Abstract
The time we live in is that of the eruption of millions of subjectivities, of territorially diffuse affective communities, geographies of affections and identity belongings that go beyond the countries’ geographical boders. The continous flows of information and communication, the transition to the digital economy accelerated by the pandemic context, transformed people’s daily lives into permanent daily contact with mobile and fixed screens, at work, in the public and in the private spaces. From the cinema room to the cell phone, the cinema language is appropriated by the disciplines of marketing, advertising business communication and organizations, media, politics and artistic practices, building appeals, standards, disputing, fragmenting and uniting communities of belonging and affections. Cinema, man’s unique look at the world constitutes itself as Elian Kazan affirmed “the dialogue of the world” ,[1]. Modern activity, art and industry, from an early age this artistic pratice contaminated and was contaminated,produced behaviors,attitudes, in a double movement of appropiation and recreation of the appropriate. It is from this empirical a priori that recognizes the contamination of the real by cinema that this article is written, which seeks to identify the place of cinema, as an actor, in the construction of the image of Portugal in the contemporary world. Is there any articulation between cinema produced with funds to support portuguese cinema and public cultural policies and between these and Portugal’s external communication?
Keywords: Soft power e cinema, Cinema Português, Políticas do Cinema, Construções Identitárias, Lusofonia e Pós-Renascimento.
Introdução
Delimitação do campo de análise e objecto.
O estudo do cinema nas relações externas dos estados não é uma originalidade. Nos estudos fílmicos aplicados em cinema português, no entanto, são escassos os estudos que tem o foco nesta temática.
Num país em estado de anemia quanto à atividade cinematográfica, estado anémico que se tem prolongado ano após ano durante toda a III República, e que em razão dessa anemia, dificilmente encontra outras fontes de financiamento que não as que resultam das políticas públicas de apoio ao cinema, investigar qual o lugar possível e desejável do cinema português na comunicação externa de Portugal é urgente e necessário.
O objetivo da comunicação é demonstrar a razoabilidade desta urgência e necessidade, e também convocar os atores políticos e os fazedores dos cinemas para esta realidade.
Num mundo de interdependências crescentes, para pequenos Estados como Portugal, a atividade cinematográfica cujo poder de influência dentro e fora dos territórios de origem é inegável, não é possível desprezar.
A abordagem proposta acompanha as corrente pós-positivista e do pós-estruturalismo, assumindo a produção do discurso e o exercício da vontade como condição da ação do homem no mundo social. Entende-se que estruturas de significação só são igualmente válidas para todos aqueles que tem acesso a um mesmo contexto cultural, social, económico, político, etc. No entanto, o cinema, arte popular, semiótica da vida, tem a capacidade de comunicar com comunidades e indivíduos simultaneamente em lugares distantes ou próximos.
Para o estruturalismo filosófico, a categoria ou ideia de fundo não é o ser, não é a substância, mas a relação; não é o sujeito, mas a estrutura. De forma menos radical acompanhamos as correntes pós-estruturalistas que sem negar a dimensão estrutura, se afirma a construção do discurso ( texto, imagem, som) significantes semiológicos com que o sujeito age sobre o real. Tal como o herói relutante que habita o cinema contemporâneo, a abordagem pós-positivista e pós-estruturalista afasta-se de forma decida da linha imediatista e determinista da causa-efeito. No caminhar humano há sempre um fim, mesmo que do domínio do inconsciente psicanalítico, que é motiva para o deambular tantas vezes errático do não-herói contemporâneo. Uma causa pode gerar múltiplos e diferentes efeitos.
Um filme é sempre um produtor de sentido ou sentidos. Um produtor do simbólico. Cassirer1 identifica o simbólico como a “ linguagem, a religião, o mito, a ciência, a arte, tudo aquilo que condiciona o olhar sobre a realidade em determinado tempo ou lugar. As formas simbólicas estruturam a leitura de mundo, criam uma rede de significados e organizam a experiência.”2
As estruturas são, diz-nos (LÉVI-STRAUSS, 1955; ALTHUSSER, 1998; FOUCAULT, 2012) , o corpo de leis que instituem e configuram a forma como se compreende a realidade.
Para o estruturalismo filosófico, a categoria ou ideia de fundo não é o ser, não é a substância, mas a relação; não é o sujeito, mas a estrutura. Assim, contra o historicismo diltheyniano, não é o sujeito que conduz o curso da história; contra o idealismo hegeliano, não existe uma lógica da história, pois não há ideia de progresso e/ou continuidade na sucessão dos fatos históricos, por estes serem contingentes, aleatórios; contra o empirismo, o sujeito não condiciona, por si só, suas condições de possibilidade do conhecimento; contra o existencialismo de Sartre, Heidegger ou Merleau-Ponty, o homem não é senhor de sua essência, não se projeta no mundo como lhe aprouver mas é condicionado por estruturas a priori de compreensão.... Uma leitura detida, principalmente de Arqueologia do Saber, segundo Rabinow e Dreyfus (1983) impossibilita enquadrar Foucault como teórico estruturalista, justamente por este se recusar a pensar em estruturas a priori de compreensão. O que Foucault chama de estruturas epistêmicas nada mais seriam que regimes de verdade que se manifestam no discurso, no aqui e agora e, por isso, não se mostram a priori. Os epistema são formações discursivas que, construídas sobre determinado tema, tenderiam a formar um escudo frente a determinadas ideologias, ao mesmo tempo em que protege outras. O ponto chave na teoria de Foucault que permitiria tratá-lo como filósofo pós-estruturalista é então o conceito de formação discursiva , ideia que será retomada e reproposta por analistas do discurso. Uma formação discursiva é aquela que estabelece o que pode ou não ser dito em determinado contexto ideológico. Por exemplo, em uma formação discursiva republicana, não se concebe a defesa de privilégios hereditários no governo.3
A indústria cinematográfica e o filme enquanto construtores de poder simbólico não podem, nem devem, ser ignorados. A realidade demonstra que os quotidianos domésticos, mas também as relações internacionais, são em muito o resultado das percepções, das opiniões públicas quotidianamente disputadas pelos diferentes poderes em presença nas sociedades de fluxo contínuo de informação e comunicação. O filme e a atividade cinematográfica é, nesta abordagem, um poder brando, da categoria do soft power, é território de persuasão e sedução, dispositivo estético expressivo que dá visibilidade à voz singular de um determinado discurso de um país ou conjunto de países nas relações externas.
No mundo contemporâneo de extrema complexidade e num país como Portugal, de recursos financeiros escassos, em que a atividade cinematográfica é inexistente sem os fundos públicos que resultam de decisões de política cultural, e com estes escassa, torna-se urgente a articulação da atividade cinema com estratégias políticas no que se refere ao poder de influencia desejável e possível na afirmação externa do país. Consideramos relevante para o desenvolvimento do cinema português, entender a atividade como fator de grande potencia, na afirmação continuada da presença de Portugal no mundo global e em particular no mundo da lusofonia.
O património cultural material e imaterial português é civilizacional e universalista. A atividade cinematográfica, na sua materialidade, é uma ferramenta de soft power, dado que cria narrativas, projeta valores, discursos de cultura, identidade, facilmente vividos pelos expectadores quando da fruição das obras.
Neste tempo de tensão e redefinição geopolítica, em que a China tornou evidente a sua capacidade, e vontade de, na hierarquia das grandes potências, vir a substituir o lugar que os EUA tem ocupado nos últimos 100 anos, pensar o cinema português nesta dimensão de soft power, é tarefa urgente. Olhar o desenvolvimento da atividade como parte da ação instrumental na afirmação Portugal e projeção dos seus interesses estratégicos no quadro de Europa, ela mesma em redefinição, e sobretudo da presença de Portugal na Lusofonia e na Ásia e no Mundo, uma oportunidade para o desenvolvimento da atividade cinematográfica, e uma necessidade. Seguimos FOUCAULT, 2010) quando afirma
Em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
O cinema é a expressão, a indústria arte, que de forma mais eficaz permite esse trabalho sobre e no discurso, não o fosse e o mundo da publicidade não teria como central na sua operacionalidade a gramática cinema.
Desenvolvimento
Cinema português, relações internacionais e geopolítica
A construção do Biopolítico
O último ano e meio da vida política veio confirmar a aceleração patrocinada pelos governos dos estados, em particular na União Europeia e sociedades do capitalismo desenvolvido, na construção das sociedade do biopolítico. O biopolítico caracteriza a dimensão e a forma do exercício do poder nas sociedades da informação, quando os media chegam a todos os espaços da vida humana, públicos ou privados.
Foucault permite-nos reconhecer a natureza biopolítica do novo paradigma do poder. O bio poder é uma forma de poder que rege e regulamenta do interior a vida social, seguindo-a, interpretando-a, assimilando-a e reformulando-a. O poder não pode conseguir um domínio efetivo sobre toda a da população a não ser transformando-se numa função integrante e vital que cada indivíduo adopta e reativa inteiramente por sua conta…a vida tornou-se agora…um objecto de poder. A mais alta função deste poder é investir a vida de extremo a extremo, e a sua tarefa é administrá-la. O bio poder refere-se assim a uma situação em que, para o poder, o que está diretamente em jogo é a produção e a reprodução da própria vida…quando o poder se torna inteiramente biopolítico, o conjunto do corpo social é abrangido pela máquina do poder e desenvolvido na sua virtualidade. Trata-se de uma relação aberta, qualitativa e afectiva…o poder exprime-se assim como um controlo que invade o fundo das consciências e dos corpos da população - e que se estende, ao mesmo tempo, através da totalidade das relações sociais.4
Esta caracterização do bio poder contem as dimensões mais significativas, damos nota de duas; o seu carácter interior e a sua relação contaminada na dimensão e exercício enquanto produto e produtor da cosmo visão do indivíduo. Não se trata mais de temer o aparelho repressivo do Estado. A decisão dos Tribunais ou a intervenção das Polícias, a subjugação a leituras hegemónicas por parte da escola ou da igreja, mas de, no processo de socialização mediado pela comunicação e informação, o individuo, não pela força, mas por desejo e vontade própria, se apropriar e integrar na visão de si próprio e do mundo as dimensões visíveis e invisíveis do poder. Tornar-se ele mesmo expressão do poder.
Não que o poder coercivo, as forças bélicas, tenham deixado de ter função e presença nas ações dos Estados, a realidade mostra de forma também claramente visível que assim não é. Veja-se o conflito entre Israel e a Palestina, ou a O Poder bélico militar continua e continuará a ter dimensão determinante nas decisões e alinhamentos da geopolítica dos blocos e dos Estados. No entanto o biopolítico tem como resultado alterações qualitativas na dimensão clássica do controle e vigilância dos Estados sobre as populações e sobre a forma de dimensão e controlo e papel da opinião(s) pública(s). Não basta o poder bélico, é necessário , mais até do que a legitimação pelas fontes do direito internacional, o uso fático do poder bélico ser legitimado pelas populações. Ou seja, num mundo com um fluxo constante de notícias, muitas das quais sem possibilidade de controlo na sua produção, é decisiva a opinião pública internacional e doméstica favorável ao “ combate impiedoso ao inimigo” Neste sentido, e por esta razão, o cinema enquanto lugar de alteridade, de aproximação de povos e culturas é um instrumento para a paz ao serviço dos estados. Sem paz não há comércio, não há harmonia, não há vida digna. A lei do mais forte é um caminho largo para a barbárie.
Escola Portuguesa
Coincidente ou não com uma percepção do imaginário colectivo, o cinema português desde sempre teve relação próxima com ideias, realidades, dinâmicas sociais e culturais ao longo do séc. XX e tem mantido essa relação neste inicio do séc. XXI.
Olhar o cinema no tempo histórico em que é produzido é ver as representações culturais de uma sociedade. É neste sentido que o cinema é arquivo, uma dimensão não menos relevante da atividade fílmica. Todo o filme enforma, consciente ou inconscientemente, valores estético-ideológicos.
As nossas construções não são diferentes interpretações ou explicações de um mundo pré-existente e independente delas... construções e mundo são uma e mesma coisa5
Torna-se claro, pelos temas abordados no cinema produzido em português; Fado, Touros, Império, Ribatejo, Canções Populares, mas também autores como Camões, Frei Luís de Sousa ou Júlio Dinis, que o cinema sob o Estado Novo, e em particular durante o mandato de António Ferro, serviu um esforço de legitimação e construção de uma ideia de nação trabalhada também, e simultaneamente, através dos meios de comunicação de massa, a rádio, Emissora Nacional e posteriormente a RTP. Ontem como hoje, instalam-se comissões e ministérios para legitimação do regime. Veja-se o caso atualíssimo das anunciadas comemorações dos 50 anos do regime da III República. É ainda no Estado Novo, acompanhado a cinematografia europeia, em particular o cinema em França, que o cinema novo começa em Portugal, um cinema movido por outras ambições de natureza mais subjetiva e libertária, liberto de missões e ideias de Estado. Um cinema de “ literatura de gare”, como afirmou Jean-Luc Godard, para se fazer um filme basta um crime, uma pistola e uma mulher. Num breve momento ainda anterior ao movimento do cinema novo português, foram realizadas obras cinematográficas que expressaram o movimento do neo-realismo em Portugal.
Todavia não é fácil opor cinema convencional e cinema de resistência; eles não são campos opostos; ao contrário, são focos diferentes dirigidos sobre a sociedade, pontos de vista e estéticas diferenciadas, mas não são essencialmente distintos na descrição do mundo que constroem enquanto representação social6
A denominada “escola Portuguesa”, tem movimento embrionário na geração do cinema novo, em particular com António da Cunha Telles, Paulo Rocha, Fernando Lopes, Manuel de Oliveira. Diretores que afirmaram em Portugal o movimento do cinema europeu independente próximo da política de autores e que, no caso particularmente relevante da cinematografia de Manuel de Oliveira, afirmaram a memória de um país que se conheceu a si mesmo em outros espaços territoriais distantes do seu lugar periférico no mapa europeu, (mas central na tempo e movimento do Renascimento europeu) como matéria do cinema. João Maria Mendes7, sobre a escola portuguesa, escreve:
O conceito de “escola portuguesa”, frequentemente usado para definir o que caracteriza o cinema de autor feito em Portugal, é uma expressão heurística que alude a obras cinematográficas e aos modos de as realizar sem definir com rigor o que lhes dá características idiossincráticas. Está associado à simpatia ou empatia de uma fileira da recepção internacional com “um certo cinema português” e esboçou-se entre scholars e no discurso crítico dos media a partir dos anos 80 do séc. XX, que assistiram à consagração internacional de cineastas como Manoel de Oliveira e António Reis e a uma menorização “política” de outros que defendiam um cinema mais comercial e feito para o entertainment de públicos mais vastos. A ideia de “escola portuguesa” não é pacifica nem tem igual entendimento nos diferentes atores do cinema em Portugal, e continua a merecer debate aberto sobre qual a prioridade, a existir, do cinema produzido com fundos públicos, ou seja quase a totalidade dos filmes com capacidade de existir no mercado dos festivais e salas, produzidos em Portugal. A expressão socializou-se sobretudo a partir da publicação de Histórias do Cinema, de João Bénard da Costa, em 1991. Paulo Rochacostumava dizer que existe um partido filo-português na crítica cinematográfica internacional, constituído por uma “elite” de cinéfilos atenta aos filmes de autor feitos em Portugal e que vê neles a persistência de uma “escola”. De que ideia de cinema é esse interesse sintoma? A que “procura” ou a que “falta” respondem, nas cinematografias atuais, os filmes portugueses valorizados por tais críticos?
Foi Jacques Lemière quem caracterizou de forma mais objectiva a “escola portuguesa”, sugerindo que é identificável por três tópicos:
1. Invenção formal e inscrição do cinema numa nova etapa da modernidade cinematográfica
2. Afirmação da liberdade do cineasta e procura constante dos meios dessa liberdade contra toda a norma industrial
3. Primado da reflexão da questão nacional”. O primeiro tópico de Lemière remete para 1967 e para o “novo cinema”, quando 15 realizadores portugueses levaram à Fundação Calouste Gulbenkian, então percepcionada como Ministério da Cultura alternativo, o documento “O ofício do cinema em Portugal”,8 que estará na origem, dois anos mais tarde, da cooperativa Centro Português de Cinema, financiada pela fundação. O segundo tópico remete para a recorrente defesa cultural e política da arte cinematográfica e do cinema de autor contra as normalizações de formatos, géneros e gostos promovidos pelo financiamento, produção, distribuição e exibição de inspiração industrial/comercial.
Este segundo ponto alimentou a discussão “ Bragança-Paris” é, no tempo presente em nosso entendimento discussão estéril e ultrapassada. Veja-se o exemplo o filme “Parasite” vencedor do Oscar 2020, uma produção sul-coreana em que os atores não usam a língua inglesa, o que demonstra que a “nova Hollywood” até na abordagem conceptual e da promoção da indústria há muito abandonou o modelo de produção estúdio. A anterior contradição assente na dicotomia cinema indústria-cinema arte, não tem hoje adesão à realidade.
O terceiro tópico refere-se à persistência da reflexão poético/ideológica sobre “o problema português” ou da “sobrevivência nacional” nos realizadores e seus filmes. Discussão de equívocos no imaginário histórico do país, sua fantasmática pobre mas imperial, herança complexa da vocação marítima, da longa síndrome salazarista e da guerra colonial, mescla de leituras da abertura gerada pelo pronunciamento militar de 25 de Abril de 1974 e pelo processo revolucionário a que ele deu origem, bem como da normalização política que levou à adesão de Portugal à CEE em 1985. São temas abordados ora em evocações históricas, ora em alegorias poéticas, ora, mais raramente, em filmes-ensaio.
Também este ponto, agora que nos aproximamos dos 50 anos do regime da III República, em modelo democrático, e perante um sistema discursivo que tem vindo a instalar o passado dos descobrimentos e expansão portuguesa como status de violência e crime, e verificando a problemática concreta no desenvolvimento dos países que antes eram territórios sob administração portuguesa, as crises migratórias, o desentendimento europeu do seu lugar no mundo e também a situação de grande fragilidade institucional, económica, que se teme a curto prazo social, no território nacional, um olhar renovado e sem pré-conceito, necessariamente reflexivo e transdisciplinar sobre a história recente de Portugal torna-se a cada dia mais urgente e necessário, e nenhuma disciplina está em melhor condição para o fazer, que o cinema. Tanto pela gramática do cinema, como pelo carácter híbrido, reflexivo, capacidade de síntese e citação/arquivo, que são elementos constituintes da cinematografia contemporânea, como pela capacidade dos novos públicos e suas vontades enquanto espectador participante.
Cinema e cultura nas relações externas no espaço da lusofonia
A 5 de janeiro de 2015, o Instituto Camões organizou um Seminário de Ação Cultural Externa - Portugal no Mundo, Carla Figueiredo9 na sua comunicação afirmou
Num mundo em mudança é necessário que os Estados encontrarem novas abordagens para o desenvolvimento das suas relações culturais internacionais. Estas incluem a concepção da diplomacia, e da diplomacia cultural, não como apenas uma parte do aparelho e da ação estatal, mas sim uma estrutura e abordagem integrante de ‘todo’ do governo, e o diplomata, ou o detentor de um cargo público, como um facilitador de ligações entre diferentes contextos e atores. Especificamente na área da ação cultural externa, poder-se-ia aplicar como objectivos de uma nova abordagem, uma tipologia simplificada que indica que as relações culturais devem evoluir no sentido de apostar mais em projetos do que em eventos; mais no multilateral do que no bilateral; mais em coproduções do que em apresentações; mais nos processos do que nos produtos; mais em trocas mútuas do que num sentido único; mais em ouvir do que em dizer; mais na promoção de valores do que na autopromoção... na minha análise, uma estratégia coerente do todo da cultura nas relações externas ainda não existe em Portugal... É importante que a ação cultural externa seja guiada por uma estratégia coerente, com objectivos e metas claras, devidamente avaliada e implementada com responsabilidade na prestação de contas e transparência nos processos... No entanto, a avaliação dessas ações é simultaneamente extremamente importante e difícil pois requere a conversão de elementos muitas vezes intangíveis em tangíveis.10
A autora destaca por um lado o carácter transversal estratégico da diplomacia a todo o corpo da ação governativa, e por outro a sistematização estrutural de ações concretas, o que em nosso entender pode e deve ter formulação concreta em, linhas de apoio à produção de filmes e festivais, desenhados com objectivos concretos e articulados com objetivos e missões estratégicas da diplomacia portuguesa, a curto, médio e longo prazo. A visão proposta está em linha com o entendimento da cultura, no caso que nos ocupa, a conceptualização, produção distribuição e exibição cinematográfica integrada nas estratégias de soft power. É sempre de fazer notar que a afirmação de Portugal no contexto internacional advém da dimensão simbólica, imaterial, resultado de nossa existência histórica com momentos de liderança global e pensamento universalista ocidental num passado relativamente recente. O Momento do Renascimento que antecedeu a Idade Moderna. Importa tornar claro que entender o cinema como fonte de influência, num momento em Portugal aposta na transição para as economias do digital permite olhar de outra forma a necessidade, os montantes, e as políticas públicas para o sector da atividade cinematográfica. A dimensão poder de influência do cinema de produção nacional nas relações externas de Portugal; comunicação, diplomacia cultural, no Sudoeste Asiático, em África, nas Américas, é ativo potencial de enorme relevância, e um dos meios possíveis e desejáveis, isto é, ao alcance das capacidades da cinematografia nacional e transnacional , no regime da co-produção. A co-produção é uma formas de organizar e viabilizar produções de cinema que mais importa desenvolver para uma efetiva afirmação e presença da cinematografia de Portugal no mundo, e no mundo de expressão portuguesa.
É claro que toda esta dimensão pressupõe soberania nas decisões das relações externas. O que não é inteiramente claro, não tanto pelo fundamentação do direito nacional e internacional, mas pelas práticas políticas efetivas. No momento em que o poder político considere relevante cinema nas relações internacionais podemos afirmar que a cinematografia nacional tem condições conceptuais e técnicas assumir esse de papel ativo com estrondoso sucesso. Sucesso que terá também tradução numa maior vitalidade nas dinâmicas económicas, territoriais, sociais do território.
A narrativa cinematográfica é por definição um lugar de encontros; encontro com o outro, ou outros. O olhar empírico e a investigação académica confirma o cinema como território de alteridade. As cinematografias nacionais permitem aos pequenos estados comunicar e exercer o poder de influencia em territórios e comunidades muito para além das fronteiras domésticas.
A tese de doutoramento em 2014 de Paulo Manuel Ferreira da Cunha “ O Novo Cinema Português. Políticas Públicas e Modos de Produção (1949-1980)” , dá conta da percepção clara da relevância do cinema para estado português durante o Estado Novo, na tentativa por parte de António Ferro de um cinema português com visibilidade internacional. Viviam-se tempos de total domínio dos mercados pela cinematografia das grandes companhias americanas e a oposição foi radical.
António Ferro conseguia fazer aprovar a primeira lei geral de cinema em Portugal, a Lei 2.027, de 18 de Fevereiro de 1948.
A primeira versão da “lei de proteção ao cinema nacional“ foi publicada a 24 de Dezembro de 1946, sob a forma de decreto n.º 36.058, beneficiando claramente o sector da produção e “trincava forte nos distribuidores e exibidores.“ Mas, segundo João Bénard da Costa (1998: 54), apenas três dias depois, a 27 de Dezembro, “depois de os americanos ameaçarem com boicote“, “Salazar em pessoa mudou o decreto“ e, no início de 1947, “recambiou-o para a Assembleia Nacional para os deputados da nação o discutirem.“ Reforçando a ideia generalizada da importância da legislação para o futuro do cinema português, “o ano foi escaldante, com cada um a mexer os cordelinhos que podia” Depois de os deputados rejeitarem a “versão soft emendada pelo Chefe”, o processo regressou à Câmara Corporativa para novo parecer e, finalmente, a 18 de Fevereiro de 1948, a Lei 2.027 era publicada e seria regulamentada em 1949 (Ibidem). Do ponto de vista meramente teórico, a polémica legislação parecia beneficiar sobretudo o sector da produção, nomeadamente com a criação do Fundo do cinema nacional (FCN): “Artigo 1.º A fim de proteger, coordenar e estimular a produção do cinema nacional, e tendo em atenção a sua função social e educativa, assim como os seus aspectos artístico e cultural, é criado o Fundo do cinema nacional.“
Na prática, de todas as finalidades do FCN, sobressaia a “concessão às entidades produtoras de filmes portugueses de subsídios destinados a cobrir parte do custo desses filmes“ (Art. 7.º, 1.º).
Para além de eventuais dotações extraordinárias por parte do Estado, a principal forma de financiamento do FCN seriam as receitas resultantes das taxas de licença de exibição, que incidia, acima de tudo, sobre os filmes estrangeiros. O que também desagradou aos sectores da distribuição e da exibição foi a criação de um “contingente de filmes portugueses“: “Artigo 17.º Todos os cinemas são obrigados a exibir filmes portugueses de grande metragem, na proporção mínima de uma semana de cinema nacional por cada cinco semanas de cinema estrangeiro independentemente do número de espetáculos semanais.“ Como filme português, de acordo com o artigo 11.º, considerava-se os filmes que cumprissem três condições: “ser falado em língua portuguesa“, ser produzido em estúdios e laboratórios portugueses e “ser representativo do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo, quer se inspire nos grande temas da vida e da cultura universais.“
Inequivocamente, a terceira das condições considerada na nova legislação para definir — e, consequentemente, financiar — o filme português ia ao encontro dos “caminhos seguros“, sugeridos pelo próprio Ferro no discurso “O Estado e o Cinema“ acima referido, para a afirmação do cinema português: os filmes históricos, os documentários e os “filmes de natureza poética“ (Ferro 1950: 64-65). Segundo Ferro, fora dos apoios deveriam ficar também outros filmes tidos como responsáveis pela crise criativa do cinema português: “filmes regionais ou folclóricos“, os “filmes extraídos de romances ou de peças teatrais“, os filmes policiais e, principalmente, os filmes cómicos. Baseados em fórmulas simples e repetitivas, e explorando os “chavões“, estes géneros fílmicos representam “o que há de mais inferior na nossa mentalidade“. Os filmes regionais e folclóricos, com o “bailaricos“ e cantigas “nitidamente metidos a martelo“, reproduzem visões estilizadas e depreciativas do regionalismo e folclore portugueses.11
Setenta e dois anos depois da primeira lei do cinema em Portugal, quanta desta discussão ecoa fragmentada na discussão ainda hoje produzida sobre o que é, e o que deve ser, a política pública para o cinema português.
Ontem como hoje a questão da política pública para cinema em Portugal no contexto das relações do país com as outras nações no mundo, atendendo às dinâmicas sociais, culturais, económicas contemporâneas, é de particular relevância, e ainda mais neste momento de redefinição de blocos e zonas de influência.
Nesta segunda metade do séc. XXI que se chega em velocidade acelerada a Lusofonia é espaço estratégico, necessário, à afirmação de Portugal. Realidade adormecida mas sempre emergente. O jornal Observador, em artigo publicado a 29 de Julho de 2019, dava notícia de números vinculados pelo secretário de Estado da Comunidades, José Luís Carneiro, quanto aos falantes de português nestes termos
a língua portuguesa é um dos principais ativos estratégicos do Estado português, esperando-se que até ao final do século XXI sejam 500 milhões os falantes espalhados pelo mundo. Há estimativas que apontam para que até 2060 a língua portuguesa possa vir a ser falada por 380 milhões de pessoas... como exemplo há três anos havia três universidades na China a ensinar língua portuguesa. Atualmente são mais de quarenta... É na América Latina onde o português é mais falado, mas as estimativas apontam para que, no fim do século, a língua portuguesa venha a ser a mais falada no continente africano, devido ao crescimento demográfico espectável para países como Angola ou Moçambique.12
Para uma país com uma população de 10,28 milhões em território doméstico, fica impossível negar a dimensão extraordinária do capital cultural, simbólico, relacional, histórico, que é a identidade deste país na sua relação com o mundo. Esta singularidade é de primeira importância para a criação e internacionalização da produção cultural, e na atividade cinematográfica em particular, pelo que é urgente pensar de forma sistematizada a produção cinematográfica nesta sua dimensão estratégica, a curto, médio e longo prazo. Os estudos centrados na diplomacia cultural são relativamente recentes, diz (Bondam 2013) “ It is only within recent years that cultural relations have entered the stage of political science”. Aceitamos a definição operativa para diplomacia cultural formulada por Cummings, Milton ( Cummings, 2003, apud Schneider, 2006, pág. 191) “ ... the exchange of ideas, information, art and other aspects of culture among nations and their peoples in order to foster mutual understandings”.
No ambiente relacional globalizante do início do século XXI, a CPLP afirma-se como uma comunidade plural, enriquecida pela diversidade, unida em torno do factor linguístico e cultural comum, funcionando como matriz de potenciação das cultura irmanadas lusofonia. Ao mesmo tempo, a CPLP constitui a expressão institucionalizada do mundo lusófono convencionalmente formalizada, no plano político-diplomático, pelos respectivos estados membros, afirmando-se a par das numerosas comunidades de luso-falantes espalhadas pelo mundo, indiferentes às fronteiras territoriais
Interessa manter uma diplomacia ativa, mas também desenvolver relações informais de forma continuada e estrategicamente operante. E também aqui, o cinema aprofunda o uso da língua portuguesa como factor estratégico. Diz Moreira
As teorias políticas do poder, em oposição às teorias normativas que examinam o fenómeno em termos de sistema de direitos e obrigações legais, procuram avaliar o facto central do grau de controlo da população dentro do território e da medida em que os comportamentos são influência de outros poderes exteriores. Não é que os cientistas distingam entre poder e influência, sendo a primeira expressão reservada para as relações de completo controlo, mas é difícil estabelecer uma fronteira entre as duas realidades.13 Não é certo que antiga política da canhoeira Não certo que a antiga política da canhoeira tenha dado inteiramente lugar à política da negociação e do tolerável. Em todo caso, a primeira das legitimações fora da esfera dos tratados, é da opinião pública internacional, uma variável disputada pelas potências e pequenos estados. Continuando com Moreira, Adriano, (1922).
a internacionalização acelerada que marca o ambiente e as dependências de todos os agentes soberanos e não-soberanos, e que acentua progressivamente a condição exógena de grande número de pequenos países a tenderem para exíguos, confere indiscutível carácter de urgência e prioridade à temática das relações internacionais, um facto evidente no que respeita à conjuntura portuguesa... como doutrinou insistentemente Martin Wight, as ideias, as crenças, as afirmações, são mais do que elementos de uma imagem desejada e manejada pelo Estado espetáculo que está em circulação, porque muitas vezes condicionam, influenciam, e aceleram a competição internacional. ... A segunda Guerra Mundial destruiu o sistema euro-mundista e, com ele, os pressupostos da soberania absoluta e suficiente. Ainda que sem plano, os grandes espaços multiplicam-se, alterando completamente a primeira e essencial referência da soberania e da cidadania, que é a fronteira, sagrada pela escala de valores históricos e patrióticos. Portugal tem disso uma experiência sem equivalente... a das fronteiras imperiais que, até à década de sessenta, eram todas soberanias ocidentais, com exceção do então irrelevante caso de Macau; depois a descolonização deu-lhe por fronteiras novos países vizinhança; finalmente, depois de 1974, ficou com uma só fronteira geográfica, esta europeia. Mas aconteceu-lhe que a fronteira ao mesmo tempo de foi multiplicando, num processo sustentado que vinha de antes, e que teve a ver com os grandes espaços. Deste modo, a fronteira de segurança passou a não coincidir com a geográfica, porque é a da NATO em lonjuras mal sabidas pelo contingente de conscritos; a fronteira económica transferiu-se para as comunidades europeias, submetendo a economia interna a constrangimentos que não controla; a nova fronteira política anda a ser redefinida ... e a fronteira cultural teve um primeiro ensaio de fixação com o Tratado que instituiu a Comunidade de Estados de Língua Portuguesa...
O conceito de cidadania europeia, antes de ter expressão normativa moldada em função do institucionalismo da União, é uma versão da cidadania mundial, uma regionalização apropriada da Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma participação ativa na sociedade civil internacionalizada, algumas vezes surpreendida por uma política furtiva dos executivos. .. a livre circulação pelo mundo, no exercício do direito básico de estar, de andar, e de ir de um lugar para o outro, multiplicou as minorias étnico-culturais, ao mesmo tempo que o avanço na concepção das várias cidadanias vai derrogando antigos conceitos excludentes, defensores do jus saguinis, por vezes nacionalistas, algumas vezes xenófobos e violentos. As categorias estão em mudança, e recentemente Thomas Hammar falou no denizen type como realidade situada entre o cidadão e o estrangeiro, um compromisso que vai correspondendo às chamadas colónias interiores que as imigrações vão criando, sobretudo por causado mercado de trabalho... As responsabilidades do aparelho educativo são hoje desafiadas não por uma ordem mundial estabilizada, ... antes acontece que da Nova Ordem apenas se sabe que acabou a antiga, do Estado soberano tem notícia que está em crise, do globalismo vai recebendo manifestações desintegradas, das dependências e interdependências mundiais sabe que foram desencadeadas mas não as sistematiza.”14
Conclusão
As emoções desempenham um papel tão importante como a razão nas relações internacionais. Teria sido mais fácil para os Estados Unidos aceitar ascensão da China enquanto potencia se esta fosse uma potência democrática ocidental, em particular uma camarada anglo-saxónica15
O ano de 2020 e o que já foi vivido e é previsível viver em 2021, demonstra um mundo em crise acentuada, muito em particular, no caso da UE e dos EUA, com a China e a Rússia. Vivem-se convulsões sociais, alterações na cartografia do mapa político, e até nas convenções e alianças entre estados, como desde o fim da Guerra Fria, e em vários aspectos do fim da tragédia da II Guerra mundial não se tinha conhecimento. Não saberemos tão cedo até que ponto a saída da Inglaterra da EU não resulta de uma abordagem estratégica em função dos realinhamentos em curso nas lideranças geopolíticas. Nem, neste tempo mais próximo, qual a relação do controlo biopolítico em nome da saúde pública que os estados ocidentais estão a exercer nas populações com as redefinições das lideranças geopolíticas. Neste mundo com 192 países em estados de desenvolvimento desiguais, as dinâmicas de poder no combate pela supremacia geopolítica, entre a República Popular da China e os Estudos Unidos da América, evocando razões de natureza imperativa sanitária “congelam” relações sociais e económicas em grande parte dos países União Europeia, dando curso a uma guerra biopolítica em que a construção das percepções das opiniões públicas é uma variável que todos querem controlar.
Quando as elites políticas da EU e dos EUA afirmam as suas decisões de classificar a RPC como inimigo estratégico alicerçadas em argumentos construídos com base na racionalidade, teme-se, e igualmente com forte probabilidade racional, Assistir aos telejornais diários é constatar o exercício de tentativa controlo das opiniões públicas. Não será acaso que durante meses o Presidente dos EUA falou do vírus Chinês, mesmo sabendo-se que a regra da dominação definida em sede da Organização Mundial de Saúde , prescreve intencionalmente, com vista a não fomentar descriminações, esse tipo de nomenclatura.
Escreve Mahbbani
Para um observador externo, é manifestamente claro que a postura dos EUA face à ascensão da China também é influenciada por profundas reações emocionais. Tal como os seres humanos individuais têm dificuldade em desenterrar os motivos inconscientes que impulsionam o seu comportamento, também os países e as civilizações têm dificuldade em desenterrar os seus impulsos inconscientes. É um facto que o perigo amarelo tem permanecido enterrado na civilização ocidental há séculos. Napoleão referia-se a ele quando disse: “ Deixem a China dormir; quando acordar o mundo16
O facto contemporâneo é que a China, um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, é o único país que desde a Segunda Guerra Mundial não participou em guerras no estrangeiro longe das suas fronteiras.
Também é preciso esforço para negar Portugal enquanto país charneira no Renascimento. Com a expansão marítima foi o país da proto-globalização. Portugal é a matriz civilizacional de que resulta a comunidade Lusófona.
Radical e infrutífero esforço será igualmente necessário para negar o cinema enquanto dispositivo técnico expressivo construtor de mundo-visões com capacidade de sedução e influência nos diferentes públicos, nacionais e internacionais.
Parece pois de simplificada clareza, que a linha de estudos culturais aplicados em cinema que convoca as relações internacionais, é em Portugal um caminho e uma necessidade. Esta linha de investigação tem como missão inicial produzir conhecimento que alavanque criticamente as decisões do poder político quanto às linhas de apoio ao desenvolvimento da cinematografia portuguesa.
Num momento em que a espuma dos dias e a cultura do híper individualismo, num processo de auto flagelação com dimensão de uma investida psicanalítica colectiva, tende a olhar o facto histórico da expansão marítima e do império como processo catártico, e atendo à afirmação de Portugal no quadro da Lusofonia, torna-se urgente e necessário trabalhar como matéria cinematográfica esse período único da nação portuguesa, a relevância da expansão marítima portuguesa, e o papel charneira de Portugal no que foi o Renascimento Europeu.
A expansão portuguesa foi e é determinante para a percepção da identidade construída.
A Era Gâmica17 resulta de decisão política e administrativa, foram decisões em sede da coroa soberana que abriram novas rotas e um novos conhecimentos do mundo. Portugal construiu e constrói a sua identidade no quadro da relação com os outros povos e geografias e é nessa relação de aventura, comércio, religião, cultura, na relação com a alteridade que Portugal se olha e descobre a si próprio. Não é irrelevante o facto, que tende a ser esquecido, de que nenhum outro estado europeu deslocou a sua capital política e administrativa até ao hemisfério Sul, até ao então denominado Novo Mundo. A capital do Império Português também foi a cidade do Rio de Janeiro.
Torna-se impossível negar especificidade do lugar que Portugal ocupa, ou pode ocupar, no conjunto dos 190 países com assento na Assembleia Geral das Nações Unidas no mundo contemporâneo, imanada desta construção de identidade material e simbólica, com início ainda antes do Renascimento, ainda que, seja nesse tempo de redefinição social, cultural, política, que a especificidade da nação portuguesa se afirma e nos transporta até à Idade Moderna e este tempo, de fim de ciclo da pós-modernidade. Desse longo percurso de mais de meio milénio resulta um monumental acervo cultural próprio e comum, com países e povos na Ásia, em África e na América do Sul.
É Castells quem escreve:
No que diz respeito aos atores sociais, entendo por identidade o processo de construção do significado com base num atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual (ais) prevalecem sobre outras formas de significado. ... as identidades são fontes mais importantes de significados do que os papéis ( pai, professor, militante de esquerda ou direita, jogador de futebol, estudante universitário, etc) , por causa do processo de autoconstrução e individualização que envolvem. Em termos genéricos pode dizer-se que as identidades organizam os significados, enquanto os papéis organizam as funções.
Defino significado como a identificação simbólica, por parte de um ator social, da finalidade da ação praticada por esse ator. Também proponho que, para a maioria dos atores na sociedade em rede, ...o significado organiza-se em redor de uma identidade primária (uma identidade que estrutura as demais) auto sustentável ao longo do tempo e do espaço.18
Reconhecida a especificidade do filme em chegar a diferentes públicos sem surpresa se entende o seu papel, importância e articulação com a presença externa de Portugal. O lugar simbólico e imaterial que Portugal transporta não é do domínio do arqueológico, mas um gigantesco acervo patrimonial identitário vivo, atado por uma língua falada por mais de duzentos e vinte milhões de pessoas.
Não se trata, nem nunca se tratou de unicidade cultural mas sim pluralidade e plasticidade gerada numa matriz comum.
No entanto, olhando as políticas públicas concretas para a nossa cinematografia o lugar atribuído ao cinema nas relações de externas de Portugal é diminuto, para não dizer quase inexistente. Se é verdade que nos sucessivos enquadramentos conceptuais que configuram o espírito e corpo material das sucessivas leis do cinema surgem sempre como princípios e objetivos a
afirmação da identidade nacional, promoção da língua e valorização da imagem de Portugal no mundo, em especial no que respeita ao aprofundamento das relações com os países de língua oficial portuguesa19
na sua operacionalização, quando dos regulamentos específicos, como é o caso subprograma de apoio à coprodução com países de língua portuguesa, verificamos o oposto. Neste regulamento os realizadores portugueses estão impedidos de participar, e se verificarmos os montantes disponíveis exíguos, constata-se que da manifestação da vontade à sua concretização, a distância é imensa. Em 2020 o orçamento para o Coprodução com países de língua portuguesa teve o montante de € 500 000. E o montante para a Coprodução Internacional Minoritária Portuguesa atribuído foi de € 1 200.00. Orçamentos e disposições legislativas incapazes de promover o que a lei geral indica como prioridade. É objectivo desta comunicação chamar, uma vez mais, a atenção para esta realidade, que também atende, às dinâmicas de mercados em crescimento como é o caso do mercado dos 1,4 mil milhões de potenciais consumidores na CHINA. Ou em números globais os 270 milhões de falantes da língua portuguesa, a língua mais falada no hemisfério sul.
O que faz o Estado Português perante as dinâmicas institucionais que a nova rota da seda oferece, ou pode oferecer, à coprodução cinematográfica transnacional de matriz portuguesa? Perante o imobilismo a que ano a pós ano se assiste fica a pergunta; é Portugal soberano nas suas decisões de acordos e parcerias institucionais internacionais bilaterais - acordos de coprodução?
Se sim, a que se deve a falta de ação efetiva por parte do IPC ?
Para um cinema português, a viver continuadamente em estado de sobrevivência, a abertura dos mercados do Sudoeste Asiático - através da República Popular da China, Macau, e zonas de influencia - não é relevante? Caso essa orientação política de apoio à nossa cinematografia fosse implementada através dos protocolos entre estados como é prática corrente, integrando a visão estratégica já desenhada pela RPC com a Rota da Seda, só esse ato administrativo permitiria um salto gigante na atividade cinematográfica nacional. É fácil perceber que qualquer margem mínima de sucesso à escala da China representa um mega sucesso à escala nacional. São centenas, ou os canais de televisão local com audiências próximas da totalidade da população portuguesa. Neste sentido fica uma pergunta, qual a racionalidade para, 17 anos depois das determinações do governo central da República Popular da China que constituíram Macau como plataforma para os negócios com a mundo da lusofonia, através da criação do Fórum Económico e Comercial de Macau, e depois de visitas a Lisboa e a Pequim ao mais alto nível, Portugal não ter ainda acordado um protocolo de coprodução com a China?
Notas finais
Para um pequeno Estado como Portugal o cinema é um instrumento de diplomacia cultural, um ativo importante na dimensão “Soft Power”20, acresce que além de dispositivo estético expressivo, de massa e de nicho, com capacidade de influência, necessário ao sucesso da diplomacia económica, é o próprio cinema em condições especificas, ele próprio um ativo económico. Para Portugal país em processo de transição para as economias digitais, o sector cinematográfico é “naturalmente” um alargado espaço económico com público potencial na ordem dos milhões. Ter políticas ativas assertivas e potenciadoras da atividade, é não só uma necessidade como um imperativo. É esse o caso que se esperaria do cinema no desenvolvimento das relações de Portugal com a Região Administrativa Especial de Macau - República Popular da China. O caso concreto das correlações cinema - relações internacionais Portugal - Macau - República Popular da China, pouco estudado, parece levantar particulares dificuldades neste tempo de transição de centros de poder, como os desenvolvimentos recentes - pós inicio da pandemia Covid 19 - tem vindo a demonstrar. No entanto a situação é anterior e não se encontram motivos de racionalidade económica ou simbólica.
Não é seguramente de forma inocente que a opinião pública é confrontada com uma visão em que a RPC é a perigosa ditadura que recusa as virtudes da democracia a Hong-Kong. Ou um país perigoso por não querer alienar a sua legitimidade territorial ao mar da china.
O ano de 2020 tem forte probabilidade de ficar na história deste século XXI como o ano em que - por razão de um surto pandémico - o declínio dos EUA enquanto potencia líder global se tornou verificável, ainda que o “agenda setting”, como atrás referido, que ocupa em permanência as televisões do mundo Ocidental, e em particular a Europa e os EUA, insistam na defesa do status quo ante, mobilizando as opiniões públicas contra o “perigo chinês”. Para Portugal, o país que na europa há mais tempo e de forma continuada tem relações com a China, não parece ser do nosso interesse estratégico enquanto país, uma relação de tensão, que não favoreça a amizade e o comércio. A entrada na terceira década do século XXI evidencia aos olhos do mundo, o desenvolvimento económico, político, demográfico, e também militar, que a República Popular da China tem vindo a operar desde os anos 70 do século XX. É impossível pensar o mundo sem a República Popular da China enquanto potencia influente e decisiva na nova geopolítica. As tensões sociais e políticas no mundo contemporâneo são enormes e os equilíbrios instáveis. Desde 1944, e do equilíbrio de forças da “guerra fria”, que o mundo não vive igual estado de fragilidade institucional internacional e doméstica. As movimentações sociais nos EUA com a população em fúria nas ruas das cidades, em Espanha o caso da autonomia de Barcelona, as movimentações sociais dos “gilets jeunes” em França, os sucessivos pedidos de “ impeachement “ a presidentes no Brasil, as agitadas e já referidas movimentações sociais em Hong - Kong, os surtos migratórios sul-norte a atravessar o mediterrâneo, o elevado abstencionismo nos atos eleitorais na Europa, são indicadores sérios da enorme a fragilidade social e política em diferentes zonas do globo. A ONU reconhece não conseguir levar a cabo com eficácia os programas do PNUD desenvolvimento e erradicação da pobreza do mundo). UE viu a saída da Grã- Bretanha. O mundo está em mudança.
Para um país como Portugal, e para a atividade do cinema, a explosão das audiências em plataformas digitais é uma oportunidade, se assim as políticas públicas para o sector o entenderem. O género cinematográfico filmes históricos, ficção, documentário, ou híbrido, com elevadas taxas de acolhimento em todos os grupos etários, e classes sociais, e com espaço de exibição nas novas plataformas de exibição, continua uma área temática cinematografia adormecida, quando não expulsa logo em sede de secretaria nos concursos públicos no ICA. Sem estímulos concretos e sólidos nos programas existentes para apoio cinema em Portugal, apesar do campo cada vez mais alargado de públicos possíveis, nacionais e internacionais, e da relevância da atividade, para coesão, construção da identidade da sociedade portuguesa, e possível capacidade económica, e a vitalidade e resiliência do sector crescente na sua potencia, a atividade cinematográfica não vai conseguir ultrapassar os constrangimentos impostos.
Todos os anos centenas de novos profissionais chegam a um mercado fragilizado ou inexistente, com formação superior em cinema e audiovisual. Potencia que não é transformada em realidade. O fim desta segunda década do século XXI tem vivido momentos de explosões e conflitos sociais quase sempre justificados com questões identitárias que remetem ao domínio do “homem branco” e da Europa eurocêntrica e colonial, a um tempo que nas suas estruturas de domínio hegemónico económicas e sociais é já distante do contemporâneo, mas que é trazido para as dinâmicas sócio-identitárias nas grandes urbes contemporâneas, em Londres, Washington ou Lisboa, como atual. Veja-se em 2020 a vandalização no largo do Trindade em Lisboa da estátua do escritor, diplomata, padre da Companhia de Jesus, António Vieira (1608-1697)21, ou quando em a Câmara Municipal de Lisboa, na praça do Império em frente do Mosteiro dos Jerónimos, decidiu apagar os brasões símbolos da expansão e presença de Portugal mundo, o que levou a uma petição pública assinado por desconhecidos, ex-presidentes da República, e SAR D. Duarte, com mais de 13 000 assinaturas. Este realidade, só por si, demonstra a contemporaneidade e até a urgência e a apetência de diversos públicos para um cinema de temática histórica cruzando acontecimentos, geografias, culturas, narrativas, que em muito constituem a identidade de Portugal. Num tempo em que largos sectores da opinião publicada tem como programa a saída do Estado de vários sectores de atividade, e em que as subvenções públicas ao cinema são vistas como despesa, e onde o cinema é olhado como atividade parasitária e sem relevância para o desenvolvimento do país, é necessário fundamentar os argumentos que tornam evidentes não só a razoabilidade, mas também a necessidade, da atividade cinematográfica na afirmação de Portugal no mundo contemporâneo. É necessário enquadrar o sector enquanto atividade relevante para o exercício diplomacia cultural, braço necessário à diplomacia económica. Considerando a potencialidade de crescimento que o sector cinematográfico português continuamente manifesta, é espectável, num horizonte de médio prazo, a atividade ter retorno verificável nos mapas excel dos dados contabilísticos. Por outro lado, importa continuar a referir que o valor intangível e simbólico do cinema com capacidade de circulação internacional num país de pequena dimensão como Portugal, mas com fronteiras culturais em todos os continentes, é não só elevado como necessário.
Notas
1CASSIRER, Ernst. 1998 Filosofia de las Formas Simbólicas. Tradução de Armando Morones. México: Fundo de Cultura Económica,.
2Santos, Frederico Rios C. 2019 .Cinema, Discurso e Relações Internacionais. São Paulo/pimenta cultural
3idem
4Ver Michel Foucault, The History of Sexuality. Para outras abordagens do conceito do biopolítico na obra do Foucault ver “ the Politics of Health in the Eighteenth Century” e “ Naisssance de la biopolitique”, in Dits et écrits, vol.3, pp 818-825 Paris-Gallimard, 1994
5Nelson Goodman, Modos de Fazer Mundos, pág. 5 – prefácio de Carmo D’Orey, Porto, ASA 1995
6Leonor Areal, Cinema Português Um País Imaginado Vol. 1 –Antes de 1974, Edições 70, pág. 17 ( edição com o apoio da FCT)
7João Maria Mendes é ex-Presidente da Escola Superior de Teatro e Cinema e professor coordenador no seu Departamento de Cinema. Leccionou no Doutoramento em Artes Performativas e das Imagens em Movimento criado em parceria pela Universidade de Lisboa e pelo Instituto Politécnico de Lisboa. Foi co-fundador e é investigador integrado do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC), criado em 2008 pela ESTC e a Universidade do Algarve.
8Nota do autor ; o título remete para o documentário de Carl Theodor Dreyer “ O Meu Ofício”
9Docente e investigadora no Instituto for Creative and Cultural Entrepreneursship, Goldsmiths, University of London.
10http://d3f5055r2rwsy1.cloudfront.net/images/images_divul gacao/carlafigueira_ul.pdf
11Tese de doutoramento“ O Novo Cinema Português. Políticas Públicas e Modos de Produção (1949-1980)” , Cunha, Paulo Manuel Ferreira da - Universidade de Coimbra , 2014
12Jornal Observador, 29 de Julho de 2019
13Moreira, Adriano, Teoria das Relações Internacionais - 7ª edição ( Manuais Universitários) pág. 444, ISBN 978-972-40-4660-0 , Coimbra, Novembro de 2011.
14Moreira, Adriano, Teoria das Relações Internacionais - 7ª edição ( Manuais Universitários) pág. 13, 230,231,232, ISBN 978-972-40-4660-0 , Coimbra, Novembro de 2011.
15Mahbbani, Kishore, A China Já Ganhou ? 1ª edição, Bertrand Editora, pág. 309 ISBN 978-972-25-4090-2, Lisboa, Novembro de 2020
16Mahbbani, Kishore, A China Já Ganhou ? 1ª edição, Bertrand Editora, pág. 309,310 ISBN 978-972-25-4090-2, Lisboa, Novembro de 2020
17Expressão cunhada pelo historiador Arnold Toynbee, que considera a chegada de Vasco da Gama à praia de Kappad, Índia, em maio de 1498, o início da globalização.
18Castells, Manuel (Coord.) 1997,2001, The Power of Identity, pág.3 edição Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2007, ISBN 978-972-31-1194-1
19Lei n.º 55/2012, Artigo 3º Princípios e objectivos 1. a) Diário da República , 1ª série - Nº 173 de 6 de setembro de 2012
20Ver Joseph Nye “Soft Power: The Means to Success in World Politics” 2004
21Ver “ Palavra e Utopia” 130 minutos, realização de Manuel de Oliveira , prémio especial do júri no festival de Veneza, e nomeado para o Leão de Ouro, produção Gémini Films e RTP, coprodução Portugal, Brasil, França, Espanha, Itália, ano de lançamento , 2000 .
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