Capítulo II – Cinema – Cinema

Archive and Landscape: On Cinema and Wonder

Arquivo e Paisagem: Sobre Cinema e Espanto

José Duarte

CEAUL-ULisboa, Portugal

Abstract

In the “tiny” world of F. Percy Smith – the well-known naturalist of the 19th century – both cinema and nature play a key role in showing the intimate and “hidden life of insects and plants in a way that people have never seen before” (National Science and Media Museum). As a naturalist, F. Percy Smith was interested in exploring the many educational possibilities of cinema from the several landscapes he shot, creating an interesting combination of landscape and moving image. About a hundred years later, Stuart A. Staples, lead singer of Tindersticks, visits and revisits the cinematic world of F. Percy Smith by creating a film from the series Secrets of Nature (1922). With Minute Bodies: The Intimate World of F. Percy Smith (2017) Staples develops a cinematic montage based on Smith’s “pure cinema”. In it, Staples traverses Smith’s microscopic landscapes in an exercise that seeks to observe the wonder created in the naturalist’s first exhibitions, as well as the construction of a new landscape that points to an eternal and ethereal movement. As such, the purpose of this essay is twofold: firstly, to analyze F. Percy Smith’s intimate and microscopic landscapes and, secondly, to perceive Minute Bodies as a film that tries to recover this initial wonder of the moving images by creating new landscapes from the archives of Smith’s films.

Keywords: Archive; Landscape; F. Percy Smith; Stuart A. Staples; Cinema.

Understanding the world requires you to take a certain distance from it. Things that are too small to see with the naked eye, such as molecules and atoms, we magnify. Things that are too large, such as cloud formations, river deltas, constellations, we reduce.

Karl Over Knausgaard, My Struggle (Book one)

Cinema e Ciência

No estudo intitulado Devices of Curiostiy: Early Cinema and Popular Science, publicado em 2015, Oliver Gaycken debruça-se, de forma aprofundada, sobre os filmes de ciência popular (ou científicos) do início do séc. XX1, um sub-género que o autor define da seguinte forma no resumo do livro: “films about scientific topics for general audiences, inspired by a vision of cinema as an educational medium” (2015). Criados inicialmente com a intenção de funcionar como “conhecimento em trânsito” (Secord, 2004, 661), estes filmes também originaram “novos paradigmas visuais” (Gaycken, 2015), estabelecendo uma forte relação entre curiosidade, espanto e a imagem fílmica, em especial num momento em que, como nota Marina McDougall na introdução a Science is Fiction: The Films of Jean Painlevé, “as classificações fixas de documentário e ficção ainda estavam por serem colocadas em categorias rígidas” (2000, xvi). De acordo com Gaycken, esta curiosidade e espanto podiam ser atribuídas a diferentes aspectos: 1) os aparelhos que permitiam a projecção dos filmes de ciência popular; 2) a possibilidade criada por esses mesmos aparelhos – slow motion, a ampliação de objectos/figuras ou o processo de time-lapse, por exemplo – e, finalmente, 3) os filmes são também eles experiências que derivam da curiosidade dos seus autores (2015, 4), até porque muitos destes filmes circulavam fora do seu contexto habitual.

Seguindo ainda o pensamento de Gaycken, é de sublinhar que, no caso dos filmes de ciência popular, ou dos filmes educacionais2, estas ideias de curiosidade e espanto têm um papel central na forma como estes eram vistos, pois abrem inúmeras possibilidades de leitura. Note-se, por isso, que apesar destas obras se centrarem na exibição de imagens “científicas”, elas cativavam naturalmente aqueles que as viam. Por um lado, os filmes de ciência popular foram cruciais para um melhor entendimento da natureza e das paisagens naturais. Desde a filmagem de animais minúsculos a microrganismos invisíveis a olho nu, estes filmes apresentavam uma visão particular dos mundos naturais escondidos ao mesmo tempo que eram um estudo de diferentes áreas como história, geografia, história natural, ciência ou química. Por outro lado, os filmes circulavam num contexto de um mercado económico, funcionando assim não só enquanto experiência científica, mas também como algo espectacular, pois sendo apresentados em público estavam carregados de vida num mundo que era (plenamente) vibrante, como explicita Hannah Landecker:

[…] these experiments in film did not just offer new images of natural objects, such as cells or particles; they were also a means of allowing people other than scientists to participate visually in the sights of scientific work and the mode of experimental looking. This opening up of the scientific gaze to other participants can be seen not just in popular reception; the very theorization in the early twentieth century of what cinema was or could be was bound up with scientific film. Whether in popularization or in pedagogy, scientific films did not just teach audiences about things such as cells but, indeed, suggested a very particular way of looking at the world. (2006, 122)

Neste sentido, e como anteriormente notado, embora estes filmes pudessem ser caracterizados maioritariamente como documentários sobre o mundo natural e as suas paisagens, também estavam intrinsecamente ligados à criatividade e com a ideia de experimentação (Gaycken, 2015, 63). Assim, não obstante o processo do registo científico apontar para a possibilidade de encontrar aquilo que está para além da visão humana, assistir a estes filmes é também uma experiência que sublinha a importância de ver, bem como de contemplar a paisagem3: a criada pela observação do mundo natural e a criada pela mente do realizador que a transforma em algo diferente e novo por via do cinema. Um dos exemplos maiores será o caso de Jean Painlevé, como explicita Berg4:

This was not the first time—nor the last—that the question of just what to call Jean Painlevé’s work would arise. In the more than two hundred films he made during his lifetime, the subject matter was almost exclusively science, yet Painlevé freely indulged in artistic license. Indeed, the seemingly separate worlds of science and art would mingle and merge in Painlevé’s films, and the resulting fusion, such as a documentary on a vampire bat set to a jazz soundtrack, would at times delight, at other times baffle those who came across it for the first time. (2000, 3)

Embora, como adiantado por Berg (2000, 12), Painlevé não fosse considerado um realizador avant-garde, este circulava no meio do grupo de Surrealistas em Paris, mostrando-se fascinado pela novidade, velocidade e possibilidade da imagem em movimento. Contudo, e sendo Painlevé um nome importante no contexto do microcinema, outros realizadores foram também pioneiros neste sub-género cinematográfico, como será o caso mais específico aqui estudado de F. Percy Smith.

Cinema e Espanto: F. Percy Smith

F. Percy Smith foi um conhecido naturalista inglês do séc. XIX que desempenhou um papel fundamental na contribuição “da percepção pública da natureza” (Gaycken, 2015, 54) e, ao mesmo tempo, como alguém que criou um trabalho que permitiu mostrar a vida secreta dos insectos e plantas de forma nunca antes vista (National Science and Media Museum). Embora não tenha começado por fazer filmes, passou grande parte da sua vida a trabalhar com o cinema usando-o principalmente como forma de documentar o ciclo de vida e pequenos animais, plantas ou seres microscópicos.

Smith iniciou o seu trabalho para a Charles Urban Trading Company5 e, depois de deixar a companhia, começa a colaborar com a British Instructional Films onde tem oportunidade de desenvolver a série Secrets of Nature, composta por 144 filmes feitos entre 1922-1933, com o propósito de apresentar um vislumbre dos mistérios do mundo natural e dos diferentes processos e caminhos da natureza, bem como das suas paisagens mais íntimas. Esta série, que não é exclusiva de F. Percy Smith, é descrita por Max Long da seguinte forma:

Secrets were generally about ten minutes long. The most common format was the ‘life-cycle’ film of a single plant or animal’s growth, life and reproduction. Others were ‘compilation’ films, where specific processes such as pollination, courtship or animal motion were illustrated by collating footage from different species. These were often location- specific, exploring the fauna and/or flora of a place, as in Springtime in the Scillies (1932). Fifty-one Secrets dealt with ornithology, although this excludes many ‘compilation’ films featuring birds. Shot in the open, they included The Sparrow-Hawk (1922) and The Merlin (1930). Forty-five films showed insects, with titles like The Lair of the Spider (1922) and Looper Caterpillars (1935). Moths and butterflies were a common subject, with a total of ten films, including The Comma Butterfly (1922). A further thirty-nine Secrets focused on plants, mostly produced after Percy Smith joined the team in 1926. Moreover, films like Magic Myxies (1931) offered spellbinding images of the growth and reproduction of fungi. Forty films showed aquatic subjects, including crabs, starfish and frogs, among other marine and freshwater animals (Figure 1). This wide range of subjects is reflective of the contemporary culture of amateur natural history to which the Secrets films belonged. All Secrets relied on a heavy dose of anthropomorphism, light humour and drama. (2020, 5)

Conhecido pela sua obsessão com a natureza6, e por experimentar com o meio cinematográfico, Smith foi pioneiro na utilização de métodos como a micro fotografia ou time lapse, criando filmes populares como The Balancing Blue Bottle (1909), To Demonstrate How Spiders Fly (1909) ou The Birth of a Flower (1910). Nestes curtos filmes não só Smith experimentava e experienciava o micro mundo da natureza e da paisagem, mas também tirava claro partido das possibilidades cinematográficas da altura, criando assim uma particular paisagem cinematográfica que funcionava como um mapa em que, como denota Gaycken (2015, 65), o “fantasioso se entrelaçava frequentemente com o real”, o que encontra também eco nas palavras de Graeme Harper e Jonathan Rayner quando os autores descrevem a ideia de paisagem cinematográfica da seguinte forma:

Like a map, the cinematic landscape is the imposition of order on the elements of landscape, collapsing the distinction between the found and the constructed. Like a map, the cinematic landscape has involved technologies and techniques which have evolved. Through the twentieth century, the association of new film technologies with the formation of cinematic landscapes worked to enhance the ways in which the communication and interpretation of landscape was shared. (2010, 16)

Deste modo, e embora as paisagens microscópicas de F. Percy Smith fossem a expressão de uma dedicação pouco comum no desvelar dos mistérios mais profundos da natureza, elas também são a expressão de uma sensação de espanto ligadas às primeiras experiências cinematográficas como confirmam, aliás, os conhecidos relatos das projecções iniciais dos Lumière, por exemplo. Neste contexto, e podendo os filmes de Smith ser categorizados como “documentários científicos”, no seu registo do comportamento dos seres microscópicos Smith desenvolveu uma estética particular que se centrava na importância do olhar que deixava o espectador hipnotizado.

Veja-se, por exemplo, o caso de The Birth of a Flower (1910) – um dos primeiros filmes a fazer uso da técnica de time lapse – e, potencialmente, uma das obras responsáveis por catapultar a carreira de Smith a nível público. Este foi um sucesso uma vez que capturava aquilo que Gaycken descreve como “um testemunho da fantástica capacidade de simular o real” (2015, 74), em especial por apelar a um sentimento de espanto próprio das primeiras projecções cinematográficas, tendo sido aplaudido pelo público que solicitava novas projecções, como descrito no site da BFI dedicado ao realizador:

The film obtained a remarkable amount of press coverage with newspaper reporters as well as the film trade being entranced by this beautiful display of nature in action. In Smith’s own personal scrapbook an unidentified newspaper journalist states that the film: “may be regarded as the highest achievement yet obtained in the combined efforts of science, art and enterprise. (Hammerton, s/d).

The Birth of a Flower é ainda descrito no mesmo site por Jennifer Hammerton do seguinte modo:

We see the following plants bloom before our very eyes: hyacinths, crocuses, snowdrops, neapolitan onion flowers, narcissi, Japanese lilies, garden anemones and roses. Smith modified his cinematography set-up with candle wicks, pieces of meccano, door handles and gramophone needles to film these flowers in motion. He set up a system whereby growth could be filmed even while he slept, a large bell being set to ring and wake him if any part of the process malfunctioned. (s/d)

Filmes como este eram assim responsáveis por apresentar matérias e materiais pouco comuns ao público. Os espectadores acediam aos diferentes processos do mundo natural que, capturados pelo aparelho cinematográfico, se transfigurava em algo mais.

O filmar de animais, plantas, flores ou microorganismos por via das novas possibilidades cinematográficas transformavam as paisagens em algo potencialmente maravilhoso e aterrador em simultâneo, pois os objectos ou seres minúsculos surgiam ampliados podendo-se tornar monstruosos e assustadores.

Paralelamente, e tendo em conta que este é também um filme sobre a passagem do tempo – o registo do crescimento da flor – ele pode ser encarado como um dispositivo de memória da ténue condição humana. Assim, os frágeis comuns microorganismos suscitam uma familiar estranheza (uncanny) que sublinha essas estranhas dimensões e camadas de leitura que as imagens contém. Um exemplo maior desta estranheza será o filme The Plants of the Pantry (ver nota 6), filmado em 1927, em que Smith captura o bolor a crescer num alimento típico de uma casa como o queijo. Neste filme, não só Smith regista na paisagem doméstica o crescimento do bolor, mas também cria um instante em que, guiado por esse mesmo movimento, se deixa levar pelo germinar do bolor que segue diferentes direcções originando assim um hipnótico trabalho visual que vai para além do desenvolvimento do mundo natural.

Consequentemente, com a combinação de uma nova tecnologia como o cinema, em conjunto com o documentar das paisagens do mundo natural, F. Percy Smith (e outros como ele) acabaram por criar imagens que são simultaneamente reproduções “directas” da vida e construções do hipnótico e exótico universo do primeiro cinema. Tendo em conta esta duplicidade, Tim Boon, do Museu da Ciência em Londres, citado por Linda Rodriguez McRobbie (2017), caracteriza os filmes de Smith como avant-garde, no sentido em que estes exploram uma realidade abstracta muito ao estilo de outros realizadores do mesmo período, como será o caso mais conhecido de Walter Ruttman.

Por conseguinte, e como notado anteriormente em relação aos filmes de Painlevé, algumas destas obras eludem qualquer tipo de categorização: entre experimental e o documental, entre a ciência e ficção (ou até mesmo ficção científica), entre o amador e o profissional, entre o cinema para as elites e para as massas, estes são expressões da observação das paisagens nascidas do “amor” ao mundo natural e do fascínio com a imagem e movimento, que permitiu criar espanto.

Arquivo e Paisagem: Stuart A. Staples

É igualmente sobre esta ideia de espanto que me debruço e que está presente no objecto principal deste estudo, aqui brevemente analisado: o filme Minute Bodies: The Intimate World Of F. Percy Smith (2016). Realizado quase um século depois dos filmes de F. Percy Smith pela mão de Stuart A. Staples – conhecido vocalista da banda Tindersticks – o filme resulta de uma experiência visual em que Staples decide explorar os mundos íntimos do realizador inglês, reinventando-os com a intenção de criar aquilo que Michael Barrett define como um “cinema de revelação” (2019), característica que o autor atribui também ao cinema de Smith:

One beautiful and possibly disturbing aspect of Smith’s subjects is their divine unconcern with human behavior or existence. They share the planet unnoticed, going about their business under our self-absorbed noses until a film calls it to our arrested attention. Microscopic life and its meticulous processes remind us that we’re not at the center of the universe, only at the center of ourselves. Thus, the films become not only revelatory and surreal (in the sense of “super-real”) but possibly transcendent. (Barrett, 2019)

O projecto de 53 minutos, que tem por base 23 pequenos filmes de F. Percy Smith, é descrito no press release do filme como uma criação que tinha como principal objectivo: […] invite Smith’s work to breath and exist in the present. Smith was a major, unique figure. His works transcends the constraints of its time, and now it teaches us about patience, commitment, ingenuity and determination (2016).

A junção de vários cortes de filmes de Smith, combinados com a banda sonora de Thomas Belhom, Christine Ott e do próprio Staples, pretendia funcionar também como um regresso a essa paisagem e espanto de quem experienciava o cinema pela primeira vez. Mas Minutes Bodies faz mais do que isso. Ao recuperar as imagens de Smith, Staples dá-lhes uma nova vida capturando e recapturando “os terrenos escondidos da natureza” (Barrett, 2019), ao mesmo tempo que percorre o “surrealismo dos factos científicos” (idem).

Este jogo permite a Staples aprofundar uma visão das muitas camadas da paisagem natural, enfatizando assim “a incrível variedade das possíveis interrelacções que compõem o mundo” (Harper and Rayner, 2010, 17). Deste modo, as paisagens naturais de Smith são aqui reconstruídas e mediadas pelos olhos de Staples em que é criada uma estética particular como nota Barrett:

Here are plants growing, here’s a bee pollinating a flower, here are single-celled organisms, here are floating tadpoles, here’s blood rushing through veins, here’s mold expanding like crystal, here’s an ancient Lovecraftian monster from outer space absorbing all in a liquid nightmare. Okay, we don’t always recognize what we see, and the utter strangeness, ickiness, and weirdly erotic writhing and throbbing is part of the sense of alien whimsy and wonder sometimes captured. Indeed, some of these images are beyond the imagination of the most twisted CGI artist. (2019)

As plantas em crescimento, as abelhas em processo de polinização, os organismos compostos por uma única célula continuam a fascinar-nos porque são materiais que representam a vida e o ciclo da vida. Centrando a sua atenção na relevância destes materiais, Staples também considera a importância que o tempo tem na sua moldagem, pelo que Minute Bodies é um filme sobre o tempo da evolução natural da paisagem, sobre o tempo de observação dessa mesma paisagem, o tempo necessário para melhor perceber os seus mistérios, o tempo dedicado ao arquivo, isto é, à escolha e selecção dos clipes que iriam ser incluídos no filme de 2016, o tempo do filme e o tempo para o encontro com as pequenas maravilhas da vida.

Como tal, a organização e montagem dos filmes de Smith por parte de Staples traduz-se num trabalho artístico que captura o mundo onírico e curioso do naturalista do séc. XIX. Por um lado, Minute Bodies recria o seu material de origem, sublinhando assim o poder criativo e abstracto da paisagem. A parte “científica” do filme – os diversos microorganismos que nos são familiares mas tão distantes ao mesmo tempo – recupera um tempo sem tempo, porque as imagens dos minúsculos seres pertencentes ao crescimento do mundo natural (o bolor a expandir ou a flor a desabrochar) são intemporais e cíclicos, mostrando, por isso, um continuum que nunca deixa de funcionar como metáfora para a própria vida.

Adicionalmente, a compilação de clipes feita por Staples permitiu-lhe aprofundar o poder das imagens que resultam da observação que Smith fez das paisagens naturais. Em primeiro lugar, há uma óbvia estética criada por via do movimento, ligações entre corpos e paisagens, mas também através da banda sonora – fantasmagórica e celestial – que sublinha a força da vida, do tempo, e a relação entre uma certa ideia de dissonância e consonância, isto é, a forma como tudo parece conexo e distante ao mesmo tempo.

Em segundo lugar, tanto a montagem visual como a sonora estabelecem um jogo que dá conta dos “mistérios do invisível” (urbanora, 2010) transformando Minute Bodies no que Barrett descreve como “um pesadelo líquido” no qual “nem sempre reconhecemos o que vemos, e a estranheza absoluta, nojo e estranhamente erótica contorção e latejar faz parte do sentido de capricho alienígena e de espanto por vezes capturado” (2019).

Em terceiro lugar, o trabalho levado a cabo por Staples é intimamente experimental na sua natureza pela forma como tenta criar uma experiência meditativa e imersiva da observação da estranha e hipnótica, mas também familiar, paisagem. Este efeito é conseguido pela forma como a “imagética monocromática” está organizada, levando-nos a um lugar onde a paisagem natural se desdobra em algo surreal e onírico, como Hutchison descreve:

[…] buds and stems and cells and eggs of the natural world [are] suspended in silence against the blackness of the film frame. Sprouting seeds bud delicately furred roots in the darkness of the soil; a flower with quivering petals opens to reveal its veined heart; the globular tips of slime fungus glisten in the gloom, with pin-point reflections on their sleek surfaces creating alien eyes; […] cells divide and multiply, pulsing in unison like an infinite chorus line. (2017)

A paisagem torna-se, assim, etérea, apontando para o mundo dos sonhos no seu movimento eterno. Finalmente, Minute Bodies é paralelamente um exercício da obsessão com o “cinema puro”. Staples7 ficou fascinado com as imagens de Smith, especialmente pela forma como conseguiu registar a “vivacidade da natureza [...] em toda a sua glória” (Varod, 2016), deixando-a manifestar-se de forma livre e, ao fazê-lo, estava igualmente a olhar para o movimento das coisas vivas enquanto “a mais pura forma de expressão de uma estética cinematográfica” (Hovanec, 2019).

Corpos Íntimos: uma breve conclusão

De acordo com Caroline Hovance, num breve ensaio sobre a história natural e o cinema, “Bazin argumentava que os filmes científicos representavam a mais ‘pura estética’ cinematográfica” (2020). O filme de Staples apresenta-se como uma obra que revela como o cinema consegue capturar a “intangibilidade da vida” indo além da nossa “experiência do quotidiano”, contribuindo por isso para uma melhor compreensão daquilo que “nos escapa” (Rosário e Álvarez, 2019, 1).

Consequentemente, Minute Bodies possui o dom de nos transportar para várias dimensões e, nelas, a paisagem natural toma muitas formas, estando sempre presente e ausente, lúcida e elusiva, pedindo ao espectador que aceite entrar nesse mundo e, estando imerso nele, descobrir os muitos mistérios, maravilhas e camadas dos corpos (íntimos) a que temos acesso, puros e impuros.

Notas Finais

1No caso particular do estudo feito por este autor, 1903-1918.

2De notar que, como demonstra o autor, os filmes de ciência popular são os percursores dos filmes educacionais, razão pela qual os menciono no texto.

3Para o trabalho desenvolvido aqui toma-se como definição de paisagem aquela fornecida por Graeme Harper e Jonathan Rayner em Cinema and Landscape: Film, Nation and Cultural Geography: Film, Nation and Cultural Geography: “A definition of landscape, therefore, needs to acknowledge different kinds of environments, from the rural to the urban, from the macro-environment of expansive ecology to the micro-environment of human habitation. Depictions of landscapes can incorporate the manifestations of modernity or be entirely composed of occurrences of nature. While it is possible to narrow landscape definitions on the basis of human intervention, absence or presence of natural features or, indeed, the impact of conspicuous characteristics, the key point about landscapes is that they are composed of many elements and that these elements interact to create our overall conception and reception” (2010, 16).

4A autora chega mesmo a dar um exemplo curioso de como os filmes de Painlevé foram apresentados por Henri Langlois, director da Cinemateca Francesa, que em 1954 convidou o realizador a apresentar os seus filmes num festival de cinema em Basileia. De acordo com Berg (2000, 3), Langlois escreveu a Painlevé explicando que, nas notas que enviou para o festival, optou por deixar cair a palavra “ciência” para caracterizar os filmes do realizador, escolhendo ao invés avant-garde, o que lhes permitia mostrar filmes de ciência popular sem que estes estivessem, à partida, classificados enquanto tal.

5Charles Urban (1867-1942) foi um dos principais pioneiros do início do cinema inglês, tendo sido responsável pela criação da Charles Urban Trading Company, companhia que se concentrava em produzir documentários sobre viagem, mas também obras educacionais e “trick films” – filmes curtos que exploravam a novidade dos efeitos especiais criados pela imagem em movimento.

6No artigo publicado no site Atlas Obscura, Linda Rodriguez McRobbie (2017) conta a história de uma experiência que Smith fez com bolor em que, deixando-se levar pela sua fixação com o mundo natural, a casa em que vivia foi sendo lentamente consumida pelo fungo.

7Numa entrevista publicada online no site do jornal The Guardian, Patrick Barkham comenta que: “Staples became obsessed after chancing upon a BBC4 documentary about an acrobatic fly with which Smith first stunned cinemagoers in 1908. ‘I just started this little journey and ended up in the basement of the BFI with reels of film nobody has seen for years,’ Staples says. The images inspired him to make music. ‘They’re so musical. If someone wants to make a biopic of Smith, I think it would be really interesting. But this film is something else – it’s to do with his work and his fascination” (2016).

Bibliografia

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Filmografia

The Balancing Blue Bottle (1909). De F. Percy Smith. Inglaterra. Filme.

To Demonstrate How Spiders Fly (1909). De F. Percy Smith. Inglaterra. Filme.

The Birth of a Flower (1910). De F. Percy Smith. Inglaterra. Filme.

The Plants of the Pantry (1927). De F. Percy Smith. Inglaterra. Filme.

Minute Bodies: The Intimate World Of F. Percy Smith (2016). De Stuart A. Staples. Inglaterra. Filme.