Abstract
The creation of effective methods and organizations in the defense of the interests of power ensured the improvement and effectiveness of Oliveira Salazar and Marcello Caetano’s regime, as well as their support in Portugal for 48 years. The control of public opinion was largely made through the regulation of shows. Organizations responsible for monitoring, inspecting, analyzing, cutting, prohibiting or approving theatrical and cinematographic contents have been established. In 1945, the first organization responsible for censoring shows was created, the Censorship Commission, which remained with that designation until 1952, the year in which it received the name of Censorship Commission for Shows. Finally, in 1957, it underwent the last change, and became known as the Commission for the Examination and Classification of Shows and remained so until 1974. Based on the analysis of the minutes of the first Censorship Commission (1945-1952), the purpose of this communication is to disclose the films that were subject to classification and censorship during the term of this Commission; to present the results that refer to the approval and disapproval of national and foreigner films, focusing mainly on data relating to Portuguese films, and prohibited movies also analyzing the functioning and performance of the Censorship Commission since its origin, with regard to the deliberations relating to classified film.
Keywords: Censorship commission, Cinematographic censorship, Approved films, Disapproved films, Portuguese cinema.
Introdução
Esta investigação surge no âmbito do doutoramento em Estudos Contemporâneos e insere-se numa primeira fase do estudo dos organismos responsáveis pela censura cinematográfica em Portugal durante o Estado Novo. A dissertação de doutoramento terá como objeto central a Comissão de Exame e Classificação dos Espetáculos (CECE), que vigorou entre 1957 e 1974, organismo que foi precedido pela Comissão de Censura aos Espetáculos (CCE), entre 1952 e 1957, e pela Comissão de Censura (CC), criada em 1945, em atividade até 1952.
O objetivo deste trabalho é conhecer o funcionamento da CC, o primeiro organismo criado pelo Estado Novo responsável pela censura das peças de teatro e dos filmes. O texto divulga dados relativos aos filmes censurados e analisa a atuação da CC, baseando-se na legislação da época e no material disponível no Arquivo Nacional da Torre do Tombo: as atas das reuniões da Comissão de Censura e os processos de censura aos filmes.
Repressão de pensamento e controlo de informação são métodos utilizados pelos poderes instituídos para garantir o domínio sobre a sociedade. Os regimes autoritários e totalitários institucionalizaram e legalizaram a censura alegando a defesa da moral e do interesse comum. Na verdade, o único objetivo é garantir a estabilidade e a hegemonia do poder, impedindo a circulação de ideias contrárias.
A censura não é algo que faça parte do passado, hoje em dia é exercida na internet, com uma forte presença na Ásia Central, Ásia do Leste, Médio Oriente e Norte de África. Também na Europa há episódios de censura. Recentemente na Catalunha o rapper Pablo Hasél foi preso e viu as suas músicas censuradas por injúrias à monarquia. A análise do funcionamento da censura durante a ditadura portuguesa (1926-1974) é importante para perceber esta omnipresença da censura na sociedade. Trata-se de um período recente e muito marcado pela prática censória. O mecanismo atuou sobre todos os meios de divulgação de informação e ideias: livros, jornais, rádio, televisão, teatro, cinema e garantiu 48 anos de ditadura. Este texto começa por abordar o vasto legado da censura em Portugal, para depois incidir na criação da CC focando nos aspetos relativos à censura cinematográfica.
Em 1945, pouco antes do final da II Guerra Mundial, foi criada a CC, um órgão cuja função era censurar os filmes e as peças de teatro. A iminência da derrota nazi representava a vitória democrática na Europa e constituía uma ameaça para os regimes autoritários, que precisaram reorganizar-se de modo a evitar a circulação de ideias consideradas perigosas. A censura renovou-se e inseriu alterações para garantir uma maior eficácia na aplicação das medidas de controlo dos conteúdos dos espetáculos públicos. O aperfeiçoamento sistemático dos métodos de censura foi acompanhado pelo aumento de obras censuradas.
1. A censura antes do Estado Novo
A censura em Portugal é uma prática muito anterior ao Estado Novo “conhecendo-se, já no reinado de Afonso V (1438-1481), «um índice manuscrito de livros considerados heréticos»” (Seabra 2016, 81). O Tribunal do Santo Ofício, fundado em 1536 e extinto em 1821, exerceu censura através da perseguição, punição e morte de pessoas, impedindo a circulação de livros e ideias. Em 1836 foi criada a Inspeção Geral dos Teatros cujo funcionamento foi interrompido entre 1839 e 1924. Durante esta interrupção a censura ficou dependente das autoridades locais. Em 1924, a lei determinou que “o Inspetor Geral dos Teatros, terá superintendência em todas as casas de espetáculos públicos” (Decreto 9584. 1924, Art. 2º). Quanto ao cinema, foi em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, que surgiu a necessidade de controlar as informações do conflito. A censura rejeitou filmes pacifistas para validar a presença das tropas nacionais no conflito e salvaguardar a sua imagem.
A exibição [do] filme «Civilização», de tom pacifista, não obstante ser sujeito a visionamento prévio, foi objeto de intervenção da polícia que suspendeu uma sessão e proibiu a sua exibição futura. (Cleto 1979, 8)
O Ministério da Guerra ficou incumbido de garantir que
nenhuma fita cinematográfica, de qualquer natureza ou proveniência, que contenha assuntos militares, ou que direta ou indiretamente faça alusão aos exercícios beligerantes ou à grande guerra, poderá ser exibida nos territórios da República sem previamente ser sujeita à censura militar. (Decreto 3354. 1917, Art.1º)
Em 1925, a legislação proibiu a “exibição de fitas contrárias à moral e bons costumes” (Lei 1748. 1925, Art.1º). As empresas deviam comunicar com o mínimo de 24 horas de antecedência à Inspeção Geral dos Teatros os títulos dos filmes e o dia de exibição. (Decreto 10573. 1925, Art.11º). Ficaram ainda proibidas “as exibições perniciosas para a educação do povo, incitamento ao crime, e atentados à moral social” (Decreto 10573. 1925, Art.13º). Em 1926, um novo decreto reiterou a proibição de exibição de “fitas cujo assunto possa afetar a moral e os bons costumes” (Decreto 11459. 1926, Art.1º). Estes critérios subjetivos não especificam aquilo que se entende por moral, bons costumes, pernicioso, ou incitamento ao crime. Mas compreende-se que os critérios respeitavam os interesses e os valores defendidos pelo poder. Pouco tempo depois, a 28 de maio de 1926, foi instituída a ditadura militar. Não tinha ainda passado um mês e já se decretava a censura, a 22 de junho o diretor do Diário da Tarde recebeu a seguinte comunicação:
Por ordem superior, levo ao conhecimento de v. que, a partir de hoje, é estabelecida a censura à imprensa, não sendo permitida a saída de qualquer jornal sem que quatro exemplares do mesmo sejam presentes no comando geral da Guarda Nacional Republicana para aquele fim (A censura - lápis azul 2012).
Apesar de estabelecida de modo provisório, a atuação da censura foi permanente e ocorreu sem interrupções até 1974. A liberdade de expressão, embora prevista na lei, foi anulada por diretrizes que aplicavam a censura. Em 1927, um só diploma reuniu as disposições da censura aos espetáculos onde se incluíram os critérios de censura cinematográfica. Ficou assim interdita
a exibição de fitas perniciosas para a educação do povo, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político e social vigorante e designadamente as que apresentarem cenas que contenham: Maus tratos a mulheres. Torturas a homens e animais. Personagens nuas. Bailes lascivos. Operações cirúrgicas. Execuções capitais. Casas de prostituição. Assassínios. Roubo com arrombamento ou violação de domicilio, em que, pelos pormenores apresentados, se possa avaliar dos meios empregados para cometer tal delito. A glorificação do crime por meio de letreiros ou efeitos fotográficos. (Decreto nº13564. 1927, Art.133º)
A lei estabeleceu uma maior objetividade de critério, determinando a proibição de imagens específicas. Até 1929 competia à Inspeção Geral dos Teatros fiscalizar os espetáculos. Em 1929 o organismo adequou o nome à realidade das suas funções que não se limitavam ao teatro, passando a designar-se Inspeção Geral dos Espetáculos.
2. A Comissão de Censura (1945-1952)
A Constituição Portuguesa de 1933 instituiu oficialmente o Estado Novo, reiterou o direito à liberdade de expressão e de reunião, mas apenas em teoria, porque na prática a censura continuou a ser exercida para
impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade (Decreto lei nº22469. 1933, Art.3º)
Neste sentido de proteção da opinião pública surgiu, em 1933, o Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) com a finalidade de
combater por todos os meios ao seu alcance a penetração no nosso País de quaisquer ideias perturbadoras e dissolventes da unidade e interesse nacional. (Decreto lei nº 23054. 1933, Art. 4º alínea f)
Em 1936, António Ferro, diretor do SPN, criou o Cinema Ambulante que percorreu o país “para combater o comunismo e promover o corporativismo e as casas do povo” (Piçarra 2020, 27). O Cinema Ambulante viajou até às terras mais humildes para projetar filmes de propaganda. As sessões eram acompanhadas de discursos anticomunistas e de glorificação a Salazar e ao Estado Novo. Em 1944, o SPN reorganiza-se, o decreto nº 34134 promulgou o regulamento dos serviços do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), que veio substituir o SPN. O SNI integrou os Serviços de Turismo, os Serviços de Imprensa, a Inspeção dos Espetáculos, o exercício da censura, os Serviços de Exposições Nacionais e os Serviços de Radiodifusão.
A 11 de maio de 1945, o decreto 34590 constituiu a Comissão de Censura (CC), composta por homens da confiança do governo, remunerados pelas suas funções e responsáveis pela censura das peças de teatro e dos filmes exibidos em território nacional. Segundo o decreto, a CC era constituída
pelo Secretário Geral do Ministério, pelo Inspetor dos Espetáculos, que serão respetivamente o presidente e vice-presidente, e por mais nove vogais e um secretário nomeados pelo Ministro da Educação Nacional. (Decreto lei nº34590. 1945, Art. 15º)
e mais três vogais indicados pelo SNI, o que perfaz um total de 15 elementos. A ata nº1 regista a primeira reunião a 6 de março de 1945, antes mesmo da publicação do diploma. O número de censores indicados nas reuniões, entre 1945 e 1952, variou e nunca atingiu os 15 elementos do decreto. A Comissão começou a funcionar em março de 1945 com 9 elementos, aumentou para 12 em maio de 1945 e a partir de 1950 operou com 11 elementos até 1952. As reuniões tinham uma regularidade semanal e registaram-se 393 reuniões entre 1945 e 1952. A censura aos filmes começou de forma cuidada, ficando definido desde a primeira reunião
que aos novos vogais, embora conhecedores das diretrizes traçadas por sua Excelência o Ministro, não fossem atribuídos serviços de censura de filmes, sem que pela prática adquirissem o perfeito conhecimento das normas seguidas neste especial serviço (CC 6/3/1945 ata nº1).
Na ata nº 7, a 17 de abril de 1945, foram criadas as instruções sobre censura cinematográfica e ficou definido que as reuniões da Comissão se realizariam todas as terças feiras. Foi determinado que as empresas dispunham do prazo mínimo de 15 dias, antes da primeira exibição, para fazerem os pedidos de censura aos filmes. Os pedidos deviam ser acompanhados de listas, legendas e argumentos, os documentários estariam dispensados destas formalidades. Erros de sintaxe e ortografia seriam sujeitos a cortes e a execução dos cortes era da responsabilidade das empresas, que tinham de enviar à inspeção a parte do filme suprimido. As censuras prévias eram revistas depois de repostas as legendas. Apenas podiam assistir à passagem dos filmes para censura o representante da empresa distribuidora e o tradutor. O material de propaganda dos filmes só podia ser afixado depois de aprovado pela Comissão. O não cumprimento das regras podia resultar na proibição do filme. A proposta de decisão do censor seria apresentada em relatório escrito após realização da censura. Estas instruções e o decreto nº13564 de 1927, anteriormente citado, dão-nos uma ideia geral do procedimento da censura. O decreto determina os assuntos e as imagens proibidas, as instruções indicam a organização do processo de pedidos de censura, assistência aos filmes, execução dos cortes, controlo das legendas, e autorização à publicidade dos filmes.
3. Filmes distribuição e deliberações
O cinema era uma arte ainda recente, uma das primeiras preocupações da Comissão foi definir os critérios de censura aos filmes. Durante os primeiros três anos de vigência do organismo, as atas registaram entre 10 a 14 filmes distribuídos por ano. Até 1948, a censura aos filmes registada nas atas das reuniões era escassa e feita individualmente ficando “resolvido que cada censor adote o critério que entender.” (CC 12/6/1945 ata nº 14). Mas em 1948 os censores notaram
a conveniência de […] ser seguido um critério idêntico ao usado na distribuição das peças teatrais e ainda a vantagem da censura dos filmes ser desempenhada por dois censores, dada a frequência com que ultimamente se tem registado a atribuição a um segundo censor de filme que a um primeiro mereceram dúvidas na apreciação (CC 30 de março 1948 Ata n.º 160).
Esta mudança na organização por grupos, coincide com um aumento do número de filmes distribuídos. Das dezenas passamos para as centenas de filmes distribuídos por ano.
Anos | Nº absolutos de filmes distribuídos |
---|---|
1945 | 10 |
1946 | 10 |
1947 | 14 |
1948 | 238 |
1949 | 317 |
1950 | 286 |
1951 | 311 |
1952 | 141 |
Total | 1327 |
Figura 1 – Tabela da distribuição anual de filmes com base nas atas das reuniões da CC (1945-1952).
As atas referem 1707 títulos de filmes mencionados sem autoria ou data. Os filmes eram distribuídos numa sessão e as deliberações apresentadas nas seguintes. Os processos de censura de alguns filmes prolongaram-se no tempo e nem todos tiveram uma decisão até à data da última reunião. Acontece também haver deliberações sobre filmes que não tinham sido distribuídos anteriormente, daí os totais de filmes distribuídos ou deliberações nunca atingirem os 1707 citados. Na tabela que se segue, as percentagens foram calculadas considerando os 1707 filmes citados. Tendo em conta que as atas são documentos manuscritos, por vezes difíceis de decifrar e que a contagem dos filmes foi feita de forma manual, pode existir uma pequena margem de erro nos valores apresentados.
Filmes Comissão de Censura (1945-1952) 1 | ||
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Deliberação | Nº absolutos | % |
Aprovados | 1009 | 59% |
Aprovada importação | 31 | 1,8% |
Filmes de complemento | 88 | 5,1% |
Reprovados e aprovados posteriormente | 8 | 0,5% |
Aprovados condicionalmente | 3 | 0,2% |
Total aprovados | 1139 | 66,6% |
Aprovados com cortes | 238 | 14% |
Importação aprovada com cortes | 10 | 0,6% |
Planificação aprovada com cortes | 3 | 0,2% |
Total aprovados com cortes | 251 | 14,8% |
Reprovados | 21 | 1,2% |
Importações proibidas | 14 | 0,8% |
Suspensos | 1 | 0,06% |
Total proibidos | 36 | 2% |
Filmes portugueses | 57 | 3,3% |
Filmes de complemento 2 | 88 | 5% |
Total deliberações e filmes de complemento | 1565 | |
Total filmes citados | 1707 |
Figura 2 – Tabela das deliberações de filmes com base nas atas das reuniões da CC (1945-1952)
Nota-se uma elevada taxa de aprovação de filmes, mais de 66% dos filmes foram aprovados e uma reduzida taxa de reprovação com apenas 1,76% dos filmes reprovados.
Figura 3 – Gráfico de % com base nas atas das reuniões da CC (1945-1952): filmes portugueses, filmes aprovados, reprovados e aprovados com cortes
Estes resultados precisam ser analisados tendo em conta a autocensura das empresas que conheciam os critérios de censura e não arriscavam produzir, ou importar, filmes suscetíveis de reprovação, porque isso representava um enorme prejuízo. Quando um filme era reprovado, as empresas recorriam, argumentavam na tentativa de demonstrar que não havia matéria censurável e que a reprovação do filme representaria um enorme prejuízo face ao investimento feito.
Sempre que um distribuidor via um filme, pensando trazê-lo ao nosso país, exercia sobre essa obra um olhar de clara autocensura. Muitos filmes nunca foram presentes à Comissão de Censura porque os próprios distribuidores achavam essa démarche inútil (Lauro António 1978, 32)
A censura económica foi mais uma das agravantes e muitas obras que “poderiam com facilidade até passar na censura, mas não eram trazidas ao nosso país […] porque eram consideradas não rentáveis” (Lauro António 1978, 32).
Os filmes quando chegavam às mãos dos censores já iam muitas vezes mutilados de conteúdos que pudessem originar uma reprovação, e tentava-se negociar. “Nós cortamos esta e esta cena, mas V. Ex.ª senhores censores, deixam ficar aquela que reputamos essencial” (Lauro António 1978, 34). A reprovação dos filmes gerava descontentamento, o recurso das empresas colocava em causa o trabalho da CC, que não gostava de ver as suas decisões questionadas. Os censores decidiram que “os filmes só devem ser proibidos quando não for possível, por meio de supressão de cenas deixá-los em condições de poderem ser passados em público” (CC 12/6/1945 ata nº14).
Decisão provavelmente mais relacionada com a salvaguarda da imagem da Comissão e com a preocupação de evitar contrariedades, do que com a proteção dos interesses das empresas. A esmagadora maioria dos filmes distribuídos foram películas estrangeiras. Apenas 3,3% dos filmes mencionados nas atas eram portugueses, o que representa, em números absolutos, 57 filmes. Todos os filmes portugueses foram “aprovados” ou “aprovados com cortes”, com a exceção do filme Tragédia em Timor que foi suspenso. Em 1948 criou-se o Fundo do Cinema Nacional para estimular a produção do cinema nacional, mas na verdade, foi mais uma forma de controlar os conteúdos cinematográficos. Apenas tinham acesso ao apoio filmes que obedecessem à condição de
ser representativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história a alma coletiva do povo, quer se inspire nos grandes temas da vida e da cultura universais
(Decreto lei nº2027. 1948, Art. 11º alínea c)
A produção nacional estava dependente da aprovação do poder político e as restrições económicas limitaram a expressão do cinema nacional. Os autores portugueses não se atreviam a tratar temas passíveis de rejeição, “o cinema português cresceu sempre anquilosado, autorreprimido, recalcado; poucos ousaram desafiar a moral dominante - o politicamente correto da época” (Areal 2013, 117).
A autocensura tornou-se assim, cada vez mais eficiente e castradora da criatividade dos profissionais de cinema, que limitaram a sua produção a assuntos adequados às determinações do poder.
4. Filmes estrangeiros proibidos
Entre 1945 e 1952, segundo as atas das reuniões, a Comissão de Censura reprovou 21 filmes, proibiu a importação de 14 filmes, o que representa um total de 35 filmes estrangeiros proibidos.
Filmes estrangeiros reprovados | |
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Título, ano, realizador. | Conteúdo |
Os Ginetes da Morte (1947) Ray Enright Título original: Trail Street | Luta dos agricultores pelas suas terra contra grandes proprietários de gado, assassinos e corruptos. |
Le bas fonds (1936) Jean Renoir | Denuncia das desigualdades sociais, conta a história de amizade entre um ladrão e um rico falido. |
Cruel mentira (1949) Richard Maibaum Título original: The great Gatsby | Corrupção e desilusão do sonho americano. A trama envolve adultério e suicídio. |
Balada Oriental | Filme não localizado. |
Le diable au corps (1947) Claude Autant-Lara | História de amor entre um adolescente e a noiva de um soldado da Primeira Guerra Mundial. A jovem engravida do amante. |
Bagarres (1948) Henry Calef | Uma empregada jovem e pobre, que por sugestão do seu amante, seduz o seu velho patrão para lhe ficar com a fortuna. |
Sangue do meu sangue (1949) Joseph L. Mankiewicz Título original: House of Strangers | O filho de um barbeiro italiano, pobre e emigrante nos Estados Unidos, enriquece ao fundar um banco. Perde o banco e é traído pelos três filhos mais velhos. O filho mais novo é preso por tentativa de suborno para salvar o pai. Quando regressa da prisão planeia vingar-se dos irmãos. |
Nasceu um assassino (1947) Robert Wise Título original: Born to kill | Uma mulher divorciada, novamente noiva, encontra dois cadáveres, decide não contar à policia porque tenciona abandonar a cidade. Na viagem de regresso, sem saber de quem se trata, conhece Sam, o assassino. Sam é um homem sedutor por quem ela se apaixonará. |
Terra violenta (1948) Edmond Francis Bernoudy | Disputa pela terra e crítica aos proprietários de cacau. Narra o quotidiano dos marginalizados, das prostitutas e dos trabalhadores da produção do cacau. |
Meu Filho (1940) Charles Vidor Título original: My son! My son! | William Essex nasceu numa família pobre torna-se rico e famoso como escritor. Ele ambiciona que o seu filho possa beneficiar da sorte que ele nunca teve. Mas o jovem mimado e insensível destrói todos à sua volta e tenta roubar o pai. |
A terra treme (1948) Luccino Visconti Título original: La terra trema | Um jovem pescador, revoltado contra a exploração dos patrões nos mercados do peixe, funda o seu próprio negócio com a família, desafiando o status quo instituído. |
Sob o céu de Marrocos (1949) Richard Eichberg Título original: Die reise nach Marrakesch | Exposição da temática da homossexualidade, conta a história da esposa de um cirurgião, que mantém vários casos de amor extraconjugais. |
Reportagem desumana | Filme não localizado. |
Acontecerá de novo? (1948) Dwain Esper Título original: Will it happen again? | Filme documentário sobre Hitler e Mussolini, relata as atrocidades cometidas pelo regime Nazi. Contém imagens da vida privada de Hitler e da sua companheira Eva Braun. |
Sem consciência (1951) Bretaigne Windust e Raoul Walsh Título original: The enforcer | O testemunho de um bandido pode desmantelar uma organização criminosa Uma queda fatal tira a vida à testemunha, deixando uma grande lacuna na investigação difícil de superar. |
La belle Garce (1948) Jacques Daroy | Dois irmãos gerem um circo itinerante. A chegada de uma bela jovem vai semear a discórdia entre os dois irmãos e instala a confusão. |
A noiva esquecida (1948) St John Leigh Clowes Título original: No orchids for Miss Blandish | Miss Blandish é vitima de um assalto e acaba sequestrada. Sequestrador e sequestrada apaixonam-se. |
Cidade Feminina (1936) Jacques Deval Título original: Club de femmes | Uma pensão em Paris, onde os homens não podem entrar, dá abrigo só a mulheres, no entanto, elas planeiam secretamente encontros com o sexo oposto. O filme expõe os temas da homossexualidade, da prostituição e da gravidez de uma mulher solteira. |
Porta falsa | Filme não localizado. |
No caminho da vida (1948) Michael Gordon Título original: Another part of the forest | Um homem enriqueceu à custa da exploração dos seus companheiros durante a Guerra Civil Americana. O filho mais velho descobre o segredo do pai e faz chantagem para ficar com a fortuna. No final a esposa abandona a família. |
Uma aventura em Macau (1951) Edward Ludwig Título original: Smugler`s island | Um mergulhador de águas profundas é contratado para recuperar uma carga afundada. O mergulhador descobre que se trata de uma carga de ouro roubado, pensa em entregar a mulher às autoridades, mas apaixona-se por ela e não o faz. |
Figura 4 – Tabela de conteúdos dos filmes estrangeiros referidos como reprovados nas atas das reuniões da CC (1945-1952)
Importação Proibida | |
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Título, ano, realizador. | Conteúdo |
Lady Paname (1950) Henri Jeanson | Uma jovem cantora ambiciona tornar-se famosa. Para alcançar a fama precisa de uma música e para isso vai aproximar-se de um compositor com quem se envolve. |
Caged (1950) John Cromwell | Uma jovem é presa por ajudar o marido num roubo. Na prisão descobre que está gravida e apesar do apoio que recebe da diretora da prisão, fica sem o filho. Os maus tratos na prisão transformam a jovem numa mulher cruel e vingativa. |
Damned don’t cry (1950) Vincent Sherman | Uma dona de casa abandona o marido depois da morte do filho. A mulher vai viver para a cidade e envolve-se no mundo do crime. |
Barricade (1950) Peter Godfrey | Um assassino cruel e obcecado pelo poder explora e oprime de forma violenta os homens que trabalham para ele numa mina. A maioria dos trabalhadores são fugidos da justiça que procuram proteção, mas acabaram explorados. |
Rope (1948) Alfred Hitchcocok | Dois jovens, assassinam o amigo, obcecados com a ideia que quem mata é superior a quem morre. Convidam a família do morto e fazem do baú onde colocaram o corpo a mesa de jantar. |
Crise (1950) Richard Brooks | O filme inicia com a frase: “O tempo é o presente. As cenas da ação são ficção, mas as forças que operam na cena desta história não são ficção”. Um ditador precisa de uma cirurgia urgente e rapta um neurocirurgião. Os cidadãos oprimidos pedem ao médico para não salvar o ditador. |
Beyond the forest (1949) King Vidor | História de uma mulher adúltera infeliz no casamento. Quando descobre que está grávida procura ajuda para abortar. Recusada a ajuda, salta de uma encosta para perder a criança indesejada. |
Dark city (1950) William Dieterle | Uma casa de apostas é fechada pela polícia. Sem dinheiro, o dono planeia um jogo de poker contra um turista. Depois de perder tudo no jogo o turista suicida-se. Um psicopata começa a matar todos os envolvidos no jogo. |
The Lawless (1950) Joseph Losey 3 | Retrato da descriminação racial contra os trabalhadores mexicanos. Um jovem injustamente acusado terá como único defensor um jornalista. A população movida pelo ódio e pelo racismo invade e destrói o escritório do jornalista |
Vendetta (1950) Howard Hughes, Preston Sturges, Max Ophüls, Paul Weatherwax Stuart Heisler, Mel Ferrer | Uma jovem acusa o governador da cidade de assassinar o seu pai e arrasta o irmão para o seu plano de vingança. |
Sombra da noite | Filme não localizado. |
Amanhã será tarde (1950) Léonide Moguy Título original: Domani è troppo tardi | Numa escola conservadora com métodos violentos e repressivos uma professora é expulsa por considerar o ensino desadequado e hipócrita. Dois jovens apaixonam-se e envolvem-se, o relacionamento é visto como imoral. Sem conseguir lidar com a pressão a jovem tenta suicidar-se. |
Cuori Senza Frontiere (1950) Luigi Zampa | A imposição de uma linha de fronteira entre a Itália e a Jusgoslávia obriga os habitantes a escolher de que lado querem ficar. O clima de tensão entre as duas partes vai ser motivo de grandes conflitos. |
Another Man’s Poison (1951) Irving Raper | Uma mulher tem um caso com o marido da sua secretária e envenenou o ex-marido. Recebe a visita inesperada de um companheiro de crime do seu ex-marido que desvenda o que aconteceu. O dois tentam livrar-se do corpo quando a secretária e o amante aparecem |
Figura 5 - Tabela de conteúdos dos filmes estrangeiros referidos como proibida a importação nas atas das reuniões da CC (1945-1952)
Observando o conteúdo dos filmes, todos abordam temas proibidos pelos critérios de censura definidos na lei de 1927, como crime, adultério, suicídio assassínios, a crítica ao poder instituído ou a prostituição. Outros temas embora não literalmente identificados nos critérios, remetem para a proibição de fitas que podem ser consideradas “perniciosas para a educação do povo” como é o caso da homossexualidade, a injustiça, a desigualdade social, a corrupção, a independência feminina, casos amorosos com criminosos, divórcio, ou conflitos familiares. Assistindo aos filmes e tendo em conta os padrões de censura, a reprovação é bastante espectável. Para ter a certeza das motivações que levaram os censores a proibir determinado filme é necessário analisar os relatórios de censura. No entanto, nem todos foram preservados, mas graças a alguns relatórios datilografados ou redigidos de forma legível é possível conhecer os motivos concretos que levaram à proibição de determinado filme. Um desses casos é o relatório do filme A terra treme assinado pelo vogal Manuel Félix Ribeiro e que transcrevo:
Paira neste filme uma atmosfera de revolta contra a sociedade constituída. O ambiente em que decorre a ação, que se situa numa aldeia de pescadores do sul da Itália onde a miséria, quasi a desolação, rodeia os habitante; as situações que o argumento contém, engendradas, sente-se que propositadamente, para gerar no espetador o descontentamento e o odioso; a índole dos personagens, calculadamente escolhidos para servir os propósitos do realizador, tudo isto pontuado, no decorrer do filme e como se a sua aparição fosse fortuita, com os símbolos comunistas estampadas nas paredes, diz bem das intenções com que o filme foi feito. A figura principal é a de um jovem pescador que procura libertar-se da servidão e da prepotência a que um grupo de delegados de uma empresa instalada na terra obriga os que mourejam na pesca, impondo na lota os preços que melhor lhe convém. É vencido na luta humilhado; mas, espera, só até que venha o dia em que “a terra há-de tremer”. Pelo que se acaba de expor e por que o filme constitui um espetáculo inconveniente e altamente perigoso, propõe-se a sua proibição.
(ANTT- Relatório de censura ao filme A terra treme)
O relatório é elucidativo das motivações do censor para propor a proibição do filme. A terra treme constituía uma ameaça por expor a miséria dos pescadores italianos que, na realidade, não seria muito diferente da condição difícil dos pescadores portugueses. O filme foi considerado perigoso por mostrar símbolos comunistas nas paredes e por abordar a luta dos trabalhadores pelos seus direitos. O tema da desigualdade social e a crítica à sociedade instituída surge, também, em outros filmes proibidos como Os ginetes da morte, Le bas fonds e Terra violenta. Um outro tema proibido é o adultério, presente em filmes como: Cruel mentira, Le diable au corps, Bagarres, Sob o céu de Marrocos, Another man’s poison e Beyhond the forest. O relatório do filme Le diable au corps foi assinado pelo vogal Afonso do Paço, que propôs a proibição do filme e assinalou as imagens a eliminar em caso de aprovação:
Beijos de sofreguidão, preliminares do adultério e diálogo sobre as sensações da noite passada, serão para reduzir e eliminar no caso de aprovação do filme.
(ANTT- Relatório de censura ao filme Le diable au corps)
No final o relatório o vogal expôs os principais motivos da proposta de proibição
Pretendemos hoje educar a nossa juventude em princípios de sã moral e nesta ordem de ideias não há necessidade de lhes meter o diabo no corpo, apresentando em taça dourada escola tão completa de doutrina e usanças que as leis e a estrutura moral do nosso país condenam. (ANTT- Relatório de censura ao filme Le diable au corps)
Fica clara a necessidade de doutrinação dos jovens de acordo com a moralidade defendida pelo regime. As referências à homossexualidade foram também proibidas. Podemos até considerar ousada esta iniciativa das empresas em enviar para a Comissão filmes como Sob o céu de Marrocos e Cidade feminina que expõem temas tão polémicos. O relatório do filme Cidade feminina considera a película imoral, propõe a sua proibição e enumera alguns aspetos considerados na decisão de reprovação.
Um homem consegue várias vezes, com disfarce ridículo, introduzir-se na cidade e engravidar uma rapariga. Uma das funcionárias - a telefonista, de combinação com o amante, prostitui várias pensionistas. E como se o ambiente e a imoralidade do filme não fossem já suficientes há ainda uma lésbica que se toma de amores por uma das pensionistas. Esta última é levada pela telefonista, a pretexto de lhe arranjar emprego, ao seu amante que como de costume a viola. A lésbica sabendo do facto, cheia de ódio envenena a telefonista. O ambiente de imoralidade sem sanção que respira todo filme não parece aconselhar a sua exibição e por isso se propõe a reprovação.
(ANTT- Relatório de censura ao filme Cidade feminina)
Além da moralidade, a abordagem política nos filmes será decisiva na reprovação. O filme Acontecerá de novo? foi reprovado por denunciar as atrocidades do regime nazi e por colocar em causa a figura de Adolf Hitler. A censura deixou clara a sua identificação com o regime nazi ao proibir o filme por considerar que a montagem foi elaborada com o objetivo de “desprestigiar o regime nazi” (ANTT- Relatório de censura ao filme Acontecerá de novo?). Os censores não consideraram oportuna a exibição do filme por “ridicularizar a figura de Hitler ou desprestigiar o povo alemão com o qual o nosso país manteve relações amigáveis”.
(ANTT- Relatório de censura ao filme Acontecerá de novo?)
Estamos perante uma organização que atuava sob o controlo do regime, que temia o efeito das imagens e procurava eliminar do cinema todo e qualquer pensamento que contrariasse a ideia de ordem e moralidade defendida pelo Estado Novo. Não admitia a crítica social, nem referências ao crime, ao adultério, à prostituição, à homossexualidade, aos conflitos familiares, ou à independência feminina, tudo em prol de uma estabilidade governativa sem obstáculos nem vozes contraditórias.
4. Filmes Portugueses
As atas das reuniões da CC referem 57 filmes portugueses. A maioria dos autores optou por enviar as planificações para serem censuradas antes de produzir os filmes, evitando assim grandes investimentos antes da aprovação. No total contam-se 39 planificações enviadas para a CC. Foram aprovadas 29 planificações, 7 das quais viram os filmes concluídos e aprovados. Mais 4 planificações aprovadas com cortes: Vendaval maravilhoso, Vinho, a tragédia das terras do Douro, Madragoa e A volta do Zé do telhado, este último com a informação que o filme também foi aprovado. E 6 planificações cuja deliberação não ficou decidida até à data da ultima reunião da Comissão. A censura era apertada, depois de aprovadas as planificações e concluídas as filmagens os filmes deveriam ser novamente avaliados. Quanto aos filmes portugueses que não enviaram planificação foram no total 15, sendo 12 deles aprovados, 3 aprovados com cortes: Cais do Sodré, Cinco Reis de Gente e Sessão triunfal no Porto candidatura do General Norton de Matos.
Deliberações filmes Portugueses | |
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Filmes aprovados sem apresentar planificação | 12 |
Planificação ou argumentos aprovados | 29 |
Planificação e filme aprovado | 7 |
Total de filmes aprovados | 41 |
Planificação aprovada com cortes | 4 |
Planificação aprovada com cortes e filme aprovado | 1 |
Filmes aprovados com cortes | 3 |
Total de filmes aprovados com cortes | 7 |
Aprovado com alterações | 1 |
Suspenso | 1 |
Planificação sem deliberação | 6 |
Filme sem deliberação | 1 |
Total de filmes portugueses | 57 |
Figura 6 – Tabela de deliberações sobre filmes portugueses com base nas atas das reuniões da CC (1945-1952)
As atas não referem os cortes com a exceção do alerta para as cenas de escravatura no filme Vendaval Maravilhoso. Foi pedido a “Leitão de Barros, para se inteirar, com pormenor, sobre as cenas de escravatura que na planificação oferecem dúvidas.” (CC 19/10/1948 ata nº189). E ficou decidido que
embora o filme possa estabelecer certas confusões cronológicas se aprove a planificação com os cortes apresentados (…) condicionando, porém, a exibição do filme à vista da sua realização, pois se não pode analisar, com segurança, a materialização de obra de tal melindre.
(CC 19/10/1948 ata nº189).
Manuel Guimarães é um conhecido caso de censura ideológica por parte do regime, nas atas são citados três filmes deste realizador, Saltimbancos, um retrato da vida difícil de um circo ambulante, Nazaré, com argumento escrito pelo neorrealista, Alves Redol, o filme fala do trabalho penoso dos pescadores e Vidas sem rumo uma abordagem ao contrabando e à miséria. O filme Saltimbancos é indicado nas atas como aprovado, no entanto existe informação de cortes efetuados no filme. Bérnard da Costa escreveu que:
Quase todos os «intelectuais de esquerda» saíram à liça para defender a obra que se sabia ter sofrido algumas tesouradas da censura.
(Bérnard da Costa 1991,108)
Nazaré é um dos filmes sem deliberação até à data da ultima reunião da CC, mas sabe-se que foi cortado, Leonor Areal verificou que
as cenas cortadas são essencialmente aquelas em que têm protagonismo o gago escorraçado, os bêbados e os miúdos ladrões de peixe, ou seja, aqueles cujo comportamento «marginal» terá suscitado a reprovação posterior da censura, visto que não o fez na aprovação prévia, nem levantou qualquer objeção (Areal 2013,137).
A autora nota ainda a exclusão de cenas de conflito, de referências a dificuldades económicas e uma alteração na mensagem final que no argumento original “não era o sacrifício dos homens desde o nascimento, mas da capacidade de resistir das mulheres” (Areal 2013,139). A censura e o regime não
estavam preparados para revelar a dura realidade da vida do pescador, preferindo uma visão mais corporativista da mesma realidade
(Cunha 2010, 541)
A realidade apresentada em Nazaré constituía uma desconstrução do discurso oficial do regime e da imagem da alegria de ser pobre tão proclamada pelo Estado Novo. Uma das cenas que chocou o poder instituído foi a de um pobre pescador que se viu
obrigado a penhorar o próprio casaco que o agasalha para se poder alimentar e à sua família. Ao que parece, Henrique Tenreiro, presidente da Direcção da Junta Central das Casas dos Pescadores e reconhecido «patrão das pescas», ficou muito susceptibilizado com esta sequência do filme que punha em causa a imagem pública do pescador propagandeada e difundida pelo Estado Novo, o eterno trabalhador remediado que vive na alegria da pobreza. (Cleto apud. Cunha 2010, 542)
Um outro exemplo é o filme Vidas sem Rumo sobre o qual, as atas apenas dizem que a planificação foi distribuída. A decisão de aprovar o filme com cortes será anunciada, depois de visto e revisto o filme várias vezes por toda a Comissão, anos mais tarde na ata nº 170, a 17 de abril de 1956, estando já em funções a nova Comissão CCE (1952-1957). Leonor Areal afirma que os problemas com filme começaram quando a rodagem ficou concluída em 1953 e obrigaram “o realizador a cortar 45% do filme, a reescrevê-lo e a refilmar cenas” (Areal 2013, 141). O filme só ficou terminado em 1956, o realizador teve de encontrar soluções para manter a coerência narrativa e introduz um narrador “que vem substituir o narrador poético da primeira versão e contar a história através de um flashback que se percebe artificial”. (Areal 2013, 142). Leonor Areal especifica alguns cortes como a cena em que a personagem principal no guião original retira uma criança à mãe e abandona-a num barco
na versão corrigida, o afogamento da mulher por acidente, e a criança deixada nos braços do homem, desculpam o protagonista. Seria chocante que o protagonista retirasse a criança à mãe para a abandonar nas mãos dos párias?
(Areal 2013, 143-144).
Manuel Guimarães produziu um cinema de resistência ao abordar temas que apelam à consciência social, embora omita “qualquer relação com a oposição política (clandestina) ao regime ditatorial” (Areal 2013, 127).
Um outro exemplo é o filme A Garça e a Serpente de Arthur Duarte que as atas indicam a aprovação da planificação, mas José Matos Cruz refere que “o filme teve cortes da censura” (Matos-Cruz 1999, 97) Estes filmes são casos raros que ousaram introduzir o tema das dificuldades económicas, personagens injustiçados e miseráveis, vagabundos, mendigos e prostitutas, mas sofreram as consequências dessa ousadia refletida nos cortes realizados. A grande maioria dos filmes aprovados respeitam os critérios definidos pelo poder e abordam temas como o fado, touradas, romances históricos e comédias.
Filmes Portugueses | |
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Nome, ano, realizador | Deliberação |
Inês de Castro (1945) Leitão de Barros | Planificação sem deliberação |
Podia acontecer (filme não realizado) Barbara Virgínia | Planificação aprovada |
Cais do Sodré (1946) Arthur Duarte | Filme aprovado com cortes |
Camões o Trinca fortes (1946) Leitão de Barros | Filme aprovado |
Três dias sem Deus (1946) Bárbara Virgínia) | Planificação aprovada |
Um homem do Ribatejo (1946) Henrique Campos | Planificação aprovada |
Tragédia em Timor Fernando Garcia | Suspenso |
A mantilha de Beatriz (1946) Eduardo García Maroto | Filme aprovado |
Ladrão, precisa-se! (1946) Jorge Brum do Canto | Planificação aprovada |
Capas negras (1947) Armando Miranda | Planificação sem deliberação |
Flores e Sangue (sem informação) | Planificação aprovada |
Três espelhos (1947) Ladislao Vadja | Planificação aprovada |
A maluquinha de arroios (1970) Henrique Campos | Planificação aprovada |
Os vizinhos do rés do chão (1947) Alejandro Perla | Planificação aprovada |
A Vara larga (sem informação) | Planificação sem deliberação |
Heróis do Mar (1949) Fernando Garcia | Planificação aprovada / Filme aprovado |
Bola ao centro (1947) João Moreira | Planificação aprovada |
Morgadinha dos canaviais (1949) Caetano Bonucci e Amadeu Ferrari | Planificação aprovada / Filme aprovado |
Um grito na noite (1948) Carlos Profirio | Planificação Aprovada |
Fado (1947) Perdigão Queiroga | Planificação sem deliberação |
Serra Brava (1948) Armando Miranda | Planificação aprovada |
O Leão da estrela (1947) Arthur Duarte | Planificação aprovada |
O espantalho (sem informação) | Planificação aprovada |
Sol da meia noite (sem informação) | Planificação aprovada |
Hilário (sem informação) | Argumento aprovado |
Uma vida para dois (1953) Armando Miranda | Aprovado com alterações |
O filho do Homem do Ribatejo (1946) Henrique Campos | Planificação aprovada |
Cinco reis de gente (sem informação) | Filme aprovado com cortes |
Touros e toureiros (sem informação) | Filme aprovado |
Vendaval Maravilhoso (1949) Leitão de Barros | Planificação aprovada com cortes |
Sol e touros (1949) José Buchs | Planificação aprovada / Filme aprovado |
A volta do Zé do telhado (1949) Armando de Miranda | Planificação aprovada com cortes / Filme aprovado |
Sessão triunfal no Porto candidatura do General Norton de Matos (sem informação) | Aprovado com cortes na locução |
Viagem de sua excelência o Senhor Marechal Carmona ao Porto (sem informação) | Filme aprovado |
Vinho A Tragédia das Terras do Douro (sem informação) | Planificação aprovada com cortes |
Ribatejo (1949) Henrique Campos | Filme aprovado |
Cantiga da rua (1950) Henrique Campos | Planificação aprovada / Filme aprovado |
Esplendor Selvagem (1972) António de Sousa | Filme aprovado |
Primo Basílio (1959) António Lopes Ribeiro | Planificação aprovada |
Frei Luís de Sousa (1950) António Lopes Ribeiro | Filme aprovado |
Sangue toureiro (1958) Augusto Fraga | Filme sem deliberação |
Gilberta (sem informação) | Planificação aprovada |
O grande Elias (1950) Arthur Duarte | Filme aprovado |
Sonhar é fácil (1951) Perdigão Queiroga | Filme aprovado |
Milagre de Fátima (sem informação) | Planificação aprovada |
Um marido solteiro (1952) Fernando Garcia | Planificação aprovada / Filme aprovado |
Madragoa (1952) Perdigão Queiroga | Planificação aprovada com cortes |
Saltimbancos (1952) Manuel Guimarães | Filme aprovado |
A garça e a serpente (1952) Arthur Duarte | Planificação Aprovada |
Eram duzentos irmãos (1952) Armando Vieira Pinto | Planificação aprovada / Filme aprovado |
Vida de um toureiro (sem informação) | Filme aprovado |
Os três da vida airada (1952) Perdigão Queiroga | Planificação aprovada /Filme aprovado |
Vidas sem Rumo (1956) Manuel Guimarães | Planificação sem deliberação |
Chikwembo! Sortilégio Africano (1953) Carlos Marques | Filme aprovado |
Duas causas (1953) Henrique Campos | Planificação aprovada |
Justiça do céu (1952) Victor Manuel | Planificação aprovada |
Nazaré (1952) Manuel Guimarães | Planificação sem deliberação |
Figura 7 – Tabela de identificação filmes portugueses referidos nas atas das reuniões da CC (1945-1952)
Figura 8 – Gráfico de deliberações filmes portugueses % com base nas atas das reuniões da CC (1945-1952): planificações e filmes aprovados com cortes, planificações e filmes aprovados, filmes suspensos.
Não houve nenhuma planificação ou filme português proibido, o que remete para a eficácia da autocensura. Alguns realizadores, como foi o caso de Manoel de Oliveira, simplesmente deixaram de produzir e os que não desistiram, poucos ousaram desafiar os critérios definidos na lei. Os filmes produzidos obedeciam às normas estabelecidas, salvo raras exceções que foram prontamente cortadas. Houve apenas uma película suspensa, trata-se do filme Tragédia em Timor de Fernando Garcia. Pouco se sabe acerca deste filme, o artigo de Maria do Carmo Piçarra “Uma filmografia colonial de Timor” é uma das raras referências à película. O artigo revela-nos o testemunho deixado por Tomaz Lacerda, em 1947, acerca deste filme que nunca chegou a ser realizado. Tomaz Lacerda adjetiva o filme de arrebatador e assustador e classifica-o como sendo o “primeiro grande documento revelador das realidades timorenses apresentado à consciência e ao brio da gente portuguesa.” (Lacerda cit. Piçarra, 2017, 135). O argumento do filme ficou a cargo do Tenente do Exército Ferreira da Costa e do jornalista Francisco de Paula Dutra Faria e teria como base a reconstituição dos acontecimentos através do uso de “pedaços de película impressionados pelos próprios japoneses, quando da invasão” (Lacerda cit Piçarra, 2017, 136). Estes pedaços foram segundo Tomaz Lacerda resgatados do fogo por Ferreira Costa que
tê-los-á conseguido em Timor, onde soube da existência de filmes no local onde estava instalada a secção cinematográfica japonesa. Na mesma, ter-se-á deparado com oficiais japoneses a destruir “milhares de fotografias e os preciosos documentários da invasão de Timor”. Segundo Lacerda, desesperado, lançou-se para o meio do fogo. Queimou as mãos e os braços, mas pôde recuperar fragmentos do precioso material – cujo valor excede tudo quanto possam imaginar os profanos. Os astutos manejos dos nipónicos para continuar na destruição foram eliminados rapidamente com meia dúzia de murros oportunos. (Lacerda cit. Piçarra, 2017, 136).
No entanto a realização do filme ficou suspensa, nunca chegou a concretizar-se, nem se sabe o destino da película japonesa resgatada por Ferreira Costa. A ocupação japonesa em Timor espalhou o terror no território e teve um impacto terrível na população. O facto de a realização do filme ter ficado suspensa vai ao encontro de uma passagem das atas das reuniões da CC que refere que
foi resolvido eliminar as cenas que possam considerar-se desprimorosas para os japoneses e bem assim os planos referentes à guerra civil de Espanha devendo os assuntos russos ser reduzidos o mais possível. Falou também sobre cenas que possam suscitar o espírito de revolta tendo sido igualmente resolvido eliminar essas passagens
(CC 12/06/1945 ata nº14).
O cinema permitido no país contribuiu, de forma exemplar para a construção de um imaginário coletivo que
debaixo da ostentação paternalista de um povo alegre e folclórico, simples e singelo, modesto e conformista – escondia a realidade violenta da Ditadura, da exploração capitalista e do colonialismo. (Geada 1977, 74)
Todos os filmes nacionais e estrangeiros que não compactuassem com os ideais do regime, não tinham espaço nas salas de cinema.
Conclusão
O Estado Novo, consciente da influência do cinema, precisou garantir que ideias contrárias ao poder não eram divulgadas através dos filmes. Embora a censura já existisse, a sua prática foi aperfeiçoada graças à criação de um organismo específico com normas e regras de censura cada vez mais eficazes. Á medida que o método se aperfeiçoava, aumentava o número de filmes censurados anualmente. A regularidade semanal das reuniões e a intensa atividade da Comissão demonstram a grande preocupação com o controlo dos conteúdos cinematográficos. Os critérios de censura eram públicos e o reduzido número de filmes proibidos demonstra a eficácia da autocensura. Um filme reprovado representava um enorme prejuízo para as empresas que não queriam correr esse risco. Não valia a pena apostar em temas como adultério, prostituição, desigualdade social, lutas de classes, conflitos familiares, conflitos políticos, crime, suicídio, homossexualidade, porque eram sistematicamente cortados e proibidos daí a grande taxa de aprovação dos filmes. O espetador de cinema apenas tinha acesso a películas onde não haviam crimes, nem problemas sociais, nem pobreza, nem conflitos. No imaginário coletivo do público desenvolveu-se uma fantasia de ordem e harmonia social completamente desenquadra da realidade. Relativamente à produção nacional, o Fundo do Cinema Nacional, criado em 1948, ao apoiar apenas os filmes que obedecessem a um determinado critério, funcionou como mais um crivo da censura. Poucos foram os autores que arriscaram tratar temas proibidos e os que o fizeram viram as suas obras mutiladas. Uma dessas exceções foi o realizador Manuel Guimarães, que graças à sua determinação nos deixou uma herança singular. A sua obra desafiou o regime ao abordar temas como a pobreza e a desigualdade social. A ousadia valeu-lhe uma obra altamente mutilada pela censura, mas ainda que fragilizada pelos cortes é um importante testemunho de resistência. Também a guerra e a política eram temas delicados, não havia espaço nas salas de cinema para se abordar estes assuntos, nem para a diversidade de linguagens e conteúdos. Aquilo que não respeitasse a norma estabelecida era eliminado. Alguns criadores, mesmo os que tentaram resistir, tiveram sempre de se adaptar e cortar os filmes, outros simplesmente recusaram produzir nessas condições. Esta primeira Comissão foi a continuidade dos serviços de censura que já vigoravam, mas que careciam de organização. Em 1952, o organismo acolheu novos censores, e passou a designar-se Comissão de Censura aos Espetáculos (CEE), mas no essencial manteve o mesmo funcionamento e critérios. A última alteração, aconteceu em 1957, com nova substituição de elementos. A Comissão passou a designar-se Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos (CECE) título que manteve até 1974.
Notas Finais
1Estes números correspondem a uma recontagem com alterações da tabela apresentada no artigo “Censura e cinema em Portugal: A comissão de censura (1945-1952) Funcionamento, censores e deliberações”.
2Filme curtos apresentados antes da sessão principal.
3O realizador Joseph Losey foi uma das vítimas da “caça às bruxas” promovida por Joseph McCarthy que desenvolveu uma campanha anticomunista na América entre 1950 e 1957. Losey acusado de pertencer ao partido Comunista, fugiu para a Inglaterra.
Siglas
CC - Comissão de Censura
CCE- Comissão de Censura aos Espetáculos
CECE- Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos
SPN- Secretariado da Propaganda Nacional
SNI- Secretariado Nacional de Informação
Referência bibliográficas
Areal, Leonor. 2013. “As imagens proibidas – A censura ao cinema português” in Censura nunca mais! org. Ana Cabrera: 113-175.
Bérnard da Costa, João. 1991. Histórias do Cinema, Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda.
Cleto, Germano. 1979. Rumos do Cinema Português, Lisboa: cadernos Fundi Apoio aos Organismos Juvenis.
Cunha, Paulo.2010. “A censura e o novo cinema Português” in Outros Combates pela História. Org. Maria Manuela Tavares Ribeiro: 537-551.
Matos Cruz, José de. 1999. O cais do olhar. O cinema português de longa metragem e a ficção muda, Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do cinema.
Piçarra, Maria do Carmo. 2017. “Uma filmografia colonial de Timor Português in Anuário Antropológico: 133-155.
Piçarra, Maria do Carmo.2020. Projetar a ordem, Lisboa: Os pássaros.
Seabra, Jorge. 2016. O cinema no discurso do poder, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
Lopes Cristina. 2020. “Censura e cinema em Portugal: A comissão de censura (1945-1952) Funcionamento, censores e deliberações”. In Estudos do Século XX Revista do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra: 17-48.
Legislação
Diário do Governo, Ministério da Instrução Pública, lei 1748, 16 de fevereiro1925.
Repartição do Gabinete Ministério da Guerra, decreto 3354, 10 de setembro de 1917.
Diário do Governo, Direção Geral das belas artes, decreto nº 10573, 26 de fevereiro1925.
Diário do Governo, Ministério da Instrução Pública, decreto nº 11459, 20 fevereiro de 1926.
Diário do Governo, Ministério da Instrução Publica, decreto nº 13564, 6 de maio de 1927.
Diário do Governo, Ministério do Interior, decreto lei nº 22469, 11 de abril de 1933.
Diário do Governo, Presidência do Conselho, decreto lei nº 23054, 25 de setembro de 1933.
Diário do Governo, Presidência do Conselho, decreto lei nº2027, 18 fevereiro de 1948
Diário do Governo, Ministério da Instrução Pública – Direção das Belas Artes 1ª Repartição, decreto 9584, 9 de abril de 1924.
Diário do Governo, Presidência do Conselho e Ministério da Educação Nacional. Decreto-lei nº 34590, 11 de maio de 1945.
Diário do Governo, Presidência do Conselho, decreto lei nº 34134, 24 de novembro de 1944.
Fontes Primárias
ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO (ANTT)
ANTT- Relatório d e censura ao filme A terra treme Secretariado Nacional de Informação, IGAC, cx. 342, proc. 46/53.
ANTT- Relatório de censura ao filme Le diable au corps, IGAC, cx. 341, proc. 413/49.
ANTT- Relatório de censura ao filme Cidade feminina, IGAC, cx. 341, proc. 203/48.
ANTT- Relatório de censura ao filme Acontecerá de novo? IGAC, cx. 342, proc. 5/53.
ANTT Atas das sessões da Comissão de censura, Lisboa: código de referência PT/TT/SNI-DGE/3, https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4323540 . Acedido em 17 de fevereiro de 2021.
Filmografia
A censura – Lápis Azul. 2012. De Rafael Antunes. Portugal. Universidade Lusófona. https://www.youtube.com/watch?v=bd05wvksvcY. Acedido em 17 de fevereiro de 2021.