Abstract
This essay presents a mapping of the historical concepts that contributed to the emergence of post-digital aesthetics and their connections to the concept of post-media in historical terms. It also analyzes the transition from techno-positivism to discourse of resistance against the effects of the capital technological industrial complex and how these advances in technology influence artistic discourses, practices and are the leverage of art and technology which is nothing more than a representation of the aesthetics of capital. Following art and capitalism as an ideology of innovation. Is proposed an unstinting theory about technology, geology, and the importance of these conditions to the post-digital aesthetics in terms of material disponible and conceptual articulation. Producing a reconfiguration of the post-digital conceptual approach as I propose beyond the dysfunctional aesthetics and connected with the concept of radical ecology centered in the usability of electronic garbage and technical obsolescent technologies in the arts.
Keywords: Post-digital, Radical-Ecology, Eletronic Wast, Capitalism, Aesthetics
História, colapso e resistência no pós-digital
Traçar as origens do conceito de Pós-digital é relevante para conseguirmos abordar o tema numa perspetiva histórica, sobre o impacto da tecnologia na sociedade e na produção artística, seus efeitos e consequências nos discursos e na produção da arte e como esta evolução é profundamente interligada com o complexo industrial e tecnológico do capital. Podemos então inferir que encontramos ligações históricas em autores como Félix Guattari e no seu conceito de Pós-media (1980) e “post-mediatic revolution” (Guattari,1985). Podemos citar o artigo “L’impasse post-moderne” (1986), onde já se refletiam o impacto da computação e das redes no tecido social, e o modo como estas tecnologias especializadas já estavam ao serviço de “minoritary groups” (Guattari, 1986) fossem ao nível mais institucional ou independente. As tecnologias acabariam por produzir uma condição “post-media” (ibid) entendida como a massificação das tecnologias digitais e computação como fenómeno hegemónico, por um processo de democratização dos dispositivos técnicos no contexto social e cultural. Na revista La Quinzaine littéraire, (Guattari 1986) o autor diz que estamos a entrar na Era Pós-Media. O pós-media é dependente da massificação das tecnologias no contexto social que, por sua vez, na minha argumentação constroem uma ecologia tecnológica proveniente do complexo industrial e tecnológico do capital, da sua produção de inovação tecnológica e proliferação de dispositivos técnicos que emergem como artefactos inovadores, como também de elementos de obsolescência da produção. Ideias que vão ser aprofundadas no decorrer da argumentação. Podemos, assim, dizer que Félix Guattari estava sensível ao impacto das revoluções do seu tempo. No artigo “Towards a Post-Media Era” (Guattari, 1990) o autor explorava uma argumentação sobre o impacto e junção da televisão, tecnologias telemáticas e informática, apontando para a era “Post-media” onde se evidenciava, na sua perspetiva, uma transformação da significação por intermédio da tecnologia que, por sua vez, influencia a cultura como o autor refere:
mass-media power that will overcome contemporary subjectivity, and for the beginning of a post-media era of collective-individual reappropriation and an interactive use of machines of information, communication, intelligence, art and culture. (Guattari, 1990)
Guattari apontava as mudanças e alterações que as tecnologias da comunicação viriam a exercer na cultura, indicando um tipo de positivismo tecnológico libertador e democrático, como fluxo do conhecimento partilhado e da revolução da sociedade da informação digital e da computação. O que se verifica é uma atitude crítica perante os efeitos da tecnologia, que vai recolher influência em autores como Howard Slatter com o seu artigo The post-media operator (1997). Propunha uma reflexão sobre o pós-media, como um momento de democratização dos medias, que gera uma nova forma de divulgação e exploração das ferramentas tecnológicas e dos meios de comunicação de modo mais anárquico na cultura de redes web, provocando uma disseminação de conteúdos descentrados das grandes corporações, “through the post, the telling of stories and news around a pub table, a distribution network of unseen nodes, ephemeral organisations, a promulgation of fiction,” (Slatter, 1997) conteúdo esse difundido por “ web-site, a zine, a limited-run-record-label, a pirate station, a flyer, a poster” (ibid). Este fenómeno de utilização e construção de conteúdos e disseminação pelas redes web, rádios piratas e outros vem contribuir para um efeito de “meta-categorical social practice of cultural creation” (ibid), definindo novos modelos de transmissão, cultura ou contracultura em práticas que não reconhecem barreiras disciplinares, conceptuais e formais, sendo o hibridismo o modo de operação. O mundo como rede e a tecnologia como poder de produção, informação e liberdade. Todavia, este era também o discurso como a tecnologia foi promovida pelo complexo industrial e tecnológico do capital. Neste ponto não existe uma tensão no discurso ou sistema teórico de resistência como se demonstrara no pós-digital. O que encontramos é uma reflexão sobre o potencial da tecnologia que é o reflexo direto do poder do capital e a sua capacidade de produzir o devir. Isto posto, e fora do positivismo tecnológico e como discurso de resistência, começam nos anos de 1990 a emergir outras ideias, que abordavam a tecnologia e o seu impacto na arte e sociedade como elementos de controlo e regulação. Apresentavam ideias que se opunham a compreender a arte e tecnologia como mais um elemento ao serviço da regularidade. Sendo neste ponto que as estéticas e discursos críticos pós-digitais começam a ganhar o seu corpo teórico, que geralmente é conceptualizado como estéticas da disfuncionalidade nos meios académicos e artísticos, recorrendo maioritariamente a Kim Cascone e ao conceito de “glitch” e “error” (Cascone, 2000) na música e artes sonoras. No entanto, existem referências anteriores como é o exemplo da Association for Strategic Accidents fundada em 1990 por William E. Kurtz, como um coletivo de artistas, logo após a queda da União Soviética. Esta associação procurava promover uma arte que envolvia o risco, de modo voluntário, na criação. Afirmava que o risco faz parte da cultura e comportamento humano e quanto maior o desenvolvimento social e tecnológico, maior o índice e risco envolvido nas ações e contexto. William E. Kurtz expunha, então, as seguintes ideias sobre a Association for Strategic Accidents compiladas no texto de Ed van Meegen de 2006:
The ASA claims that if we want to be progressive in a social as well as technological sense, we have to deal with the construction of risk. In our so-called free market economy, the social production of wealth is inevitably bound to the social production of risk. The accident is the manifestation of this axiom. The accident reveals the true identity of an object. (Kutrz, cit por Meegen, 1990-2006)
É interessante compreender que o efeito da progressão tecnológica em 1990 foi desencadeando um conjunto de ideias que propunham o acidente como paradigma para modelos de criação híbridos ou transdisciplinares, porque o “post-media becomes a practice that knows no bounds” (Slatter, 1997). São modos de remistura e mutação para gerar resultados teóricos e formais imprevisíveis com base na tecnologia como centro, ou como contra reflexão da operação da sua funcionalidade. Ideias que demonstravam uma oposição à regularidade tecnológica, assumindo o erro, o risco e a transgressão do discurso dominante tecno-positivista com valor potencial para a criação. Como mencionava William E. Kurtz no mesmo contexto temporal das narrativas artísticas de resistência contra o complexo industrial e tecnológico do capital:
The paradox we struggle with is that security can only be gained from experiencing risky situations or accidents. In order to progress, seeking the experience of risky situations and accidents would represent a more sincere attitude than the existing hypocritical desire to “gain security. (Kutrz, cit por Meegen, 1990-2006)
Portanto, o acidente é compreendido como uma força criativa perante os processos tecnológicos e contra a regularização de uma sociedade que tende para o controlo e regulamentação, sendo uma forma de liberalismo da ação individual contra o discurso do capital. Podemos, então, dizer que o conceito de descontrolo é simétrico nas narrativas do pós-digital como uma forma de rotura e de processo transformador, que procura libertar-se do discurso do capital onde a tecnologia é progresso e solução para processos de produção e organização social. Por isso é que Florian Cramer se refere ao pós-digital, utilizando o conceito de Kim Cascone (2000), “aesthetics of failure” (Cramer, 2015) e mencionando ainda que “It is an approach to digital media that no longer seeks technical innovation or improvement, but considers digitization something that already happened and can be played” (ibid). O que é relevante, na minha opinião, é a proximidade que existe entre os conceitos de Kim Cascone e os de William E. Kurtz e os fundamentos da Association for Strategic Accidents. Demonstra-se que em 1990 existia uma ecologia de ideias que problematizavam o impacto da tecnologia na sociedade e na produção artística. Para Florian Cramer, o conceito de pós-digital explora as seguintes ideias:
is partly ludicrous because it wrongly implies only one single moment of a historical break. It is not ludicrous as a descriptor of the reaction of arts to the cultural impact of digitization, rather than the heroic narrative of artists as technological innovators who prototype mainstream development that is typical for the mainstream field of “media art. (Cramer, 2015)
Peter Weiber, em 2005, organizou uma exposição intitulada Postmedia condition, explorando o conceito. Para Wieber, o pós-media é um fenómeno que atravessa todas as práticas artísticas - “The results can in turn be output as films, pieces of music or as architecture” (Weiber, 2012) -, atravessando os novos e os velhos media. Tudo se torna um processo de reconversão pela tecnologia, seja pelo computador, meio digital ou analógico, em suma uma simulação da qual não nos podemos excluir. Todos os processos de gravação, modelação digital ou analógica abrem novas possibilidades de combinação e simulação de lugares, características físicas de objetos e espaços, como escreve:
The impact of the media is universal and for that reason all art is already post-media art. Moreover, the universal machine, the computer, claims to be able to simulate all of the media. Therefore all art is post-media art. (Weiber. 2012)
A combinação e flexibilidade, trazida pelos meios digitais e pela computação como meio hegemónico, promoveram conceitos parentes do pós-digital, como o de “Pós-media” (Manovich, 2000) que coloca em questão o conceito de medium artístico e especificidade. A media e os seus dispositivos tecnológicos tiveram uma enorme importância nos discursos estéticos e críticos contemporâneos, e são parte da sua subjetividade. Manovich anuncia que o conceito de medium primeiramente foi transformado por influência de conceitos como assemblagem, happening, instalação e, posteriormente, por técnicas como a fotografia, filme e vídeo, apresentando novos meios técnicos de expressão e significação para a arte, cultura e sociedade por intermédio da tecnologia, levantando novos paradigmas de distribuição e cognição no contexto do que consideramos o pós-media. Resumidamente, podemos dizer ser o ponto em que conscientemente entendemos o seu impacto na sociedade e produção, que é também o ponto em que a sua premência de inovação e deslumbramento é substituída pelo conhecimento e objeto comum. Assim sendo, o digital veio trazer a terceira revolução que reformulou a noção clássica de medium. O computador, como símbolo máximo do complexo industrial e tecnológico do capital, é um sistema onde tudo se apropria, combina, integra e remistura num espaço multimédia virtual em relações múltiplas, entre som, imagem, texto e interação Apprich, Berry Slater, Iles e Schultz (2013), o termo Pós-Media atua como um elemento de aglomeração de um conjunto de tensões históricas que se situam entre 1990-2000 e que refletem uma mudança de paradigma nas análises culturais radicais. É o fim das perspetivas utópicas ligadas à net, para uma nova abordagem como os autores mencionam:
straddled both new media, offline social practices and older, even obsolete, media, eschewing any stable conformity to the disciplinary frameworks of art, politics or music. (Apprich, Berry Slater, Iles e Schultz, 2013:08)
Sendo assim, o discurso crítico perante a sociedade dos media, informação e o modo como a tecnologia começou a ser compreendida foi reconfigurando a rigidez dos media tradicionais e sua especificidade, a par de transformações que considero meta-políticas e que lidam com formas subjetivas de entender a tecnologia no contexto da produção artística. E que, no pós-digital como evolução do termo pós-media, vieram a ser ainda mais acentuadas. Por um lado, representando o fim da utopia tecno fascinada com o digital e, por outro, com base num processo de compreensão das consequências da digitalização, virtualização, imaterialização do objeto num fundo digital. Que é um espaço asséptico e controlado por imposições políticas dos funcionamentos do hardware e software que se refletem nos modos como o computador funciona, nos softwares e hardware e os seus protocolos de funcionamento que procuram a eficiência das ferramentas, usabilidade e processos de criação e anulação do erro. Deixa pouco espaço para o emergir de processos de imanência e erráticos, disfuncionais. Conceitos que vão ser impostos pelos artistas e estéticas pós-digitais na sua abordagem à hegemonia do computador e dos limites de sair dos protocolos funcionais previamente definidos na sua utilização. Revela um conjunto de tensões e resistências assacadas ao pós-digital que vão ser equacionadas. Mas, para já, centremos a nossa atenção na ecologia de ideias que alimentaram o que hoje consideramos como pós-digital e quais foram os autores que contribuíram para o aprofundar destas problemáticas. Então, o pós-digital além de ser um enquadramento concetual, pensa o impacto do digital na sociedade, nos modos de produção e na arte, e também o lugar onde as suas implicações negativas de regularidade tecnológica são negociadas criticamente. O pós-digital é assim o momento de consciencialização das mudanças discursivas sobre a tecno-utopia tecnológica do capital. As suas estéticas promovem essas ideias de transição com base no erro e ruído. Dito isto, para pensarmos esta transição e momento crítico e formal na arte e tecnologia, podemos recorrer ao que Robert Pepperell e Michael Punt mencionam sobre o momento pós-digital, que serve para aprofundarmos estas questões:
The term ‘Postdigital’ is intended to acknowledge the current state of technology whilst rejecting the implied conceptual shift of the ‘digital revolution’ — a shift apparently as abrupt as the ‘on/off’, ‘zero/one’ logic of the machines now pervading our daily lives. New conceptual models are required to describe the continuity between art, computing, philosophy and science that avoid binarism, determinism or reductionism. (Pepperell e Punt, 2000:2)
Para Robert Pepperell e Michael Punt, este processo de análise do pós-digital deve ter em conta três princípios de relação “such as imagination, technology and desire” (Pepperell e Punt, 2000;2) mediados pelo conceito de membrana postdigital membrane reiterates the idea of a symbiosis between desiring humans and machines” (Pepperell e Punt, 2000:84). E a cultura é uma membrana que engloba toda a atividade humana em toda a sua complexidade. A tensão dos discursos pós-digitais emerge como resistência dentro da cultura do fascínio tecnológico promovida pelo capital. E, ao mesmo tempo, é dependente dos excedentes do complexo industrial e tecnológico do capital e da produção dos excedentes tecnológicos ou obsolescências programadas das tecnologias descartadas, que os artistas do pós-digital utilizam e onde aplicam as suas metodologias de trabalho, como o circuit bending e hardware hacking. Práticas possíveis e relacionadas, como a ideia de valor económico dos dispositivos tecnológicos disponíveis ou a sua ausência. Este é um ponto relevante para compreendermos o pós-digital como um reflexo do excesso da produção associada ao sistema do capital tecnológico que produz as tecnologias e os seus excedentes utilizados pelos artistas. Estes procuram nesses dispositivos novas formas de funcionamento e reciclagens, servindo estas ideias para objetos ou eventos digitais de qualquer ordem. Porque neste pensamento já tomamos como garantida a flexibilidade dos media. Digamos que esta abordagem na arte e tecnologia é possível devido ao excesso de produção tecnológica que promove no quotidiano contemporâneo um conjunto de artefactos tecnológicos já desvalorizados em termos das trocas económicas e que são apropriados como materialidades disponíveis na arte. Florian Cramer afirma, sobre o movimento pós-digital, que alguns artistas tendem a utilizar tecnologias obsoletas de reprodução de áudio e vídeo como uma atitude “revivel” (Cramer, 2014:12), sendo o conceito post entendido “in the sense of post-punk (a continuation of punk culture in ways which are somehow still punk, yet also beyond punk” (Cramer, 2014:13). A palavra digital pode ser abordada como, “kind of connotation best illustrated by a recent Google Image Search result for the word ‘digital” (Cramer, 2014.13). Talvez as ideias de Cramer tenham sido influencidas por Iris Carver quando ela menciona que o cyberespaço é habitado e influenciador para os ““The Cybergoths – and the other cultic bodies that are beginning to populate the Net – are not passing crazes, but “sophisticated contemporary belief systems”” (Carver, 1998). Os Cybergoths como os Cyberpunks na minha opinião foram os primeiros sujeitos e atuantes implicados com a cultura computacional e o digital. Traçaram o caminho para os artistas integrados nas estéticas do pós-digital, utilizando a tecnologia como modelo de avanço social e produção de desigualdades, resistência e contracultura. Eles foram os primeiros a experienciar o “Millennium Bug” (the computer glitch caused by the coding convention that renders years as two, rather than four digits)” (Rosario, 1998). Um dos momentos históricos que aconteceu no ano 2000 foi o Y2K bug também conhecido como Falha Y2K. Este foi o termo utilizado para descrever um erro previsto nos sistemas informáticos na transição do ano de 1999 para o 2000. Este evento indicava um erro de lógica na programação de software e hardware, porque muitos dispositivos eram programados para uma contagem com dois dígitos. O problema é que, quando o calendário se alterasse de 1999 para 2000, o computador iria compreender que estava no ano de “19” + “00”, ou seja, 1900. Este problema traria muitos inconvenientes em vários níveis da economia e sociedade devido à quantidade de informação que poderia ser alterada nos mercados financeiros, entre outras áreas dependentes do armazenamento digital. Este evento fabricou uma generalizada consciencialização sobre a tecnologia e a sua possibilidade de falha e erro, coincidindo com a produção dos textos sobre o pós-digital, Cascone, (2000), Pepperell e Punt, (2000), Janne Vanhanen (2001), Kelly, (2009), (Alexenberg, 2011) e Krapp, (2011). Podemos constatar a importância destes temas no artigo de Melanie Newton intitulado Y2K Panic de 1999 e nas suas palavras:
Post-tribulationist eschatology slides smoothly into Y2K survivalism, orienting its volatile mixture of stock piling, micro-militia activity, technophobia and apocalyptic theology towards the self-fulfilling dynamics of millennial threat. Pre-emptive response produces reality (panic is creation). The more you know about it, the worse it looks. (Newton, 1999)
O evento Y2K levou o pânico a outros níveis como algo que se projetava no futuro, sendo assim um “scheduled by accident, and thus precisely anticipated in time” (Newton, 1999). Este sentimento de tensão atravessou a transição entre 1999-2000 em várias áreas da sociedade, produzindo o que a autora denomina de “technopanic syndrome” (ibid). Foi desencadeado um conjunto de ações governamentais e corporativas para controlar os efeitos deste evento, tendo sido o acidente, como a autora menciona, mais caro da história “Though entirely semiotic, it already amounts to the most expensive accident in history (whatever happens). $3.6 trillion and counting.” (ibid). Podemos assim dizer que o evento Y2K construiu as condições ideais para uma mutação da economia da informação, abordado como um trauma tecnológico, acelerando todo um conjunto de serviços das tecnologias da informação, da arte e da cultura preocupada com o colapso dos mercados como um “cyberspace-shock” (ibid) que começa a desenhar as limitações da sociedade digital. Abriu espaço para os conceitos de resistência no pós-digital no avanço para o que hoje compreendemos como sociedade da informação da data e inteligência artificial. No discurso de Newton, podemos encontrar referências ao conceito de acidente tecnológico, choque, apocalipse e trauma, que demonstram o tipo de discurso que estava a ser utilizado para abordar a tecnologia em termos conceptuais e os seus efeitos, no decorrer de 1990, e a significação e subjetividade em circulação.
A ecologia radical como paradigma
Dito isto, pensar a arte pós-digital e as teorias que a envolvem implica, na minha argumentação, uma abordagem de quatro ecologias que considero serem a ecologia do capital, da tecnologia, social e cultural. O pós-digital é uma estética profundamente conectada com a ecologia do capital, pois depende da tecnologia e do sistema de produção de artefactos inovadores que depois se tornam obsolescentes e descartados.
Esta é uma qualidade secundária do modo como a tecnologia é utilizada no pós-digital, como lixo-eletrónico. Tecnologias essas, que são construídas com propósitos economicistas no complexo industrial e tecnológico do capital e colocadas em circulação para ganharem valor económico por interação social e usabilidade. Facto que lhes confere nessa ecologia social um valor no âmbito dos significados, utilidades e representações imagéticas que estão além do objeto e suas funções: seja o valor subjetivo da marca na sociedade ou o estatuto que confere. Porque os objetos não são unicamente as suas funções. Existem valores simbólicos a eles associados. No mesmo sentido, podemos entender a ideia associada a arte e tecnologia quando utiliza conceitos como inovação, avanço formal ou novidade. Linguagens próximas do marketing utilizado pelo sistema do capital e que entram no discurso artístico de modo simbólico. Porque, se pensarmos, grande parte da arte e tecnologia utiliza os meios que estão disponíveis para produção num determinado tempo histórico e ecologia de relações, construídas no complexo industrial e tecnológico do capital. Também trabalha e serve com as suas invenções os artistas, artes e cultura. Nessa relação emerge a ecologia cultural do pós-digital. Utilizando a tecnologia numa segunda ocorrência como reciclagem, numa ecologia do lixo-eletrónico e da obsolescência. Facto que é revelado pela sua atração pelo erro e pelo glitch: as ditas estéticas da disfuncionalidade, que procuram ou simulam eventos erráticos sobre a regularidade dos dispositivos tecnológicos construídos com base na eficiência dos funcionamentos e design. Facto que também se evidencia na utilização de dispositivos tecnológicos nas práticas de circuit bending, entre outras metodologias empregues nas estéticas do pós-digital, que considero parte da dimensão materialista do pós-digital, e que ocupa grande parte da produção teórica sobre o tema com descrições analíticas dos processos para gerar erros. Como é o caso de Iman Moradi (2004) e Rosa Menkman, (2011). Dito isto, as estéticas pós-digitais são um discurso e resistência contra o efeito eficiente do software e hardware e a sua imposição de regularidade na produção artística, sociedade e usabilidade. São centradas no poder hegemónico do computador, entre outros dispositivos tecnológicos que proliferam no quotidiano, regulamentando a sua funcionalidade, de modo mais ou menos evidente, como ramificação do digital que é uma vivência generalizada como transmedia. Mesmo com estas condições, os artistas do pós-digital são dependentes do capital tecnológico num primeiro nível na inovação de novas tecnologias, sejam objetos ou conhecimentos que se democratizam na ecologia social, como por exemplo linguagens de programação que são libertadas no contexto social, porque já não contêm um valor de negociação para gerar lucro, como qualquer produto ou conhecimento produzido em contexto de conhecimento especializado. E, num segundo nível de utilização e reflexão, que se problematiza com a ideia de oposição à eficiência tecnológica, utilizando os despojos da indústria para inovar em termos estéticos e para pensar o extrafuncional, onde entra o errático e disfuncionalidade. Em suma, é na minha argumentação uma corrente artística dependente do excedente do complexo industrial e tecnológico do capital. O pós-digital é assim uma corrente estética e de pensamento crítico, que se opõe ao capitalismo desta era pós-industrial, problematizando-se dentro do sistema que lhe atribui valor e significado, com base no seu lixo-eletrónico e digital onde incluo o ruído de imagem e som, remisturas, colagens digitais, manipulação de circuitos eletrónicos, assemblagens de objetos tecnológicos. As estéticas pós-digitais são um reflexo da evolução capitalista e, por oposição, representam o seu idealismo. Os artistas do pós-digital aparecem assim como os recolectores sensíveis de uma sociedade de excessos tecnológicos que vivem na periferia da inovação institucionalizada, utilizando as matérias disponíveis da sua ecologia contemporânea com a ideia premente de estarem a produzir inovação. Este é um conceito interessante em termos culturais e de significação, porque demonstra uma completa ofuscação do que é inovação em tecnologia e o que se pensa ser inovação em arte. Sendo assim, aprofundarei mais estas questões relacionadas com o pós-digital, para propor que compreendamos o enquadramento do conceito como um tipo de discurso de ecologia radical e de resistência.
Inovação, obsolescência, arqueologia e os circuitos reciclados
O conceito de inovação nas artes que envolvem produção com tecnologia por vezes ofusca algumas das verdades e consequências da sua utilização. Parte dos seus materialismos e esquece a sua ontologia. Quero dizer com esta observação que é necessário questionar a materialidade dos dispositivos tecnológicos e suas funções de produção, utilização e conhecimento. Engloba a sua arqueologia, apontando também a sua ontologia, ou origem, para desvendarmos o seu aparecimento, o contexto, propósito e criação. Compreendo, inicialmente, que grande parte da inovação tecnológica está ligada ao complexo industrial e tecnológico do capital numa primeira ontologia e que, depois, chega à arte por uma democratização do produto. Comercializável com vista ao lucro e aos desejos sociais por determinado produto. Ou por processo de obsolescência que torna acessível o conhecimento ou produto na ecologia social, como lixo tecnológico. Inovar em tecnologia está no domínio dos saberes especializados, engenharia entre outros. Assim, relembro, estamos a lidar com conhecimentos especializados, técnicos, que estão fora do domínio dos artistas. O artista neste processo lida com estes dispositivos como sendo formas simbólicas, que pode manipular e de onde pode extrair significados sonoros ou visuais, mas muito raramente pode extrair evolução tecnológica. Pode, contudo, desenvolver evolução estética e formal nos campos de atuação nas artes. Assim, a utilização do conceito de inovação tecnológica nas artes é um reflexo do desejo dos artistas de produzir inovação, todavia isto acontece em modo simbólico porque esquecem a proveniência dos meios, facto que ofusca uma visão do artefacto criado e da sua ontologia, porque toda a manifestação de arte e tecnologia estabelece uma ligação com o sistema do capital e o discurso especializado da indústria. No pós-digital, o discurso é menos tecno-positivista, muitos dos artistas têrm consciência que trabalham com o lixo eletrónico, obsolescência e possivelmente fazem arte que envolve tecnologia num segundo nível de utilização. A manipulação do objeto técnico e da tecnologia na arte no pós-digital pode ser compreendida como uma atração por aquilo que Jussi Parikka denomina de “Zombie Media” (Parikka, 2012), que reflete uma constante desatualização de uma obsolescência programada profundamente implicada na cultura digital, porque como o autor escreve “Far from being accidental, the discarding and obsolescence of technological components is in fact integral to contemporary media technologies.” (Parikka, 2012: 425). As formas de arte pós-digitais podem ser compreendidas, assim, como arqueologia dos media, como um ramo teórico que extrapola considerações sobre medias desatualizados. Digamos que estas condições constroem conhecimento também como Parikka propõe: “media archaeology into an art methodology” (ibid). Devemos, então, para clarificar, entender o conceito de arqueologia dos media como:
extend media archaeology into an artistic method close to Do-It-Yourself (DIY) culture, circuit bending, hardware hacking and other exercises that are closely related to the political economy of information technology. Media in its various layers embodies memory: not only human memory, but also the memory of things, of objects, of chemicals and of circuits. (ibid)
Os artistas estão dependentes do complexo industrial e tecnológico do capital na arte e tecnologia para inovarem e, no pós-digital, do seu lixo eletrónico. Por isso é que proponho que se compreenda os discursos sobre o pós-digital como um pensamento de ecologia radical, tendo como base a ideia de reciclagem de tecnologias, preservação dos medias tecnológicos e reaproveitamento da obsolescência dos dispositivos tecnológicos. O mesmo se aplica quando pensamos em aplicar técnicas de manipulação em qualquer sistema para gerar glitch ou ruído. São meios de produzir comportamentos erráticos que podem levar o dispositivo a um estado de avaria, tornando-o assim integrado neste circuito de lógicas que apresento. Por conseguinte, o pós-digital lida com processos de atualização, inovação e desatualização dos artefactos tecnológicos e como eles são utilizados na arte. Facto que se relaciona com questões de valor de um determinado objeto e a sua duração útil num conjunto de utilidades e funções sociais, seja na indústria ou na arte. À vista disto, o que se desatualiza não é unicamente o tempo de duração de uma tecnologia promovida como nova, mas também o seu tempo de funcionamento e sentido de operatividade na ecologia social.
Assim sendo, a arqueologia dos media é para Ernst Wolfgang semelhante à ideia de “monumentality” (Ernst, 2005), sendo não narrativa e centrando-se mais nas condições tecnológicas concretas e não somente no conteúdo dos media. Temos que nos centrar em dispositivos tecnológicos concretos, através dos quais podemos entender a natureza e a cultura sob o vértice da temporalidade da cultura digital e eletrónica, a sua temporalidade perante um conjunto de funções na contemporaneidade e como o capitalismo e os seus excessos promoveram desenvolvimentos e evolução. Atualmente são questionados por intermédio dos discursos ecológicos e do antropoceno. Discurso que considero importante e onde o pós-digital também tem um espaço como ecologia radical, no sentido em que a ecologia é pensada como um discurso sobre o tecnológico e com base nos seus avanços positivos e negativos. Não é o discurso da salvação verde, nem da tecnologia como poder. Podemos dizer que é um discurso do excluído e da subcultura de atuantes periféricos ao grande sistema do capital, que vivem, atuam e produzem nas fronteiras da inovação com os restos da produção do complexo industrial e tecnológico do capital. Gosto de pensar que é o discurso do ghetto e das periferias onde as grandes lixeiras do e-garbage existem fora da visão tecno-positivista da arte e tecnologia como expressão de poder e inovação. É o discurso da resistência, da consciência dos efeitos da inovação, e o fim do discurso modernista de progresso tecnológico, como também do discurso pós-modernista da fragmentação e dos múltiplos significados na arte e sus subjetividade. O lixo eletrónico e os artefactos contêm uma carga histórica de um tempo, uma arqueologia que marca um discurso de preservação e talvez de resistência como forma de perpetuação do conhecimento, mesmo que seja por intermédio do objeto tecnológico híbrido e reconstruído que, na sua ontologia, preserva os circuitos “archaeology of circuits” (Parikka, 2012:427). É um discurso ideológico ligado à tecnologia que envolve economia, conhecimento técnico e tradições profissionais:
what appear as flaws in technical knowledge may be rooted in economic interests or a professional tradition. How much of what we think of as technical knowledge is better understood as ideology? (Gleim, López e Feenberg, 2019)
É neste processo ideológico que, na minha opinião, as estéticas pós-digitais abordam os conceitos de desgaste e desatualização e a tecnologia surge como “zombie media recycled into new assemblies” (Parikka, 2012: 229). Ou como Wolfgang Ernest menciona “media archaeology is less “about dead media, but media undead” (Parikka cit, Ernest, 2012:229). Outro autor que se debruçou sobre estas preocupações foi Bruce Sterling com o seu manifesto The Dead Media Project de 1995. A sua investigação sobre medias mortos ou desatualizados foi publicada no livro intitulado The Dead Media Notebook (2004), compilando a sua investigação sobre o tema e as tecnologias desatualizadas. Digamos que os artistas pós-digitais estão interessados em desenvolver uma arqueologia sónica, visual e objetal dos medias tecnológicos, utilizando a ideia de circuito como base problemática para refletir as questões inerentes aos media no pós-digital. O conceito de circuito é o que define a ideia de modernidade e a nossa condição perante as tecnologias da informação e os circuitos dos dispositivos tecnológicos - rádios, televisores, computadores, telemóveis, óculos de realidade virtuais e todo um sem número de máquinas tecnológicas - que nos envolvem no quotidiano transmediado. Estas representações inerentes a todos os meios tecnológicos são esquemas com condensadores, resistências, transístores e chips animados por eletromagnetismo.
Como menciona Parikka sobre este assunto: “The air is filled with waves of “disembodied” information technology, and culture is permeated with circuits of political economy. (Parikka, 2012:427). Esta é uma das condições da nossa subactividade contemporânea premiada pelos avanços para uma sociedade da “data”, dos algoritmos e da inteligência artificial, em que o pensamento ecológico nas suas mais variáveis se torna um significante que conecta os sujeitos ao mundo concreto das materialidades, perante uma evolução do virtual e dos algoritmos no campo digital. George Myerson sensível a estas transformações, apresentou o conceito de ecologia como a melhor abordagem concetual para enquadrar o fim do modernismo “the final breakdown of modern confidence, the settling up of accounts between exploited nature and an exploitative society” (Myerson, 2001:5) pelo impacto da tecnologia, produção, industrialização e um avanço progressivo dos excessos que, na opinião do autor, produziu uma ecologia de visão difusa de uma modernidade “self-destructive over-confidence” (Myerson cit, Vattimo, 2001:5). Esta ideia de progresso na tecnologia era mediada por um racionalismo inocente como teoria da salvação que prolongava a ideia da modernidade e industrialização, progresso científico e social, mas que para ser entendido como pós-moderno deve compreender que a ecologia é uma ideologia de pensamento das, más notícias, apocalítico, como consequência das condições ambientais e sociais. Como George Myerson afirma, a ecologia não é pós-industrial, ela aponta um futuro industrial e legitima uma “modern order” (ibid) à qual as estéticas do pós-digital respondem como forma de resistência. A ecologia radical “can be adapted to support the mainstream, at the same tome this ecology is the source of na alternative” (Myerson, 2001:7) porque o pós-modernismo como discurso de diversificação e polarização encontra hoje “limits both philosophically and in practice” (Myerson, 2001:8) porque sempre foi uma prática de pensamento em que se cruzavam “theory, fiction and news” (Myerson, 2001:9) numa dinâmica onde a tecnologia aparece promovida pelo complexo industrial e o capital como futuro, evolução e poder. Estas ideias sempre foram promovidas pela media como a grande narrativa ainda presente neste século XX, como aponta Myerson, “science was telling stories of heroic speculation, the wave of breakthroughs that were the engine of social and political progress” (Myerson, 2001:12). O progresso foi a “metalanguage” (Myerson, 2001:13) do mundo moderno e da sua visão que promovia o “triumph of science” (ibid). Os artistas pós-digitais são como hackers nesse mundo pós-industrial e promovem não o triunfo da ciência, mas o seu colapso. A arte pós-digital não procura o novo, mas sim a remistura, a reciclagem e o lixo eletrónico.
A ecologia tecnológica do lixo eletrónico e a estética do capitalismo
A massificação do computador é acompanhada de uma sociedade cada vez mais repleta de detritos eletrónicos e informativos, de lixo tecnológico que se tornaram o impulso das estéticas do pós-digital, em termos de contexto dos modelos de produção. Como pode ser observado no meu projeto produzido com material eletrónico descartado, como o Amplitude death: Chaotic Buffer Delay, Trashology VGA e Junksynth, instrumentos sonoros e visuais utilizados para a performance Trashology: 404///+E< ratic8 de 2014 que aparecem por ordem de citação na figura.
Figura 1 - Instrumentos desenvolvidos para a performance Trashology: 404///+E<ratic8. Hugo Paquete. 2014
A performance Trashology: 404///+E< ratic8, constrói-se com o recurso ao conceito de Low-hardware instrumentos e softwares construídos de forma independente serve como exemplo, dos conceitos em contexto. Estes “hyper-hardwares” (Paquete, 2014: 119), instrumentos e softwares Low-Tech desenvolvem-se pela necessidade de conceber um conjunto de instrumentos independentes das imposições meta-políticas e do capital implicadas nos funcionamentos do hardware e software.
Figura 2: Software Noise e Ontometa, Hugo Paquete. 2014
Figura 3: Software metanoiser e ZeroZero, Hugo Paquete. 2014
Abordar as estéticas do pós-digital deve ter em conta o que considero ser os discursos alternativos e os efeitos menos visíveis da produção do complexo industrial. Por exemplo, a exploração de recursos geológicos para produção de componentes eletrónicos, o que coloca o aparato tecnológico e a arte e tecnologia em contacto com a geologia. É um sistema de significados complexo com a natureza e os recursos, produção e excedentes. A tecnologia computacional, dos circuitos, é dependente dos materiais geológicos, logo existe uma relação entre tecnologia e geologia. Elizabeth Grossman escreve “The Information Age. Cyberspace. The images are clean and lean” (Grossman, 2006:4). É esta a ideia mais passada e partilhada do aparato tecnológico. Esquece-se que as geologias presentes nos componentes eletrónicos animam a tecnologia, permitem o seu funcionamento e têm um peso ecológico na extração mineira. Não se pensa no lado negativo da tecnologia, na sua ontologia. A arte e tecnologia tem uma ligação com as indústrias do capital e exploração dos recursos naturais “the high-tech industry is far from clean.” (Grossman, 2006:4) e suas consequências ecológicas. A arte e tecnologia estabelece assim uma ligação por intermédio dos dispositivos técnicos com o mundo geológico para produzir arte, tornando as manifestações sonoras e musicais produzidas com esses dispositivos tecnológicos relacionadas com a geologia e os recursos terrestres. A tecnologia e os avanços computacionais são assim um dos símbolos máximos do sistema industrial e tecnológico do capital e definem os modos de produção contemporâneos na arte.
O pós-digital como condição do capitalismo
A arte pós-digital e os artistas seguem duas vertentes dentro destas relações ecológicas. Alguns artistas mantêm uma atitude tecno-positivista, utilizando a tecnologia como indicador de inovação, poder e avanço do conhecimento humano. Enquanto outros apontam os efeitos dessa evolução, quando se centram na tentativa de transformar os funcionamentos regulares e as tecnologias para evidenciarem erros glitch ou “detritus,” (Cascone, 2000) na produção artística. Existe, por assim dizer, uma diferença nestes dois sistemas de pensamento. O primeiro utiliza o marketing do sistema do capital e o seu potencial para criar arte e acredita na sua dinâmica de inovação e promoção do novo que se associa a ciência e tecnologia. Traz para a arte uma dimensão de discurso institucionalizado, coletivo, empresarial, que procura integrar na arte o mesmo tipo de valor que é atribuído ao objeto e conhecimento desenvolvido no complexo industrial e tecnológico do capital. Este deve ser funcional e desejável de aquisição, comercialização e passivo de circulação útil no mercado. Os artistas, na segunda abordagem, procuram refletir como resistência os impactos da tecnologia na sociedade, sendo este o discurso mais recorrente no contexto das estéticas do pós-digital. Por isso, os artistas utilizam o lixo eletrónico, objetos de obsolescência tecnológica. Procuram também nos sistemas computacionais hardware e software. Artefactos de manifestações erráticas, que são “formas simuladas, recriadas ou apropriadas de produção de glitch” (Paquete, 2015). Sendo assim, estes artistas utilizam como discurso a resistência contra a regularidade funcional do dispositivo tecnológico e os seus prossupostos de controlo. Trabalham, portanto, de modo independente, não institucionalizado, porque o seu discurso não é tecno-positivista. Porém, os dois discursos fazem parte das condições económicas e de processo tecnológico atuais e suas tensões. O discurso, seja tecno-positivista ou de resistência, é dependente ou da produção, no caso do primeiro exemplo, ou dos excedentes, no segundo. Por isso é que considero que a arte e tecnologia e uma das suas vertentes, o pós-digital, são interligadas e representam a estética do capitalismo de uma forma diferenciada da pop arte, que se centrava no consumo. O discurso da arte e tecnologia representa o sistema e a sua ideologia, porque o conhecimento tecnológico é ideologia, logo é o que considero ser um discurso meta-político utilizado pelos artistas.
what appear as flaws in technical knowledge may be rooted in economic interests or a professional tradition. How much of what we think of as technical knowledge is better understood as ideology? (Gleim, López e Feenberg, 2019).
Desse modo, a tecnologia está carregada de ideologias de progresso e emancipação, do novo. É talvez aí que reside uma necessidade de os artistas se manterem próximos do discurso da inovação, utilizando o conceito de tecnologia como alavanca das suas ideias e promoção da sua arte A utilização de conceitos de arte e tecnologia, inovação e avanço procura uma atribuição específica que é conectada à tecnologia, ciência e inovação no modo como “Technologies realize values through their design and social contextualization”. (Ibid). A interação com as tecnologias, no contexto social, está ligada à atribuição de valor e significad, permitindo também análises e tensões mais negativas, onde se problematizam os seus efeitos de interação e não um deslumbramento com os seus funcionamentos. Digamos que é o reverso do positivismo e o início do criticismo tecno-positivista, que no pós-digital e na sua ecologia de conceitos reflete o “anthrobscene” (Parikka, 2014). O impacto da tecnologia na destruição do ambiente, na era do Antropoceno, é explicada pela profunda dependência da tecnologia relativamente aos elementos geológicos que a sustentam. Existe, então, uma relação entre geologia e tecnologia, no sentido em que todos os dispositivos do digital se encontram dependentes dos minerais existentes na terra. Esta ideia permite avançar concetualizações sobre a media arte, arte e tecnologia e o digital, abarcando uma narrativa diferenciada, mais centrada na condição do mundo geológico e suas possibilidades, visto que a tecnologia que apoia a produção de arte, nas suas mais alargadas configurações, é profundamente dependente dos materiais geológicos, para os condensadores, resistências e outros componentes utilizados em hardware e para o funcionamento software. É do conjunto destas condições que emerge e eclode o quadro conceptual que proponho para compreendermos o pós-digital com um discurso de ecologia radical. Este quadro conceptual permite, ainda, avançar o conceito que a arte e tecnologia está relacionada com uma produção artística no capitalismo avançado, de pós-industrialização e não se consegue desligar destes conceitos, porque toda a sua produção é dependente de novas evoluções tecnológicas, da disponibilidade geológica da extração e dos consumos e armazenamento de energia elétrica. Por isso, avanço esta ideia de que a arte e a tecnologia são realmente a expressão máxima do capitalismo, mesmo que nos discursos dos artistas estas questões não sejam óbvias e, por vezes, estejam num estado inconsciente. Mas não podemos excluir o significado dos suportes, materiais e suas ramificações de significado simbólico, tradições, conhecimento e economia. Elementos que defino como condições ontológicas que fazem os artefactos tecnológicos emergir. Quero dizer com isto que a materialidade com a qual a nossa obra é construída tem, por sua vez, um discurso implícito no material, e estabelece relações de significado simbólico com os conhecimentos para o manipular, numa economia que os torna disponíveis numa paisagem, lugar e tempo. Isto posto, o pós-digital e todas as correntes da arte e tecnologias são, no meu entender, resultantes e correlacionadas com a política económica do capitalismo e das sociedades pós-industriais e da sua velocidade de consumo. É neste ponto que a arqueologia dos media pode ser uma interessante ferramenta e metodologia. Não unicamente para pesquisar ideias de tecnologias perdidas, dispositivos estranhos tecno-progressistas, mas sim elementos diferenciadores críticos que pensem a tecnologia e sua evolução na rapidez que hoje é exigida entre uma produção que é pensada entre inovação e obsolescência. Não se pode esquecer os efeitos negativos e menos positivistas desse ciclo que faz parte de uma ecologia económica e política, onde se enquadra o entusiasmo tecnológico e de processo dominante em oposição a modelos mais críticos, como o do pós-digital, de entender a tecnologia e os seus modelos de produção na arte.
O capitalismo é entendido no contexto desta argumentação como um sistema de AxSys controlo e uma forma de atingir uma dominação planetária como sublime encontro com a tecnologia, no seguimento das ideias propostas por Trent. ”Ultimate terrestrial order. Pure Capitalism as consummate Idea of the Geostrata and concrete historical sublime” (Trent, 1997-2003). Ecologia onde todos estamos inseridos e dependentes desse sistema de regulação. Num contexto que é o do capitalismo como “Terminal configuration of terrestrial civilization” (Trent, 1997-2003). Estas ideias sobre o capitalismo eram promovidas pela sua ligação com a indústria, facto que é essencial no discurso dos teóricos dos media e na conceptualização do conceito de pós-digital e sua ligação e dependência do sistema capitalista.
Conclusão
O que se procura demonstrar é que as estéticas pós-digitais e a sua historicidade e conceptualização estão ligadas a um discurso meta-político na arte, intimamente dependente do complexo industrial e tecnológico do capital e seus avanços tecnológicos. Seja na produção, como nos significados estéticos que abordam criticamente discursos de resistência, erro, glitch e metodologias de produção que utilizam processos como o circuit bendind, trabalhando com dispositivos de obsolescência tecnológica. Nestas ecologias, o sistema económico do capital é fundamental para a arte e tecnologia tanto no recurso de produção como nos paradigmas críticos impostos pelo hardware e software. Emerge assim o pós-digital, como um tipo de discurso ecológico radical, e a arte e tecnologia, como som interligado com a geologia e os componentes eletrónicos que animam os dispositivos tecnológicos de produção.
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