Capítulo I – Cinema – Arte

Screenwriting and Postdramatic Theatre - Contradictions and Opportunities

Escrita de Argumentos e Teatro Pós-dramático – Contradições e Oportunidades

Luís Santo Vaz

Escola Superior de Teatro e Cinema, Portugal

Abstract

The fundamental theme of this paper is the dynamics of influence between theatre and cinema. The paper focuses on a screenwriting perspective over postdramatic, a concept introduced by Hans-Thies Lehmann (Postdramatisches Theater, 1999). The specific domain of the research deals with the possibilities of operative appropriation from postdramatic practices by contemporary narrative filmmaking. Being a case study research paper, the qualitative nature of the approach method implies a tangible object of study, thus, the specific theme is approached through an analysis of the writing process of a particular narrative screenplay (Second Rate Poetry, 2012), which was simultaneously influenced by the principles of Hollywood’s screenwriting and by postdramatic theory. The essay’s ultimate goal is to address the possibilities of a production prototype that combines the seemingly antithetical principles of Hollywood’s text-centric approach, largely based on Aristotelian Poetics, and postdramatic performance practices.

Keywords: Cinema, Theatre, Screenplay, Postdramatic, Performance

Introdução

Na Poética de Aristóteles, encontramos a fundadora definição teórica de tragédia:

É, pois, a tragédia imitação de uma acção de caracter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as varias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes (do drama), (imitação que se efectua) não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.

A definição permanece válida, mesmo depois de mais de dois milénios de história; continuando a Poética a ser para os dramaturgos e teóricos do teatro, aquilo que o Anjo foi para Jacob1

, quando em Penuel, tentava atravessar o rio Jaboque2: uma luta necessária. E não apenas com a definição específica de tragédia, mas também com as fundações conceptuais que a sustentam, i.e., conceitos como mimésis e catarse, bem como as seis partes que Aristóteles definiu como constituintes da tragédia: mythos (enredo), ethos (carácter, personagens), dianoia (pensamento, tema), lexis (retórica, dicção), melos (melopeia, música) e opsis (espectáculo). A Poética é uma obra plenamente viva e todos os que pensaram sobre teatro depois da Poética, pensaram necessariamente com a Poética, seja imitando-a, reformulando-a e ampliando as suas fundações conceptuais, seja tentando a demolição dessas mesmas bases conceptuais, como fez Brecht através do não-aristotelismo teórico do seu teatro épico; ou como fizeram outros autores com outras propostas teóricas ou obras dramáticas (por ex. Vladimir Propp, Maurice Maeterlinck, Fernando Pessoa, Samuel Beckett, Heiner Müller). Durante a contemporaneidade, uma das continuações dessa luta com a Poética manifestou-se no esforço de demolição de Hans-Thies Lehmann através da teorização avant-garde (galicismo com origem no sefardita Olinde Rodrigues, discípulo de Saint Simon), do teatro pós-dramático. Mas regressemos ao tema específico deste ensaio, cujo objecto de estudo concreto é um projecto de cinema, sobre o qual convergiram simultaneamente os princípios teóricos da Poética e os princípios do pós-dramático. O ensaio tem como propósito analisar e teorizar em torno dessa dupla influência e de como a dualidade dessa incidência condicionou a escrita do argumento do filme. A experiência de produção da curta-metragem Poesia de Segunda Categoria (2012), na qual participei como argumentista, produtor e realizador é pois o case study que irá ser abordado (link do filme disponível no fim do ensaio, nas fontes online). É um filme de ficção de época, cuja acção decorre na Lisboa de 1935 e que dramatiza um episódio da vida do poeta Fernando Pessoa, durante o período histórico de afirmação política do regime fascista do Estado Novo. A escrita do argumento iniciou-se em 2006 e seguiu a formatação da industria de cinema norte-americana, segundo o modelo proposto pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences3. Desde a versão inicial, procurou-se orientar a escrita do argumento pelo paradigma inspirado na Poética e proposto por Syd Field (Screenplay:The Foundations of Screenwriting, 1979), na forma de uma estrutura narrativa em três actos e respectivos plot points. Além do contacto com outras obras sobre escrita contemporânea de argumentos, de autores como, Linda Seger e Robert Mckee, a assimilação destes princípios teóricos deveu-se principalmente à frequência de um curso intensivo de realização na New York Film Academy (NYFA), em 2002. As obras referidas constituem uma atualização moderna do tipo de abordagem analítica da Poética, representando também um esforço de adaptação e aplicação ao cinema dos princípios teóricos que Aristóteles desenvolveu para explicar a tragédia. Durante o processo de escrita do argumento da curta-metragem verificou-se, após um longo período de sucessivas etapas de pesquisa e de reescrita, (entre 2006 e 2011) que não se tinha alcançado um argumento suficientemente consistente dum ponto de vista dramático, para fundamentar o início da rodagem. Este impasse originou um inevitável atraso na produção e representou uma ameaça à concretização do projecto. No sentido de desbloquear a escrita do argumento, o texto foi apresentado em 2011, como work in progress, no âmbito dos seminários de escrita dramática de um curso de mestrado em Teatro, na Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), onde eram ensinados um conjunto de princípios de criação dramática muito próximos ao conceito de pós-dramático. Este ensaio é também uma reescrita e um desenvolvimento das conclusões presentes num trabalho académico intitulado Palavras em Acção - Influência das Escritas Dramáticas Contemporâneas na Produção de um Projecto Cinematográfico, que aborda o processo de escrita e produção da curta-metragem e que foi apresentado à ESTC em Fevereiro de 2021, como conclusão do curso de mestrado em Teatro. Até esse momento, em 2011, a escrita do argumento da curta-metragem havia-se orientado exclusivamente pelas concepções do argumentismo do cinema norte-americano, que por sua vez reflectem uma profunda influência dos princípios da Poética de Aristóteles. Como nos diz Robert Mckee (Story, 1997):

There’s been no conspiracy to keep secret the truths of our art. In the twenty-three centuries since Aristotle wrote The Poetics, the “secrets” of story have been as public as the library down the street.

As principais razões que justificam a selecção da curta-metragem Poesia de Segunda Categoria como case study deste ensaio são a minha perspectiva autoral e também o facto da escrita do argumento ter recebido influências quer do modelo de Hollywood, quer das teorias e práticas pós-dramáticas. Este ensaio procura assim sintetizar as experiências e interrogações sentidas durante a produção de um projecto cinematográfico que foi influenciado por princípios teóricos aparentemente contraditórios. Mas sobre situações paradoxais, talvez não seja completamente despropositado evocar as palavras de Niehls Bohr, sobre a presença de paradoxos: “How wonderful that we have met with a paradox. Now we have some hope of making progress.”4 É também com um propósito de fazer algum progresso, que proponho com este ensaio abordar a justaposição entre princípios dramatúrgicos aparentemente irreconciliáveis e antitéticos.

A ilusão do argumento perfeito

Não é de todo relevante descrever o filme ou aprofundar quais os temas específicos da curta-metragem. No âmbito deste ensaio o que importa é evidenciar que o longo período de escrita do argumento não se deveu a um bloqueio criativo do argumentista, mas à insistência obstinada num único método de escrita, inspirado na Poética. Não se trata também de desvalorizar nem de tentar transferir a responsabilidade do argumentista para uma concepção de dramaturgia que continua ainda hoje completamente funcional, e que desde a antiguidade tanto tem contribuído para enriquecer o património cultural e artístico da humanidade. Trata-se de salientar que o erro do argumentista consistiu numa utilização mecânica e acrítica dos princípios de escrita de argumentos inspirados na Poética, confundindo princípios de escrita com fórmula mágica. Esta ilusão deu origem a um argumento unidimensional e desprovido de densidade narrativa. A dolorosa noção dessa insuficiência do argumento fez adiar a rodagem do filme, até a um momento em que não era possível continuar a adiar, surgindo em 2011, a oportunidade de sujeitar o argumento a um contexto académico que se orientava por princípios de escrita dramática completamente distintos dos seguidos até então. As sucessivas reescritas “aristotélicas” e a procura pelo “argumento perfeito” acabariam por se revelar muito mais como uma forma de racionalizar e compensar inseguranças artísticas do que propriamente pela esperança objectiva de obter um texto que garantisse à partida, a realização dum filme capaz de exprimir com profundidade os temas escolhidos. Retrospectivamente, tendo sido o processo de produção do filme, também um caminho de aprendizagem, verificou-se como falaciosa e ilusória a noção de “argumento perfeito”. Por mais fundamentada, atenta e rigorosa que seja a pesquisa, por mais elaborada e brilhante que seja a escrita, por mais estruturada e minuciosa que seja a narrativa, a verdade é que mesmo um excelente argumento não constitui garantia absoluta de criação de um grande filme. Mas então, nesse caso, será melhor simplesmente deixar de lado o argumento? A pergunta retórica anterior serve precisamente para deixar este ponto bem claro. Não. Considero que a escrita do argumento continua a ser fundamental para a criação de uma obra cinematográfica. O argumento é tão relevante para a visão autoral do realizador como as objectivas para a câmara do director de fotografia. Pois um argumento também é um dispositivo focal, que permite capturar e orientar as ideias, os raios de luz intelectual, com os quais se tenta iluminar a significação abstracta do filme. Dessa forma, é tão válida a afirmação de que um argumento não é garantia absoluta de sucesso, como afirmar que este não constitui certeza de falhanço. O argumento continua a ser um elemento fundamental para a construção de uma obra cinematográfica, no entanto, os seus instrumentos de escrita, podem ser mais do que os tradicionais caneta e teclado do argumentista. Desta forma, uma crítica à noção de “argumento perfeito” não implica uma desvalorização do argumento, mas antes a reapreciação de uma certa abordagem dogmática e compartimentada ao processo de escrita do argumento; que, no caso específico deste ensaio (a curta-metragem Poesia de Segunda Categoria) custou vários anos de adiamentos e hesitações. A crítica à noção do argumento enquanto elemento fechado e cristalizado implica também uma crítica a uma certa ilusão autoral. Já foram referidos atrás, motivos subjectivos que contribuíram para a ilusão, do “argumento perfeito”, contudo, poder-se-ão apontar críticas de caracter mais objectivo. A noção de argumento como mecanismo narrativo perfeito limita de forma relevante a amplitude das possibilidades criativas dos actores e actrizes, pois elimina a possibilidade de surgirem significativas mudanças textuais, derivadas da interpretação ou da improvisação dos actores. No entanto, mesmo num cinema narrativo baseado no argumento “fechado”, existem famosos exemplos na história do cinema, de situações em que o brilho da improvisação ou da performance criativa do actor impuseram alterações textuais ao argumento. A título de exemplo refiro o admirável contributo de Rutger Hauer na obra prima de Rydley Scott, Blade Runner (1982). No celebrado monólogo das lágrimas à chuva, foi Hauer quem reescreveu a fala final da sua personagem, eliminando aquilo que na sua perspectiva tinha sido colocado a mais pelos argumentistas Hampton Fancher e David Peoples. Além desse exercício de edição textual, Rutger Hauer acrescentou a fala que se tornou icónica da sua personagem, o andróide Roy Batty, e uma das mais citadas do filme e do próprio gênero de ficção científica: “All those moments will be lost in time, like tears in rain”. Ainda um outro possível exemplo da criatividade textual inerente aos actores é-nos dado por Robert de Niro em Taxi Driver (1976) de Martin Scorcese, em que seguindo a indicação do realizador para improvisar, cunhou o famoso: “You talkin’ to me?”. Estes são exemplos paradigmáticos de como os actores são capazes de reescrever o texto do argumento, alcançando uma melhoria expressiva, mesmo num contexto em que existe um excelente argumento pré-definido, inserido num processo de produção de uma industria de cinema que considera o argumento como blueprint para a construção do filme. Antes de concluir este capítulo, uma breve nota para discernir entre argumento “perfeito” e argumento completo. Pode o argumento aspirar a ser obra completa? Uma obra capaz de valer por si própria, digna do estatuto de obra literária? Sim, o argumento tem todo o direito de aspirar à condição de obra literária. Uma demonstração possível dessa possibilidade chama-se Network (1976, filme de Sidney Lumet), argumento escrito por “Paddy” Chayefsky. O argumento “perfeito” tem em si algo de tumular, ao pretender impor uma altivez hermética às influências do talento à sua volta, enquanto que o argumento completo atingiu uma inteireza artística, nada está a mais nem a menos, (tal como uma peça da Arte da Fuga de J.S. Bach5), manifestando assim uma forma de maioridade expressiva que por sua própria beleza e profundidade se impõe à voz dos actores (i.e. eles apaixonam-se pelas falas).

Teatro e Cinema – uma ligação umbilical

Durante as décadas iniciais do século XX, surgiram as primeiras obras de teoria do cinema, que tentavam esclarecer a questão: é o cinema uma nova arte? Ou pelo contrário é apenas uma novidade técnica que deu origem a uma nova forma de diversão? Um dos autores que defendeu o estatuto de arte para o cinema, foi Hugo Münsterberg, através de uma obra escrita em 1916: A Foto-Peça (The Photoplay, 1916). A designação de “filme”, que para nós hoje parece surgir como inequívoca e universal, não o era quando o cinema tinha pouco mais de duas décadas. Para designar “filme”, Münsterberg criou o termo “foto-peça”, palavra que evidencia aquilo que o autor considerava como os principais afluentes de uma obra de cinema: a reprodução fotográfica do movimento e o elemento narrativo da representação teatral.

O objetivo parecia ser encontrar um verdadeiro substituto para o palco. (…) Um só actor ator pode agora divertir muitos milhares de espectadores ao mesmo tempo, um só cenário basta para dar prazer a milhões. O teatro pode assim ser democratizado.

Mas em relação à arte teatral, em que é que o cinema é diferente? Porque razão é que, para Münsterberg, o cinema não se limita a ser apenas uma forma de teatro filmado?

O emprego de cenários naturais, a mutação rápida de cenas, o entrecruzamento de ações em cenas separadas, as alterações aos ritmos da ação,(…) a realização de efeitos sobrenaturais, a gigantesca ampliação de pequenos pormenores: estes bastarão como ilustrações características da tendência essencial. Demonstram que o progresso da foto-peça não levou a uma reprodução fotográfica cada vez mais perfeita do palco teatral, levando antes a um afastamento completo do teatro.

Poder-nos-á parecer hoje, depois de mais de um século de cinema, que a resposta à pergunta de Münsterberg é obvia. Mas num momento de consolidação de um processo de transição tecnológica entre analógico e digital, talvez faça sentido reformular a questão: porque é que o cinema é uma arte? O que é nele, arte e diversão? Talvez a re-elaboração destas questões permita que as inovações tecnológicas sejam suportadas e enriquecidas teoricamente. Além disso, não será certamente a única transformação tecnológica que o cinema atravessou ou que irá atravessar. Do mudo passou-se para o sonoro, do preto e branco para a cor, da película transitou-se para o digital, do digital passar-se-á talvez para o holograma, e da holografia visual para a simulação neuronal, mas a questão manter-se-á sempre válida: O cinema é uma arte? Pode a “caverna” do Livro VII da República de Platão ser afinal um lugar de libertação, em vez de prisão? Pode a escura sala de cinema, demonstrar que a alegoria platónica está incompleta? Que “as sombras projectadas pelo fogo na parede”, podem ser muito mais do que ilusões? Que podem também iluminar a mente e facultar acesso a um conhecimento verdadeiro das ideias e à expansão da consciência sobre o que é isso de ser humano?

Improvisação e integração na reescrita do argumento

Ao abandonar o propósito de alcançar um argumento “perfeito”, encerrado numa forma definitiva, passará este então a ser um texto definitivamente provisório e descartável? Não. O argumento inicial deve estar suficientemente aperfeiçoado para orientar toda a produção e despertar o interesse do elenco, devendo conseguir focar com clareza os temas e a dramaturgia escolhida, por outro lado, deve ser suficientemente imperfeito para permitir espaço para a criação alheia, para a espontaneidade imaginativa e improvisação. O racionalismo inerente à abordagem da Poética tende a desvalorizar o intuitivo, valorizando por outro lado o encadeamento lógico duma estrutura composta por elementos discerníveis e verificáveis. Por outro lado, a capacidade do realizador em identificar e integrar elementos imprevistos e espontâneos, que possam surgir durante a rodagem, em nada desvaloriza a criatividade do argumentista. Pelo contrário, aumenta o mérito artístico de todos os que colaboram no mesmo projecto, pois inerente a essa capacidade de integração encontra-se o reconhecimento mútuo da criatividade do outro.

Linearidade industrial de Hollywood e estrutura narrativa aristotélica

Será a afinidade da industria de cinema norte-americana para com o modelo narrativo dos três actos, consequência ou causa da inclinação para um modelo de produção tripartido, em três grandes fases independentes e sequenciais: pré-produção, produção, pós-produção? Uma leitura marxista ortodoxa diria que é claramente um caso em que a infraestrutura das forças produtivas materiais determina um aspecto da superestrutura cultural da sociedade capitalista dos EUA. Pelo contrário, uma leitura filosoficamente idealista, diria que se trata de uma manifestação da forma como os princípios teóricos abstratos subjacentes à criatividade artística determinam a forma como a produção se organiza materialmente para produzir um filme. O cinema norte-americano é arte e industria. Existem outros exemplos, de cinema-industria no mundo, mas é o cinema norte americano que globalmente é mais difundido e cuja presença artística se faz sentir de forma mais veemente. Ao observarmos um plano geral da história do cinema poderemos observar uma dinâmica de polinização cruzada entre a industria de cinema norte americana, baseada num processo produtivo de inspiração taylorista6, dominado pela visão do produtor e o cinema europeu no qual, grosso modo, prevalece uma visão autoral do realizador. Sobre as diferenças entre cinema europeu e cinema norte-americano, o realizador dinamarquês Jon Bang, numa entrevista a Mette Madsen7, afirma:

Many European directors are shocked when they go to the States and suddenly find that they are nothing but employees, with a producer breathing down their necks. And the producer has the power to say: “Put some more light on her face,” or “That needs to be more dramatic,” or “That is too sad.”

A apropriação do cinema-autor pelo cinema-industria é uma importante dinâmica de enriquecimento da arte cinematográfica e tende a ser mais visível em momentos históricos de grande instabilidade, como aconteceu por exemplo durante o período entre as grandes guerras, em que vários grandes realizadores Europeus encontraram refúgio nos EUA (por ex. Ernst Lubitsch, F. W. Murnau, Fritz Lang, Douglas Sirk, Billy Wilder). Para não degenerar endogamicamente o cinema-industria precisa de se apropriar das melhores novas visões do cinema-autor. Essa apropriação permite inovação estética, i.e., que os filmes deixem de parecer semelhantes. Ainda na entrevista com Jon Bang podemos ler:

Strangely enough, I think the tradition of personal storytelling still exists in Europe, whether in Finland or in Portugal. In America I sense a tendency to throw all films in a big pot and they all seem to come out the same. In Europe we have so much more respect for the author.

Esta dinâmica de apropriação também existe internamente, dentro dos EUA, ou seja, as visões inovadoras das novas gerações de realizadores americanos contribuem para renovar o cinema-industria. Mas a magnitude industrial de Hollywood é tal, que parece ser-lhe necessário assumir uma dinâmica centrípeta, externa às suas fronteiras, ao procurar a assimilação de talento estrangeiro, venha este da Europa, do México, do Brasil, da África do Sul ou da Nova Zelândia). Por outro lado, na dimensão da distribuição e exibição, Hollywood revela um dinamismo centrífugo, ao exportar e amplificar à escala planetária os filmes por si produzidos. Aquilo que designei de forma imprecisa como cinema-autor, participa neste processo para não ser condenado à periferia de um nicho artístico, ou seja, por não dispor de capacidade de expressão global, tem necessidade dos recursos e das estruturas de produção e distribuição do cinema-industria, com o intuito de se valorizar tanto comercialmente como artisticamente. Nenhuma das partes desta dinâmica é propriamente inocente e ambas se instrumentalizam mutuamente, sendo que, essa polinização cruzada tende a ser artisticamente benéfica para espectadores e cinéfilos, ao dar origem a obras renovadoras. Mas esta referência surge sobretudo para sublinhar o contínuo dinamismo de apropriação da arte cinematográfica, quer do ponto de vista da criação, quer do ponto de vista da produção. Se o cinema fosse um monstro, eu diria que é um vampiro. Vampiriza todas as artes, até mesmo a sétima.

Princípios do teatro pós-dramático e a Poética

Na obra Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo, de Jean-Pierre Sarrazac, o teatro pós-dramático é caracterizado da seguinte forma:

O pós-dramático não é um estilo, nem um género, ou uma estética. O conceito reúne práticas teatrais múltiplas e díspares cujo ponto comum é considerar que nem a acão nem os personagens, no sentido de caracteres, assim como a colisão dramática ou dialética dos valores, e nem sequer figuras identificáveis são necessárias para produzir teatro.

O teatrólogo Marvin Carlson, no seu ensaio Postdramatic Theatre and Postdramatic Performance, refere que o afastamento fundamental do pós-dramático em relação à Poética vai muito além da recusa da utilização de um texto dramático na construção do espectáculo teatral:

Clearly, Lehmann saw as a central feature of the postdramatic its total rejection of the mimetic in search of the solely performative,(...). From Aristotle onward, mimesis has been seen as the center of the theatrical art, and the removing of the controlling text does not involve a removal of the mimetic as well,(...). Take away mimesis and a narrative text and all that is left to prevent the postdramatic theatre from dissolving into the raw material of everyday life is the fact that it is presented to the audience within a theatrical or performative framework (…).

Ou seja, a recusa do texto dramático-literário não é o propósito central do pós-dramático, é apenas uma consequência de uma intenção de afastamento categórico da mimésis, conceito fundamental da Poética aristotélica. Contudo, o afastamento radical da mimésis, da imitação da vida, pode conduzir a aspectos intrigantes:

What Eco (1977) and others pointed out almost forty years ago, however, was that what makes an action received as theatre by a public is not any feature of the action itself, like virtuosity, but merely the fact that it is framed or ostended as theatre. Eco’s famous example (derived from C. S. Pierce) is that of a drunken man displayed on a platform by the Salvation Army. His display might well be taken as a pure example of postdramatic theatre. The drunken man is what he is, so mimesis is done away with, and there is certainly no narrative or text.

Numa situação como a que Carlson descreve, a imitação e a representação, aparentemente, parecem de facto afastadas de cena, pois o bêbado não imita as acções de bebedeira, efectivamente ele está mesmo bêbado e é mesmo um alcoólico. Contudo, um dos aspectos curiosos é que este exemplo parece induzir uma distinção demasiado definida e rígida entre representação e vida social, entre imitação e aquilo que Carlson designa por “raw material of everyday life”. Um outro aspecto problemático, é que essas premissas podem conduzir à indagação sobre se algo como um programa de reality tv poderá ser considerado como um espectáculo pós-dramático. Apesar de não dispor do enquadramento teatral de um palco, os intervenientes de um programa de reality tv não se encontram, em princípio, a representar personagens nem a interpretar textos pré-definidos. O interesse e o apelo para o espectador parece residir na observação de pessoas “normais”, em vivências aparentemente quotidianas, em grupo num habitat artificial fechado, sozinhas e isoladas na natureza, ou até mesmo em sua própria casa, revelando problemas familiares ou até patologias físicas, interagindo, discutindo, sentindo-se sozinhas e tristes, desistindo, superando-se em desafios e aventuras, apaixonando-se, cantando, cooperando, traindo, aproximando-se afectivamente e envolvendo-se sexualmente. O Alone e o Big Brother terão algo de pós-dramático? Ou pelo contrário, representa o pós-dramático uma oposição diametral aos pressupostos da observação e vigilância contínua da reality tv? Uma oposição que se estende até à forma de conceber o espectador, que na reality tv é tido como um distante observador voyeur e no pós-dramático é encarado como co-criador presente. A oposição é muito profunda, pois a reality-tv consiste numa forma de representação televisiva de carácter naturalista e mimético, que o actor Gary Oldman criticou com violência ao qualificá-la como: “the museum of social decay”. Estas questões sobre a abordagem televisiva à realidade encontram-se já presentes no argumento que citei atrás, Network (1976), de Paddy Chayefsky:

All of life is reduced to the common rubble of banality. War, murder, death are all the same to you as bottles of beer. The daily business of life is a corrupt comedy.

Outra pequena indulgência da imaginação: se em viagem à ágora de Atenas numa amena primavera de 330 A.C, por acaso nos cruzássemos com o filho do médico do rei Amintas III, o ilustre filósofo Aristóteles de Estagira, e respeitosamente, como convém a bárbaros, lhe perguntássemos com a ajuda de um tradutor o que é que ele pensa sobre o teatro pós-dramático do início do século XXI, que exclui o enredo e descarta as personagens, desprovido de texto dramático; que expulsou o dramaturgo e exilou o encenador, sendo baseado principalmente no espetáculo (opsis). Talvez Aristóteles não ficasse nada surpreendido e replicasse que a esse “espectáculo”, os gregos do século IV A. C chamam komos. A terceira parte das Grandes Dionisíacas, celebrações religiosas urbanas em honra de Dionísio. Este exercício de imaginação serve também para mostrar o seguinte: o teatro pós-dramático continuam a ser, em grande parte “pensável” dentro das categorias da Poética e da cultura clássica. Nesta perspectiva, os performers pós-dramáticos poderiam ser considerados como auto-eleitos sacerdotes dionisíacos, que acreditam piamente nos rituais do komos, sem contudo crerem em divindade alguma, Dionísio incluído. Seguem de peça em peça em pura imanência, como que em contínua procissão fálica, celebrando no palco os excessos desordenados do deus do vinho e do imparável fluxo cíclico da existência. Mas curiosamente, essa semelhança do pós-dramático com uma procissão de um antigo culto religioso pagão da Grécia antiga, pode também ser interpretada como uma forma de re-aproximação ocidental ao sagrado, como que tentando compensar um contexto cultural e social de crescente laicização e de progressivo afastamento do religioso, oficializado na modernidade pela certidão de óbito de Deus, forjada por Friedrich Nietzsche, filósofo que morreu mesmo em 1900. Mas mesmo que me sejam perdoadas estas digressões imprecisas e ficcionais, cuja utilidade reside apenas na produção de perguntas, a verdade é que (e regressando agora a um tom mais ensaístico) os pressupostos da presença performática do corpo do actor na cena pós-dramática representam também um afastamento radical de um dos principais sistemas de construção de personagens de Hollywood, ou seja, o realismo psicológico de Stanislavski e também o método stanislavskiano do Actors Studio de Lee Strasberg. Mas esse afastamento da representação não implicará um empobrecimento da arte de Téspis? O que é um performer? Um actor que está sempre a representa-se a si próprio? Se uma companhia de teatro pós-dramático apresenta o mesmo espectáculo em várias cidades, como é que depois do espectáculo inaugural, não estarão os actores a imitar? Não se aborrecem de ser sempre tão fieis a si próprios? Como é bem evidente, estas questões implicam um investigação distinta e muito mais aprofundada, mas decidi deixá-las aqui como partilha das minhas dúvidas e interrogações.

A porta do labirinto chama-se mimésis e são dois espelhos, um diante do outro

Xanadu, palácio incomparável, é agora sombrio palco da velhice e da solidão de Charles Foster Kane. Talvez ele nem se lembre já, que o fez construir à medida, não dos planos de nenhum arquitecto, mas sim dos versos de Coleridge: “In Xanadu did Kubla Khan / A stately pleasure-dome decree: / Where Alph, the sacred river, ran / Through caverns measureless to man / Down to a sunless sea.”. Mas continuando com Orson Welles e o seu filme, veremos que em certo momento, Kane atravessa uma sala de espelhos, e, alheio à sua imagem reflectida até ao infinito, o narciso esquecido de si mesmo, segue sem reparar. Para onde vai? Vai talvez contemplar um inquietante quadro dum pintor Belga, comprado há muitos anos atrás e que desde então repousa numa das paredes de Xanadu. Tem um estranho título: A traição das imagens. Kane contempla-o longamente, e pensa: “Talvez seja melhor mandá-lo queimar.”.

O aparecimento do cinema provocou no teatro um trauma semelhante ao sofrido pela pintura com o surgimento da fotografia. Um argumento possível para justificar esta afirmação é tomar como axioma a inegável interferência que as novas artes, fotografia e cinema, exerceram sobre uma categoria fundamental, quer do teatro quer da pintura em finais do século XIX – a mimésis. As dramaturgias de vanguarda contemporâneas, como o teatro pós-dramático, inserem-se numa longa e complexa dinâmica de reconfiguração em relação aos profundos e milenares fundamentos miméticos do teatro e representam um esforço de reposicionamento da arte teatral em relação ao cinema, tanto teoricamente como socialmente, pois procuram reinventar e estabilizar os seus fundamentos artísticos perante uma arte, pouco mais que centenária, mas que consegue imitar a vida duma forma socialmente amplificada a uma escala global.

A Palavra feita carne e a carne como única palavra

De um ponto de vista autoral interessa-me abordar narrativas que relacionem a vivência contemporânea com o sagrado e com o religioso. No argumento da curta-metragem Poesia de Segunda Categoria, tais temas estão já presentes, ainda que de forma periférica. Considero estes temas interessantes, não por procurar um púlpito para os propagandear, mas porque considero que as questões que inevitavelmente surgem através deles têm uma natureza fundamental na consciência humana: o que é a morte? Deus existe? Quando o cérebro desaparece, o que é que acontece às memórias? À memória do meu primeiro beijo? O que é o mal? O que é a verdade? Porque é que a beleza coexiste com o horror, lado a lado? Há consciência depois da morte? E que vida é esta, antes da morte? Duma forma muito assistemática são perguntas intemporais como estas que considero como que elementares da consciência individual. É claro que, as narrativas que me interessa ficcionar não serão ilustrações literais sobre o tipo de perguntas que enumerei (pelo tema ser religioso não quer dizer que a narrativa seja sobre sacerdotes ou fiéis), mas servem antes para colidir com essas perguntas. São narrativas que devem necessariamente transportar traços deste nosso tempo: a crescente urbanização, as implicações dos avanços da tecnologia, os paradoxos de um regime de ultra comunicação e de ultra solidão, a terra de ninguém entre espaço público e espaço privado, os desequilíbrios ambientais, os défices democráticos, os fluxos migratórios e a intolerância, a compaixão, a dimensão erótica e a sua ligação ao sagrado,(vide Êxtase de Santa Teresa, Bernini, 1652).

Um acelerador de partículas é uma grande e complexa máquina utilizada por físicos para acelerar e fazer colidir a altíssimas energias partículas fundamentais. Na sequência dessas colisões, os físicos observam detalhadamente como é que as partículas elementares se desdobraram e analisam em que partes é que se quebraram. Funcionando como metáfora, o acelerador de partículas pode ser também uma determinada estrutura narrativa que acelera até à maior velocidade possível, personagens que vão colidir contra certas perguntas (a “aceleração” tradicional das personagens é realizada através do conflito). Os princípios do pós-dramático constituem uma oportunidade de obter personagens quase livres do peso de um texto ou duma personalidade ficcional, são performers, pessoas de hoje, passíveis de colidir violentamente com perguntas que condensam ansiedades e interrogações presentes ao longo de incontáveis gerações humanas, e que, devido a essa presença contínua, foram sendo organizadas e conservadas socialmente na forma de religiões e preservadas também, numa dimensão mental composta por estruturas psíquicas ainda por cartografar e avistadas ao longe por Carl Gustav Jung (que as baptizou de inconsciente colectivo). Devido à natureza espiritual e transcendente de muitas das questões que enumerei e designei como elementares, o pós-dramático, com a sua ênfase no corpo, na materialidade e na imanência é uma espécie de anti-partícula dessas questões; constituindo assim, uma possibilidade de colisão entre a visão religiosa cristã da Palavra feita carne e a visão ateia da carne como a única palavra. É possível considerar os fundamentos teóricos do pós-dramático como um oposto dos princípios filosófico-metafísicos enunciados no prólogo do Evangelho de São João, “No princípio de tudo, Aquele que é a Palavra já existia.”. Ora para o pós-dramático, no princípio, não existe palavra nenhuma e muito menos existe alguém, um autor supremo, que tenha encarnado na forma de um corpo humano consubstancial com o Logos. Como pode então, um crente como eu pretender trabalhar com princípios assim, que no seu âmago, mais não são que a continuação do deicídio nietzschiano? São Paulo, na sua Carta aos Romanos, fala-nos duma forma particular de enxertia, entre uma oliveira bravia, um zambujeiro, e uma oliveira de boa qualidade:

Alguns dos ramos foram cortados, mas tu, não sendo judeu, eras como oliveira bravia e foste enxertado nesses ramos. Assim ficaste ligado à raiz e a receber seiva da oliveira de boa qualidade.

Através da selecção e integração de alguns princípios operativos do teatro pós-dramático, (alguns ramos), num projecto cinematográfico narrativo, é possível escapar a uma oposição teórica irreconciliável. Esses princípios operativos enxertáveis num projecto de cinema seriam fundamentalmente a recusa de uma fonte textual única e imutável e a utilização da dimensão criativa do trabalho dos actores como utensílio de reescrita do argumento. Se o teatro pós-dramático assume uma postura recolectora e omnívora, reclamando a possibilidade de fazer teatro a partir de uma imensa pluralidade de fontes, incluindo obras cinematográficas, parece-me legítima e de alguma forma complementar, a apropriação selectiva das energias criativas das práticas teatrais contemporâneas por parte do cinema. Mas de que forma se utilizariam essas energias? Tal como aconteceu no caso da curta-metragem Poesia de Segunda Categoria, o argumento só avançou dramaticamente quando foi exposto à influência dos actores, inicialmente através das tradicionais leituras conjuntas, mas muito mais profundamente através de reescritas efectuadas pela improvisação e experimentação durante a própria rodagem. Ou seja, é no próprio dinamismo da mise-en-scène que o actor parece dispor de maior capacidade de escrita. E esse entendimento do actor como escritor, faz com que a mise-en-scène transite de ponto de chegada para ponto de partida. Mas então cabe ao actor definir o texto do argumento? Comparando ainda com a experiência especifica da curta-metragem, a grande maioria das falas manteve-se igual ou similar às do argumento “literário”, i.e., anterior ao início da rodagem. No entanto, existiram cenas que durante a sua gravação, transitaram de interpretativas para performativas, pois os actores decidiram explorar uma abordagem alternativa à do argumento, aplicando uma tal energia criativa que a cena se transformou em algo diferente e superior ao texto do argumento. Nesta situação, o texto do argumento está para o actor, menos como uma partitura musical a ser interpretada nota a nota e mais como o bloco de pedra para um escultor. Apesar do seu carácter excepcional e imprevisível, a passagem do interpretativo para o performativo só pode acontecer se existir predisposição do realizador, do produtor e da organização da rodagem. O realizador deve esclarecer os actores sobre a validade dessa utilização criativa do argumento e o produtor deve preparar a produção para as demoras e desvios que tal abordagem implica. No entanto, no âmbito deste ensaio, em que não é apresentada nenhuma proposta concreta de narrativa, muito do que atrás foi escrito neste capítulo facilmente poderá ser criticado como vaga declaração de intenções. É um facto. Porém, uma vez que um dos objectivos deste ensaio é delinear um protótipo de produção construído indutivamente a partir das experiências de um projecto cinematográfico que conjugou influências do argumentismo aristotélico e do teatro pós-dramático, o primeiro passo nesse sentido será o de definir um espaço temático, ou seja, aquilo que já referi como “perguntas intemporais”. Sobre a concretização concreta de um hipotético acelerador narrativo de personagens performáticas, o que agora me é possível afirmar é que um dos materiais indispensáveis para a sua construção será a colaboração com actores dispostos a partilhar os temas que escolhi e familiarizados com os princípios do teatro pós-dramático. Outro elemento de construção desse protótipo será uma concepção da mise-en-scène, como espaço de intersecção entre cinema e teatro. Será esse o lugar onde através de uma história e de uma dramaturgia específica a performance de actores poderá ser acelerada até à colisão com certas questões sub-textuais. Personagens de hoje contra questões eternas. Como concretizar narrativamente em filme estas ideias, sem cair num experimentalismo auto-complacente, num palimpsesto melodramático, ou ainda pior, numa deriva didática panfletária ou catequética? Não sei. Ainda não sei.

Estatuto e texto

Existe uma anedota que circula no meio cinematográfico anglo-saxónico, que acaba por ilustrar o estatuto do argumentista e do argumento no âmbito da hierarquia patriarcal implícita ao processo de produção de Hollywood: “Como é que se descobre qual é a menos inteligente das actrizes? É a que dorme com o argumentista.”. O escritor, aquele que produz o texto fundamental da obra cinematográfica, é assim (des)considerado como o elemento mais distante do poder de facto e da capacidade de influenciar a carreira daquela, que para ascender profissionalmente como actriz, terá necessariamente de dormir com alguém. É uma anedota que, pelo seu paternalismo anti-intelectual e misógino, mereceria análise crítica mais demorada, mas já esgotei os desvios ao assunto. No cinema o texto é de tal modo acessório e funcional que não se pode prescindir dele, no teatro, o texto é de tal modo fundamental, que uma das formas de o manter sempre no centro é lutar constantemente com ele e até mesmo, abandoná-lo. No cinema não existe polémica nem instabilidade relativamente ao estatuto do texto, o argumento está bem arrumado e representa uma parte duma engrenagem mais ampla, uma etapa bem definida de um processo linear de produção. Por outro lado, no teatro, uma consequência da relação tensa e instável com o texto, é um longo trabalho de aproximação, e até mesmo, de recusa do texto como fonte única de teatro, sendo que, no caso específico das dramaturgias pós-dramáticas, essa escrita é concretizada através da interacção dos actores em cena, procedendo àquilo que poderia ser designado como textualização da cena.

Conclusão - Palavra e acção, cena e imagem

As dinâmicas subjacentes ao teatro pós-dramático influenciaram o argumento da curta-metragem Poesia de Segunda Categoria (2012) de forma determinante. O paradigma aristotélico do argumentismo norte-americano foi sendo progressivamente posto em causa através do questionar da hegemonia do argumento, como fonte dominante na criação do filme. Essa libertação da letra do texto reflectiu-se durante todo o processo de produção, incluíndo durante a montagem do filme, contribuindo também para quebrar a linearidade do workflow tradicional (pré-produção, produção, pós-produção), de natureza tripartida e sequencial. O confronto dialéctico entre o paradigma subjacente à escrita de argumentos da industria de cinema norte-americana, de matriz aristotélica, com outras linhas de concretização dramatúrgica baseadas numa valorização da performance das actrizes e dos actores, proposta pelo teatro pós-dramático, originou uma clivagem no projecto da curta-metragem, que conduziu não apenas à reformulação do texto do argumento, mas também a uma redefinição do papel do argumento no âmbito da rodagem de um filme.

Notas finais

1Génesis 32:22–32.

2Afluente do rio Jordão, que nasce na Jordânia e hoje também conhecido como rio Zarqa.

3The Academy Nicholl Fellowships in Screenwriting:https://www.oscars.org/nicholl/screenwriting-resources.

4Quoted in R. Moore, Niels Bohr: the Man and the Scientist (1967), p. 140. University of Copenhagen, https://www.nbarchive.dk

5A peça final da Arte da Fuga (Die Kunst der Fuge, BWV 1080), é o Contrapunctus XIV e termina inesperadamente no compasso 239 (Gould, no 233). Mas mesmo assim, é um exemplo de inteireza e de completude. Ou melhor, de forma paradoxal e pungente, talvez seja essa a mais completa de todas. Pois essa peça é aquela em que Bach, cego e já perto da morte, deixou incompleta, mas o que nela está em falta representa uma incompletude circunstancial que deriva do facto de ter que se morrer algum dia, servindo, no entanto, para incentivar simbolicamente os outros à composição e para contrastar com a imensidão daquilo que Bach deixou completo. Ou seja, a incompletude sonora da peça, confirma a completude solene da obra.

6Frederick Taylor (1856-1915) – engenheiro norte-americano, autor do Taylorismo - modelo racionalista de organização e administração científica do trabalho.

7in Art vs. McBurger Dramaturgy. Comparing American and European Cinema. An interview with Jon Bang Carlsen. Aarhus: P:O.V. No.12, 2001. University of Aarhus

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