se iniciara com discursos enérgicos pró reforma agrária e embalara-se no ritmo enérgico da poesia de Chamie para, agora, estacionar em repetições e recomeços truncados ao redor de um casebre e de um discurso acanhado. Até a trilha musical se transforma nesse momento: antes, ao som da poesia de Chamie, o violão acelerado de Villa-Lobos, acompanhando com tensão a alternância rápida de fotografias e planos; agora, acompanhando os jump cuts, o violino e o violão do primeiro movimento da Sonata Nº1 de Paganini, conferindo, pela justaposição da sonoridade europeia da música com o falar camponês brasileiro, outra camada de ironia.
As repetições que enguiçam a performance dos camponeses ao redor do casebre, a música mais amena, o discurso reformista secundado por breves comentários complacentes, tudo isso destaca a cena ironicamente no interior do filme. A própria expressão facial e gestual do camponês microfonado, falando sozinho e, vez ou outra olhando para a câmera, tudo sem o som de sua voz, acentua o tom irônico na sequência, cuja estagnação notada por Bernardet parece ser o comentário crítico do filme à falta de organização revolucionária de determinados setores do campo, girando em vão e repetindo-se sem sair do lugar.
A “imobilidade”, porém, é encenada e coreografada, ritmada em seu vai e vem: “claramente uma encenação, uma coreografia” (Bernardet 2003, 91). Antes, os únicos camponeses que apareceram no filme (em imagem) estavam congelados em fotografias estáticas. A aparição agora de gente em “ação” (e “inação”) é duplamente chamativa: pelo movimento que perfazem e pela repetição que os enlaça. Na medida em que a repetição faz as mesmas ações e os mesmos marcados gestos retornarem (seja um olhar para a câmera, uma abertura de braços, um cruzar a soleira), ela acentua o quanto o filme é um discurso construído e não uma emanação de significados do real – o que constitui a tese central de Bernardet sobre o filme. Ao jogar com as repetições, o trabalho que o filme expõe é não tanto o trabalho campesino quanto o trabalho da mesa de montagem, de escolha de tomadas, de planos, de pontos de corte – escolhas mais ou menos explicitadas no gesto descontínuo de uma montagem de repetições:
Se um camponês filmado não é um camponês, mas a imagem de um camponês, essa imagem será tratada não como camponês, mas como imagem. Assim, do plano do casebre serão extraídas pequenas séries de fotogramas provocando pulos, aparecimento, desaparecimento ou deslocamento incongruente dos personagens (...) (Bernardet 2003, 90).
Repetição-pedagogia
Esse caráter reflexivo do discurso do filme reaparece com força logo após o plano da performance ao redor do casebre quando, ainda ao som do discurso contra a expropriação dos donos da terra, mostra-se um plano em tele-objetiva de camponeses ao longe na paisagem arando a terra. Um lento zoom out abre a imagem para a vastidão da paisagem, reduzindo drasticamente o tamanho das pessoas em quadro – movimento que Bernardet vê como emblemático da “dissolução” da figura do camponês no filme (Bernardet 2003, 95). Ao final do zoom, a imagem congela, cessa o relato do camponês e uma outra voz, em espanhol, assume a banda sonora, explicando a ligação entre a reforma agrária e a revolução de uma perspectiva oposta a apresentada pela voz na sequência do casebre, colocando-se completamente contra uma associação entre elite e trabalhador e, num comentário bastante provocativo ao governo militar, dizendo que nenhum regime militar de origem militar fez verdadeiramente uma reforma agrária. Enquanto a voz em espanhol fala, o plano recomeça: novamente os trabalhadores arando a terra vistos em tele-objetiva e, por um lento zoom out, a imagem se abre à vastidão da paisagem.
Um mesmo plano com dois comentários no áudio distintos. Aqui, a repetição chega a ser didática sobre o funcionamento do filme (e do cinema) enquanto discurso: é uma pedagogia do olhar (e da escuta) a indicar a transformação que uma trilha sonora pode operar sobre uma mesma imagem. Bernardet inclusive descreve a sutil diferença entre os dois planos idênticos:
da primeira vez, é a solidão dos camponeses abandonados pela zoom e oprimidos pelo latifúndio mostrado na sua vastidão que emana desse plano; da segunda, é o espaço aberto para a luta e a exibição de um latifúndio com o qual é preciso acabar (Bernardet 2003, 95).
Trata-se de uma pedagogia de repetição que não significa repetir algo para melhor aprender, como se repetem exercícios de álgebra ou exercícios de piano. É uma pedagogia de repetição que visa, ao invés de melhor entender aquilo sobre o que se tece um discurso, melhor entender a forma pela qual o discurso abarca um determinado tema, objeto ou realidade. No caso de Lavra-dor, a repetição indica duas formas de olhar a luta camponesa e duas formas de perceber a paisagem rural.
Aqui vale um parêntese para lembrarmos que, dez anos antes, Chris Marker, em Carta da Sibéria (Lettre de Sibérie, 1957), apresentou uma pedagogia de repetição semelhante em uma sequência justamente qualificada de “instrutiva” por Arlindo Machado (2009, 24). Nela, uma mesma série de imagens é repetida três vezes, cada uma delas acompanhada de uma narração e trilha musical distintas. Nas imagens, em uma cidade da Sibéria, um ônibus cruza uma avenida, operários trabalham no calçamento, e um homem passa olhando para a câmera. Da primeira vez em que aparecem, a narração afirma que registrou as imagens de forma objetiva e se interroga a quem elas poderiam agradar. Surge uma primeira repetição, então, acompanhada de um discurso bastante elogioso e ufanista (com música empolgante ao fundo). Logo, uma segunda repetição se dá, agora sob um discurso bastante crítico e negativo anti-soviético (acompanhado de uma música tétrica e soturna). A terceira e última repetição, enfim, apresenta uma descrição esforçando-se para ser “neutra”, sem carregar nos elogios ou nas críticas (e sem trilha musical), mas se encerra com a inquietante conclusão: “a objetividade também não é a resposta”.
André Bazin, em artigo dedicado a Carta da Sibéria publicado poucos dias antes de sua morte em 1958, considerou “dialética” a operação de montar as mesmas imagens com diferentes sons para a partir daí se analisar os resultados. Para Bazin, Marker demonstrara que a objetividade (da terceira repetição) seria mais falsa que as outras duas de ideologia claramente orientada, concluindo que a “imparcialidade é uma ilusão” (Bazin 2003, 45). Consuelo Lins chamou o procedimento de uma “experiência” dentro do filme, uma espécie de “efeito Kulechov” do pós-guerra – ou um “efeito Marker” – que chama a atenção para “os poderes manipulatórios da montagem” (Lins 2009, 35–36).
No caso de Lavra-dor, apesar de presente, a pedagogia reveladora sobre a montagem não é o objetivo central, como em Carta da Sibéria, mas um resultado de sua operação poética sobre materiais heterogêneos em repetição, visando, justamente, aproximar-se da questão camponesa, sem, contudo, excluir a inevitável distância que se coloca entre filme e realidade. Mais do que uma aula tal qual aquela dada por Marker, as repetições de Lavra-dor exprimem uma constante ruminação do filme sobre suas imagens e sons, sobre a realidade social camponesa, sobre o próprio processo de trabalho e montagem do filme. A repetição é o índice de uma ruminação, de uma impossibilidade de avançar linearmente sem antes retornar, rever, re-escutar, ver com outros ouvidos e ouvir com outros olhos. A ruminação reflexiva é, inclusive, explicitada nas cartelas de texto em que se lê reiterademente a dúvida “documentário?” como um leitmotiv ao longo do filme. Dúvida que o filme, ao final, ensaia responder com a cartela afirmativa “documentário.”, para logo em seguida recolocar a questão junto aos créditos finais: “documentário?”.
Conclusão?
Mário Chamie, em seu manifesto sobre a poesia praxis, rejeita a ideia de uma objetividade pura, capaz de representar a realidade, dando importância, por sua vez, ao cruzamento entre subjetividade e realidade por uma dialética de “interiorização do exterior” e “exteriorização do interior”, o que permitiria ao poeta falar de uma realidade de que não faz parte – a situação do homem rural, por exemplo –, bem como permitiria às pessoas dessa realidade (os camponeses) reconhecerem-se no que o poeta escreve (Pereira 2010, 64–65). Para tanto, é necessário ao poeta captar a manifestação sensível da “área de levantamento” por ele visada, no caso, a realidade camponesa, em suas configurações superficiais e profundas de linguagem, conforme sintetiza Rodrigo Pereira:
por superficiais, entendemos a camada externa e puramente designadora do vocabulário específico de cada área; por profunda, entendemos a camada mais radical do discurso, aquela que encarna o modo próprio de articular socialmente uma experiência por meio da linguagem: nesse sentido, é possível captar no ritmo muitas vezes intricado dos poemas de Lavra Lavra a fala entrecortada e tartamuda dos lavradores com os quais Chamie conviveu no final da década de 50; ritmo que obedece a uma sintaxe configuradora de um mundo em que a regularidade das estações opõe-se a um fundo em que a incompreensibilidade e a perda, a falha e a prostração das forças permite ao homem, quando muito, o grunhido e a interjeição (Pereira 2010, 65–66).
Segundo esse raciocínio e esse método de construção, o poema revelaria, não apenas pelos vocábulos escolhidos, mas nas suas estruturas, sintaxes e ritmos a realidade sobre a qual e a partir da qual ele trabalha. Assim, pode-se atribuir as repetições no interior da poesia às repetições de certos hábitos da fala camponesa e de sua relação com o mundo, como o próprio poeta sugere:
Enquanto discurso, o poema não é uma dicção imposta ao seu objeto de referência. Ao contrário, ele é o resultado estético desse objeto e reinventa, em sua escrita, as características tautológicas e de repetição progressiva, inerentes à fala rural da área cenarizada (Chamie 2011, 4)
Essas características, contudo, não são expressas nas repetições de Lavra-dor, excetuadas, talvez, aquelas que surgem exclusivamente das recitações de versos do próprio Chamie. As repetições por jump cuts na sequência do casebre, o zoom out duas vezes repetido, as imagens que pulsam ritmadas com a música, todas essas formas guardam pouca ou nenhuma analogia direta com o que seria uma fala rural – se concordarmos com as ideias de Chamie. O jogo do filme é mais heterogêneo e distanciado: abarca discursos políticos, diferentes línguas, textos sociológicos e de militares, músicas etc. Nesse jogo, a preocupação em aproximar-se da realidade camponesa pela dialética da “interiorização do exterior” e “exteriorização do interior” é lateral, quase que restrita à poesia recitada no áudio ou escrita em cartelas (ou seja, é algo mais de Chamie do que de Paulo Rufino e Ana Carolina).
Isto posto, há uma questão de base mais forte que diferencia o projeto poético do filme daquele do livro: a reforma agrária e a luta camponesa. Ainda que possamos enxergá-las como um horizonte possível e de fundo na poética de Lavra Lavra, o livro está mais preocupado em, como o próprio autor sustenta, expor a “cosmovisão” do homem do campo, atentando para sua vida “rotineira e cíclica”, sob o peso de uma “inércia estagnadora” nas relações políticas, econômicas e religiosas que se intercalam no seu trabalho com a terra (Chamie 2011, 63–64). Em Lavra Lavra, não há menção a alguma possibilidade de revolta, ainda que esteja presente a exploração e a violência dos proprietários e da situação econômica sobre os trabalhadores.
A abordagem de Lavra-dor é quase oposta, focando muito menos no trabalho cotidiano e na vida rotineira e muito mais na luta para transformar a vida sob exploração. Segundo Naara Fontinele, ao focar essa luta, Lavra-dor realiza uma ponte entre passado e futuro bastante singular, pois, em 1968 as ligas camponesas, que cresceram muito ao longo dos anos 1950 e início de 1960, já estavam praticamente extintas, massacradas pelo golpe de 1964.
A iniciativa de Paulo Rufino e Ana Carolina parece fazer do cinema o lugar de um jogo perturbador com a memória recente; um lugar em que o presente é assombrado pelo passado e pelas perspectivas do futuro (Fontinele 2017, 195).
O gesto do filme, portanto, talvez enseje uma repetição mais profunda, um retorno de uma luta que não só deve ser lembrada, mas também deve ser retomada. A partir da poesia de Chamie, o filme encontra formas para se aproximar da questão camponesa. Encontra, na repetição, uma forma de estruturar sua poética e jogar junto com o espectador. Encontra também uma virulência própria da poesia de Chamie, que enfatizava quão transgressora desejava sua poética, afastando-se de academicismos (Mário Chamie 2011, 164–65).
Mas, nesse processo de “adaptação” do livro para o filme, outras questões são incorporadas e o sentido mesmo das operações de repetição muitas vezes se transforma. De uma leitura sobre um presente de “inércia” proposta por Chamie, Paulo Rufino e Ana Carolina embarcam na proposição de um presente de luta, luta que rememora o passado e aponta caminhos futuros. Nas palavras de Ana Carolina, é um filme feito no “calor da hora”, de “agitação”, com a intenção de “fazer a revolução” com a “revolução da linguagem” (Cesar 2016).
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