Abstract
The film “The Book Thief” (2013) – product of an adaptation of the same title Australian book under the direction of Brian Percival – is taken here as an object of study and analysis as an activity linked to the Study Group on Violence, Childhood, Diversity and Art (NEVIDA/UFG) and to the interinstitutional Art, psychoanalysis and education research: aesthetic procedures in cinema and the vicissitudes of childhood (GEPIAP). Therefore, this work aims to discuss the cinematographic work from the narratological elements: narrator and protagonist, as well as analyzing their developments, with emphasis on the encounter of the protagonist child with the Nazi regime and the omnipresence of the figure of the dictator Adolf Hitler, a meeting that precedes the others the narrative displays. The content of the film text invites us to reflect on the relationship between cinema and literature, the understanding of reading and writing as refuges from barbarism, the school at the service of Nazism, among other threads launched by the plot supported by aesthetic devices that will also be addressed in the film analysis anchored in the guidelines of Galiot and Leté (1994) and in the phenomenological perspective. It is also added as a theoretical framework Benjamin (1984; 1994), Truffatut (2005), Tarkovski (1998), Bowdell (2008) and Marcello (2008).
Keywords: Childhood, Cinema, Literature, Narratological Elements and Education.
Introdução
A obra fílmica A menina que roubava livros (2013), de Brian Percival, nos permite acompanhar os anos finais da fase da infância vivida pela protagonista Liesel, na Alemanha, no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Apreciar a obra, encontrar com a composição do seu texto cinematográfico, analisar seus movimentos estéticos e evidenciar seus efeitos no processo da leitura fílmica são algumas ações que buscam convocar o espectador. Diante a provocação da obra, nossa análise fílmica, segundo a perspectiva de Galiot e Leté (1994) avançará com a proposta de “retorno ao filme, à materialidade de seu discurso e de seus parâmetros representativos” (1994, p.59).
Como o filme em questão é digno de recomendação e possui muitas facetas de análise, foram eleitos alguns fatores narratológicos despertados pela obra, como: o narrador; a criança como centro da narrativa; o encontro da protagonista com o fenômeno anômalo: nazismo; os laços afetivos como resistência à desumanização; a relação cinema e literatura; e a arte literária e o exercício da leitura e da escrita como refúgios na barbárie.
O espaço fílmico transcorre na cidade alemã de Sttutgart, com um recorte temporal entre os anos de 1938 e 1945, até o momento final que salta aos 90 anos da protagonista para comunicar sua morte. O filme se inicia com imagens do céu, acima das nuvens e, pouco a pouco, nos deparamos com um grande volume de fumaça de um trem. Simultâneo a exibição das primeiras imagens, a narradora da história se coloca: é a morte.
A narradora
O encontro com a narradora – a morte – se faz presente introduzindo toda a gama de experiências que Liesel, a criança protagonista, vivenciará dali em diante. Na primeira cena em que o trem adentra a tela o recurso do plano plongée é muito bem executado, fazendo com que a câmera que filma do alto, demonstre o quão grande é a personificação da morte, a dona da elocução. É interessante perceber que a morte no contexto do enredo assume uma aliança marcante com a onipresença da corrente política – nazismo – e seu Führer. Ela não ganha um rosto ou figuração, porém sua presença torna-se muito marcante quando se manifesta e atravessa o enredo por meio de um dispositivo estético muito utilizado no cinema que é o narrador em voz over. Em algumas cenas esse recurso é operado, ao permitir que a narradora se dirija diretamente ao espectador:
É apenas um fato.
Você vai morrer.
Apesar de todos os esforços, ninguém vive para sempre. Desculpe ser desmancha prazeres. Meu conselho é: quando chegar a hora, não entre em pânico. Simplesmente não ajuda.
Talvez seja melhor eu me apresentar devidamente.
Se bem que por outro lado algum dia irá me conhecer.
Não antes de sua hora é claro. Tenho como política evitar os vivos. Exceto em algumas poucas vezes. Em raríssimas situações.
Eu não consigo evitar.
Eu fico interessado.
Não sei o que Liesel Meminger, tinha de especial.
Mas ela me atraiu.
(A MENINA..., 2013)
Esse artifício cinematográfico torna-se um instrumento narrativo que conduz o espectador a verificar quem está narrando a história e direciona sua atenção para o fascínio que Liesel exerce sobre a morte, dessa forma, essa criança representa a própria vida na morte. É como se a protagonista exercesse um magnetismo sobre a narradora. Esse arrebatamento revela, inclusive, outros importantes encontros entre a morte e a criança protagonista no curso do filme. Em plena cena de bombardeio, por exemplo, a morte diz: “A empolgação é a pressa para a guerra. Ao longo dos anos conheci muitos jovens que pensavam estar correndo ao encontro do inimigo, quando na verdade estavam correndo ao meu encontro” (A MENINA…, 2013). Poeticamente, em outros momentos a morte justifica sua razão de ser descrevendo e analisando seu ofício, como uma beleza gótica, suavizando o horror da guerra. Essa presença intangível marca um estilo narrativo que permeia momentos bem relevantes da obra.
Ao falarmos do narrador, nos reportamos a Walter Benjamin (1994), quando afirma que o narrador é aquele que, por meio da arte de narrar, desperta assombro, questionamento e reflexão, além disso, convida à simbolização e à observação, pois se localiza “numa distância apropriada e num ângulo favorável” (1994, p. 197). A morte - narradora do filme - alienada na solidão e imortalidade, no incessante trabalho de pôr fim às vidas, encontra na criança protagonista algo que revigora sua narrativa de excesso de trabalho em um contexto de guerra. Benjamim nos diz que “a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (1994, p. 204). A poderosa e etérea narradora é herdeira da trajetória da humanidade.
Em outro trecho, Benjamin acrescenta: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural” (1994, p. 208), contudo, a narradora morte, pertence ao contexto do holocausto, portanto, sua presença não é componente do fluxo natural da vida. Seu labor em excesso é resultante da ação do homem sobre o homem, do extermínio da dignidade, da meticulosa e cruel ruína dos sonhos, que é esteticamente produzida.
E é com Liesel que a morte faz a tentativa de “trocar” experiências. Liesel é acompanhada e poupada pela morte, a criança mostra-se resiliente, destemida e desafiadora. Ela também ocupa essa posição de narradora em um momento de virada, de transformação. Há, inclusive, uma cena majestosa que evidencia a transformação de Liesel, quando sua família e seus vizinhos ouvem a sirene - anunciando mais um bombardeio - e todos se dirigem para um abrigo, lá dentro a protagonista começa a narrar uma história de sua autoria, que de modo figurado abarcava sua relação com o amigo Max, pois agora, repertoriada de experiências de vida e de leitura ela assume um outro papel.
A narrativa da criança protagonista desloca aquela comunidade para outro lugar. As contações de histórias nos abrigos enquanto o bombardeio insiste em gritar mais alto não consegue calar sua voz, como se ali ela pudesse dizer, aqui nesse lugar eu posso mais, eu escolho resistir, eu escolho viver. É como se num estalar de dedos a lagarta se transformasse em borboleta, a criança protagonista assume algumas rédeas de sua própria vida, e a arte literária é o majestoso pano de fundo de toda sua transformação. Para Benjamin, “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais (1994, p. 214)”. Em outro momento ele ainda diz que “podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal” (1994, p. 220), tal qual Liesel atua em um outro momento da narrativa.
A criança protagonista
É pela morte que somos apresentados à protagonista, que é uma criança. Para qualquer narrativa, trazer uma criança como protagonista é um trunfo, pois nos diz de uma dinâmica ao mesmo tempo tão familiar, mas também estranha; trata do olhar mais encantado diante do mundo pautado pelo ineditismo, um tanto já perdido para o adulto; trata da humanidade mais genuína, das dores e de sabores, da frágil fronteira entre o prazer e o desprazer. Para Nobert Elias, as crianças são amostras desse movimento integral de entrelaçamento entre razão e emoção, “elas agem como sentem. Falam como pensam” (1994, p.98). São os padrões sociais que regulam os impulsos, “uma trama delicadamente tecida de controles, que abarca de modo bastante uniforme, não apenas algumas, mas todas as áreas da existência humana” (1994, p. 98).
Buscar capturar a ótica das crianças é uma ação que tende a nos enlaçar e sensibilizar. Esse fato no cinema já foi discutido por David Bowdell (2008) ao mencionar o cineasta francês Louis Feuillade que orienta: “se você quer que seu filme faça sucesso, contrate uma criança ou um cachorro” (2008, p. 73). Compartilhando uma ideia semelhante, François Truffaut (2005) diz que as crianças “já trazem consigo automaticamente a poesia” (2005, p. 35), sem necessidade de introdução de elementos poéticos. No filme A menina que roubava livros, as atrocidades e a desumanização do regime nazista são abordados às vezes de forma explícita, mas também em contornos e minúcias; nos fatos óbvios e também nos obscuros para a criança. A composição das imagens sob o acompanhamento e revelação da perspectiva da criança amortece o fluxo da dramaticidade do que é viver sob o nazismo.
É um trunfo maior ainda quando há a intensidade da personagem, como é o caso de Liesel, destituída da ideia romântica e de inocência de criança. Liesel tem uma textura emocional que chama a atenção, ela traz as marcas do desamparo, do abandono, do medo, ao mesmo tempo é atravessada pela coragem, pelo enfrentamento, pela subversão e pela ousadia na edificação do seu destino. Seu silêncio, o olhar, os gestos falam de suas dores e de sua ousadia. Truffaut ainda destaca que a idade que a criança protagonista apresenta - no trânsito da infância para os primórdios da adolescência - é muito fértil para a trama cinematográfica, pois, segundo ele, é nessa faixa etária que está “a descoberta da injustiça, o desejo de independência, o desmame afetivo, as primeiras curiosidades sexuais, a idade dos primeiros conflitos entre a moral absoluta e a moral relativa dos adultos, entre a pureza do coração e a impureza da vida” (2005, p. 37).
Truffaut ainda acrescenta que ao fazer um filme com crianças, se deveria optar pela colaboração das próprias crianças, pois elas possuem um senso de verdade infalível quando se trata das coisas naturais. Para ele, tudo que a criança faz na tela parece estar fazendo pela primeira vez e é justamente essa perspicácia que torna uma produção fílmica preciosa ao registrar fisionomias em transformação e não obrigar o jovem ator a se tornar artificialmente um personagem.
É sempre intrigante ao entrarmos em contato com obras fílmicas que escolhem por construir seu enredo aos olhos de uma criança, refletirmos sobre qual representação da criança que o cinema consegue ou quer evocar. A concepção de infância, assim como o cinema, possui uma trajetória histórica própria. A criança por ter sua própria história, é um sujeito de experimentação, de intencionalidade e também de produção de saberes e valores. A vinculação da criança enquanto ser social com os outros com quem convive é algo que lhe é inerente desde seu nascimento. Nesse sentido, a infância não representa apenas um tempo do desenvolvimento psicológico e motor próprios, é também um período em que a socialização se manifesta continuamente, assim como em outras fases da vida de um ser humano. Por isso se faz necessário que a infância constituída de tempo e espaço seja vivida intensamente pela criança em todos os seus múltiplos sentidos, no seu tempo presente.
E neste contexto, as artes de forma geral e, em particular o cinema, podem contribuir consideravelmente ao encontrar outras maneiras para se falar da infância, assim como o fez o diretor na obra fílmica A menina que roubava livros. E essas outras maneiras necessitam de antemão considerar a criança como um indivíduo social que fala, age e vê o mundo com seus próprios olhos, pois, assim como ressalta Benjamin (1984), a criança se insere numa classe social como parte da cultura e também como produtora de cultura. O processo de produção de representação da infância no cinema é muito complexo, por isso se faz importante encarar as crianças como portadoras de passado e futuro e também de esperança e nostalgia, enquanto sujeitos existentes em si mesmos.
A experiência de ver o mundo com os olhos das crianças talvez seja uma das maiores habilidades do cinema. Em cada cena, em cada movimento, a criança está constantemente aprendendo o que significa ser humano. O importante de todo modo é compreender que a representação da infância no cinema requer um olhar que vá além, que consiga representar a infância de inúmeras maneiras, pois toda história humana é permeada por sua origem na infância e toda criança é criadora de cultura, produtora de história e inserida em multiplicidades que a transmuta em uma potência única.
O encontro-acontecimento e o fenômeno anômalo
Vários procedimentos estéticos do cinema são responsáveis por conferir uma poética fílmica. Não só os aspectos técnicos (iluminação, efeitos, cores, sons, movimentos, entre outros) que compõem o poder criador da câmera, mas também o silêncio, o ritmo, o ponto de vista subjetivo e a elocução. O cinema que diz da infância ou que escolhe por desenvolver seu enredo a partir do olhar de uma criança, sempre exibe, além dos aspectos técnicos mencionados, o encontro da criança com pessoas e/ou situações que passam a atuar diretamente no seu desenvolvimento físico e emocional. Compreendemos em consonância aos estudos da autora Fabiana Marcello (2008), que são esses encontros que afetam a criança e por conseguinte são afetados por ela. A autora afirma que existem alguns encontros numa obra fílmica que são capazes de desestabilizar a criança protagonista a fim de mobilizá-la por partirem de um acontecimento, ou seja, de algo que realmente é marcante para a criança.
Esses encontros-acontecimentos, como nos ressalta Marcello (2008), evidencia a criança imersa em multiplicidades, pois o processo de composição - de encontro - que a criança está inserida faz com que sua potência tenha uma visibilidade. A partir desses encontros, que de todo modo partem de um acontecimento, a criança tem a possibilidade de agir e de transformar-se, assim como manifestar sua singularidade, sua individualidade. Na obra A menina que roubava livros há alguns encontros específicos que nos convocam mais que outros, por importar a figura do anômalo - enquanto função - capaz de desestabilizar e consequentemente mobilizar a criança protagonista.
Se tentarmos definir o termo anômalo, partindo do dicionário, vamos encontrar o seguinte significado: fora da ordem, da norma estabelecida; diferente do normal; anormal, estranho, irregular. Porém não é essa a definição da figura do anômalo que nos solicita em nossa análise, pois o anômalo é aquele que longe de ser anormal, nos convoca a um fenômeno excepcional que tanto pode ser o outro como a própria criança protagonista. Pensar a posição do anômalo, segundo Marcello (2008) é primeiramente entender acerca de uma função a partir das alianças que são estabelecidas no encontro e não entender o anômalo como um indivíduo. Assim, a função anômala diz respeito a uma questão de experiência, um fenômeno que pode desestabilizar o outro. Pode ser uma criança que desestabiliza o adulto, outra criança ou o mundo; um animal que abala a criança; ou um fenômeno, por exemplo, uma guerra que afeta o mundo infantil.
Logo, o encontro-acontecimento que importa a figura do anômalo numa obra fílmica, a nosso ver, é um dos principais procedimentos estéticos capaz de conferir uma poética, mais especificamente no caso da obra em questão, uma poética da infância no cinema. E na obra de Brian Percival, o encontro entre Lisel e o regime político daquele momento - o nazismo e a onipresença da figura do Führer Hitler - é o encontro, que importa a figura do anômalo, ou seja, o fenômeno que desestabiliza e consequentemente mobiliza a criança protagonista a agir e a se desenvolver.
É possível perceber que todas as relações que Liesel vivencia partem desse primeiro encontro entre ela e o fenômeno anômalo. São relações, que inclusive, se colocam como os principais elos de resistência para a sobrevivência da menina, que dizem de encontros outros que delineiam percepções únicas. Com Rosa e seu manto de tempestade (como Liesel a define) a criança percebe o caos que o real os condiciona, a firmeza, a discrição e a força para o cuidado com a família. Com Hans, Liesel é convidada a transpor o itinerário da arte, a arte das palavras quase literárias, da música de um acordeom e a arte do ler e escrever por via da emancipação do ensinar.
Rosa e Hans transcendem o lugar de mãe e pai de Liesel. Especialmente com Hans, Liesel descobre as palavras e é encorajada a aprender com ele os caminhos adversos da leitura. A relação entre Liesel e Hans emancipa o desenvolvimento sócio-emocional, assim como o desenvolvimento cognitivo, haja vista, ser a escola naquele período um lugar onde o aprender para a emancipação era algo totalmente inconcebível. É importante esclarecer que a escola - no período narrativo da obra fílmica - se apresenta assim como toda a sociedade, a serviço do nazismo, que com sua essência fascista integrava nessas instituições o militarismo e a garantia da ordem social.
O nazismo, aqui situado como o fenômeno anômalo, é o pano de fundo do enredo como um todo. A onipresença do Führer Hitler é percebida em várias cenas. Para alcançar essa onipresença, alguns recursos como a câmera plongé foram utilizados em momentos específicos, que a nosso ver, deixam explícito o poder dominador do Führer, equiparando-se a uma divindade. Como exemplo, podemos citar algumas cenas que exibem a escola filmada de cima evidenciando as bandeiras com a suástica em primeiro plano, o que permite a sensação de inferioridade da instituição perante o governo nazista. Vale ressaltar que o símbolo da suástica está presente em muitos outros momentos do enredo causando a sensação da onipresença antes descrita.
Figura 1 – A instituição escolar filmada de cima.
Mas ainda que a onipresença do Führer seja quase palpável em toda a narrativa, causando inclusive o estímulo à irracionalidade da maioria da sociedade, a resistência de alguns personagens no contexto da narrativa fílmica, também o é na mesma intensidade. E um dos maiores atos de resistência apostados por Brian Percival (2013) é a coragem pertencente a Liesel quando já de início se torna uma ladra de livros.
Outra relação importante que se origina por intermédio do encontro-acontecimento, entre Liesel e o regime nazista, é a relação de amizade entre Liesel e Max. Max é um personagem judeu que precisa se esconder na casa de Hans e Rosa. O casal lhe dá guarida, pois Hans no passado lutou na guerra ao lado do pai de Max, que deu sua vida para salvar Hans. Por esse motivo, Hans fez uma promessa à família de Max que se um dia eles precisassem de ajuda, poderiam contar com ele. A nova relação de amizade que surge entre Liesel e Max, mobiliza a criança protagonista em prol da imaginação. A partir do primeiro encontro entre eles, a resistência toma uma nova força, pois se antes Liesel reivindicava o direito de decifrar o mundo, agora ela necessitava recriá-lo com suas próprias palavras.
É interessante ressaltar que muitas vezes o porão escuro - lugar onde Max precisou se acomodar - foi iluminado propositalmente pelas câmeras em várias cenas, como os momentos em que Liesel usa seu dicionário particular na parede do porão (que lhe foi dado por Hans); a brincadeira com a neve no Natal; e ainda a iluminação do livro que Max presenteia Liesel - um livro que antes tinha em suas páginas a biografia de Hitler, e são pintadas de branco para que a menina possa reescrever a história; todas essas cenas evidenciam o claro, o límpido em meio a escuridão. A resistência que toma forma a partir da relação humana, da amizade e do amor acima de qualquer onipresença antes anunciada.
Figura 2 – Dicionário de Liesel grafado nas paredes do porão.
Figura 3 – Boneco de neve feito no porão na noite de Natal.
Na metade da trajetória fílmica outro viés do fenômeno anômalo agora encarnado a partir dos bombardeios da guerra, vai desestabilizando Liesel quase que numa metamorfose, ou seja, numa mudança total de forma. A menina que já havia perdido o irmão, a mãe biológica, o grande amigo Max que teve que ir embora, se vê sozinha tendo que cuidar de sua “mama” Rosa, pois Hans é recrutado para servir na guerra - mais uma despedida difícil para a menina. E assim, obstáculo após obstáculo ela transpõe apoiada na arte literária que será comentada adiante.
Outra relação de amizade que compõe o enredo e que permeia a poética da infância é a amizade entre Liesel e Rudy. A amizade entre eles também se coloca como uma exigência de direitos, o direito de ser criança, ainda que as condições não fossem favoráveis. Desta maneira a obra fílmica conseguiu ir além de mais uma obra que conta a história do Holocausto, pois conseguiu priorizar a história de uma menina que vai se desenvolvendo e mais ainda uma história que lida com experiências singulares e por isso mesmo humanas.
A relação cinema e literatura
A escolha da criança protagonista é oriunda da obra literária que inspirou o filme. Este trata-se de uma adaptação literária, que embora compartilhem o mesmo nome e enredo, bem sabemos que as duas obras artísticas são distintas porque a natureza de cada uma se compõe com linguagens específicas. No filme alguns personagens secundários que fazem parte da obra literária não comparecem e pequenas ocorrências não são correspondentes, pois como indica o título, no livro Liesel roubava livros, já no filme os furtos são abrandados. É como se Liesel realizasse empréstimos, ela os devolve ou se apropria de livros perdidos ou abandonados, dado diferente no livro. Inclusive no filme há um momento que ela diz que não rouba livros, ela os pega emprestado. Além disso, o recorte temporal tem uma pequena diferença. Essas alterações são próprias da produção cinematográfica quando claramente inspiradas na literatura, especialmente quando falamos de um livro volumoso de mais de 400 páginas.
O cineasta russo Andreaei Tarkovski em seu livro “Esculpir o Tempo” nos diz que “O cinema e a literatura, exercem uma enorme e benéfica influência mútua” (1988, p. 20), mas que “nem toda prosa pode ser transferida para a tela” (1988, p. 11). As obras literárias mais favoráveis para se presentificarem na linguagem cinematográfica são aquelas que distinguem-se pelas suas ideias, pela clareza e solidez da sua estrutura e pela originalidade do tema (1988, p. 12). A intensidade estética que o cinema pode conferir à narrativa é notória no caso de “A menina que roubava livros” (2013). Tanto é que a capa do livro foi recriada nas cenas iniciais em uma atmosfera mortífera e gélida no sepultamento do irmão de Liesel.
Além do roteiro, da atuação dos atores, essa peça fílmica é muito bem alinhavada no potencial estético do cinema. E aqui destacamos alguns dispositivos estéticos que compõem as articulações poéticas do filme e que comparecem na composição das dimensões espaço-temporal da obra fílmica. Para Bazin (1991), “tanto pelo conteúdo plástico da imagem quanto pelos recursos da montagem, o cinema dispõe de todo um arsenal de procedimentos para impor aos espectadores sua interpretação do acontecimento representado” (p. 68). E desse largo conjunto aqui vão alguns destaques.
Ao emoldurar diferentes planos, os diferentes enquadramentos, traz a textura das paisagens e os elementos cenográficos sob diversos ângulos (câmera de cima para baixo – plongée), ao posicionar os atores em determinadas posições e o andamento dramático, que cria um simbolismo ainda mais acentuado na atmosfera fílmica. É dessa união imagética e sonora que formam a obra cinematográfica.
O cinema, como sabemos, se realiza alicerçado em vários procedimentos técnicos/estéticos que o levam a lograr a sétima arte. São procedimentos que lhe permitem assemelhar-se com alguns elementos de outras artes, mas que em contrapartida o torna único. E é justamente esse tornar-se único que faz com que o cinema seja capaz de se comunicar universalmente, ainda que sua essência seja particular e/ou subjetiva. O cinema possibilita recriar atmosferas por meio de seus signos audiovisuais e deixar que o audiovisual fale mais que palavras. E um dos aspectos que no filme se destaca é o desenho de som, tão importante quanto à fotografia, traço que merece ser destacado por sua sua presença na transição das cenas. Muitas vezes o áudio do momento anterior permanece. Não há uma música clima, mas sim uma paisagem sonora que reverbera na construção narrativa, o que é compreendido como um signo cinematográfico importante. A música instrumental também é muito presente, como fundo inclusive de diálogos, o que tende a mobilizar ainda mais as emoções dos espectadores.
O uso das cores é outra manifestação poderosa da linguagem cinematográfica, pois potencializa essa atmosfera e a textura emocional dos personagens, consequentemente, a atividade do espectador no mergulho da história. A organização cromática, fruto de uma cuidadosa escolha produz efeito sensorial e emocional. A paleta de cores do filme predomina o uso das cores frias com variações de tonalidades e intensidades de branco, cinza e azul, assim como nuances de cores quentes como ocre e bege. Elas conduzem sensações físicas e psicológicas, assim como a variação da presença da luz, uso de sombras, diferentes formas e distâncias espaciais.
Literatura, leitura e escrita como refúgios na barbárie
O filme pode ser encarado como uma ode à literatura, à leitura, à escrita, como lugares de lidar com a morte, movimento de vida, espaço de conhecimento, de alívio à dor, de elaboração, de sobrevivência diante da barbárie imposta pela guerra e pelo nazismo. A relação texto literário e leitor, o exercício da escuta, o diálogo com o texto, pode deslocar o leitor para a ressignificação de sua existência. Aprendendo a ler o “manual do coveiro” com o pai adotivo - Hans - é que Liesel encontra motivos para seguir em frente, em uma nova família, na escola, com as crianças da vizinhança, com um amigo em especial Rudy, enfim, uma nova vida que começou a ser escrita, inclusive com um novo sobrenome.
Há uma cena importante que vale destacar, cena essa que percorre um ambiente árido e hostil, e leva Liesel a se deparar com uma espécie de procissão, em que as pessoas do seu bairro caminham na direção de uma praça com uma grande fogueira. Nessa passagem as pessoas lançam livros e alimentam ainda mais o fogo. Assustada diante do horror de páginas espalhadas pelo chão e incineradas, da percepção da violência simbólica ali impregnada, a menina também joga um livro na fogueira, porém na sequência da dispersão da multidão, rapidamente ela retorna para pegar um dos livros jogados. Embora sua movimentação não passasse sem o flagra da primeira-dama, o ato cometido nos apresenta um gesto redentor, como se ao salvar um livro, salvasse a si mesma.
De volta a sua casa, Liesel é descoberta por Hans que ao invés de chamar sua atenção, diz que aquele seria o segredo deles e que eles poderiam fazer a leitura da obra desconhecida no porão. Vale sublinhar que o porão se tornou o local de registro, tal qual um dicionário subjetivo ou uma coleção de palavras descobertas no universo da leitura, templo de refúgio e de distanciamento da realidade tão esmagadora. O percurso de incorporação da leitura e da escrita pela protagonista é potente e transformador. É uma metamorfose que ela vivencia! O porão, universo paralelo de aprendizagem, torna-se templo da amizade, lugar que abriga secretamente Max, como antes mencionado. O cômodo da humilde casa é também templo da crítica; do esclarecimento do contexto; da percepção de que sua mãe não irá voltar; e da revelação em saber que seu abandono ocorreu porque ela era comunista. Inclusive um dos momentos majestosos do filme, ocorre nesse universo paralelo, quando a criança protagonista pergunta ao pai: “o Führer levou ela embora? Então odeio o Führer!”
Outra ação que Liesel vive de forma destemida é a experiência de adentrar a biblioteca na luxuosa residência do prefeito. Ainda que secretamente ou com a autorização da primeira-dama, percorrer aquele espaço, escolher um livro, reconhecer as obras, se deliciar do perigo de ser descoberta ao pegar alguns livros e devorá-los levam Liesel a experienciar sua potência humana e sua vontade criadora. Todos seus sentidos e esforços estão voltados para esse universo libertador. Esse encontro com os livros desde o início parte da curiosidade de uma menina que não tem nada, não teve direito a nada, não teve direito inclusive de ler o mundo. Ao pegar o primeiro livro, é como se ela começasse a reivindicar tudo que lhe era de direito.
Em determinado momento da narrativa, seu amigo Max, a quem Liesel endereça um amor fraternal, adoece severamente. E o que adquire status de cura para o amigo são as leituras que a protagonista realiza todas as noites. Outro fator importante que inscreve Liesel no mundo da leitura é quando ela ganha o livro de Max, com o objetivo de reescrever a história a partir do seu olhar subjetivo. Esse fato faz com que Liesel passe a lidar com a escrita como uma catarse ao buscar amenizar as saudades da mãe e as indagações sobre o desamparo. Com a escrita ela elabora suas dúvidas, seus medos e conquistas. Nesse contexto, Aristóteles é mencionado como um convite à escrita: “a memória é o escriba da alma”.
Conclusão:
A menina que roubava livros (2013) é uma obra controversa, pois é uma produção que está bem situada no circuito comercial norte-americano que visa atender o fluxo midiático e, simultaneamente, é uma narrativa fílmica acuradamente construída que contém uma poética ao lidar com a temática do holocausto, prerrogativa que pode ser atribuída especialmente pela trama construída entre a criança protagonista e a narradora. Como uma ciranda, os livros convocam Liesel, que exerce deslumbre sobre a morte e ambas fascinam o espectador. A potência da protagonista está em como ela supera as barreiras via literatura, a partir da incorporação da leitura e da escrita, que dão condições para que ela participe ativamente da arte da narrativa. De posse do universo letrado em um contexto bárbaro, ela vivencia uma metamorfose e torna-se equivalente à morte a partir do papel que toma para si: narradora. Isso só é possível porque seu repertório de vida é tão abundante em asperezas, dores, perdas, desamparo, mas também na experimentação de manifestação de amor e de episódios de acolhida, que de todo modo ocorrem a partir do encontro-acontecimento, entre Liesel e o fenômeno anômalo.
A obra fílmica é extremamente convergente com a afirmativa de Benjamin (1994, p. 201) quando afirma que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”. A escrita de suas memórias é resgatada ao final do filme pela narradora: morte. Leitura e escrita cultivam a dúvida e a crítica, alimentam os dilemas e paradoxos da criança protagonista em meio ao regime autoritário composto pelas diversas violências presenciadas e sofridas. Seus “empréstimos de livros” satisfazem brevemente sua gana pelo saber, portanto, entrecruzam-se aí as dimensões de sua formação política, ética e estética.
Referências:
BAZIN, André. 1991. O cinema: ensaios. Brasília: Editora Brasiliense.
BENJAMIN, Walter. 1984. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus.
BENJAMIN, Walter. 1994. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas: magia, técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense.
BOWDELL, David. 2008. Figuras traçadas na luz: a encenação no cinema. Campinas, SP Papirus,
ELIAS, Norbert. 1994. “As estátuas pensantes”. In: A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar.
MARCELLO, Fabiana de Amorim. 2008. Cinema e educação: da criança que nos convoca à imagem que nos afronta. Revista Brasileira de Educação: Rio de Janeiro, v. 13, nº 38, p. 343-356, maio/ago.
TARKOVSKI, Andreaei. 1998.Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes.
TRUFFAUT, François. 2005.O prazer dos olhos: escritos sobre cinema: Jorge Zahar Editor.
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Filmografia:
A menina que roubava livros. 2013. De Brian Percival. Estados Unidos da América: Fox 2000 Pictures. DVD.