Capítulo I – Cinema – Arte

The aura of performance on the cinematic condition

A aura da performance na condição cinematográfica

Alexandra Tomás

Universidade de Aveiro - DeCA, Portugal

Paulo Bernardino Bastos

Universidade de Aveiro - DeCA, Portugal
ID+ Instituto de Investigação em Design Media e Cultura, Portugal

Abstract

Through a perspective based on the investigations of Walter Benjamin, the aura, besides being an extra-physical energy field that involves the living beings, is the authenticity of a being, making a huge role on the identity of an individual. Therefore, I consider relevant our approach about the investigation about the aura in the performance of the cinematographic actor, exploring the boundaries that tear apart his/her fictional identity that he/she is playing, from the identity of themselves.
We aim to bring to this discussion an approach about the construction of the identity from the cinematographic representative experience. Is there an untying of the performer’s identity or is the acting a strong component of the construction of himself? What are the boundaries that separate the actor himself from his character? Where and how do we see appear the identity of the actor?

Keywords: Aura, Performance, Identity, Actor, Boundaries.

Introdução

A identidade é uma condicionante do indivíduo que está em constante mutação. É moldável e depende necessariamente de acontecimentos exteriores e interiores para se solidificar. Esta construção assenta claramente em condições provenientes do inconsciente do sujeito, que por sua vez remetem para as suas raízes. A relação entre o eu e o outro é também fundamental nesta estrutura, na medida em que ambos se impactam mutuamente e condicionam as respetivas existências. O interior do indivíduo dissolve-se no exterior, e vice-versa, sendo que estes planos se complementam entre si.

No presente artigo, será trazido para a discussão a relação entre o indivíduo enquanto ator e a sua personagem, no sentido em que se pretende perceber até que ponto se dissolvem um no outro, e, se o mesmo se verificar, como e quais as condições daí resultantes? Para tal, são convocados para fundamentar este discurso o filósofo Walter Benjamin (2018) e os psicólogos Sigmund Freud (2020) e C.G. Jung (1995).

Através de Benjamin vemos, nesta abordagem, um paradigma de âmbito assente na autenticidade e não no universo religioso a que se associa facilmente o conceito de aura. Pretende-se trazer para a discussão a relação dessa autenticidade aliada à identidade do indivíduo e nesse sentido é feito um apelo à visão de Freud, de maneira a possibilitar a comparação entre a realidade e o consciente, e a ficção intrínseca a cada personagem ao inconsciente do ator. Para ter uma melhor fundamentação, quanto à questão realmente prática da performance, foram realizadas três entrevistas a três performers1 distintos sobre os assuntos presentes nesta investigação. As suas participações ampliaram mais especificamente a última questão, referente a como e onde se manifesta a identidade do ator aquando a representação. Também a visualização e a respetiva análise de entrevistas realizadas a ilustres atores permitiram um entendimento aprofundado face à sua dissolvência nas personagens que interpretaram ao longo da sua carreira.

A aura da performance na condição cinematográfica

A autenticidade de um sujeito reside na sua qualidade de distinção de outrem. Apesar do mundo ser um lugar abundante, a cada ser é-lhe inerente uma essência que lhe confere uma singularidade que possibilita a sua diferenciação. Sendo assim, a construção da identidade é um processo que conjuga várias experiências e que se interliga através de uma relação complementar com outros indivíduos, assente numa experiência tanto pessoal como coletiva. As relações sociais estabelecem uma rede de conhecimentos que moldam os comportamentos individuais e, nesse sentido, é relevante entender como é que o sujeito enquanto ator, ao interpretar a vida de outro, constrói a sua própria identidade. A distinção entre o real e a ficção é fundamental para uma construção coerente da sua própria pessoa.

Faz parte do processo de cada um entender de que forma se pode chegar à sua essência, de modo a percorrer um caminho na direção do autoconhecimento e de uma posição no mundo fiel ao seu propósito. Quanto ao ator, que interpreta e representa outras realidades, o papel do outro é ainda mais vincado, na medida em que ele (o outro) contribui para a sua experiência pessoal (do ator) na segunda pessoa, mas também - através da representação – entra em si e passa a viver na primeira pessoa (o ator) experiências que não fazem realmente parte da sua própria vida. Ou será que fazem?

Figura 1 - Heath Ledger em The Dark Knight (2008).
Disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/758012181023806817/

A construção e a organização dessas experiências vão marcar o ator conforme a sua permissão. Realmente, se se comparar a personagem ao outro, ambos são indivíduos distintos do ator e dessa forma, é possível afirmar que as personagens que ele representa contribuem para a construção da sua própria identidade, da mesma forma que o outro contribui. Cabe ao ator decidir e refletir sobre si mesmo, de modo a permitir com que intensidade é que isso o vai condicionar a si e à sua essência. O ator, mais que a grande mancha social, tem a capacidade aprimorada de se colocar na pele do outro, o que torna a sua existência mais flexível e expandida, na medida em que explora diversas vertentes e realidades. Ele tem o privilégio de delimitar as suas próprias fronteiras conscientemente, tendo conhecimento de que a sua personagem é ou não parte integrante de si. Ele sabe distinguir, e é nesse sentido que o seu autoconhecimento é fundamental, na medida em que dessa forma não permite que o seu trabalho interfira com a sua autenticidade. Porque é a partir dessa autenticidade que ele consegue expressar outras personagens.

O impacto que cada um tem na vida do outro é inevitável. E a atenção que se dá às ações alheias não é de todo gratuita, na medida em que, como nos sugere Freud, “(...) o inconsciente não faz nada em vão” (2020, p.78) e qualquer comportamento, seja um gesto, um olhar, um pensamento, remete para uma intenção inconsciente. Esta condição vem mostrar que toda a atenção que depositamos no outro tem que ver com fatores internos à nossa pessoa, formando um “reflexo”. No caso do ator, quando lhe é apresentado um personagem para interpretar, ele vai necessariamente ter que assumir que é essa representação e trazer ao mundo outra pessoa através do seu próprio corpo. O eu passa a ser o outro e é nesse sentido que se colocam as questões que impulsionam esta investigação, nomeadamente a questão da delimitação das fronteiras entre o real e a ficção, a desvinculação do performer da sua identidade aquando a representação, a própria representação como componente construtiva do indivíduo e onde e como vemos aparecer a identidade do ator? Estas são as questões que conduzirão, respetivamente, o presente artigo.

Entre o real e a ficção

A distinção entre a realidade e a ficção torna-se um exercício enigmático e desafiador na construção cinematográfica. A montagem de um filme passa por um processo que envolve diversos setores, tais como a escrita do guião, o casting para a escolha das personagens, a encenação, e toda a equipa tem uma função essencial para que o filme aconteça, desde o empregado do coffee break ao realizador. Existe um empenho e uma dedicação para que tudo aconteça e principalmente para que a ficção passe a ser realidade. Por ficção não me refiro aos filmes desse género, mas sim a tudo o que faça parte do outro plano para lá do real, onde as histórias existem apenas no plano imaginário de quem as cria, sem ainda terem sido submetidas à concretização.

Figura 2 - Por trás das câmaras do filme The Sound Of Music (1965).
Disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/78672324729888868/

Aquilo a que o público assiste remete para a colaboração de várias artes, cujo resultado final é experienciado de forma totalmente distinta por parte dos envolvidos. A concretização e a produção daquela obra irão de certa forma condicionar os artistas e trabalhadores na própria visualização, pois ao participarem na construção dessa realidade, dá-se uma imersão de uma forma que o público pode apenas imaginar, se lhe for possível. A imersão no filme é distinta entre o ator e o público. Trato do ator, como poderia tratar do realizador. Mas para este artigo interessa a condição do ator.

O ator está presente, numa encenação que por vezes torna a ficção real, quando esta não é simulada pelo pano verde. Essa presença e essa ficção tangível podem tornar inteligível a distinção entre o real e a ficção, na medida em que a imersão a que se submetem conduz à representação de algo que, naquele momento, está de facto a acontecer. Por exemplo, no filme Django Unchained (2012), de Quentin Tarantino, na cena da sala de jantar, Leonardo DiCaprio, que representava Calvin Candie, cortou acidentalmente a mão durante a representação e continuou a sua interpretação, deixando que o plano real (o corte) se dissolvesse na ficção (o filme) de maneira a que daí resultasse uma experiência complementar entre esses planos, cuja ponte é o ator. A imersão é de tal forma vivida que para tornar a ficção o mais real possível, o ator não abdicou da representação para colocar a sua dor em primeiro plano. Aliás, esse acidente contribuiu ainda mais para uma construção autêntica da cena.

Figura 3 - Leonardo DiCaprio em Django Unchained (2012).
Dísponível em: https://www.pinterest.pt/pin/18507048457790282/

Assim sendo, a distinção entre a realidade e a ficção é transformada em complementaridade. O que define a realidade? Assumir a realidade como sendo tudo o que existe e que é tangível é restringi-la de todos os outros planos invisíveis, mas que também contribuem para a construção do real, nomeadamente os planos psicológico, emocional e espiritual. Apesar de não estarem à vista, é nestes planos que se desenvolvem as motivações que impulsionam o indivíduo a agir e a exteriorizar aquilo que lhe é de mais interno, como a satisfação de desejos, expressar emoções, etc. Freud (2020) chama a esta condição o Princípio do Prazer, sob o qual o indivíduo procura satisfazer qualquer prazer inconsciente a si inerente. Se estes planos não fossem parte integrante da realidade, então Descartes nunca teria assumido a sua existência através do pensar.

Para o caso desta investigação, faz mais sentido aliar a realidade à autenticidade, uma vez que a autenticidade é aquilo que torna o indivíduo ele mesmo. Descobrir o que define a autenticidade de cada um é descobrir como se pode ser verdadeiro consigo próprio, de maneira a que torne a sua autenticidade o elemento que defina a sua realidade. A partir desse entendimento, qualquer ator estará apto para distinguir o que pode ou não contribuir para a sua construção pessoal, dentro de cada personagem que interpreta. Tudo o que seja alheio à sua construção pessoal entra no campo da ficção.

A liberdade é um dado adquirido através de um estado mental que possibilite a vivência sem medo e opressões. É um dado que é cada vez mais procurado devido à crescente supressão de privacidade, numa sociedade liquidificada pela tecnologia, onde os direitos se dissolvem com os deveres. No entanto, para que um indivíduo se considere capaz de se autodefinir, é necessário que ele tenha a liberdade criativa de experienciar várias situações, em diferentes contextos, de modo a entender o seu comportamento e a sua autodeterminação. No caso do ator, a sua liberdade para interpretar uma personagem está contígua na sua autoconfiança enquanto indivíduo. Para que não haja conflitos entre o seu eu e a sua personagem (entre o real e a ficção), o ator necessita de estar numa posição psicológica que lhe garanta firmeza identitária, para que nenhum entre em colapso. Por um lado, o eu ficaria fragilizado pela personagem e por outro, a personagem perderia vida, no sentido em que não seria interpretada com alma. Por essa razão se deve ressaltar a importância do conhecimento do indivíduo sobre si mesmo e da sua própria identidade, de maneira a tornar distinguível o seu plano real do plano da ficção. Porque através da imersão cénica e contextual, essa distinção é mais desafiadora para o ator do que para qualquer outro trabalhador envolvido na construção cinematográfica.

Figura 4 - Joaquin Phoenix em Her (2013).
Disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/585256914066750616/

Dessa forma, a dissolvência da personagem em si mesmo (no indivíduo) é material que deve ser cuidadosamente tratado, para que não cause consequências colaterais na sua autenticidade enquanto sujeito.

(Des)vinculação da personagem e do ator

Até entrar em cena, o ator é submetido a preparações e ensaios que tornam a sua performance fidedigna e livre de erros causados pelo cruzamento do real com a ficção. O ator deve estar submerso na sua personagem para que esta ganhe vida à frente da câmara. Deve agir absolutamente seguro de si, porém, desvinculado da sua aura, pois esta constitui a sua autenticidade e depende do aqui e agora, sendo que não admite qualquer reprodução. A autenticidade do ator reside na sua condição individual e deve ser camuflada pela personagem, para que ambas não se dissolvam e não causem entropias contextuais.

Os atores de cinema sentem-se como no exílio. No exílio não somente do palco, mas também de si mesmos. Percebem confusamente, com uma sensação de despeito, de indefinível vazio e mesmo de fracasso, que seu corpo é quase volatilizado, suprimido, privado de sua realidade, de sua vida, de sua voz, do ruído que produz ao se mexer, para tornar-se uma imagem muda que tremula um instante na tela e desaparece em silêncio […] A pequena máquina representará diante do público com suas sombras, e eles devem se contentar em representar diante dela.

(Benjamin, 2018, p.236)

A estranheza com que o ator de cinema encara, por vezes, a sua personagem, remete para a familiaridade com que ambos se identificam. Essa sensação convoca, mais uma vez, a questão da identificação pessoal perante o outro, com a diferença de que, agora, esse outro é transportado para a primeira pessoa e, posteriormente, para o público.

Figura 5 - Por trás das câmaras de Star Wars: Episode III - Revenge of the Sith (2005).
Disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/123849058491632067/

No entanto, a construção da personagem por parte do ator cinematográfico sofre várias interferências ao longo da construção do filme. O empenho com que o sujeito se dedica a personificar o outro através de si mesmo é constantemente submetido a pausas entre cenas e gravações, provocando uma desvinculação temporária entre a sua pessoa e a sua personagem.

(…) se o ator de teatro entra na pele de uma personagem que representa, é muito raro que o intérprete cinematográfico possa ter a mesma atitude. Ele não desempenha o papel de modo contínuo, mas numa série de sequências isoladas.

(Benjamin, 2018, p.238)

Neste sentido, a aura do ator deambula entre essas pausas. Por outro lado, sendo a aura a autenticidade do indivíduo, a ela está-lhe inerente a realidade que existe no plano inconsciente deste último. E dessa forma, pode ser possível admitir que quando o ator se engana ao trocar as falas ou a esquecer-se delas, isso pode ser nada mais nada menos que a sua autenticidade – o seu inconsciente – a tomar posição e a querer intervir na representação do outro. Esta condição remete para os atos falhados abordados por Freud, cuja raiz se encontra no inconsciente. Esses atos falhados são como uma ponte entre duas intenções e, no caso cinematográfico, remete para a interferência entre o real e a ficção.

O lapso é, por assim dizer, a expressão deformada, oculta, dessa intenção recalcada. Para que haja lapso, é necessário haver um recalcamento: o recalcamento de uma intenção de dizer alguma coisa constitui a condição indispensável do lapso. A intenção recalcada vinga-se através do lapso (…). Assim o ato falhado é o retorno do recalcado.

(Haar, 2020, p.24)

Ora, segundo Freud (2020), toda a vida social só é possível através do recalcamento do inconsciente, de maneira a que os desejos mais primitivos do indivíduo não interfiram na sua relação com os demais. Comparo a questão sobre a desvinculação do ator face à sua personagem a este facto sobre o recalcamento em prol do funcionamento social. Mas, neste caso, o recalcamento é feito pelo ator sobre si mesmo e sobre a sua aura (autenticidade), de forma a permitir que o outro possa existir livremente, sem interjeições pessoais derivadas do seu inconsciente.

Esta condição levanta uma outra questão. Se por um lado, para que a personagem ganhe vida é necessário haver um recalcamento da aura e da identidade do ator, por outro, essa mesma personagem pode libertar o ator de outros recalcamentos e permitir que este se expanda para lá dos seus limites.

Representação como componente construtiva do ator

Walter Benjamin refere que «(...) à medida que restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora de estúdio, a “personalidade” do ator: o culto da “estrela”, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege essa magia da personalidade, que há muito já está reduzida ao encanto podre do seu valor mercantil» (2018, p.239). Ora, de facto, por um lado existe esta condição de que toda a vida do ator é idealizada pelo seu público através das personagens que já interpretou, e em torno disso existe uma realidade económica e capitalista inerente a essas construções. Por outro lado, essas personagens contribuíram de facto para a sua construção identitária profissional, integrando o respetivo ator numa categoria cinematográfica específica. Isto, por sua vez, remete para uma preferência pessoal do ator em colaborar nesse tipo de projetos. Essas escolhas têm que ver com diversos fatores, nomeadamente necessidades financeiras, vontade de explorar novas vertentes, etc. Mas todas essas decisões remetem para o interior do próprio ator. São de ímpeto pessoal, e dessa forma contribuem para a sua construção enquanto pessoa. No que diz respeito às personagens em si, também elas de certa forma contribuem para essa construção, como veremos no seguimento deste subtema.

Figura 6 - Heath Ledger em The Dark Knight (2008).
Disponível em: https://www.pinterest.pt/pin/5559199528921639/

A personagem que o ator está a desempenhar pode constituir uma ponte entre o seu consciente e o inconsciente, contribuindo dessa forma para o seu entendimento pessoal enquanto indivíduo.

Cada personagem constitui uma realidade distinta da sua e nesses campos de experimentações existem várias dimensões que podem ser exploradas pelo ator, nomeadamente novas experiências que enriqueçam a sua construção pessoal. Na representação, o ator tem a possibilidade de se libertar de certas repressões e permitir que a criatividade conduza a sua vivência. Freud afirma que a líbido não aprende nunca com a realidade (2020, p.66) e é nesse sentido que se faz esta análise. Sendo que a personagem é fruto da ficção (salvo filmes biográficos cujas personagens existem de facto), pode constituir uma ponte para a libertação da líbido por parte do ator. É necessário esclarecer que a questão da líbido associada à sexualidade está vinculada com a conceção freudiana sobre o tema. A sexualidade recalcada do indivíduo é canalizada para outras atividades, impulsionando outras criações.

Portanto, neste caso, a sexualidade remete para uma condição aliada à criatividade.

A sexualidade não é mais do que a possibilidade que pode levar a várias realidades: relações amorosas, mas também criações extremamente variadas, como um laço social, uma obra literária, etc.

(Haar, 2020, p.20)

É neste sentido que a representação pode, de facto, contribuir para a construção da identidade do ator, na medida em que através dessa canalização das suas restrições, o ator pode expandir-se e viver outras realidades, onde seja possível concretizar e libertar alguns dos seus recalcamentos. Dessa forma, pode fortalecer a sua autenticidade, sendo que a partir da conscientização desses fatores, o indivíduo torna-se melhor conhecedor de si mesmo.

Do outro lado, temos também o perigo do próprio ator se dissolver demasiado nessa realidade onde apenas liberta as suas repressões, podendo ficar preso a ela. Essa submissão remete para o Princípio de Prazer já abordado anteriormente, sob o qual o sujeito vive o presente sempre em busca da satisfação pessoal. Benjamin defende que o cinema veio abrir uma experiência face ao “(...) inconsciente visual, assim como a psicanálise nos fornece a experiência do inconsciente instintivo” (2018, p.247). Reforço esta comparação interligando os conceitos freudianos do Princípio de Prazer e Princípio da Realidade. Sobre este último, Freud afirma que a realidade significa o contrário do inconsciente (2020, p.22) e é nesse sentido que trato da personagem como se fosse uma ponte de acesso ao inconsciente do ator e à sua essência.

Através deste ponto de vista, é possível afirmar que a representação, apesar das desvinculações da personagem com o ator, como foi abordado anteriormente, pode contribuir para a construção da identidade do indivíduo. Com esta condição, surge a dúvida sobre onde e como se manifesta a identidade do ator aquando a representação.

Onde e como se manifesta a identidade do ator aquando a representação?

No cinema, o que importa não é o fato de o intérprete apresentar ao público um outro personagem que não ele mesmo; é antes o fato de que ele próprio se apresenta no aparelho.

(Benjamin, 2018, p.236)

Contrariamente ao teatro, onde o público está presente perante a representação do ator e experiencia em primeira mão a sua atuação, no cinema esta condição é substituída pelas câmaras e pelos restantes dispositivos necessários para a captação da cena. A sequência cinematográfica passa pelo processo de montagem que irá remeter para o resultado final do filme. Esta construção não linear faz com que, como foi referido anteriormente, o ator quebre momentaneamente a personagem para que os cortes entre filmagens sejam possíveis e ele volte ao seu eu. A representação passa por diversas fases e cortes, que, no teatro, não ser verificam, e que dessa forma permitem ao ator adaptar a sua representação à reação do público. Esta relação entre público e ator é, no cinema, anulada e transferida para a relação ator-câmara. A consequência desta condição é que, enquanto que no teatro, o espectador tem a oportunidade de ver o ator em primeira mão, podendo tirar conclusões diretas sobre a sua performance e possivelmente extrair algum elemento indicador da personalidade do ator, no cinema essa análise é sucumbida por todo o aparato que envolve a montagem e a produção do filme e neste sentido a identidade do ator enquanto indivíduo pode passar despercebida.

Figura 7 - Salvador Dalí, Sleep (1937).
Disponível em: https://www.wikiart.org/pt/salvador-dali/sleep-1937

Existe, no entanto, um outro lado que merece ser considerado. À partida, a personagem contém uma personalidade distinta da do ator, mas entre ambas existe uma relação de dependência, na medida em que para que a personagem exista é necessário que o ator a interprete, mas também essa mesma interpretação – como vimos anteriormente – contribui para a experiência pessoal do ator. Neste sentido, culminam as questões abordadas acima, relativamente à dissolvência da sua pessoa na interpretação da personagem e sobre o confronto de ambas as auras, no sentido da sua autenticidade.

Consideramos que, ainda que não esteja à vista do público, a condição flagrante em que se manifesta a identidade do ator é no improviso. O improviso não é apenas um ato repentino que acontece quando o ator falhou na sua interpretação e precisa de dar continuidade à cena. É também um momento em que, ainda que não esteja no guião, o ator introduz uma parte de si, de forma a complementar a sua representação. Existem filmes cujas cenas mais épicas foram improvisadas pelos atores, e só isso já é material suficiente para tratar do improviso.

De facto, o improviso pode manifestar uma parte da identidade do ator, na medida em que a sua presença depende do aqui e agora. Esta condição é favorável à manifestação da identidade do ator, pois a sua autenticidade (aura) depende também da condição presencial para se manifestar, e já que o ator está a criar uma situação alheia ao guião, é nesse espaço que se vê a sua autenticidade aparecer.

Atores que treinam afincadamente a interpretação das suas personagens recorrem bastante ao improviso, visto que ambas as personalidades – a do ator e a da personagem – estão como que dissolvidas uma na outra, permitindo-lhe um improviso fluido que não fuja à essência da personagem, pelo contrário, torna-a mais autêntica. O improviso depende do ator e caso a personagem fosse interpretada por outrem, os improvisos iriam ser distintos, visto que são fruto da autenticidade do respetivo ator. A cena construída à volta do improviso não depende apenas do intérprete que está a improvisar. Todos os atores envolvidos mantêm as suas personagens e vão moldando a situação até ao “corta” do realizador. Este exercício traz ao filme uma condição em que não só o ator que gerou o improviso, mas todos os restantes envolvidos na cena, trazem para o momento um comportamento que deambula entre as suas personagens e as suas próprias identidades. Durante o improviso, pode acontecer o ator convocar situações desconhecidas por parte dos colegas que de certa forma inibam o seu desempenho no decorrer da cena. Nesses casos, o outro ator necessita de convocar a sua própria identidade para colaborar e cooperar com o improviso. Por exemplo, o ator agente do improviso incentiva a um diálogo que não estava no guião sobre um determinado tema. Mas o ator que contracena consigo não tem conhecimento suficiente para abordar sobre o mesmo tema, por isso, tem que fazer a sua personagem orbitar na condição de incerteza e “jogar” em função disso.

Outra possível abertura para a identidade do artista durante a representação é a sua própria autenticidade. Apesar de todo o aparato que envolve o intérprete, a caracterização, etc., existem traços do ator que lhe conferem uma diferenciação por parte de outro, e isso reside na sua própria condição de ser. Para uma personagem existem diversos atores cujas interpretações serão distintas entre si, na medida em que todos eles são diferentes. Representar é uma questão de escolhas, e para um determinado fim existem vários meios que tornem a cena exequível. Depende apenas do método de cada ator. Esse ator pode representar inúmeros papéis diametralmente distintos entre si, mas existe sempre uma característica inerente à sua pessoa que o torna distinguível. Essa vertente camaleónica permite-lhe que ele interprete várias realidades, mas que se mantenha real e autêntico, independentemente do resto. É neste sentido que o seu autoconhecimento é favorável, porque permite-lhe saber qual a sua verdadeira “cor”, apesar do espectro de possibilidades que já interpretou.

Neste sentido, é relevante considerar a identidade do sujeito um produto do seu inconsciente, que é tão individual. É a transposição dessa condição para o consciente que permite ao ator colocar parte de si em qualquer personagem que interprete. Porque no inconsciente estão memórias, estão repressões, desejos, sonhos, etc., que se mantêm intrínsecos a si mesmo. Durante a representação, como foi abordado mais acima, esses aspetos provenientes do inconsciente podem ser expostos por alguma personagem que o liberte dessas condições. E essa é uma possível janela da identidade do ator durante a representação.

Considerações Finais

A aura, numa perspetiva que se estende para além da condição extrafísica, remete para a autenticidade de um ser. Esta condição é-lhe necessariamente inerente, e por isso possibilita a distinção do indivíduo perante o outro.

Numa perspetiva sintetizada, é possível concluir que o processo construtivo da identidade de um indivíduo é realizado pela sua análise interior bem como através da relação com o outro. No caso do ator, que interpreta na primeira pessoa o outro, essa construção dá-se de forma mais complexa, na medida em que é necessária uma maior atenção referente à distinção do real e da ficção. A comparação da personagem ao outro reforça a condição contribuidora para a construção identitária do intérprete, na medida em que o torna num ser mais expandido a nível interior. O outro passa para a primeira pessoa do singular e nesse sentido enfatiza-se o autoconhecimento do ator para que ambas as personalidades não entrem em conflito.

Na concretização de um filme, a colaboração entre diversas artes é fundamental para que a ficção se torne realidade. No exemplo dado sobre o filme de Quentin Tarantino, assiste-se a uma dissolvência entre o real e a ficção, remetendo dessa forma para uma complementaridade destes planos em vez de uma separação dos mesmos. A realidade deve ser, no caso desta investigação, remetida para a autenticidade, pois restringi-la ao que é tangível é desprezar todos os planos constituintes do ser, nomeadamente o psicológico, emocional e espiritual. Estas dimensões são as raízes das motivações do sujeito e é a partir delas que se exterioriza aquilo que lhe é interno. Através da perceção dessas raízes, é entendido que o ator se encontra capaz de distinguir na personagem que interpreta o que pode ou não contribuir para o seu crescimento individual. Para essa distinção é importante que o indivíduo tenha uma autoconsciência apurada, de maneira a facilitar a separação do real e da ficção.

A desvinculação entre a personagem e o ator é importante para se perceber as fronteiras que os separam e as eventuais pontes que também os podem unir. Compara-se a autenticidade do ator ao inconsciente freudiano, na medida em que nestas dimensões estão os alicerces da identidade do mesmo. Sendo assim, quando essa identidade passa para o primeiro plano e a personagem sofre uma quebra pelos enganos do ator, essa condição pode remeter para uma intervenção do seu inconsciente na representação do outro. Esta desvinculação do ator em relação à sua personagem é comparada ao recalcamento abordado nas investigações de Freud em prol do funcionamento social, sendo que neste caso, esse mesmo recalcamento seria feito pelo ator sobre a sua própria autenticidade. Assim, o outro (a personagem) pode existir desvinculado da identidade do intérprete.

Por outro lado, é aqui considerado que, apesar dessa desvinculação e desse recalcamento, as personagens desempenhadas pelo ator podem contribuir para a sua construção pessoal enquanto indivíduo. Elas podem constituir uma ponte entre a sua consciência e o inconsciente e, ao interpretá-las, o artista tem a possibilidade de concretizar desejos antes reprimidos e de explorar realidades diametralmente distintas da sua. Nesse sentido, a representação pode, efetivamente, ser uma oportunidade para o ator de expandir as suas fronteiras interiores.

A identidade do ator durante a representação pode ser notada através do improviso, cujas ações têm a sua raiz na autenticidade do artista. A isto remete-se a sua identidade, na medida em que o ator traz para o filme uma parte de si mesmo, construindo dessa forma uma ponte entre o plano fictício e o real. Para além disso, é também aqui discutido a importância da sua própria identidade individual na construção interpretativa da personagem. O ator tem em si diversos meios que o tornam num “camaleão” capaz de se adaptar a qualquer papel, mas que no fundo tem o privilégio de ter plena consciência da sua verdadeira cor.

Agradecimentos

Para a concretização deste artigo convoquei três performers aos quais realizei uma pequena entrevista, respetivamente. Durante esses encontros pude contar com a sua experiência e a sua honestidade, e por isso deixo aqui os meus sinceros agradecimentos à Bárbara Machado, à Teresa Silva e ao Tomé Pinto.
Agradeço também ao meu orientador de mestrado, Paulo Bernardino Bastos, que com a sua ajuda tenho crescido muito através do desenvolvimento de capacidades a nível teórico-práticas.

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UIDB/04057/2020

Notas Finais

1Bárbara Machado, Teresa Silva e Tomé Pinto

Bibliografia

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Chekhov, M. 1986. Para o Ator. Traduzido do inglês por Álvaro Cabral. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

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Filmografia

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