Abstract
The present work analyzes a cinema experience at school, more specifically a cinema club workshop held in 2017, under the program Novo Mais Educação (2016), in Public School Profa Aurea Melo, peripheral region of the north of the city of Aracaju, capital of the state of Sergipe. This government program, aimed at the functional permanence of students in the school environment, had as its main objective the improvement of grammar and the development of mathematical skills. For the analysis of the experience, I use as a base the concept of an emancipated spectator, as proposed by Jacques Rancière (2002; 2012). I also think about the use of cinema in education beyond a functionalist vision, as proposed by Adriana Fresquet (2013) and Alain Bergala (2008). The comparative analysis with the Mais Educação Program, from 2009, made it possible to perceive that the changes that came with the “Novo” left out the more emancipatory character of the Program. Initially, in an impulse to consolidate integral education as a reality for Brazilian public schools, the 2009 Program intended to expand the participation of all agents involved in the school community, promoting a greater link between the community and school management. The mediation of experience, of contact between children and films, reinforced the emancipatory possibilities of this encounter between cinema and education.
Keywords: Cinema, Education, Autonomia, Experience report, Cineclub.
Cinema nas escolas
Nesse artigo, parto do pressuposto da busca por uma educação emancipadora, isto é, uma aprendizagem com autonomia, em que cada criança disponha da possibilidade de perceber sua própria inteligência e, através de experiências provocadas no ambiente escolar, possa adivinhar1 e reinventar as relações que existem entre todas as coisas, no mundo ao seu redor. Em outras palavras, que as crianças possam desenvolver seus próprios conhecimentos por meio de um processo de aprendizado “sob o signo da igualdade” (Rancière2002,24).
Como defende Fresquet (2013), a partir de Bergala (2008), em uma experiência de cinema na escola é preciso acreditar no cinema como obra de arte. Nesse sentido, perceber o mundo por intermédio de uma obra artística é descobrir e inventar também outros mundo possíveis. Em outros termos: “a experiência estética surge acionando processos de produção de subjetividade e de transformação social” (Kastrup 2002, 40).
Essa perspectiva oferece uma proposta sobre uma realidade para ser partilhada e ressignificada por seus espectadores. Além disso, analisa Fresquet, apropriando-se de Migliorin2 (2010), também é preciso acreditar no cinema como obra de arte, na escola como espaço possível de liberdade e, por fim, acreditar nas crianças e nos seus potenciais de criatividade e autonomia. De acordo com a autora, deve-se também desconfiar dessas três crenças, visto que o cinema pode não ser suficiente, a escola pode ser autoritária e negligente e a criança pode não estar disponível para aquela experiência (Fresquet 2013, 25).
Dito isso, o que nos interessa, nessa reflexão, é deixar de lado uma pedagogia que planeja didaticamente explicar algo – com todas as mirabolantes possibilidades que foram inventadas para criar repetidores de fórmulas prontas – e assumir que cada um aprende por si. Ou seja, para estimular a aprendizagem das crianças estudantes é necessário, também, que elas assumam o protagonismo de seu processo de aprendizagem. Sobre isso, complementa Jacques Rancière (2002, 20): “É o explicador que tem necessidade do incapaz, e não o contrário, é ele que constitui o incapaz como tal. Explicar alguma coisa a alguém é, antes de mais nada, demonstrar-lhe que não pode compreendê-la por si só”.
De acordo com Rancière, em O mestre ignorante (2002), “o artista tem necessidade de igualdade, tanto quanto o explicador tem necessidade de desigualdade” (Rancière 2002, 79). A situação atual da educação brasileira, de enorme desigualdade estrutural, tanto de condições de vida, como entre as diversas realidades escolares, torna o cineclubismo uma alternativa viável para expandir os horizontes das crianças vítimas dessas desigualdades.
No Brasil, o cineclubismo surge oficialmente nas escolas a partir da Lei Nº 13.006, de 2014, que tornou obrigatória uma carga horária de 2h mensais para exibição de cinema brasileiro, tendo com um objetivo o fortalecimento de identidades. Porém, tal medida confronta com profissionais sobrecarregados e uma estrutura física defasada, o que torna quase (mas não totalmente), impossível a aplicação dessa iniciativa. Assim, neste artigo espero refletir caminhos possíveis para o desenvolvimento desse tipo de trabalho.
Além disso, gostaria de ressaltar a necessidade de envolver a comunidade escolar na perspectiva de acesso aos filmes para além de uma funcionalidade, visto que a utilização de um filme não pode ser resumida a uma alternativa didática de acessar um conteúdo do currículo, como reflete Bondía:
Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos, uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma enorme pobreza dessas formas de conhecimento que atuavam na vida humana, nela inserindo-se e transformando-a. (Bondía 2002, 28).
Desta forma, para além do apoio aos conteúdos curriculares e das ações cineclubistas, é importante refletir sobre a produção de filmes nos espaços escolares, que confere outro grau de autonomia e possibilita autorrepresentações dos estudantes. Contudo, aqui, dedico-me a discorrer acerca da experiência dos alunos como espectadores de filmes. Vale ressaltar, porém, que esta não pode ser vista ou tratada como uma atividade passiva, na qual os estudantes assistem a algo e, em seguida, precisam passar por uma avaliação para medir o quanto eles “aprenderam” com aquilo. Nas palavras de Rancière, o espectador emancipado é tanto um observador distante quanto um intérprete ativo. Ele analisa que a emancipação começa
(…) quando se questiona a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem à estrutura da dominação e da sujeição. (…) quando se compreende que olhar é também uma ação que confirma ou transforma essa distribuição das posições. (Rancière 2012, 17).
A ideia principal desse trabalho é a de que ter acesso a uma obra cinematográfica provoca a elaboração de vários conhecimentos diversos por cada um que lhe acessa.
Programa Novo Mais educação
A experiência que tratarei aqui se deu no Programa Novo Mais Educação3, no ano de 2017, na Escola Estadual Profa. Áurea Melo, no bairro Soledade, em Aracaju, Sergipe. Assumi, naquele ano, a função de facilitadora da oficina de cineclube, a convite da coordenação da escola, por indicação de uma amiga que conduzia os encontros de matemática.
Nesse momento, o formato do programa tinha como um dos principais objetivos a permanência funcional dos estudantes no ambiente escolar, sendo a funcionalidade o aprimoramento da alfabetização e do desenvolvimento das capacidades matemáticas. Dito isto, pode-se perceber que o cineclube não era prioridade, sendo, de acordo com a então diretora da Escola, “uma forma das crianças terem acesso à cultura e entretenimento” (depoimento oral). Mas vale salientar a distância entre o entretenimento e a ideia de cultura que proponho aqui, em consonância com Virgínia Kastrup:
Sua relação com a cultura e a arte não é para acumular saber, mas para cultivar uma forma especial de atenção – uma atenção à espreita – que ele considera fundamental para acionar seu processo de criação (Kastrup 2010, 38).
Analisando o programa e seu antecessor, percebo que as alterações que vieram com o “Novo” deixaram de lado o caráter mais emancipador do Programa Mais Educação, lançado em 2009. Inicialmente, a iniciativa de consolidar o ensino integral como uma realidade da escola pública no Brasil pretendia expandir a participação de todos os agentes envolvidos na comunidade escolar, promovendo um maior vínculo entre a comunidade e a gestão da escola. Consta no Programa Mais Educação uma concepção de integralidade baseada em Gouveia4 e que manifesta uma pedagogia baseada em quatro elementos:
- os sujeitos aprendentes e ensinantes ocupam lugares dinâmicos: o educador é o adulto que tem a responsabilidade pelo percurso educativo e se coloca à disposição da invenção de situações de aprendizagem que levam em consideração quem são, onde vivem, o que sabem e o que desejam os aprendizes com os quais vai empreender a aventura do conhecimento.
- os espaços são os lugares disponíveis e potencializadores da aprendizagem. Lugares onde se encontram os objetos de conhecimento seja no âmbito da cidade ou no campo. Locais que são ocupados pelos sujeitos, produzindo uma ambiência educativa.
- os tempos: são definidos a partir dos sujeitos e objetos de conhecimento envolvidos na aprendizagem.
- os objetos de conhecimento estão no mundo, definem-se num arranjo que coloca em relação os interesses, as necessidades e as possibilidades dos diversos sujeitos envolvidos. (Ministério da Educação 2009, 20-21).
No Programa Mais Educação, instituído na gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), o protagonismo do processo de aprendizagem deveria ser compartilhado ou, até mesmo, transferido da gestão institucional escolar. Desse modo, podemos perceber um rompimento radical com a ideia de um currículo escolar inflexível como o atual. Destaco, em Kastrup:
Tenho procurado pensar os processos de aprendizagem inventiva que têm lugar em oficinas de práticas artísticas. A partir da perspectiva da invenção, a aprendizagem não se resume a um processo de solução de problemas, mas inclui a invenção de problemas, a experiência de problematização (KASTRUP; TEDESCO; PASSOS, 2008). Também não equivale a um processo de adaptação a um mundo pré-existente, mas consiste na invenção do próprio mundo (Kastrup 2010, 41).
Nesse aspecto, a autonomia só pode ser desenvolvida através de si mesma, ou seja, de processos que reconheçam a capacidade dos indivíduos como responsáveis pelo seu próprio aprendizado.
Em face desse contexto, a questão – o que crianças, adolescentes e jovens precisam e desejam aprender? – ganha relevância. Em nosso entendimento, essa questão precisa ser tomada como crivo das escolhas de todos os envolvidos nas ações educativas. (Ministério da Educação 2009, 20).
Minha experiência aconteceu dentro do Programa Novo Mais Educação, mas a análise crítica que faço, no artigo em questão, se dá em uma busca pelo caráter emancipador do Programa Mais Educação que o originou e possibilitou que essas atividades fossem realizadas.
Estrutura e estratégias utilizadas na oficina de cineclube
Nesse tópico discorro a cerca da construção da oficina de cineclube. Em 2017, fui convidada para facilitar a oficina de cineclube dentro do Programa Novo Mais Educação, na Escola Estadual Profa. Aurea Melo, no bairro Soledade, região periférica da zona norte da cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe.
O critério de seleção dos estudantes que participaram dos encontros pela escola havia sido de baixa frequência ou desempenho escolar e dificuldade de alfabetização. Eram quatro turmas de aproximadamente 15 crianças entre sete e nove anos, em sua maioria negras, de ambos os gêneros. Nosso encontro era semanal e tinha a duração de aproximadamente uma hora e meia, duas turmas pela manhã e outras duas pela tarde, no contraturno de suas turmas regulares.
Figura 1 – Exibição da oficina/Foto: Manoela Veloso Passos.
Devo salientar que, para a realização da oficina, foi ofertado o espaço da biblioteca, ambiente com ar-condicionado, almofadas, cadeiras e uma mesa grande, bem como uma mesa com divisórias que formavam cabines individuais, como é possível vizualizar parcialmente nas figuras 1 e 4. Em relação aos equipamentos, a Escola possuía um projetor e uma caixa de som, e eu fazia uso de meu notebook pessoal.
Figura 2 – Festa junina/Foto: Manoela Veloso Passos.
Em datas comemorativas, as atividades do Programa eram suspensas para que os estudantes participassem das atividades coletivas. Estes eventos permitiram que eu tivesse outro tipo de contato com as crianças, como vemos na Figura 2, da Festa Junina. Vale ressaltar que como oficineira, eu não fazia parte da comunidade atendida pela escola e, portanto, permanecer na escola no intervalo de almoço, de aproximadamente 3h, que incluía a saída e chegada dos estudantes, era o único contato que eu tinha com os familiares ou cuidadores, ou seja, os demais agentes envolvidos pelas atividades escolares.
Dentro do processo de planejamento, uma das escolhas estratégicas que fiz foi de exibir filmes de curta duração para que tivéssemos tempo disponível para conversar sobre o filme após a exibição. Como nos lembra Jorge Larrosa Bondía:
(...) Nós somos sujeitos ultrainformados, transbordantes de opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre estamos querendo o que não é, porque estamos sempre em atividade, porque estamos sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não podermos parar, nada nos acontece. (Bondía 2002, 24).
Também fazia parte de minha ideia inicial sugerir que eles escrevessem sobre o que haviam assistido e pensado a partir do filme.
Todos os filmes teriam crianças como protagonistas, preferencialmente negras ou não-brancas, e do gênero feminino. O objetivo aqui se refere a provocar uma identificação e um empoderamento naquelas crianças que dificilmente se veriam representadas em filmes comerciais.
Nesse aspecto, selecionei filmes do Nordeste que mostravam realidades com as quais aquele público poderia se identificar, com a intenção de que vissem uma luz natural, que conhecessem e ouvissem sotaques não tão acessíveis pelos canais de televisão. Sobre este ponto, é importante salientar que o Nordeste ainda possui pouca representatividade nas grandes redes de televisão, o que também ocasiona que as dublagens de desenhos infantis sejam realizadas com sotaques da região Sudeste do país. Ao trazer filmes do Nordeste, realizados por pessoas da própria região, os alunos poderiam conhecer sotaques de outros estados nordestinos, algumas vezes o seu próprio sotaque, e de alguma forma conhecer outras realidades com as quais poderiam se identificar.
Como temas transversais, busquei a cultura popular, as lendas, as realidades urbanas e a autonomia infantil. Assim, trago, a seguir (Tabela 1), alguns títulos de filmes apresentados com a sua sinopse ou descrição, ano de lançamento e estado de produção.
Título | Estado | Ano |
O filme de Carlinhos | BA | 2014 |
Sinopse | Carlinhos, garoto sonhador e apaixonado por cinema, quer fazer um filme de terror na pequena cidade onde mora, Ipiaú, no interior da Bahia. Com a ajuda dos seus amigos da escola e o estímulo do dono de uma videolocadora, Carlinhos se dedica para realizar seu sonho. | |
Título | Estado | Ano |
Salu e o cavalo marinho | PE | 2014 |
Sinopse | O filme conta a história de Mestre Salustiano, um dos artistas populares mais famosos do Brasil. Filho do rabequeiro João Salustiano, Salu logo cedo sonha em participar de um grupo de Cavalo Marinho, folguedo típico da região onde mora. | |
Título | Estado | Ano |
Clandestino | SE | 2017 |
Sinopse | Tereza é uma garota comum, com uma imaginação nada comum. No caminho para encontrar sua mãe e entregar uma encomenda muito preciosa, sua imaginação corre livre pelas paisagens do interior, enquanto ela vai viver aventuras ao lado de sua avó | |
Título | Estado | Ano |
Sonhos | BA | 2013 |
Sinopse | O menino vive buscando motivos para fugir da escola. Um dia, ele encontra o motivo perfeito: a garota mais bela que ele já viu. Mas ela mora em um circo e ele não tem dinheiro para entrar. | |
Título | Estado | Ano |
A carruagem de Donana | MA | 2013 |
Sinopse | Ana Joaquina Jansen Pereira, também conhecida como Donana, (São Luís do Maranhão, 1787 - 11 de abril de 1869), foi uma empresária e política brasileira, que se tornou uma personagem controversa na história do Maranhão. Por sua crueldade com os negros escravizados, criou-se uma lenda sobre seu espírito vagar pelas ruas de São Luís, conduzindo uma carruagem fantasmagórica. |
Tabela 1 – Relação de filmes: Autora Manoela Veloso Passos
A atividade imaginativa deriva também da experiência material, quanto mais vasta esta, mais potente a imaginação. Portanto, dentro das limitações estruturais, foi possível investir na possibilidade de visitar outro espaço cultural, conhecer outras pessoas, além da oportunidade de experimentar outras realidades através dos filmes. Isso foi possível através da oportunidade de levar as turmas para uma das exibições da Mostra Infantil do Festival Sercine5, que aconteceu na sala de exibição do Museu da Gente Sergipana (Figura 3).
Assim, os filmes foram acompanhados de debate e lanches, além da sessão ser compartilhada com estudantes de outras escolas.
Figura 3 – Crianças no Museu da gente Sergipana/Foto: Manoela Veloso Passos.
Avaliação das estratégicas utilizadas
De antemão, reconheço as minhas limitações para o exercício da atividade que me propus a executar com aquele grupo de crianças no ano de 2017. Dessa maneira, aqui, reafirmo que sou muito grata pela experiência que pude viver.
A escola é, por si só, a reunião de pessoas diferentes. Esse pressuposto de alteridade também é parte integrante da relação com o cinema, e algo que é valioso na experiencia de experimentar filmes. Sendo a alteridade uma das características inerentes à condição humana, a perspectiva de autonomia deve reconhecer e estimular que no processo de aprendizagem as diversidades se expressem.
Segundo afirma Goethe (1943) “a arte é o meio mais seguro de alienar-se no mundo ou de penetrar nele” (Goethe 1943, 63). Assim sendo, a expectativa para o primeiro encontro com as crianças era que elas se envolvessem apaixonada e espontaneamente pelos filmes apresentados, em contrapartida, os aprendizes estavam rebeldes e aparentemente apáticos e adultecidos. Após o impacto, na busca pela compreensão das suas expectativas, foram apontados os produtos transmitidos pela televisão aberta: novelas e filmes hollywoodianos.
A ideia inicial de que as trocas aconteceriam de forma natural e fluida a partir do contato imediato com os filmes, na qual cada presente se sentiria disposto e disponível a estabelecer relações pessoais e compartilhá-las com a turma ali reunida, foi imediatamente frustrada. A partir das leituras que só seriam acessadas no futuro, fica claro a falta da articulação de instrumentos de mediação, como, por exemplo, um processo de construção da autonomia, mas também um processo de resgate do interesse e uma transição para um ambiente que permitisse a experiencia artística.
Nesse aspecto, a abordagem com foco na autorrepresentação, representatividade e feminismo foi incipiente, pois não considerou as consequências de anos de uma sociedade e de educação embrutecedoras, sobretudo em constranger as habilidades de expressão das crianças. Mesmo com essas limitações, de forma intuitiva, a mediação proposta foi sendo construída sempre de forma pessoal e subjetiva, sempre evidenciando as próprias identificações e os caminhos que motivaram as escolhas que estavam sendo apresentadas através dos filmes e dos temas propostos para as conversações.
Sobre essa exposição de subjetividade, Fresquet (2013) reconhece como essencial para uma “passadora” de filmes, pois através da vulnerabilidade poderia ser alcançada a confiança necessária para uma troca efetiva. Vale ressaltar que o caminho percorrido por mim é o inverso ao dos professores que mais habitualmente estariam conduzindo encontros entre os estudantes e filmes na escola, talvez por ter uma formação como realizadora de filmes, tenha sido mais natural o movimento de reconhecer a relevância de evidenciar o ponto de vista do que qual eu me expressava.
Quando aceita o risco voluntário, por convicção e por amor pessoal a uma arte, de se tornar “passador”, o adulto também muda de estatuto simbólico, abandonando por um momento seu papel de professor, tal como definido e delimitado pela instituição, para retomar a palavra e o contato com os alunos a partir de um outro lugar dentro de si, menos protegidos, aquele que envolve seus gostos pessoais e sua relação mais íntima com esta ou aquela obra de arte. O “eu” que poderia ser nefasto ao papel de professor se torna praticamente indispensável a uma boa iniciação. (Bergala 2008, 64).
No entanto, a minha falta de habilidade, e mesmo de conhecimento de outros instrumentos para a promoção de um ambiente efetivamente democrático naquele espaço que se pretendia favorecer aprendizagens, manteve a relação de hierarquia. Como demonstra Alain Bergala (2008, 62-68), dentre os instrumentos que podem favorecer a utilização do cinema na educação, ressalto:
- Organizar os encontros com filmes de modo a tornar realmente possível a experiência. O contato deve ser implementado estruturalmente nas escolas e é necessário ter estratégias para os primeiros encontros, consciente da responsabilidade de mediar o contato com filmes não comerciais;
- Escolher e preparar o “passador” de filmes. O educador precisa se expor a um lugar menos protegido pelas regras, onde deve-se descontruir o mito da neutralidade.
- Incorporar o aprendizado de frequentar os filmes. A primeira leitura de um filme demanda um olhar técnico, analítico, que uma segunda, uma revisita ao filmes, propicia tornar maleável, criativa.
- Criar relações com os filmes. E, portanto, se aprofundar nas relações possível entre passado e futuro, entre um filme e outro, ou mesmo entre o filme e acontecimentos.
Uma feliz descoberta foi a estratégia de disponibilização de “petiscos” de filmes. Havia, ao final dos encontros, tentativas de sensibilização das curiosidades das turmas, quando então eram exibidos pequenos fragmentos de dois filmes, sendo que um deles seria escolhido pelas crianças para exibição na semana seguinte. A partir disso, ficava a esperança de que a imaginação fosse ativada desde então.
Cortar a projeção de um trecho no momento em que a narrativa exige continuação pode parecer uma maldade, porém o efeito é contrário. Essa ação tem gerado uma reação de emancipação na busca por assistir a filmes completos, por parte dos alunos, mais do que qualquer outra. (Fresquet 2013, 56).
Um dos pedidos recorrentes, em todos os nossos encontros, refere-se à exibição de um filme “grande”. As crianças da turma não costumavam frequentar as salas de cinema, mas consumiam os mesmos tipos de filmes que estavam disponíveis nela: filmes de heróis norte-americanos, em sua maioria. No entanto, mesmo que toda semana essa expectativa surgisse e novamente fosse frustrada, quando lhes era apresentado um filme feito no Nordeste, surgiam outras possibilidades. Isto é, convidando-os a experimentar uma outra forma de interesse pelo cinema, por meio das obras realizadas em nossa região, foi possível perceber fagulhas de curiosidade, muitas vezes sobre a evidência de outro universo cinematográfico. Como era possível existir um filme assim? Dito isto, preciso enfatizar um dos filmes exibidos, sempre foi o primeiro filme apresentado em todas as turmas: O filme de Carlinhos (2014). Ao mostrar um processo criativo e produtivo de um filme feito por crianças e dirigido por Carlinhos, um menino negro apaixonado por cinema, havia o objetivo de provocar a vontade e a percepção de que eles poderiam fazer seus próprios filmes.
Mas, houve uma vez, que cedi à exibição de um longa-metragem. É importante dizer que a escolha do filme se manteve dentro do circuito autoral, ainda que não fosse do Nordeste, o brasileiro O menino e o mundo (2013), de Alê Abreu, foi a única exceção que abri durante todo aquele ano letivo. E foi incrível ver o envolvimento e encantamento com o filme. Todo o envolvimento que ocorreu naquela sessão provoca uma questão: o que separa os filmes infantis brasileiros de nossas crianças? Um tema, contudo, que não cabe discutir aqui.
Figura 4 – Atividade de desenhar pós exibição /Foto: Manoela Veloso Passos
A partir da frustação na ausência de um diálogo consistente após as exibições, as crianças revelaram uma potência de expressão no ato de desenhar (Figuras 4 e 5). Sem que eu notasse no momento, criamos uma rotina de fruição de filmes e criação de desenhos em que, muitos deles, conseguiam ressaltar os pontos que mais lhe afetavam nas obras assistidas. Ademais, ainda insisti na tentativa de que se expressassem oralmente, por meio da dinâmica de apresentar para a turma os desenhos que realizaram naquele encontro.
Figura 5 – Local onde a oficina acontecia/Desenho: Evellen.
Conclusão
No Brasil, a educação pública enfrenta desafios estruturais no que diz respeito ao seu papel de protagonismo na luta por uma sociedade com menos desigualdades. Mas mesmo diante desses desafios, são essas as instituições capazes de proporcionar de forma democrática o acesso a bens culturais para as crianças brasileiras. A pedagogia cultural está presente na vida de cada criança que cresce em meio a uma infinidade de imagens e possibilidades de criação de sentidos, é urgente que esse contato com o audiovisual seja mediado por um exercício de leitura criativa dessas produções.
Eu gostaria de ter novas oportunidades de mediação do contato entre crianças e filmes, pois acredito na infância e no cinema como agentes de transformação. Ao final daquele ano letivo, ofereci a cada um dos participantes da oficina, em forma de sua coleção de desenhos, o registro do caminho que percorremos juntos para que eles pudessem olhar para trás e, com sorte, para frente, de forma mais inspirada e confiante nos seus próprios potenciais. Eles me ofertaram, cada um, sua despedida, alguns em desenho, outros em palavras, mas a experiencia que compartilhamos foi fundamental para descobrir outras possibilidades desse encontro entre cinema e educação.
Notas Finais
1Termo usado por Jacques Rancière, defendendo que adivinhar é parte essencial do processo de aprendizagem em seu livro O mestre ignorante (RANCIERE, 2002)
2Migliorin, Cezar. 2010. CINEMA E ESCOLA, SOB O RISCO DA DEMOCRACIA.
3PORTARIA n.º 1.144, DE 10 DE OUTUBRO DE 2016 Institui o Programa Novo Mais Educação, que visa melhorar a aprendizagem em língua portuguesa e matemática no ensino fundamental.
4GOUVEIA, Maria Júlia Azevedo. Educação integral com a infância e juventude. In: Cadernos Cenpec/Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, Educação Integral, n° 2 (2006), p. 77, São Paulo: CENPEC, 2006.
5O Sercine – Festival Sergipano de Audiovisual é realizado pela Rolimã Filmes e exibe anualmente filmes brasileiros de curta e longa-metragem.
Bibliografia
Bergala, Alain. 2008. A hipótese-cinema pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink, CINEAS-LISE-FE/UFRJ.
Bondia Jorge Larrossa. 2002. Notas sobre a experiência o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, v. 19, p. 20-28.
Fresquet, Adriana. 2013. Cinema e educação: reflexões e experiências com professores e estudantes de educação básica, dentro e “fora” da escola. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
Wolfang, Goethe. 1943. Werther. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti – editores.
Kastrup, Virgínia. 2002.Experiência estética para uma Aprendizagem Inventiva: notas sobre a acessibilidade de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 13, n.2, p. 38-45.
O filme de Carlinhos, 2014. De Henrique Filho. Brasil: Voo Audiovisual. FULL HD.
O menino e o mundo. 2013. De Alê Abreu. Brasil: Filme de Papel, FULL HD.
Ministério da Educação. 2009. Mais educação gestão intersetorial no território. Brasília.
Rancière, Jacques. 2002. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 3 ed. Belo Horizonte, Autêntica.
Rancière, Jacques. 2012. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes.