Capítulo II – Cinema – Cinema

History, literature and cinema: a neoclassical poet caught in the whirlwind of a historiographic metafiction

A história, a literatura e o cinema: um poeta neoclássico enredado no redemoinho de uma metaficção historiográfica

Ramsés Albertoni Barbosa

PPGACL – UFJF, Brasil

Abstract

In the novel The year of the death of Ricardo Reis, José Saramago re-elaborates the life and work of Fernando Pessoa’s heteronym, whose narrative intertextuality installs and indefinitely, paradoxically, the line of separation between fiction and history, maintaining a self-awareness regarding the way everything is accomplished. Saramago builds a historiographical metafiction, whose problematization of historical knowledge turns to the need and risk of distinguishing between fiction and history as narrative genres. The creation process of this novel makes visible the ideological subtext that determines the conditions of the possibility of production and meaning in cultural practices, thus incorporating artistic, historical and theoretical discourses, rethinking the reworking of the forms and contents of the past, challenging the boundaries between life and art, while playing with the margins of genres. Saramago builds a dense historical picture of the crucial political year of 1936 in Europe, whose narrative reports the historical events through the readings of newspapers and some films that the character will watch in Lisbon’s street cinemas, occurring intertextuality with texts by other authors and the European cinematography of the 1930s. It is possible to consider, in this way, that, in the cinema, the image-time comprises fiction cinema and reality cinema, confusing their differences, and, in the same movement, the narrations make counterfeiters and narratives become simulations.

Keywords: Saramago, History, Literature, Cinema, Historiographic Metafiction

Introdução

No romance O ano da morte de Ricardo Reis, José Saramago (1998) reelabora a vida e a obra do heterônimo de Fernando Pessoa, cuja intertextualidade narrativa instala e indefine, paradoxalmente, a linha de separação entre ficção e história, mantendo uma autoconsciência em relação à maneira como tudo é realizado. Saramago constrói uma metaficção historiográfica, cuja problematização do conhecimento histórico se volta para a necessidade e o risco de distinção entre a ficção e a história como gêneros narrativos. O processo de criação desse romance deixa visível o subtexto ideológico determinante das condições da própria possibilidade de produção e de sentido nas práticas culturais, incorporando, desse modo, os discursos artísticos, históricos e teóricos, repensando a reelaboração das formas e dos conteúdos do passado, desafiando as fronteiras entre vida e arte, ao jogar com as margens dos gêneros. Saramago constrói um denso quadro histórico do crucial ano político de 1936 na Europa, cuja narrativa relata os acontecimentos históricos por meio das leituras de jornais e de alguns filmes que a personagem assistirá nos cinemas de rua de Lisboa, ocorrendo a intertextualidade com textos de outros autores e da cinematografia europeia da década de 1930. É possível ponderar, desse modo, que, no cinema, a imagem-tempo comporta o cinema de ficção e o cinema de realidade, confundindo as suas diferenças, e, no mesmo movimento, as narrações tornam-se falsificantes e as narrativas tornam-se simulações.

A entrada no labirinto ficcional

O labirinto é uma construção de múltiplas passagens ou divisões, cuja disposição é tão confusa que dificulta sobremaneira o encontro da saída por quem aí penetrou em um dia qualquer por descuido, ou acaso, ou desejo, ou fascínio... O labirinto e um desenho de ruas, avenidas, praças e travessas, sejam reais ou virtuais. Destarte, várias são as linhas de leitura possíveis do romance de Saramago (1998), O ano da morte de Ricardo Reis, onde o autor, ao perceber a sobrevivência deste heterônimo de Fernando Pessoa, prossegue na criação heteronímica ao refletir que as pessoas não imaginam que quem acaba uma obra talvez não seja aquele que a iniciou. Portanto, Saramago articula um jogo labiríntico-narrativo que abole, ou reconstrói em novas diretrizes, as noções recorrentes de ficção e história. Nesta metaficção historiográfica (Hutcheon, 1988), o autor reelabora a vida e a obra do heterônimo Ricardo Reis, pois com a morte de seu criador, esta criatura poética retorna a Portugal no crucial ano de 1935, após 16 anos auto-exilado no Brasil, e durante oito meses irá vagar por uma conturbada Lisboa às vésperas da II Guerra Mundial. A criação saramaguiana funda-se na intertextualidade do romance que instala e indefine, paradoxalmente, a linha de separação entre ficção e história, mantendo uma autoconsciência em relação à maneira como tudo é realizado. O jogo realidade/ficção constrói-se como a tessitura da teia da aranha que lança um fio de um ponto a outro, em cujo centro se joga a vida e o destino.

Saramago (1998) constrói um denso quadro histórico do crucial ano político de 1936 em Portugal, Espanha e em toda a Europa. O relato dos acontecimentos históricos será feito pelas constantes leituras de jornais de Ricardo Reis e a alguns filmes que a personagem assistirá nos cinemas de rua de Lisboa. Questionando o modus vivendi de figuras ficcionais e o seu relacionamento com a morte, o autor retoma a criação heteronímica de Pessoa, e procura solucionar a possibilidade da morte introduzindo-a em sua própria obra como a desintegradora supremamente duvidosa do não-certo. Saramago (1998) apropria-se de tal prerrogativa da criação heteronímica, promovendo assim uma narrativa funesta sobre um término já antecipado no próprio título da obra. A criação saramaguiana possui dobradiças e costuras que realizam a unidade harmônica dos acordes/acordos entre os seus instáveis e inevitáveis procedimentos literários.

O autor efetua, além da intertextualidade com textos de outros autores e de uma cinematografia da década de 1930, um processo de intertextualidade entre os seus próprios textos, citando-se a si próprio, espalhando por suas obras, citações que, de tão breves, tornam-se em mera referência, transformando-se então, em alusão, que é menos clara e exige a competência do leitor. A esse procedimento tipicamente saramaguiano daremos o nome de autorreferencialidade alusiva; procedimento esse em que o autor espelha a sua própria criação, caindo numa espécie muito particular de mise en abyme. A narrativa saramaguiana perfaz uma dobra sobre si mesma, descortinando uma multiplicidade de dobraduras, uma variedade de modos de dobrar a obra, levando-a ao labirinto infinito da dobra sobre dobra, numa ausência de centro em que os pontos de vista se multiplicam no pensamento que é posto em movimento por sínteses disjuntivas, pois somos forçados a manter-nos diante da disjunção, por não termos mais à nossa disposição a potência reconciliadora e unificadora dos princípios, onde tudo diverge na dessemelhança e no desencontro. Assim, narrar é dobrar, duplicando o fora com um dentro que lhe é coextensivo na busca de um perpétuo reencadeamento que aproxime o sujeito de um Uno (Deleuze 1991).

Ao tecer a narrativa de Ricardo Reis, Saramago (1998) vai buscar uma personagem literária, estritamente literária, para torná-la centro de uma obra de metaficção historiográfica (Hutcheon 1988), cuja problematização do conhecimento histórico se voltará para a necessidade e o risco de distinção entre a ficção e a história como gêneros narrativos. A metaficção historiográfica articula uma complexa rede institucional e discursiva de variados modos culturais, porquanto

[...] esse tipo de ficção não só é auto-reflexivamente metaficcional e paródica, mas também tem reivindicações com relação a certo tipo de referência histórica recém-problematizada. Mais do que negar, ela contesta as “verdades” da realidade e da ficção – as elaborações humanas por cujo intermédio conseguimos viver em nosso mundo. A ficção não reflete a realidade, nem a reproduz. Não pode fazê-lo. Na metaficção historiográfica não há nenhuma pretensão de mimese simplista. Em vez disso, a ficção é apresentada como mais um entre os discursos pelos quais elaboramos nossas versões da realidade [...] Uma das formas que toma essa ênfase é o destaque dado aos contextos em que a ficção está sendo produzida – tanto pelo autor como pelo leitor. Em outras palavras, as questões da história e da intertextualidade irônica exigem uma consideração de toda a situação “enunciativa” ou discursiva da ficção. (Hutcheon 1988, 64)

Desse modo, conforme a autora, a metaficção historiográfica formula questões epistemológicas e ontológicas a respeito dos “regimes de historicidade”, conceito desenvolvido por Hartog (2013), ou seja, das maneiras de se refletir e articular passado, presente e futuro, compondo um misto dessas três categorias, lançando dúvidas sobre a possibilidade de qualquer consistente “garantia de sentido”, qualquer que seja sua localização no discurso.

É preciso ressaltar, aliás, que cada sociedade constrói os seus próprios regimes de historicidade, que dizem respeito a algo mais ativo que “época”, pois é a expressão da experiência temporal, haja vista que organiza o passado como uma “sequência de estruturas”, uma Erfahrung do tempo que conforma os modos de vivenciar o próprio tempo. É preciso ressaltar que o tempo, juntamente com o espaço, é um dos a priori kantianos. Segundo Kant,

O tempo não é um conceito empírico que derive de uma experiência qualquer. Porque nem a simultaneidade nem a sucessão surgiriam na percepção se a representação do tempo não fosse o seu fundamento a priori. Só pressupondo-a podemos representar-nos que uma coisa existe num só e mesmo tempo (simultaneamente), ou em tempos diferentes (sucessivamente). O tempo é uma representação necessária que constitui o fundamento de todas as intuições. Não se pode suprimir o próprio tempo em relação aos fenômenos em geral, embora se possam perfeitamente abstrair os fenômenos do tempo. O tempo é, pois, dado a priori. Somente nele é possível toda a realidade dos fenômenos. De todos estes se pode prescindir, mas o tempo (enquanto a condição geral da sua possibilidade) não pode ser suprimido. (Kant 2001, 96)

Posto isto, os regimes de historicidade designam, logo, formas específicas de experiência do tempo, ocorrendo a dominância, em cada sociedade, de uma das instâncias temporais sobre as outras: regime de historicidade passadista ou presentista ou futurista. Sua função é articular as instâncias do tempo, expondo/inibindo as relações hierárquicas que promovem certas formas de experiência do tempo.

O processo de criação da metaficção historiográfica pretende, por isso, deixar visível aquele subtexto ideológico determinante das condições da própria possibilidade de produção e de sentido nas práticas culturais, incorporando, desse modo, os discursos artísticos, históricos e teóricos, repensando a reelaboração das formas e conteúdos do passado, desafiando as fronteiras entre vida e arte, ao jogar com as margens dos gêneros. A metaficção historiográfica insere/subverte o seu envolvimento mimético com o mundo, onde todas as noções de realismo ou referência entre o discurso da arte e da história são definitivamente modificados através da sua confrontação, eliminando a distância entre arte de elite e arte popular. No processo narrativo é apresentado um novo modelo para a demarcação da fronteira entre a arte e o mundo, contesta-se as verdades da realidade e da ficção, pois esta não reflete a realidade, e muito menos a reproduz. Contesta-se a separação entre o artístico e o histórico, com a incorporação textual de passados intertextuais enquanto elemento estrutural que constitui as criações contemporâneas, funcionando como marca formal da historicidade da obra. Desse modo, a metaficção historiográfica problematiza a natureza da narrativa questionando a sua legitimidade enquanto projeto global de explicação. A história aproxima-se de uma fábula com uma veste tênue que pode ser rasgada facilmente por uma lâmina chamada Agora. Ou seja, ficção e história se confundem na escritura de uma aventura, caracterizada por tentar a produção de uma ficção onde os mecanismos da realidade cotidiana aglutinam-se sem dificuldade alguma às leis da criação artística.

A ficção é, desse modo, a história que se torna problema, que é colocada em dúvida ou em questão pela obra literária que leva à interrogação sobre a realidade. Nas relações entre ficção e história é a obra que se volta para o mundo, onde a expressão individual adquire dimensão social; e ainda, a própria expressão individual sendo um fato sociológico com o resgate da subjetividade dos agentes históricos, em que a inscrição da situação histórica no texto (contexto), e vice-versa, é o signo de uma tendência literária e a consequente tomada de consciência histórica. Os fenômenos sociais podem ser assim definidos a partir das condutas individuais, e o início da análise sociológica se dará através da ação dos indivíduos, pois as estruturas sociais não possuem um sentido intrínseco; entretanto, terão o sentido que os próprios indivíduos imprimem às suas ações.

Ao manter as suas constantes andanças pela cidade-labirinto, o flâneur saramaguiano desce aos baixos da urbe e assiste a um filme francês, refletindo então que os filmes são semelhantes à poesia, arte da ilusão; basta ajeitar-lhes um espelho, que se forja um pântano ou um oceano. O primeiro contato da personagem Ricardo Reis com o cinema, em Lisboa, se dará logo após o “bodo” do jornal na Rua do Século. Depois de entrar em duas livrarias, Ricardo Reis hesita diante do cine Tivoli que exibe o filme Gosto de todas as mulheres (J’aime toutes les femmes), uma produção francesa de 1935, dirigida pelo cineasta Karel Lamac. A personagem Jean Morena, interpretada pelo ator Jean Kiepura, é um famoso tenor de ópera que está determinado a mudar seus compromissos para ter alguma liberdade após a apresentação. Por isso, seu empresário teve a ideia de contratar Eugène – personagem interpretada pelo mesmo ator, um trabalhador de mercearia que se parece com o protagonista do filme e está disposto a se tornar um cantor – para tomar seu lugar. O destino os fará mudar de lugar também nos negócios românticos.

Porém, o poeta clássico prefere deixar para outra ocasião o assistir deste filme. Depois, ao ler os jornais, Ricardo Reis vê o anúncio do filme histórico As cruzadas, exibido no cine Politeama. O filme The Crusades é uma produção norte-americana de 1935, dirigido por Cecil B. De Mille, e narra a história do rei Ricardo Coração de Leão na Terceira Cruzada e sua relação com Berengária, princesa de Navarra. No século XII, Jerusalém cai nas mãos dos sarracenos e os cristãos são mortos ou vendidos como escravos. Dessa forma, a Europa é conclamada a empreender nova cruzada contra os infiéis. Para fugir de um casamento incômodo com Alice, Princesa de França, o rei da Inglaterra, Ricardo Coração de Leão, conduz seus cavaleiros para a Terra Santa. Ao passar por Navarra, casa-se com a Princesa Berengária e a leva junto na empreitada, porém, o casal real concorda em que ela permaneça virgem até a vitória final. Com o intuito de deter os cruzados, o sultão Saladino rapta Berengária, mas acaba atraído por ela. Ricardo parte para resgatá-la e, depois de tomar Acre, põe seus homens no caminho da Cidade Sagrada. Após muitas mortes, Saladino pede uma trégua e Ricardo e Berengária finalmente consumam o matrimônio.

Após um dia inteiro fora do hotel, a personagem retorna para o jantar no Hotel Bragança e sai novamente para assistir ao filme sobre as cruzadas,

[...] que fé, que ardorosas batalhas, que santos e heróis, que cavalos brancos, acaba a fita e perpassa na Rua de Eugénio dos Santos um sopro de religião épica, parece cada espectador que transporta à cabeça um halo, e ainda há quem duvide de que a arte possa melhorar os homens. (Saramago 1998, 8)

Em outra noite, após conversar com o doutor Sampaio e sua filha Marcenda durante o jantar, Ricardo Reis sai a vagar pela cidade, entrando em alguns cinemas para simplesmente ver os cartazes. Logo após a mudança para sua nova residência, a personagem almoça no restaurante Chave de Ouro e, antes do anoitecer completo,

[...] compra bilhete para o cinema, vai ver O Barqueiro do Volga, filme francês, com Pierre Blanchard, que Volga terão eles conseguido inventar em França, as fitas são como a poesia, arte da ilusão, ajeitando-lhes um espelho faz-se de um charco o oceano. (Saramago 1998, 235)

O filme The Volga boatman é uma produção de 1926, dirigido por Cecil B. DeMille e narra a história, durante a Revolução Russa de 1917, de uma princesa russa que, embora prometida ao príncipe, sente-se atraída por um barqueiro do rio Volga. Esses barqueiros são pessoas simples que transportavam os nobres em carroças. O cineasta estadunidense pinta o retrato da revolução bolchevique, não na escala política, mas num nível pessoal, conta a história de amor entre um camponês e uma princesa.

Sozinho em sua casa, Ricardo Reis pensa em Fernando Pessoa e nos outros heterônimos, Alberto Caeiro, já morto, e Álvaro de Campos, que se mudara para Glasgow. De vez em quando frequenta as salas de cinema,

[...] a ver o Pão Nosso de Cada Dia, de King Vidor, ou Os Trinta e Nove Degraus, com Robert Donat e Madeleine Carrol, e não resistiu a ir ao S. Luís ver Audioscópios, cinema em relevo, trouxe para casa, como recordação, os óculos de celulóide que tem de ser usados, verde de um lado, encarnado do outro, estes óculos são um instrumento poético, para ver certas coisas não bastam os olhos naturais. (Saramago 1998, 325)

Ricardo Reis chega a assistir às gravações de A revolução de maio, filme baseado no romance Conspiração, de Tomé Vieira, que lera por recomendação de outra personagem do romance. O longa-metragem português, realizado por António Lopes Ribeiro, no ano de 1937, é uma obra de propaganda ideológica do salazarismo financiada pelo Secretariado de Propaganda Nacional, comandado por António Ferro. A personagem principal é um homem com inclinações comunistas que se apaixona por uma mulher simpatizante da ditadura portuguesa. Desenvolve-se, então, uma luta do bem contra o mal, das ideias do salazarismo contra as do comunismo. No fim, o homem acaba por abandonar os seus antigos pontos de vista e abraça a causa do ditador Salazar.

O investigador Victor atua como ator no filme de produção alemã, e mesmo após o “corta” do diretor, o investigador continua a interpretar, confundido realidade e ficção. Saramago aproveita então para tecer críticas à polícia salazarista:

[...] O Victor ainda vai no balanço dos desabafos, não consegue calar-se, o caso para ele é a sério [...] O Victor já desceu com a sua esquadra, levam os prisioneiros algemados, têm uma tal consciência do seu dever de polícias que até esta comédia levam a sério, tudo quanto é preso deve aproveitar-se, mesmo sendo a fingir. (Saramago 1998, 368-369)

A partir desses recortes do romance saramaguiano, é possível ponderar que, no cinema, a imagem-tempo comporta o cinema de ficção e o cinema de realidade, confundindo as suas diferenças, e, no mesmo movimento, as narrações tornam-se falsificantes e as narrativas tornam-se simulações, pois

É todo o cinema que se torna um discurso indireto livre operando na realidade. O falsário e sua potência, o cineasta e sua personagem, ou o inverso, já que eles só existem por essa comunidade que lhes permite dizer, nós, criadores de verdade. (Deleuze 1990, 88)

Conforme Deleuze, rompeu-se o vínculo do homem com o mundo, e é esse vínculo que deve tornar-se objeto de crença, pois só ela poderá religá-lo com o que ele vê e ouve. O cinema deverá filmar a crença no mundo, pois a natureza da ilusão cinematográfica é a de restituir-nos a crença no mundo. Todos,

Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia precisamos de razões para crer neste mundo. É toda uma conversão da crença. Já foi feita uma grande guinada da filosofia, de Pascal a Nietzsche; substituir o modelo do saber pela crença. Porém, a crença substitui o saber tão-somente quando se faz crença neste mundo, tal como ele é. (Deleuze 1990, 207-208).

Dessa maneira, o cinema se torna a percepção tornada linguagem integradora do homem-discurso ao mundo natural, retratando, por conseguinte, o drama homem/mundo. Ao fazer com que a personagem de seu romance perambule pela cidade e assista a vários filmes, Saramago se utiliza do recurso do formal realism (Watt 1957), cujo método narrativo incorpora uma visão circunstancial da vida a partir de um conjunto de procedimentos narrativos que são peculiares ao gênero romance e, apesar de ser uma convenção, possui vantagens específicas, porquanto existem diferenças importantes no grau em que as diferentes formas literárias mimetizam a realidade, o que lhe permite uma contrafação mais imediata da experiência individual situada num contexto temporal e espacial.

Segundo Lukács (2000), isso vai ocorrer porque a arte se tornou independente dos modelos clássicos e, atualmente, o romance já não é mais a cópia de um modelo pré-estabelecido, mas sim uma totalidade criada, visto que a “unidade natural das esferas metafísicas” se rompeu. O romance, como “epopeia da era burguesa”, estaria, desse modo, paradoxalmente condenado à fragmentariedade e à insuficiência por um substrato histórico-filosófico, além de ser a “narrativa de uma era” para a qual a totalidade extensiva da vida não se dá de modo evidente e cuja imanência tornou-se problemática apesar de possuir uma intenção à totalidade. Dessa forma, na poética de sua metaficção historiográfica, Saramago (1998) tece sua narrativa semelhante a um historiador que coloca um problema a partir das motivações de sua própria época, pois não existe uma realidade histórica que se apresente ao historiador por si mesma; sendo assim, o historiador deve escolher diante da imensa e confusa realidade e agenciar a construção do documento, porquanto, o fato histórico é algo inventado e fabricado a partir de hipóteses e de conjunturas (Le Goff 1990).

Ao refletirmos a respeito das intrincadas relações existentes entre o fazer cinematográfico e o fazer literário, ponderamos, conforme Ferro (1992), que o romance/filme não deve ser analisado apenas do ponto-de-vista semiológico, estético ou histórico, mas sim, como uma imagem-objeto, cujas significações ultrapassam o mero cinematográfico, pois autoriza uma análise sociohistórica. Dessa forma, a crítica deve se integrar ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica, buscando compreender a realidade que representa, já que o acontecimento, no caso, o filme, “[...] testemunha menos pelo que traduz do que pelo que revela, menos pelo que é do que pelo que provoca; ele não é senão um eco, um espelho da sociedade, uma abertura” (Nora 1988, 188).

Essas questões presentes no romance saramaguiano que dizem respeito sobre os limites da representação são problematizadas no documentário Nuit et Brouillard, de Resnais (1955), filme que surgiu a partir de uma encomenda feita pelo Comitê Histórico da II Guerra Mundial. Resnais aceitou dirigir o filme apenas quando o escritor francês Jean Cayrol passou a colaborar para o projeto. O diretor pensava que apenas alguém com a experiência de ter passado por um campo de concentração poderia dar conta de semelhante trabalho, e Cayrol foi um sobrevivente do campo de Mauthausen. Ele escreveu sobre sua experiência no campo, no ano de 1946, em um livro chamado Poèmes de la nuit et brouillard, título que viria a inspirar o nome do filme, assim como o texto que acompanha as imagens. Lopate (1996) defende que o filme se trata de um anti-documentário, pois não seria possível documentar esse tipo de realidade e, nesse sentido, o filme rejeitaria as presunções de neutralidade objetiva do tradicional documentário. Ele seria antes um esforço de análise e compreensão do que ocorreu. A questão dos limites da representação permeia o filme, assim como as implicações éticas de se abordar o tema do Holocausto. Isso aparece não apenas no texto de Cayrol, mas também pelas opções técnicas do filme utilizadas por Resnais. O filme procura, por meio de documentos, contar o que aconteceu, não propriamente de modo objetivo, pois a voz do narrador transmite ironia quando fala das pessoas que participaram da construção do campo; transmite angústia quando fala dos trens em que as pessoas embarcavam e das terríveis condições de viagem. Existe a busca de uma conexão entre o local, os campos em que foram feitas as filmagens dez anos depois, e a história; entre arquitetura e morte. A câmera parece encontrar nos campos apenas uma paisagem, uma arquitetura, mas sua busca é atingir o que está por trás de tudo aquilo, o que se esconde na história daquele local. Além da mera dificuldade de uma representação objetiva de um fato histórico, uma das especificidades na representação do Holocausto é a extrema dificuldade na correlação entre esse fato histórico singular e sua expressão diante do terror e da angústia, pois os limites da representação do Holocausto são, igualmente, os limites da memória do horror. O texto escrito por Cayrol expressa constantemente a limitação da própria obra, pois apesar da busca por capturar a realidade dos campos de concentração, as imagens mostram apenas a superfície, já que a dimensão verdadeira de quem realmente viveu aquilo não é representável por nenhuma imagem. Assim, a (im)possibilidade de representação do Holocausto faz parte da própria memória do Holocausto, cujo paradoxo consiste em que há um dever ético de se lembrar o que aconteceu e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de representá-lo.

Desse modo, a imagem-objeto do romance de Saramago (1998) e do documentário de Resnais (1955), cujas significações ultrapassam a mera criação artística, passa pelo formular heideggeriano que aborda a obra artística como um ente cujo caráter peculiar se propõe a des-vendar. Ao adotar um método próprio de investigação, o filósofo procura descobrir um útil sem teoria filosófica alguma, o seu texto mesclará a descrição com interpretação, a fenomenologia com a hermenêutica. Para Heidegger (2001) a obra-de-arte existe de modo tão natural como uma coisa, esse caráter de coisa é o primeiro com que nos esbarramos ao enfrentarmos uma criação. No entanto, a obra é algo mais que uma simples coisa. Na análise da pintura de Vincent van Gogh, em vez da mera exegese estética-histórica do quadro dos sapatos do camponês, Heidegger (2001) intentará descobrir a essência do utensílio, que reside no servir para algo, no seu ser de confiança. Assim, o que o quadro nos apresenta é uma vida e um mundo que não havíamos suspeitado anteriormente, porquanto a criação artística não é completa por si mesma, separadamente, só existe dentro de um conjunto de relações que transcendem sua entidade concreta, para integrá-la no mundo que a rodeia; preexistem à sua aparição um conjunto de seres sobre os quais a obra projeta uma espécie de luz, convertendo-se em seu centro unificador e constituinte de seus mundos. A reflexão heideggeriana concerne ao enigma da arte, ao enigma que é a arte mesma, já que o fazer artístico faz emergir algo que só se mostraria através da obra e que constitui a essência poética da arte.

Conclusão

Enfim, restou-nos, então, as imagens do itinerário hesitante daquele que navegou sob a marca, ou o signo, do descerramento, pois foi ao labirinto que ele, e nós igualmente num labirinto crítico-literário-cinematográfico, nos condenamos, isto nos indicam as muitas perquirições a que nos propusemos.

Referências

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Deleuze, Gilles. 1991. A dobra – Leibniz e o barroco. São Paulo: Papirus.

Ferro, Marc. 1992. Cinema e história. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

KANT, Immanuel. 2001. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian.

Hartog, François. 2013. Regimes de historicidade. Belo Horizonte: Autêntica.

Heidegger, Martin. 2001. Arte y poesia. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica.

Hutcheon, Linda. 1988. A poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago.

Le Goff, Jacques. 1990. A nova história. São Paulo: Martins Fontes.

Lopate, Phillip. In search of the centaur: the essay film. In: Warren, Charles. 1996. Beyond document: essays on nonfiction film. Middletown: Wesleyan University Press.

Lukács, Györg. 2000. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34.

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Nuit et Brouillard. 1955. De Alain Resnais. França. DVD.

Saramago, J. 1998. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras.

Watt, Ian. 1957. The rise of the novel. London: Chatto and Windus.