Capítulo II – Cinema – Cinema

City Symphonies: Utopia and Documentary Semiosis

Sinfonias Urbanas: Utopia e Semiose Documentária

Fernanda Aguiar Carneiro Martins

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil

Abstract

In this 21st century, city symphonies encompass great reference titles in a remarkable hundred-year-production. As having an experimental nature related to the documentary approach, they seem to propose a sort of utopia revealing a crucial work of the visual. This study aims to investigate the similarities and the differences between the first titles from the 1920s and the more recent ones from the 1990s and 2000s. For such, a universe of semiosis shall be realized in a concern about all events of life in a metropolis. More accurately, Peircean semiotic and Semiology offer a coherent and systematic field in the study of signs which may elucidate the complex connections between city symphonies’ filmic aesthetics. If they can be examined in their innovations and firstness, which establish and reinforce their avant-garde profile, in addition to the aspects of the historical world; a group of urban codes may also be focused evoking the secondness and thirdness – that is the power of the triadic system of signs. Berlin, Symphony of a Great City (1927, 2002), by Walter Ruttmann and Thomas Schadt, the meta-city symphony The Man with a Movie Camera (1929), by Dziga Vertov, its prior Kino-Eye (1924) and Vertov’s circle, for instance, Mikhail Kaufman’s Moscow (1927), Douro, Faina Fluvial distinct versions (1931, 1934, 1996), by Manoel de Oliveira. These titles shall constitute references of our findings.

Keywords: City Symphonies, Experimental Film, Utopia, Semiosis, Urban Codes

Introdução

Suites : Os Anos Vinte Estão Atrás e À Nossa Frente”, assim o estudioso Patrick De Haas conclui a recente publicação Cinéma Absolu Avant-Garde 1920-1930 (2018, reedição de Cinéma Intégral – de la Peinture au Cinéma dans les Années Vingt 1986). Título de seu último capítulo, nele, De Haas se esforça para oferecer um panorama do cinema experimental. O estudioso nos alerta para o reconhecimento dessa produção até os dias atuais:

Da observação da produção das últimas décadas, resulta pois que a opinião sustentando que nada teria sido inventado no cinema experimental desde os anos vinte testemunha seja de uma ignorância, seja de uma má fé visando se liberar de uma história incômoda lhe embalsamando no túmulo patrimonial de um passado distante...” (De Haas 2018, 732)

Dito isso, o experimentalismo no cinema constitui um fenômeno recorrente e contemporâneo, que solicita novas perspectivas históricas. No caso das “sinfonias de metrópole”, “sinfonias de cidade”, ou ainda, “sinfonias urbanas”, todo um conjunto de realizações nos leva a conferir um século de existência.

Dos títulos iniciais, datando dos anos 1920 aos dias atuais, o que permanece, o que é introduzido? A priori “sinfonia visual”, “poema sinfônico de imagens”, interessa-nos estudar nesses filmes as “relações fotográficovisuais” trazendo à luz a inter-relação fotografia e cinema, permitindo uma investigação mais precisa a respeito das imagens produzidas no seio dessa produção (Hillairet 1994, 102; Moholy-Nagy 2014, 130). Eis o objeto de estudo em “Film-Photo – um Século de Sinfonias de Metrópole”, no qual o conceito de inconsciente ótico é compreendido enquanto pressuposto teórico de particular interesse, fundamento de uma “nova visão” ampliada pelo espírito da técnica (Moholy-Nagy 1973, 2014; Benjamin 2017, 2018; Martins 2020). Desde então a crença no potencial da fotografia e, por extensão, no poder da câmera, o exemplo dado pelo fotógrafo francês Eugène Atget, em sua criação a partir do pormenor, do desaparecido, do escondido, voltado para o cotidiano em princípio destituído de interesse e de valor artístico, todos esses elementos são apreendidos enquanto fatores cruciais dessas realizações.

Cabe nos debruçarmos, pois, sobre um conjunto de imagens compreendidas em um século de sinfonias urbanas. Ao que parece, tanto a Semiótica peircenana quanto a Semiologia metziana podem muito nos auxilar. Sob esse ângulo, vale conferir o que se constitui nos termos da tríade - primeiridade, secundidade e terceiridade, categorias universais na base de toda experiência e de todo pensamento, segundo o semioticista norte-americano Charles S. Peirce, pertinentes e úteis em meio ao estudo de um forma fílmica constantemente revisitada. À tríade em jogo se vincula a mais conhecida – o ícone, o índice e o símbolo, por sua vez, pondo em jogo a relação do signo com seu objeto. No âmbito da Semiologia, a origem do conceito de código deve aqui ser resgatada, termo esse de uso corrente e sem maiores complicações, assimilado ao discurso habitual. De todo modo, um breve exame da contribuição do semiólogo francês Christian Metz nos permite observar aspectos que lhes são inerentes embora esquecidos. Tais aspectos devem acrescentar à investigação proposta, a da análise de imagens fazendo descobrir a aproximação entre imagem fixa versus imagem movente. Por último, no que diz respeito à semiose, é preciso desde já entender que ela consiste na ação do signo. “Semiose quer dizer ação do signo, que é a de ser interpretado em um outro signo.” (Hermes 2013, 69). Dito isso, a preocupação em discernir o que há de singular e inovador em cada atualização dos signos que compõem a forma fílmica em questão subentende não apenas o caráter fortemente relacional dos sistemas signicos, mas também uma indagação a respeito do que de novo surge em cada processo significante.

A análise comparativa aqui proposta abrange obras proeminentes em meio à filmografia das sinfonias de metrópole, a saber, Berlin, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), Berlim, Sinfonia de uma Metrópole (2002), de Walter Ruttmann e de Thomas Schadt, respectivamente; Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov, seu filme anterior Cine-Olho (1924) e como parte de seu circuito Moscou (1927), de Mikhail Kaufman, irmão e diretor de fotografia de Vertov, as duas versões de Douro, Faina Fluvial (1931, 1934, 1996), de Manoel de Oliveira, a saber, a primeira e a mais recente, uma vez que mantêm o formato inicial do trabalho de enquadramento.

Utopia e Semiose Documentária

“Le point commun entre le cinéma et la rue, c´est le transitoire” Siegried Kracauer

Na construção das três categorias universais de todo pensamento, C. S. Peirce conclui que tudo que aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência: 1) qualidade (potencial); 2) relação (reação); 3) representação (mediação). Cada um desses elementos formais corresponde à primeiridade, secundidade e terceiridade. Se a primeiridade traz em si o acaso, a originalidade irresponsável e livre; por sua vez, a secundidade abrange a ação e reação dos fatos, existentes e reais; quanto à terceiridade, ela envolve a mediação ou processo. Ademais, cada uma dessas categorias se entrelaça à seguinte. Sob esse viés, a terceiridade abarca a primeiridade e a secundidade; por sua vez, a secundidade, a primeiridade.

No que concerne às sinfonias urbanas, enquanto obras de vanguarda, experimentais e inovadoras, a primeiridade constitui o fator que as fundamenta. A questão que se coloca, de modo evidente, é: em suas (re)criações a secundidade e a terceiridade entram em jogo. Nesse sentido, vale ressaltar, tal como observado, que embora se manifestando enquanto terceiridade e secundidade, cada uma destas categorias conserva em si aspectos da(s) anteriore(s). Assim sendo, a cada novo título, a cada nova sinfonia de cidade, a primeiridade deve ser observada. Relacionada a ela, a iconicidade vem a constituir o elemento crucial. “Um dos erros nas considerações aos ícones... é confundir iconicidade com semelhança, que é apenas um pressuposto do ícone.” (Hermes 2013, 57). No âmbito das tríades peirceanas, vale salientar ainda:

A categoria da iconicidade oferece muito mais para a compreensão das questões estéticas devido ao seu caráter qualitativo, ligado à primeiridade, do que pela sua compreensão como sinônimo de analogia, embora ela seja imprescindível para entendermos o que é um ícone. (Hermes 2013, 57)

No tocante à inter-relação fotografia e cinema, as sinfonias de metrópole abrangem o trabalho de diretores de fotografia exigentes e rigorosos. Tanto em Berlin, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), de Walter Ruttmann, quanto em Berlin, Sinfonia de uma Metrópole (2002), de Thomas Schadt, Karl Freund e o próprio Thomas Schadt possuem uma formação digna de nota, tendo em vista suas carreiras e prêmios. No caso de Freund, vale lembrar a criação de um tipo de câmera – a Entfesselte Kamera, desenvolvida em 1924, uma espécie de câmera leve permitindo os movimentos os mais variados, inaugurada em A Última Gargalhada (1924), de Friedrich Murnau, modelo de toda uma geração de cineastas posteriores. Considerado não apenas cameraman mas igualmente co-roteirista de Berlim, ao lado de Carl Mayer e de Walter Ruttmann, Freund se preocupou com o uso de uma câmera escondida a fim de melhor captar as pessoas em seu cotidiano.

Um olhar retrospectivo sobre o passado de Karl Freund nos revela que realizara atualidades para a companhia Pathé na Alemanha, integrando a equipe de cameramen a partir de 1908. Em 1915, já desfruta de sólida reputação, levando-o a ser contratado por vários estúdios independentes. Em 1919, funda sua própria companhia, colabora com E. Lubitsch, F. Lang, P. Wegener, F. Murnau, C. Mayer. Todavia, mais crucial ainda é a sua Entfesselte Kamera livre, solta, leve, em suporte móvel, usada de modo escondido a fim de melhor captar os transeuntes sem se darem conta de que estão sendo filmados. Ao trabalhar com Ruttmann, encontramo-nos face a um profissional com bastante experiência, cujo nome se liga a produções como O Golem (1920), de Paul Wegener, Metropolis (1925), de Fritz Lang, além do longa-metragem, sob sua direção, A Última Gargalhada ou ainda chamado O Último dos Homens (1924). Mais adiante em sua carreira, precisamente dez anos após Berlim, receberá o Oscar de melhor diretor de fotografia com Terra dos Deuses (The Good Earth, 1937).

O nome de Freund figura ainda na produção de Berlin (1927), realização financiada pela companhia Fox Europa, Julius Aussenberg afirmará:

No filme Berlim, Sinfonia de uma Cidade, pela primeira vez, em vez de uma trama bem arredondada de um romance, um único conceito, uma única concepção deve ser registrada e expressa em termos de imagem. Numa estreita e inseparável combinação com um acompanhamento sinfônico deve ser captado o organismo gigantesco da cidade, os seus diferentes mundos devem ser apreendidos em uma composição pictórica gigantesca. (Extras Berlin 2009)

Eis o princípio dominante na obra: ao invés de uma narrativa, “um único conceito, uma única concepção... expressa em termos de imagem”. Com “organismo gigantesco da cidade”, com “diferentes mundos... apreendidos em uma única composição pictórica gigantesca”, a referência à pintura remete à carreira de Walter Ruttmann, cuja produção engloba todo um conjunto de pinturas e desenhos figurativos e abstratos. Em Berlim, a abertura impressiona ao mesclar um jogo de reflexos, luzes e sombras nos planos de água, logo em seguida conectados a linhas, geometrias e grafismos transpondo componentes a priori do sistema de signos da pintura para o processo significante fílmico, em suas imagens do mundo histórico, o percurso do trem até a chegada na estação. Ao longo do filme, os planos recorrentes de uma espiral em rotação parecem reforçar o efeito rítmico e acelerado das imagens da cidade, esses planos culminam com o suicídio de uma jovem mulher, que se joga de uma ponte.

Voltando ao que o produtor Aussenberg nos diz, a noção de “organismo”, existência, vida, fluxo adquirem um caráter todo especial. A respeito do desafio e da tarefa de filmar uma metrópole, vale lembrar, que acompanham Ruttmann e o seu diretor de fotografia Freund os três operadores de câmera Reimar Kuntze, Robert Baberske, Laszlo Schäffer. Porém, o mais importante das observações de Aussenberg venha talvez a seguir:

Uma descrição da imagem que, apenas através de impressões visuais, tira do seu interior o véu de familiaridade cotidiana, para mostrar a alma de uma cidade gigante e revelar sua verdadeira face em termos sociais, seu comportamento moral, técnico, civilizatório, romântico, identificando sua relação rítmica e musical. Uma grande e atraente ideia, tão atraente que não pude me opor à sua execução. (Extras Berlin 2009)

Quanto ao contexto do início do século 20 na Alemanha, Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927) compõe o chamado Cinema de Weimar, compreendido no período 1919-1933, período este extremamente fértil, crucial da Alemanha no início do século, anterior ao nazismo, democrático, rico em termos culturais. O Expressionismo alemão se esgotando em 1922-1923, Berlim surge de acordo com a tendência que constitui a Nova Objetividade, uma verdadeira mudança. O crítico de arte Georg Friedrich Hartlaub utiliza essa expressão pela primeira vez para designar o novo realismo numa exposição de arte em Manheim em 1923. Com ela, vem o entusiasmo pela realidade nua, que nasce da esperança de ver as coisas de forma objetiva e em sua substância material. (Baechler 2007). Para Freund, Mayer e Ruttmann, o filme representa uma reviravolta rumo a um cinema não mais de ficção, porém voltado para o quotidiano da vida em uma grande cidade.

A pesquisa do concreto, que marca tanto a República de Weimar de 1925 a 1930 aproximadamente, tem por consequência positiva, em todo caso, chamar a atenção sobre as artes habitualmente consideradas menores. Com a onda das revistas ilustradas, a tipografia, a fotografia, a fotomontagem se tornam objeto de interesse e de valor artístico. As artes gráficas atingem, no universo quotidiano, um papel preponderante. (...) Com a corrente da “Nova Objetividade”, ou durante o mesmo período, reina sobretudo a fotografia. O aperfeiçoamento dos aparelhos, o entusiasmo pela técnica favorecem essa paixão. (Richard 2000, 255)

O desenvolvimento de uma cultura visual favorece a tipografia, a fotografia, a fotomontagem, as artes gráficas. No que diz respeito à fotografia, três orientações se destacam: a fotografia experimental, requerendo esforços de invenção e de construção, um jogo de formas. László Moholy-Nagy, com seu livro Pintura Fotografia Filme (1925), surge como pioneiro. Ao mesmo tempo, há o realismo social caracterizado pelos retratos de August Sander assim como o movimento dos fotógrafos operários, sob o comando de Hermann Leupold. Há igualmente os fotógrafos que pretendem renunciar toda e qualquer distância crítica e se escondem do objeto fotografado a fim de obter uma autenticidade absoluta, Albert Renger-Patzsch e Hans Günther tal programa. (Richard 2000).

No âmbito da fotografia experimental, graças à influência do livro de Moholy-Nagy – considerado verdadeira bíblia da vanguarda, urge observar o quanto uma dimensão utópica se consolida, inerente ao trabalho do visual. Nesse contexto, a função da câmera consiste em mais do que ampliar o poder do olho humano, porém em o ultrapassar. Doravante, face à experimentação de recursos tais como as tomadas macroscópicas, a fim de oferecer a um só tempo uma visão de conjunto vinculada a uma captação do pormenor; as tomadas microscópicas, focalizando o detalhe, as surpresas de perspectiva, suas deformações; as diagonais obtidas por fortes plongées ou contra-plongées, não resta dúvida quanto à criação de uma estrutura dinâmica inédita e surpreendente. Em linhas gerais, nas sinfonias urbanas, eis um modo de perceber e apreender o fotográfico intrisecamente ligado ao fílmico, mesmo em meio a um trabalho de montagem unânime ao manifestar o ritmo desenfreado da vida na metrópole tal como Berlin (1927) manifesta. No caso de Berlim (2002) de Thomas Schadt, vários fatores entram em jogo na criação de uma obra de arte suprema, concorrendo com Berlim (1927), de Walter Ruttmann, objeto de homenagem.

Ruttmann representa a cidade de modo extremamente visionário e futurista, com o qual queria dizer: ´Esse é o pulsar da cidade. Eis como uma metrópole é.´O que estamos dizendo com esse filme é: Walter, esse filme procede de sua visão.” (Extras Berlim 2009).

Thomas Schadt exerce não apenas a função de diretor, é igualmente produtor, roteirista e diretor de fotografia. O co-produtor Nico Hoffmann nos conta que as qualidades do filme de Ruttmann foram debatidas amplamente, seu caráter atemporal e seu largo espectro de temas: o fluxo da vida em cafés, as atmosferas. Com base em Ruttmann, se optou por tratar um dia da vida na cidade. O filme cria sua própria estética em termos visuais, no modo como observa e em suas associações. (Extras Berlim 2009). A abertura com fogos de artifício o conecta ao final do filme de Ruttmann. Desde então a celebração de noite de ano reúne uma multidão, seus rostos e gestos sendo flagrados (sorrisos, casal que dança, criança de origem asiática a soltar fogos), o trabalho da montagem paralela intercala planos de indíviduos dançando em boate a imagens industriais de fabricação de remédios, cerveja, pão sendo preparado. Ao final do filme, os planos de reflexos em água redirecionam igualmente ao começo da obra primeira. Sem dúvida, as imagens em preto e branco, rodadas em 35mm, de Berlim, Sinfonia uma Metrópole são dotadas de um caráter excepcional unânime ao captar ritmos e temperamentos, em meio à diversidade de ações, que têm lugar na vida de uma grande cidade.

A respeito de uma incursão mais interior e subjetiva, a trilha musical eminentemente experimental, contribui para tal. A compositora Iris ter Schiphorst afirma que a variação de sensações faz parte da experiência de viver em Berlim. “Há dois meios de expressão: a música e a imagem são de igual importância e têm lugar numa forma de diálogo, como a oscilação do movimento de uma onda. Em alguns momentos a música é o componente mais forte; em outros, a imagem.” (Extras Berlim 2009).

Realizado setenta e cinco anos depois do filme de Ruttmann, Berlim de Schadt só poderia resultar em algo diferente. Na Alemanha agora reunificada, vários planos do filme mostram a sua Berliner Fernsehturm (torre de radiodifusão), localizada na Alexanderplatz, verdadeiro símbolo da Berlim governanda pela República Democrática alemã, visível de todo o centro e de alguns bairros. Imagens de sua arquitetura, de habitantes de origens diversas, imagens de cemitério judeu, de monumentos e de fotografias - memória da II Guerra Mundial, se unem ao material escrito, no decorrer de várias sequências do filme, entre elas, a da manifestação contra o nazismo, onde os participantes se utilizam de capas de jornais bradando o fim dos remanescentes.

Em Berlim, a relação que se estabelece com as outras sinfonias urbanas dos anos 1920 é flagrante. Se o contraste entre as diferentes classes sociais aparece na Berlim de Ruttmann, vale lembrar, que ela é enfatizada em Nada como as Horas (1926), de Alberto Cavalcanti. A esse título, há o grupo de pessoas em fila em agência de empregos, aquele que recebe refeição, em oposição aos convidados vestidos de maneira excêntrica e sofisticada em almoço. Dito isso, os elementos concernentes à secundidade (a cidade) e à terceiridade (as sinfonias anteriores) chamam atenção. Ainda sob este útlimo viés, a imagem refletida do documentarista Thomas Schadt com sua câmera, instalada em tripé, em superfície de vidro, remete a Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov. Desde as sequências inicias e no decorrer de todo o filme, as imagens de máquinas, de movimentos mecânicos, mesmo quando exercidos por seres humanos, fazem descobrir linhas, formas, geometrias. Desde então uma referência ao curta-metragem Ballet Mecânico (1924), de Fernand Léger, pode ser notada, cujas propriedades fazem acreditar na criação de um filme cubista (Lawder 1994), além dos grafismos da Nova Visão.

Dito isso, enquanto filme documentário e enquanto inscrição em uma forma fílmica - os elementos indiciais do documentário dizendo respeito à secundidade, as convenções cristalizadas nessa forma fílmica concernentes à terceiridade, poderiam se sobrepor a tudo o que se liga à primeiridade. No entanto, dado o caráter estético e utópico dessa forma fílmica não há como escapar de seus mais variados atributos. Em Berlim, de Thomas Schadt, os contrastes entre o claro e o escuro (filmagem com película 35mm), as sobreimpressões, os movimentos de câmera, os superenquadramentos se manifestam de modo a trazer o espectador para o âmbito da primeiridade, a saber, sua iconicidade. Em meio à sua originalidade na construção de imagens de ruas, bairros e prédios vazios, os interiores, por sua vez, em superenquadramentos, o filme nos reconduz não apenas às realizações precedentes, mas também e, sobretudo, à fotografia do francês Eugène Atget, estudado por Walter Benjamin, referência incontornável em Nada como as Horas (1926), de Alberto Cavalcanti.

No que diz respeito a Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov, dois filmes que o antecedem são de particular interesse, Cine-Olho (1924), do próprio D. Vertov, e Moscou (1927), de Mikhail Kaufman. Sobre o primeiro, apesar do título Cine-Olho trazer em si o ideal do cinema vertoviano, do cinema não encenado, apesar de anunciar em seu terceiro plano “O PRIMEIRO/ Filme, Coisa Não-Ficcional/ Sem um Roteiro/ Sem Atores/ Fora do Estúdio”, Cine-Olho se distingue de Um Homem com uma Câmera como toda a obra precedente de Vertov, no tocante às imagens. Além disso, faz uso da língua escrita ao longo de recorrentes intertítulos. De todo modo, como a obra vertoviana em geral, exalta as conquistas da sociedade socialista: alegria das fiéis em igreja ao domingo, sob efeito da vodca, o empenho das cooperativas, a instrução das crianças, imagens de Lênin. Ao todo, mesmo abarcando algumas sequências de caráter experimental tal a que manifesta a projeção ao inverso, a conhecida tomada do trem a partir dos trilhos, não comporta as imagens surpreendentes e atemporais da meta-sinfonia urbana, espécie de manifesto Um Homem com uma Câmera. Sobre Moscou (1927), de Mikhail Kaufman, vale conferir o trabalho de imagem, Kaufman sendo operador de Vertov até 1929, em Um Homem com uma Câmera. Nele, os planos gerais da cidade e os planos aproximados o inscrevem em meio à preocupação das sinfonias de cidade: retratar um dia comum da vida em Moscou. Nele, se observa uma proximidade, no que diz respeito ao tratamento do visual. Nesse contexto, vale ressaltar, a importância do trabalho fotográfico de Alexander Rodchenko, principalmente nas tomadas verticais em contra-plongée as quais tendem a diminuir a altitude de determinadas construções.

No que diz respeito a Um Homem com uma Câmera, vale conferir os escritos de Vertov. Neles, a ideia da montagem surge incorporada no “eu vejo”, consolidando não visões do mundo, mas a própria realidade.

Definimos a obra cinematográfica com duas palavras: a montagem doEu vejo”.
A obra cinematográfica é o estudo consolidado da vista aperfeiçoada, precisa e aprofundada por todos os instrumentos óticos existentes e principalmente pela câmera que experimenta o espaço e o tempo.
O campo visual é a vida;
o material de construção para a montagem é a vida;
os cenários são a vida;
os artistas são a vida.
Certamente, nós não impedimos e não podemos impedir os pintores de pintar seus quadros, os músicos de compor para o piano e os poetas de compor para as damas. Deixemos-os se divertirem…
Porém trata-se de brinquedos (mesmo se são fabricados com talento) e não de algo sério. (Mossé e Robel 1972,55-56)

Um Homem com uma Câmera não é apenas uma realização prática, mas ao mesmo tempo uma manifestação teórica na tela de cinema. Consiste no estudo da vista aperfeiçoada, precisa e aprofundada por todos os instrumentos óticos existentes e principalmente pela câmera que experimenta o espaço e o tempo. Eis a razão do plano final do cine-olho no filme, olho e ótica em sobreimpressão.

No início do século 20 na antiga União Soviética, o contexto é de ebulição cultural em paralelo às conquistas da revolução, embora uma guerra civil se instale logo após esta última, numa nação eminentemente agrária, marcada pelo atraso social.
Entre os vários protagonistas de sua revolução cultural, o poeta Vladimir Maiakovski exerce um papel de liderança, à frente de um novo lirismo. Com Maiakovski, sobrevém uma apurada autorreflexão sobre a arte como trabalho e, por consequência, um diferente estatuto atribuído ao artista, agora concebido como artista-engenheiro, artista-operário. Eis o que se verifica em Um Homem com uma Câmera, o diretor de fotografia percorrendo os mais diversos locais, por vezes surpreendendo devido a localizações somente possíveis em imagens resultantes do trabalho de sobreimpressão.

Grosso modo, no seio do Construtivismo, há o desprezo pela expressão lírica convencional, a tarefa de construção da obra devendo ser exposta, fazendo descobrir o modo como as coisas são feitas. Desde então cabe à arte ser utilitária. Com a defesa da “factografia”, anunciada pelo poeta Maiakovski na revisa LEF – Frente Esquerdista das Artes, a arte deve se constituir apenas de registros e reconstrução dos fatos presentes e dos elementos materiais do mundo. Daí se explica a presença de fragmentos justapostos, pedaços do mundo que compõem um objeto, a arte sendo um trabalho e não o produto de uma inspiração.

O filme Um Homem com uma Câmera constitui um ensaio de cine-relação de fatos visuais sem o concurso de intertítulos (um filme sem intertítulos), de roteiro (um filme sem roteiro), do teatro (um filme sem atores nem cenários).
Essa nova obra do cinema experimental do “Cine-Olho” visa criar uma linguagem cinematográfica verdadeiramente internacional, a cine-escrita absoluta, distinguir totalmente o cinematógrafo do teatro e da literatura. (Mossé e Robel, 1972, 379).

Em meio às aspirações vanguardistas, tal como mencionado, a fotografia de Alexander Rodchenko vem somar. Para Rodchenko, trata-se de revolucionar o pensamento visual. Em sua nova linguagem, ser hábil para fotografar significa ser hábil para criar uma imagem que produza o efeito visual máximo. Na fotografia da União Soviética dos anos 1920, as imagens em plongées e contra-plongées acentuadas obtêm um caráter social e militante. A fotografia enquanto meio para refletir a realidade social e política preconiza o ver a partir de ângulos os mais diferentes e radicais o quanto possível. No tocante à fotorreportagem, nessa época ela consistia numa disciplina jovem, suas regras básicas ainda em discussão.

Com Douro, Faina Fluvial (1931, 1996), de Manoel de Oliveira, deparamo-nos com o exemplo de sinfonia urbana realizada em solo português, precisamente, em Porto, cidade natal desse realizador, referência incontornável do cinema em seu país. Douro, Faina Fluvial constitui a primeira realização de Manoel de Oliveira, que não esconde sua admiração por Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), de Walter Ruttmann. Embora mais conhecido graças à sua filmografia reunindo obras de ficção, Manoel de Oliveira possui uma produção documentária. Após o seu primeiro longa-metragem Aniki-Bobó (1941), abarcando aspectos neorrealistas ao focalizar a vida em bairros populares da cidade de Porto, O Pintor e sua Cidade (1956) consiste em um novo ensaio sobre Porto, marcando o nascimento de uma nova corrente no documentário (Passek 1995). Obra de maturidade, Porto da Minha Infância (2001) traz à tona elementos autobiográficos, o enfoque eminentemente pessoal e subjetivo pondo em jogo o trabalho da memória (Martins 2016).

Sobre Douro, da versão inicial com 17min28 à mais recente com 16min22, se examina uma sutil mudança na duração, o que se deve ao trabalho da montagem. Tal como se verifica nas sinfonias de cidade, o filme ganha notoriedade graças ao trabalho da imagem, em especial, seus enquadramentos, a fotografia sendo de António Mendes. Interessa-nos aqui a última versão aprimorada pelo realizador, fruto de um trabalho de restauração, capaz de recuperar o formato inicial de definição da imagem, e igualmente reconstituída com a música Litanies du feu et de la mer, cuja trilha musical de Emmanuel Nunes restabelece o espírito vanguardista de sua inspiração, longe do acompanhamento de Luís de Freitas Branco utilizado em 1934.

No início de Douro, Faina Fluvial, após a abertura com imagens das ondas do mar e do farol, os planos da ponte D. Luís fazendo descobrir sua estrutura metálica imponente, salientando sua geometria, linhas retas e formas curvas, flagradas no âmbito de uma variação máxima e radical de enquadramentos e angulações, remontam aos ideais construtivistas. Esses mesmos planos da ponte D. Luís remetem igualmente aos planos da antiga ponte de Marselha, de Velho Porto (1929), de Moholy-Nagy – o magnífico projeto arquitetônico le Pont Transbordeur, celebrado ainda na fotografia do próprio Moholy-Nagy, de Germaine Krull e André Kertész. Fruto de uma construção grandiosa, essa ponte inaugurada em 1905, foi destruída na época da ocupação alemã durante a II Guerra em 1944. No que liga esse filme a Moholy-Nagy ainda, o espectador se depara com imagens de dejetos, de moradias pobres, animais em meio a uma gama de trabalhadores e rostos anônimos. Eis uma reflexão sobre o pobre e o excluído, que nos propõe a vanguarda do início do século.

Por sua vez, os planos do rio Douro, com seus reflexos e cintilações, nos conectam à série de planos de água de Berlim (1927). Em Douro, Faina Fluvial, como indicado no título, vemos o trabalho da tripulação das embarcações, o transporte de mercadorias, de famílias, o tráfego, enfim, o comércio de peixes, as “pequenas” atividades dos trabalhadores, o bairro do entorno com seus prédios antigos e pintura envelhecida. A imagem em contra-plongée de senhora que se desloca em rua estreita remete à imagem semelhante em Nada como as Horas (1926), de Alberto Cavalcanti. Ao longo do filme, a sequência de atropelamento de jovem rapaz nos reconduz à Berlim de Ruttmann: o suicídio de mulher que se joga de ponte. A propósito, tal como a considerada paradigma das sinfonias de metrópole, a sinfonia urbana de Manoel de Oliveira abole inteiramente o uso da língua, o filme não comporta intertítulos, se diferenciando de Moscou (1927), de Mikhail Kaufman.

O Último Código Urbano

Na ocasião da exposição La Ville Magique 2012-2013, o estudioso Edward Dimendberg colabora. No catálogo dessa exposição, contribui com escrito, intitulado “O Último Código Urbano”. Dimendberg identifica a cultura visual situada entre as duas guerras mundiais, e observa a proliferação dessa cultura visual além das fronteiras nacionais. Segundo ele, tal fenômeno prefigura o então assim designado “último código urbano” da cultura modernista. Eis o momento último antes das representações da cidade se fraturarem em idioletos particulares ou se sedimentarem em clichês universais. “Nunca mais a metrópole será tão simples de ser representada como o foi durante esses anos.” (Mauchin 2012, 210). Entre os seis códigos apontados, há: espaço da montagem, separação, ornamento da massa, estranheza tecnológica, quadros e visão movente, nostalgia negra.

O presente estudo tendo por objeto uma análise das imagens produzidas pelas sinfonias urbanas, interessa aqui o que diz respeito aos quadros e visão móvel.

Face ao conjunto das imagens estudadas nos filmes, sem dúvida, tanto a questão do quadro quanto a de sua variação constante de perspectivas se revelam fundamento mesmo do trabalho crucial ligado ao visual. Cabe indagar até que ponto esse último código urbano possui pertinência em meio a essas imagens. Em seu escrito, o estudioso norte-americano parece convincente, assim conclui o seu texto:

Mesmo se elas atingem o cúmulo do horror, as catástrofes sociais e políticas do entre-duas-guerras permanecem mais familiares do que as ameaças de aquecimento climático, de catástrofe ambiental, de explosão demográfica nas megalópoles, de bioterrorismo, de guerra virtual e de fracasso do sistema financeiro internacional, que invadem hoje os jornais e põem à prova as capacidades de resposta dos sistemas políticos e da ciência. Seguramente, a fascinação sempre viva pelo modernismo do entre-duas-guerras se apoia numa nostalgia a exemplo do que é percebido como seguro, situação no menor dos casos paradoxal quando se considera o imenso sofrimento humano desse período histórico. As três décadas, de 1918 a 1948, durante as quais a cidade foi sempre visível e sempre mágica, poderiam aparecer aos futuros historiadores como ainda mais notáveis do que quando ela é percebida por um número de observadores atuais. (Mauchin 2012, 217).

Cabe passarmos a uma indagação a respeito do conceito de código a fim de melhor o situar em meio ao trabalho de análise das imagens fílmicas. No que se refere ao aporte semiológico, do projeto inicial de uma Filmolinguística, Christian Metz caminha rumo à Cine-Semiologia. Eis o momento quando, em Linguagem e Cinema (1971), opera uma ultrapassagem da impulsão estruturalista do começo de suas pesquisas. Em suas explorações acerca dos códigos, chega a um ponto importante:

a linguagem cinematográfica é uma realidade com duas feições. De um lado, há o conjunto de códigos específicos (o que faz com que o cinema seja cinema e nenhuma outra coisa), de outro, é o conjunto de todos os códigos que são postos em obra para construir os filmes (o que intervém no cinema mesmo vindo de outros lugares); em suma, o cinema constitui um núcleo puro e estável e, ao mesmo tempo, um agregado de elementos diversos (Casetti 1999, 161).

É preciso entender como os processos significantes de outros sistemas sígnicos tendem a ser incorporados à linguagem fílmica e, à medida que nela são desenvolvidos e ampliados, terminam se inserindo no conjunto dos códigos específicos. Mais recentemente, vale conferir, no domínio da análise fílmica, os problemas concretos que a noção de código comporta. Se, por um lado, “um filme contribui para criar um código, tanto quanto o aplica ou utiliza” (Aumont, Marie, 2004, 68); por outro, à medida que o trabalho de análise atenta para o valor artístico intrínseco do filme, “a noção de código perde mais ou menos a sua pertinência” (Aumont, Marie, 2004, 68). Dito isso, as afirmações de Dimendberg requerem uma compreensão mais ampla ao nível dos códigos culturais, trabalho do historiador, do sociólogo, do antropólogo, mais propriamente do que do trabalho do analista de filme.

Retomando a teoria peirceana, precisamente, as categorias universais da experiência e do pensamento que são a primeiridade, a secundidade e a terceiridade, vale lembrar, que mesmo enquanto código, sistema, convenção, dotado de natureza simbólica, instauradores da terceiridade, esta última traz em si as duas categorias, que lhes são anteriores, a secundidade e a primeiridade. Os filmes considerados obras únicas e singulares, mesmo estabelecendo diálogos com realizações que os antecedem, foram aqui estudados, levando em conta os aspectos ligados, sobretudo, à primeiridade, embora a forma fílmica “sinfonia urbana” seja observada, embora os elementos indiciais, que apontam para o mundo histórico, estejam presentes. Nesse sentido, recorrer à definição de Bill Nichols nos parece uma iniciativa válida. Ao explicar em que consiste o modo poético, aqui identificado como a categoria na qual as sinfonias de cidade se inserem, o estudioso afirma a importância das vanguardas, com as quais o modo poético compartilha um terreno comum. Além disso, Nichols assinala: “O modo poético é particularmente hábil... para transferir informações diretamente. Esse modo reforça o estado de alma, o tom e o afeto...” (Nichols 2005, 138).

No início do século passado, fotografia e cinema, imagem fixa e imagem móvel convergem e conversam entre si, o experimentalismo nas artes as aproximando. O espaço urbano em vias de transformação, sua arquitetura e construções envolvendo contrastes entre o antigo e o novo chamam atenção. Em meio a isso, surge não apenas uma cultura visual, mas também uma cultura urbana voltada para as ruas. Graças a ela, o poeta Maiakovski diz: “As ruas são nossos pincéis, os locais nossas paletas.” (Craig 2007). Na base desse interesse, deparamo-nos com a obra do fotógrafo francês Eugène Atget, cuja fotografia do imóvel da rua de Seine em Paris, no sexto arrondissement, se encontra na origem da criação da fotografia a seguir. Eis um exercício de atividade prática (de “recondução”, a que busca retomar tal qual a fotografia anterior, do mesmo local, com enquadramento idêntico), parte integrante do trabalho de investigação acerca das sinfonias de metrópole:

Fernanda Martins
Figura 1: Rue de Seine, Paris 6e, 2019

Atget não está ausente de nenhum discurso fotográfico, alfa e ômega de todas as histórias do médium, artista singular e ao mesmo tempo conquista do século XX e pioneiro do século XX. (...) O fato que tantas obras inovadoras tenham se inspirado na sua o torna eternamente moderno, ele que só fotografava o antigo. Ocorre que finalmente ele se parece com os seus sucessores ao ponto de se dissolver em suas imagens.
(Aubenas, Le Gall 2007, 10).

Referência incontornável para muitos artistas, a obra de Eugène Atget constitui um rico legado cujo valor permanece atual. No início desse escrito, a importância da criação de Atget a partir do pormenor, do desaparecido, do escondido, voltado para o cotidiano em princípio destituído de interesse e de valor artístico, fora salientada, todos esses fatores sendo cruciais para as sinfonias de metrópole. Com a fotografia (Figura 1), mais uma vez, o trabalho do enquadramento e da angulação é enfatizado. Eis um dos aspectos suscetíveis de descoberta e de instalação de um novo olhar, mesmo no âmbito de uma atividade prática de recondução.

Conclusão

O presente estudo buscou oferecer uma abordagem das sinfonias urbanas a partir de suas imagens. A análise comparativa abrangeu obras proeminentes em meio à filmografia das sinfonias de metrópole, a saber, Berlin, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), Berlim, Sinfonia de uma Metrópole (2002), de Walter Ruttmann e de Thomas Schadt, respectivamente; Um Homem com uma Câmera (1929), de Dziga Vertov, seu filme anterior Cine-Olho (1924) e como parte de seu circuito Moscou (1927), de Mikhail Kaufman; Douro, Faina Fluvial (1931, 1996), de Manoel de Oliveira, a primeira versão e a mais recente, uma vez que ambas mantêm o formato inicial do trabalho de enquadramento.

Nesse sentido, houve a preocupação de se debruçar sobre o trabalho exercido pelos diretores de fotografia tais como Karl Freund, Thomas Schadt, Mikhail Kaufman, António Mendes. Para tanto, o trabalho de análise fílmica procurou dar conta do conjunto de imagens, que une e põe em diálogo os filmes enfocados. No paralelo entre cinema e fotografia, o contexto de uma cultura visual, como um todo, e da fotografia, em particular, ambas desenvolvidas ao longo das primeiras décadas do século 20, fora estudado. Dito isso, mais uma vez se descortinou o papel determinante de László Moholy-Nagy na Alemanha e em Portugal; no caso da antiga União Soviética, Alexander Rodchenko constituindo a referência máxima enquanto fotógrafo, cabendo ao poeta Vladimir Maiakovski a função de relevo enquanto verdadeiro líder e idealizador do Construtivismo.

A fim de melhor situar a leitura analítica das imagens se recorreu aos aportes da Semiótica peirceana e da Semiologia metziana. No que diz respeito à Semiótica, as três categorias universais de todo pensamento, segundo C. S. Peirce, na gradação das três propriedades, que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência: 1) qualidade (potencial); 2) relação (reação); 3) representação (mediação), foram retomadas. Cada um desses elementos formais correspondendo à primeiridade, à secundidade e à terceiridade auxiliaram a análise das sinfonias urbanas, o aspecto artístico e de primeiridade fazendo ressaltar a iconicidade. No âmbito da Semiologia, o noção de código fora revista, tendo como base as contribuições do semiólogo francês Christian Metz. Ao trazer à luz do conhecimento o pensamento do estudioso norte-americano Edward Dimendberg, pensamento esse envolvendo uma abordagem mais ampla, no que diz respeito à cultura visual do entre-duas-guerras, o conceito de código mereceu uma reflexão no âmbito da análise fílmica e do corpus de filmes estudados.

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