Capítulo II – Cinema – Cinema

Construction and deconstruction processes in the film ‘The Wall’ (1982) - Interpretative analysis in the Semiotic and Psychoanalytic perspectives

Processos de construção e desconstrução no filme ‘The Wall’ (1982) - Análise interpretativa nas perspectivas Semiótica e Psicanalítica

Isabel Orestes Silveira

Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil

Cleusa Kazue Sakamoto

ANPEPP - Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia, Brasil

Abstract

The article intends to shed light on certain aspects related to the perspective of semiotic and psychoanalytical analysis of the film The Wall (1982). The scope of the thematic field allows us to problematize the following question: What are the possible subjective readings or interpretations of the central visual, sound and verbal elements of The Wall’s film narrative, in the semiotic and psychoanalytic perspectives? The film reveals the complexity of human reality translated into real, symbolic and imagined narratives. Subjectivities expressed in its images, music, gestures and behavioral lapses, colors and shapes, verbalized and non-verbalized thoughts. Such communicative resources enable the psychological and semiotic interpretation of the messages intertwined in the filmic text. Qualitative Research, of a discursive nature, will be the methodological basis, able to investigate the subjective and intersubjective elements present in the feature film. The semiotic analysis added to the psychoanalytic psychological view proposes to translate the fundamental bases of the meanings intrinsic to the complex scenario of contents present in “The Wall”, since there are simultaneously several articulated messages presented in a number of overlapping languages and scenarios: a historical outline of the Pink Floyd group, a depressive post-war scenario in England, an atmosphere of anguish represented at various times and a personal history of degradation - diverse content being narrated in an intricate way in the film. The analyzed perspective highlights a debate that can expand the meaning of walls in the context of the current reality.

Keywords: Cinema, Semiotics, Psychoanalysis, The Wall (1982)

Introdução

O Filme “Pink Floyd The Wall” é uma obra de arte adaptada do álbum musical da Banda Pink Floyd1 que migrou para o cinema. Trata-se de uma transposição criativa no universo da produção audiovisual de 1982, por sua complexa linguagem que mescla o real e o imaginário, o musical (canções do álbum da Banda) e a animação desenvolvida pelo cartunista britânico Gerald Anthony Scarfe (1936), bem como o passado e o presente, porque não acrescentar – o futuro.

São mensagens emblemáticas que indagam questões existenciais e sociais de forma não linear, isto é, sem diálogos; o filme é cantado e, o tempo e o espaço se mesclam. Misturam-se de igual modo, o universo interno e externo do protagonista.

Nesse sentido, o roteiro escrito pelo britânico Roger Waters (1943), músico, cantor, compositor e um dos fundadores e líder da Banda, é dirigido pelo cineasta Alan Parker (1944- 2020) e estrelado por Bob Geldof (1951), mostra-se genuinamente criativo por destacar o conturbado momento histórico, vivenciado pelos atores sociais e permeado por uma crítica à política, à economia, à cultura e à educação. Essa forma de contestação cantada evidencia a atualidade das mensagens e revela que a criatividade é uma área de expressão que tece passado, presente e futuro, como afirma Rollo May (1992) em “A coragem de Criar” – um clássico esquecido no contexto brasileiro, da literatura pioneira sobre o fenômeno criativo. O futuro insere-se na trama do acontecer criativo, quando anuncia novas possibilidades de pensamento, de expressão e de engajamento humano.

Assim, busca-se estabelecer paralelos entre as ideias apresentadas no filme “The Wall”, o qual retrata uma perspectiva biográfica de Roger Waters, vivenciada pelo personagem Pink. O filme traz um cenário de vida, que mostra o palco e os bastidores. Mostra o incômodo social e a angústia pessoal, oferecendo estímulos a reações múltiplas, dentre elas, a potencialidade de reflexão. A interpretação de sua Semiótica permite navegar por mensagens que traduzem uma explosão de emoções que a Psicanálise pode auxiliar a compreensão.

Buscar uma linha de entendimento em “The Wall” é um desafio, pois o que se verifica é uma trama diversa de inúmeros campos vivenciais e de pensamento, que convidam a encontrar um nó que os una e lhes dê sentido. Como uma produção cultural de seu tempo revela representações que expõe em sua linguagem, aspectos selecionados do mundo em seu cenário fílmico – os efeitos do Pós Segunda Guerra Mundial, a repressão sexual e a busca de emancipações do prazer, a fuga da realidade no uso de drogas, a catastrófica, mas libertadora irrupção da loucura, para citar alguns elementos.

Nesse sentido, problematiza-se a seguinte questão: Quais são as possíveis leituras ou interpretações subjetivas dos centrais elementos visuais, sonoros e verbais da narrativa fílmica de “The Wall”, nas perspectivas semiótica e psicanalítica?

O filme revela a complexidade da realidade humana, traduzida em narrativas reais, simbólicas e imaginadas. Subjetividades expressas em suas imagens, músicas, gestos e lapsos comportamentais, cores e formas, pensamentos verbalizados e não verbalizados. Tais recursos comunicativos possibilitam a interpretação psicológica e semiótica das mensagens entrelaçadas no texto fílmico.

A comunicação entendida em sua Semiótica dá caminhos para se chegar a alguma compreensão de sentido. A Psicanálise explica nuances destes significados encontrados. Psicanálise e Semiótica complementam-se para traduzir “The Wall” como uma produção que revela seu tempo e anuncia dramas humanos marcados pela atemporalidade, quais sejam: as ansiedades em relação à sexualidade, a conflituosa atitude de rebelião e submissão frente ao poder autoritário, a fuga da realidade promovida por agentes químicos e alienação psicológica.

Parte-se da hipótese que o filme possibilita novas perspectivas de interpretação no horizonte da realidade atual, que se apresentam revestidas de novas angústias existenciais e novos costumes no campo das relações humanas. Sendo assim, “The Wall” instiga associações livres - regra fundamental do método psicanalítico (LAPLANCE, PONTALIS, 1998, p. 38) sobre a presente realidade, na medida em que permite refletir sobre a interpretação da criatividade e a potencialidade de encontrar um fio de continuidade nos elos que a cultura se apoia, para tecer a construção e a compreensão do real.

Por isso, o arcabouço teórico baseia-se nas teorias semióticas de Charles Sanders Peirce (1839-1914), as quais possibilitam a compreensão do signo fílmico como fenômeno possível de ser interpretado pelo viés da sintaxe visual, da narrativa discursiva e pelas inúmeras interrelações com as matrizes da linguagem sonora, visual e verbal (SANTAELLA, 2011).

A Pesquisa Qualitativa, de natureza interpretativa constitui a base metodológica escolhida, que viabiliza investigar os elementos subjetivos e intersubjetivos presentes no longa-metragem. Com base nas unidades de significado segundo Bardin (1970) encontradas na narrativa audiovisual, procedeu-se à definição de conteúdos nucleares que sustentam o enredo de sofrimento e busca de superação – quer individual e coletiva – ou ainda, que definem as temáticas existenciais do cotidiano e o processo de interação-percepção que a acompanham.

A análise semiótica acrescida da visão psicológica psicanalítica pode traduzir as bases fundamentais dos significados intrínsecos ao complexo cenário de conteúdos presentes em “The Wall”, visto que existem simultaneamente várias mensagens articuladas apresentadas em várias linguagens e cenários sobrepostos: um delineamento histórico do grupo Pink Floyd, um cenário depressivo pós-guerra na Inglaterra, um clima de angústia representada em vários momentos e uma história pessoal de degradação; conteúdo diverso sendo narrado de modo intrincado no filme. A perspectiva analisada abre um debate que pode ampliar o significado de muros para além de seu contexto audiovisual e que se expande para a atual realidade.

O filme está inserido num clima de imaginação e sonho. Segundo Freud (1900 / 1965) os sonhos são “vias mestras” para a expressão do inconsciente. No sonho as expressões criativas seguem dois mecanismos fundamentais – a condensação (que mescla a interação de conteúdos significativos) e o deslocamento (expressão de certo conteúdo dirigido a outro, para efetuar um disfarce que oculta o real sentido do conteúdo). Sonhos criam uma atmosfera de realização possível em que os desejos não encontram barreiras (ou muros) para sua manifestação e realização – afirma o pai da Psicanálise.

O filme analisado cria um clima de sonho em todo o sua trajetória, construindo para o espectador, um senso de realidade que perde as fronteiras formais e paradoxalmente mostra uma crítica aguda e que interpela o que o desejo íntimo prospecta – suplantar a repressão.

O psicanalista Donald Winnicott (1975) em sua Teoria da Criatividade, descreve uma 3ª área da experiência humana em que a realidade interna e a realidade externa se sobrepõem, constituindo o Espaço Potencial, que dá as condições à experiência criadora. Uma área da experiência humana que é marcada pela transitoriedade e se manifesta neste clima onírico. “The Wall” em sua ambiência de sonho convida à entrada a este Espaço criador, permitindo ao espectador participar da cena e, assim, acionar sua identificação e construir sua experiência frente aos assuntos tratados: a guerra, o poder alienante, a sexualidade, a solidão e o abandono, a dor, a fuga, o uso de drogas, a louca saída do real.

Interpretações das múltiplas narrativas

“The Wall” conta a história de Pink, um astro do rock inglês, que pretende apresentar shows em Los Angeles (EUA). Fica evidente na trama, o trauma do protagonista, por haver conhecido o pai somente pelo álbum de família. Seu pai sérvio faleceu em combate na Batalha de Anzio, no ano de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. Os soldados nazistas dizimaram o pelotão em que seu pai estava. Esse assunto traumático para a mãe que o criara sozinha, nunca fora tratado com Pink. Sozinho descobre em uma gaveta da casa, a farda do pai e a condecorações que ele recebeu pelo serviço prestado durante a guerra. Solitariamente desvela as provas concretas da ausência paterna em sua história.

Pink na infância experimenta também a opressão de um sistema educacional rígido que o impede de agir de forma criativa; seu professor o castiga por ter escrito poesias durante a aula. Essa situação de zombaria e desprezo desencadeia raiva contra o sistema de ensino e sem dúvida, acentua a experiência de desamparo frente uma autoridade distante do professor em paralelo à ausente da figura paterna.

Na vida adulta e estando casado, Pink se sente incompreendido pela esposa. Distante dela, em uma estadia em hotel durante uma turnê, realiza ligações telefônicas no esforço por estabelecer um diálogo entre eles. Não conseguindo o contato, ele encontra nas drogas, na música, na televisão e nos filmes de guerra, elementos que lhe fazem companhia nos momentos de solidão. Quando alguém em sua casa, finalmente atende a ligação do telefone, ouve a voz de um homem. Novamente se sente excluído e rejeitado, como na infância, o que reverbera a angústia traumática quando criança – temática clássica da Psicanálise freudiana.

Nesta dramática experiência de rejeição, busca a companhia de outra mulher, que contudo não soluciona a desoladora angústia de estar só. A amante procurada vê-se assustada com o comportamento de Pink que progride na expressão de um surto psicótico, que expõe sua incontrolável ira. Pink tomado de fúria quebra tudo a sua volta. Arremessa a TV pela janela e quase salta junto, desejoso de acabar com a própria vida. Passada a crise de violência, reúne objetos e os agrupa no chão, no centro da sala, parecendo desejar reunir o que lhe restou e lhe serve de apoio mnêmico, como ocorre no despertar do sono quando se realiza o resgate da lembrança de sonhos, ou pesadelos.

A explosão destrutiva, que foi gerida por Thanatos ou pulsão de morte (FREUD, 1920), é seguida por uma espécie de ritual em que Pink raspa os pelos do corpo e parte das sobrancelhas, como se fosse se desnudando daquilo que o protege em sua existência.

Encontra-se prostrado em uma poltrona, quando chegam seu empresário e enfermeiros que invadem o ambiente do quarto para resgatá-lo. A medicina aplicada vai fazendo efeito e ao ser levado ao palco se expressa um retorno ao real, porém transmutado em seu papel, já que é o próprio líder nazista discursando para uma população delirante, que vibra com suas declarações. Ao término do show, Pink é tomado por um sentimento de profundo esgotamento, de culpa e exaustão.

O enredo faz uso de músicas cujas letras comunicam o cenário de conflitos e angústias, grupais e singulares, que em paralelo, ganham novas expressões apresentadas na linguagem da animação. Esta dupla dramatização que associa duas linguagens de elementos sígnios peculiares traz uma vivência ao espectador de dualidade, que acentua a realidade, mas ao mesmo tempo cria um ponto de fuga, que pode abrir uma “janela” no muro da percepção e interpretação. O muro – The Wall – pode ser rompido no filme, diversas vezes, porque estar em um campo de transição permite sair dele.

É assim que as ações, as maneiras de ser, pensar e agir, os valores sociais, os objetos, as pessoas sejam homens, mulheres, crianças e, mesmo o tempo passado e presente, se mesclam, se embricam. Papéis de representação social como a figura da mãe, do pai, do filho, do professor e do aluno, do juiz, da figura do Estado e todo poder simbólico se configuram em importantes elementos que comungam múltiplas possibilidades interpretativas. As cenas dramáticas podem, ao som de uma determinada música, representar toda sorte de sentimentos: - a frustação da criança que esperava ansiosa pelo Papai Noel que nunca veio e jamais atendeu-lhes os desejos - “The boy that de Santa Claus forget”; - o vazio latente pela morte do pai – “When the tigers broke free” – o pai de Pink foi mais um, dentre tantos mortos em combate – uma carta endereçada a sua mãe comunicou o óbito e uma medalha legitimou sua recompensa por haver servido ao país.

Toda a poética dramática musical aparece fragmentada, isto é, as narrativas com canções independentes, por vezes se ligam e fluem em diferentes arranjos sonoros os quais se apresentam associadas às imagens. Tais linguagens contribuem para que a cena ganhe uma dimensão dinâmica ao denunciar os sentimentos do personagem. Assim, o receptor se identifica com a angústia vivenciada na cena.

Quando a música se associa a outra linguagem, ocorre uma interação significativa. No caso do texto poético, todo o universo significativo do texto é associado à música, assim como a música confere ao texto uma nova dimensão significativa. Tratando-se de uma obra de arte, a significação continua a possuir um grau de abertura, seu significado nunca será único e inquestionável. Apesar disso a interação entre as linguagens estabelece novos limites significativos para ambas, ou seja, surge uma nova poética resultante dessa combinação, a qual possui convenções próprias diferentes das que regem uma ou outra individualmente. (CARRASCO, 2003, p. 21).

Tais argumentos evidenciam o efeito causado pela canção “Another Brick In The Wall”, por exemplo. A música abarca temas como “Memória”, “Educação” e as “Drogas”, reaparecendo por três momentos durante o filme. É interessante como cada parte, embora tenha letras diferentes, possuem a mesma estrutura lírica que vai ganhando, um volume crescente, despertando o sentimento de tristeza a fúria.

É essa canção que se torna um fio condutor para que seja possível reforçar a ideia de que o muro está sendo formado constantemente por inúmeras situações, são vivencias passadas, sistemas de violência, abusos e toda sorte de “tijolos” que fazem crescer um muro, um obstáculo, uma parede que separa, divide, cerca e aprisiona.

A força e a energia das canções, não classifica o filme como um gênero musical clássico. A natureza criativa do roteiro e da direção vão destacando as combinações híbridas entre atores reais e a animação.

Assim, as cenas musicadas contam a biografia de Roger Waters e em meio as sequências audiovisuais, entende-se que os signos vão cumprindo sua função de “representar alguma coisa para alguém”. No dizer de Peirce (1984, p. 94): “Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido”. No dizer de Santaella (2011, p. 105): “O som é omnidirecional, sem bordas, transparente e capaz de atingir grandes latitudes. Não tropeçamos no som. Ao contrário, ele nos atravessa”.

As semioses ou ações do signo experimentadas pelo personagem Pink são evidenciadas por suas recriações mentais, seu imaginário evoca a violência da morte e a dominação social. A cena da criança livre num campo aberto pode sugerir o desejo de liberdade ou o espírito que experimenta a libertação após a morte. Pink adulto fuma um cigarro no quarto de um hotel e o relógio com a figura do Mickey insinua o duplo: infância e vida adulta, memorias passadas e o presente. Essas lembranças são interrompidas com a camareira golpeando a porta que ora aparece com escala ampliada envolta por cadeados para em seguida surgir com grande multidão tentando desbloqueá-la – “In the Flash”. A correria, sem direção específica e os gritos, sugerem a tentativa de vencer um obstáculo, desejo de entrar ou sair, assistir a um espetáculo, ou fugir de algo assustador. Toda agitação da cena fílmica intercala com os momentos da guerra. Multidão e soldados correm. Os policiais tentam estabelecer a ordem usando violência, é o caos e a obediência. A multidão e a solidão. Conflito e amargura.

Toda essa proliferação de signos impacta o espectador pelo estranhamento da narrativa dramática. É o estranho e o familiar que despertam pelos efeitos estéticos e pelo entrelaçamento das imagens com as canções, as inúmeras possibilidades de aproximação do espectador com as cenas.

Evidentemente a relação entre música e visualidade na obra cinematográfica “The Wall” estão amalgamadas, propiciando uma interação ou combinação entre ambas as linguagens. O visual atravessa a sonoridade e vice-versa, de modo que esse jogo criativo entre a pulsão rítmica e a visualidade plástica da obra, transmite a ideia de um rigor planejado pelo roteirista. Assim, os argumentos da narrativa vão sendo expressos permitindo ao receptor, inúmeras analogias recíprocas.

A possibilidade de aproximação entre o receptor e a dor experienciada pelo protagonista, cresce também, pela força comunicativa das imagens animadas de Gerald Antony Scafe. O cartunista inglês contribui para que a mensagem da música “Goodbye Blue Sky”, por exemplo, transmitisse todo o horror e o sofrimento provocado pela devastação que a guerra provoca. Suas figuras se metamorfoseiam compondo uma narrativa coadunada com a canção. Nas imagens que seguem é possível verificar uma pomba voando no fundo azul do céu. A ave ocupa o imaginário social como símbolo da paz (Figura 1), mas na animação se transforma em águia que arranca, com suas garras, as terras de Londres, para depois transformar-se em avião que bombardeia a cidade. Todo apelo da estética sensível, aciona a visão e a audição para a realidade da morte.

Figura 1 - Detalhe das sequências da animação para a canção “Goodby blue sky”. Fonte: PritSc da tela.
Disponível em: https://saibadesign.wordpress.com/2013/06/11/gerald-scarfe-o-talento-responsavel-pelas-animacoes-do-filme-the-wall/. Acesso em: 19 abr. 2021.

A música evoca a figura da mãe, símbolo de proteção e segurança. A canção começa com a pergunta da criança apontando para o céu e alertando sobre o bombardeio. Em seguida coloca o ouvinte na cena pela poética proposta na animação – enquanto se ouve: “Olha mamãe, tem um avião no céu”.

As perguntas surgem na letra da canção: “Você já viu os apavorados? Já se perguntou por que tivemos que correr em busca de abrigo quando a promessa de um admirável mundo novo desfralda sob um limpo céu azul? Você já viu os apavorados? Você já viu as bombas caindo? As chamas já estão todas muito distantes, mas a dor persiste. Adeus céu azul. Adeus, adeus. As onze e quinze de Newcastle estão se aproximando. Chegada as onze e dezoito”.

Toda dramaticidade contida na canção e nas imagens (Figura 2) contribui para que o espectador experimente a força comunicativa da mensagem melancólica e traumática provocada pelo luto, consequência da guerra.

Figura 2 - Detalhe das sequências da animação para a canção “Goodby blue sky”. Fonte: PritSc da tela.
Disponível em: https://saibadesign.wordpress.com/2013/06/11/gerald-scarfe-o-talento-responsavel-pelas-animacoes-do-filme-the-wall/. Acesso em: 19 abr. 2021.

O horror da guerra é cantado e visualizado. Pomba, ave, avião e em seguida, as cruzes cobrem o céu (Figura 3). A morte se faz presente e o símbolo da pátria se desmancha. É a bandeira que se torna a imagem da cruz, encharcada de sangue inocente. Do céu, surge novamente a ave raivosa que se transforma, em meio as chamas, em destroços e ferros retorcidos.

Figura 3 - Detalhe das sequências da animação para a canção “Goodby blue sky”.Fonte: PritSc da tela.
Disponível em: https://saibadesign.wordpress.com/2013/06/11/gerald-scarfe-o-talento-responsavel-pelas-animacoes-do-filme-the-wall/. Acesso em: 19 abr. 2021.

Em meio aos ferros retorcidos da cidade destruída (Figura 3) surge a pomba novamente que sobrevoa o lugar que está repleto de mortos. Pela cruz vermelha, o sangue das vítimas escorre pela terra, descendo até um bueiro. Esvaiu-se pelo ralo toda esperança de vida: “As chamas já estão todas muito distantes, mas a dor persiste”.

Não é excessivo dizer, que depois da experiência da guerra e o confronto com a realidade da morte, os que sobreviveram, terão que desenvolver um estado emocional e psíquico que transcenda a triste realidade que experienciaram.

E assim, o muro é destruído no final do filme e deixa na mensagem de seus tijolos alinhados agora espalhados, que as barreiras não foram mantidas. Resta pensar se muros como limites, criados e cuidados para serem elementos de proteção e não de repressão e isolamento, quando devem ser mantidos ou removidos.

As associações possíveis entre a sonoridade e a visualidade apresentadas no devaneio do personagem, tornam-se parte integrante da manifestação do seu interior frustrado preenchido com os sentimentos de perda e desolação, ansiedade e mutação.

Muros: símbolos plenos de significados

Em “The Whall” fica evidente que os limites entre ficção, fantasia e realidade, estão em suspensão. Não obstante, é perturbador o modo como os signos se configuram como textos audiovisuais que comunicam que os muros são construídos no cotidiano, tijolo a tijolo. Por isso, a mensagem fílmica se atualiza na medida em que o signo “muro” - tende a generalizações, possibilitando pensar sobre os processos atuais e os contextos sociais em que são construídos e desconstruídos os muros.

A música “Hello? Is there anybody out there?”, não se torna uma pergunta corriqueira. Tem alguém aí? Significa dizer: estou sozinho, cercado por uma muralha, alguém está aí, do outro lado? A vida existencial de Pink se tornou vazia, falta-lhe sentido, direção, tornou-se um objeto de uso e consumo nas mãos de seu empresário.

É nesse momento em que imagem e canção expõem o dentro e o fora dos muros: se por um lado a solidão expõe a fragilidade humana, por outro, estar dentro do muro, abarca o sentimento ou a ilusão de se estar protegido. Atualmente, são muros contemporâneos os vidros do carro que evitam o contato com o pedinte em semáforos das grandes cidades, dando ilusão de segurança àquele que está dirigindo. São os grandes muros dos condomínios que impedem os olhares e a penetração do estranho, uma hipotética segurança ao morador de classe média, das grandes cidades. São muros, as demarcações geográficas e territoriais que privilegiam os donos da terra e excluem os que não possuem registro legal de posse. São muros os limites cartográficos que dividem os municípios, estados, países e se tornam a materialização das fronteiras - barreiras que visam isolar intrusos indesejados. Mas, há também muros invisíveis, aqueles que são construídos e impedem a aproximação amorosa, a ação solidária e a cooperação entre as pessoas. O muro, então, se ergue diante dos olhos do espectador e o desafia a espionar seu interior e exterior, instigando-o a pensar sobre aquilo que na atualidade separa e distancia.

Boaventura de Souza Santos (2020) afirma que há modos de dominação social que imperam desde o século XVII, a saber: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São muros invisíveis que não desapareceram. Sobre isso, ele comenta:

Hoje em dia, o capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia do mundo, a China. Por sua vez, o colonialismo dissimulou o seu desaparecimento com as independências das colónias europeias, mas, de facto, continuou metamorfoseado de neocolonialismo, imperialismo, dependência, racismo, etc. Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas, mas, de facto, a violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar.(SANTOS, 2020, p. 12).

O que Santos (2020) denuncia é a situação que afeta a vida no planeta por conta da pandemia e demostra especial atenção aos desfavorecidos, dentre esses, os que estão em situação de vulnerabilidade – povos indígenas, negros, deficientes, indivíduos em situação de rua e moradores de periferias, refugiados, idosos, presidiários, doentes, trabalhadores informais, dentre outros. Porém, enfatiza que os confinamentos sociais, podem não representar a segurança esperada, ao contrário, preocupa-se com a situação de mulheres e crianças por exemplo, que no espaço doméstico podem estar expostas a violências. Agravantes que são notificadas pelas mídias de massa. São as loucuras do nosso tempo. Fica evidente que os muros que necessitam ser derrubados, dizem respeito aos que impedem os princípios da cidadania e dos direitos humanos.

Essa interpretação sobre os muros metafóricos que foi possível estabelecer até aqui, encontra respaldo nas considerações teóricas de Pierce (1984) quando este menciona que não existe pensamento sem signo e uma das características do signo é sua necessidade de interpretação. Tal argumento nos convoca ao raciocínio anticartesiano, uma vez que seres de representação, relacionam pensamento e linguagem, acrescido da percepção. Nesse sentido, o produto audiovisual “The Wall” permite a leitura do que Santaella (2011) chama de “gramática da visualidade e gramática da sonoridade”.

Nessa perspectiva, o filme cumpre o papel de evidenciar o estado depressivo de Pink que inicia na infância e se prolonga na fase adulta. Então, “os muros” se formam como medidas protetivas, uma fuga do confronto com a realidade. A imaginação, o sonho ou as imagens mentais, são acionados no esforço de buscar alívio, mas como contraponto, os muros aprisionam. O isolamento gera angústia, mas isola sua consciência do restante da sociedade. É uma guerra de outra natureza que é travada por Pink. Na tentativa de expurgar os traumas, passa por um processo doloroso de memória e reflexão, que caminha para a transformação do personagem em níveis mórbidos, letárgicos enfrentando seus pensamentos mais profundos e os sentimentos que dele decorrem.

A imagem animada auxilia a compreensão do estado psicológico do protagonista, quando mostra vermes que ocupam sua mente e as degradam. Tais monstros o movem a retirar sua própria pele. Ele se vê como líder nazifacista. Os elementos visuais simbólicos como os martelos cruzados, uniformes, dentre outros, fazem referência às práticas abusivas do poder nazista. As pessoas que participam de sua vida reaparecem como a esposa em forma de serpente, depois escorpião que o ameaça. Sua mãe, com grande órgão genital feminino o engole levando-o de volta ao útero, é outra forma de resolução, representada como um muro que o resguarda do mundo externo. Ele se percebe verme, é defecado como excremento humano. Ele se condena, é julgado, é uma marionete, é mais um na multidão expressando o desejo para que os muros sejam derrubados.

Pode-se aferir que a criatividade fílmica visibilizada no produto audiovisual, permite que o espectador em “The Wall”, seja alcançado pelas qualidades sensíveis que pertencem à ordem das sensações visuais da animação, da música e da estrutura narrativa. Por tudo isso, “The Wall” enuncia uma riqueza criadora que surpreende o olhar analítico que busca significação e anuncia um processo de continuidade do existir quando rompe a muralha, no auge de seu epílogo fílmico. O clímax alcançado é uma exposição disruptiva de todas as imagens e mensagens sequenciadas durante seus 99 minutos.

Parece inevitável a experiência de rompimento da estabilidade, de uma suposta segurança conhecida, nesta finalização que insere a pergunta: o que agora se seguirá? Simultaneamente, ao encerramento do filme com o retorno à percepção da realidade, emerge ao espectador de hoje, outra espécie de guerra – a atual pandemia de Covid-19. Com a alarmante quantidade de mortes decorrentes desta enfermidade, parece reverberar a mesma questão: - O que agora se seguirá? Ou melhor: - Qual será o muro que se romperá?

Conclusão

Pink Floyd há quase 40 anos atrás, cantou anunciando um tempo que chegou – o de muros que para serem rompidos pedem não apenas a consciência da dor e do descontentamento, como motiva o filme – pedem ainda, sabedoria e knowhow. É preciso saber o que existe na intimidade dos grupos para quebrar as barreiras que os afastam de outros grupos, é preciso saber quais são os códigos universais, que permitiriam uma comunicação genuinamente capaz de unir pensamentos divergentes e ideologias opostas. E é preciso saber fazer a transformação criadora de mudanças.

Ironicamente, o cenário da vida hoje em 2021 mostra uma pandemia que jamais se imaginou com o grau de sua letalidade; ela pede isolamento – muros. E com o muro do isolamento físico para evitar o contágio, pode-se perceber se erguerem novos muros, como o da desigualdade econômica e com ela, observa-se a emergência de problemas sociais que foram adiados até este século – a miséria, a fome, a desigualdade de oportunidades a crianças e jovens no período de suas formações como indivíduos, que como Pink serão marcados para sempre por suas histórias pessoais de falta.

A partir das aprendizagens com o Pós-Guerra desde a Segunda mundial (porque houve outras), com a globalização e as mudanças políticas no mundo, muros estão sendo removidos – concreta e simbolicamente. Por outro lado, é importante considerar que muros hoje, não isolam apenas o indivíduo de sua realidade subjetiva ou política; hoje existem muitos novos muros da exclusão social, com base cultural, tecnológica, étnica, de gênero etc.

“The Wall” inspira pensar que a angústia de um ser humano frente o seu divórcio nos anos de 1980 (no caso de Pink) e o contexto de alienação social daquele período, se tornaram muito mais complexos hoje, inclusive porque agora existem muros cada dia menores de acesso a drogas e o sexo. A internet removeu muitos muros e democratizou a comunicação, mas exige um letramento digital.

Na História da Humanidade, muitos muros foram destruídos, outros erguidos, e as músicas antigas ou novas precisam ser cantadas para contar os sonhos e anunciar esperança.

A linguagem cinematográfica pode continuar sendo uma voz ou uma luz para revelar verdades que precisam ser ditas, absurdos que necessitam ser denunciados, esperanças que necessitam ser motivadas, promovendo a desconstrução de muros que são impedimentos de expansão, de conquistas humanas, do próprio movimento evolutivo.

“The Wall” não pede licença para mobilizar reações desconcertantes e causar inquietação por expor de modo nu uma criativa expressão de conteúdos humanos, como a profunda angústia. Com o uso de linguagens sobrepostas que adquirem uma função de lentes de aumento, permitem ver o que estava escondido, negado, imperceptível, inconsciente. O filme é uma imersão na experiência de mal estar existencial. Explora a comunicação simbólica ou substituta, que no enfoque da Psicanálise (LAPLANCE, PONTALIS, 1998), introduz uma interpretação profunda que faz emergir o desconhecido.

“The Wall” é um exemplo de produção cultural que preenche as exigências de padrões criativos, como a música é revelada em acordes ímpares, a poesia em refrãos identitários e o cinema em suas cenas que representam as verdades humanas atemporais. A perspectiva analisada, sem dúvida parece ter a potencialidade de iluminar um debate que pode ampliar o significado de muros ou barreiras, existentes no contexto da atual realidade do século XXI, que reúne tantos avanços tecnológicos e o contexto de vulnerabilidade humana frente à pandemia, que a espelha integralmente.

Notas

1A banda britânica Pink Floyd foi formada no ano de 1965 e destacou-se pelo estilo de rock psicodélico (gênero que se desenvolveu na década de 60/70, o qual privilegiava experiências inconscientes e a liberação da mente - no cenário underground da chamada Swinging London - Londres Dançante).

Bibliografia

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Carrasco, Ney. Sygkhronos: A formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera.

Freud, Sigmund (1900/1996). A Interpretação de Sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IV. Rio de Janeiro, Imago.

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Filmografia

Pink Floyd The Wall. 1982. Reino Unido. Longa Metragem com Animação. Direção de Alan Park.