Abstract
We agree with Jacques Rancière when he says “the act of writing is more than the exercise of a competence; it is a way of occupying the sensible and of providing meaning to this occupation” (2017). In the Recôncavo da Bahia, bodies and gazes are influenced by the experience of a black ancestral territory of oral tradition whose images and narratives were contained by an excluding Brazil. The UFRB, present in the region since 2006, offers a humanistic education, which fosters cultural entrepreneurs able to break the barrier of the hegemonic discourse and to give voice to images silenced and erased by history. It was in this powerful context that the directors Glenda Nicácio and Ary Rosa, through their own grammar and a local prosody, found a way of occupying this space and of taking the images of the Recôncavo to other spaces. Até o fim (2020), their third full-length movie, brings to the fore four black women, the Arcanjo sisters, who meet again after 15 years to toast the death of their father and to face their phantoms. Characters forged in ordinary life experiences help us denaturalize the blindness of these somber times. The narrative of death and the construction of “in-between” images (BOGADO, 2017) are film strategies that point to a form of fight and resistance. Facing an improbable country, the cinema asks us: how can we leave that island of embezzlement without drowning?
Keywords: Rosza Filmes, Aesthetic Experience, Historical Invisibilities
Introdução
A história da produtora coletivo Rosza Filmes e sua produção cinematográfica são atravessadas pelas políticas públicas dos governos progressistas de Luíz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Nesse período, implantou-se no Brasil um processo de ampliação e interiorização das Universidades Federais. A criação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, em 2005, inaugura uma página importante dessa história, com sua estrutura multicampi, está presente em sete cidades nesta região. Com a chegada da UFRB, no Recôncavo baiano, pessoas historicamente excluídas e invisibilizadas no âmbito do ensino superior são acolhidas. Cachoeira, primeira capital do Estado da Bahia, é a cidade sede do CAHL, Centro de Artes Humanidades e Letras. O campus abriga diversos cursos de graduação e pós-graduação. Trata-se de um território marcado por um passado colonial. Banhada pelo Rio Paraguaçu, muitos navios negreiros aportaram em Cachoeira, instalando um quadro de desigualdades que reverberam até os dias de hoje. A formação humanística da URFB tem gestado empreendedores culturais que conseguiram romper a barragem do discurso hegemônico e estão dando vazante a imagens silenciadas e apagadas pela história. Foi nesse espaço potente que os realizadores Ary Rosa e Glenda Nicácio, através de uma gramática própria e uma prosódia local, encontraram uma forma de ocupar esse espaço e levar as imagens do Recôncavo para outras margens.
A dupla de cineastas formados pela UFRB já realizou quatro longas metragens desde 2017, Café com canela (2017), Ilha (2018), Até o fim (2020) e Voltei! (2021).1 Uma produção premiada mundialmente, acolhida por festivais nacionais e internacionais e aclamada pela crítica. Felippo Pitanga (2021) considera que a estreia de Café com canela, no 50° Festival de Brasília, abalou o cenário cinematográfico contemporâneo brasileiro por tornar visível inúmeras demandas reprimidas. Vitor Velloso (2020) avalia que o filme Até o fim “é um dos maiores respiros do cinema nacional da década. ”
Afetada por este território – que é símbolo de resistência - Ary Rosa e Glenda Nicácio, enquanto realizadores periféricos, romperam fronteiras impostas pelo cinema hegemônico e trouxeram para as telas silenciamentos históricos, devolvendo aos sujeitos sentimentos de pertencimento e representatividade. Um cinema que performa saberes populares, subjetividades, formas de vida e afetos oprimidos.
Tendo como foco o filme Até o fim, nos perguntamos quais as imagens que emergem do espaço fílmico que manifestam as pragmáticas da expressão de um território assombrado por um passado colonial?
Até o fim e os fantasmas que assombram
Até o fim (2020), terceiro longa-metragem da de Nicácio e Rosa, traz para o primeiro plano quatro mulheres negras, as irmãs Arcanjo, que se reencontram após 15 anos para “beber” o pai morto e enfrentar os fantasmas do passado. Personagens forjadas na experiência da vida ordinária nos ajudam a desnaturalizar a cegueira destes tempos sombrios. A narrativa da morte e a construção de imagens do “entrelugar” (BOGADO 2017) são estratégias fílmicas que apontam para uma forma de luta e resistência.
Até o fim (2020) propõe um roteiro muito ousado justamente porque aparenta ser muito simples. Geralda, Rose, Bel e Vilmar, na iminência da morte do pai, se reúnem em um bar, a beira mar. O bar é de Geralda, irmã mais velha, única a permanecer na ilha com o pai. As outras três Arcanjo se impuseram um exílio de quinze anos; ao longo da narrativa, vamos conhecendo os motivos do afastamento da terra natal. A linha do tempo que apartou a convivência fraternal impulsiona uma revisão do passado, as irmãs atravessam a noite bebendo e conversando, principalmente, sobre as memórias de infância.
Para iniciarmos nossa reflexão sobre as pragmáticas do território que atravessam a cena fílmica em Até o fim, convocamos os escritos de Walter Benjamin. Em Infância berlinense: 1900, o autor a partir das imagens de sua infância, por meio de saltos na temporalidade, (re)constrói a vida social de uma época “Procurei conter esse sentimento recorrendo ao ponto de vista que me aconselhava a seguir a irreversibilidade do tempo passado, não como qualquer coisa de casual ou biográfica, mas sim de necessário e social” (BENJAMIN 2013, 69).
Os retratos da família Arcanjo são um dispositivo narrativo, um meio para acessarmos imagens silenciadas de um Brasil que nunca se viu na tela. Trazer à tona o colonialismo, um sistema de opressão, dominação e exploração, que castrou o desenvolvimento de identidades próprias, significa contender um passado que opera nas materialidades do presente. Retomar este assunto necessário é cutucar uma ferida que nunca foi estancada, e por isso, ainda sangra. Ao convocar o espectador a refletir sobre o colonialismo, outras formas de violências históricas são acionadas. Com destreza e sensibilidade, os realizadores operam linguagens que contingenciam a gestão síncrona do invisível e do visível relacionada a três fantasmas que vagam por estas terras ameríndias há séculos: o fantasma do colonialismo, o fantasma do racismo, e o fantasma do patriarcado.
Outra forma de colonização tão violenta como a territorial que podemos perceber no filme, é a do olhar. As imagens do cinema nacional brasileiro também foram colonizadas pelo olhar europeu e o estadunidense. O espectro do colonizador visita constantemente as estéticas das produções audiovisuais brasileiras. Quase que impõe uma gramática ou uma receita de como fazer filmes “bem-sucedidos”. A gramática fílmica da Rosza Filmes rompe com a estética contemplativa e normativa do colonizador, Até o Fim propõe uma outra experiência de fruição. A câmera, a montagem, os corpos e a verborragia das personagens se recusam a serem domesticadas. Nas palavras da crítica “Até o fim não é contemplação, é gerúndio de uma necessidade brasileira de expressão cinematográfica. É o provérbio de um povo a tanto tempo silenciado de seu cotidiano [...]” (VELLOSO 2020). O cinema da Rosza grita não apenas para denunciar formas seculares de opressão, também propõe outras formas de ver e (re)escrever a história. As irmãs Arcanjo ao partilharem seus traumas, conflitos e segredos convocam espectadores a refletir sobre seus contextos coloniais, de racismo, de machismo, para que reajam e intervenham nas suas materialidades históricas, e fabulem o porvir. Até o fim costura imagens que faltam e que substituem as imagens de violência que estamos acostumados a consumir sobre os corpos negros. O modo de aparição das imagens se dá, muitas vezes, por meio da insuficiência e precariedade do saber e do ver, ou seja, o cinema se apropria e ressignifica os mecanismos de apagamentos e silenciamentos empregados pelo opressor. A imagem, nos filmes aqui estudados, se forma em espaços intermediários, na articulação entre passado e presente, entre o silêncio e a fala, entre o primeiro e segundo plano, entre o dentro e fora do quadro, entre o mundo vivido e o mundo imaginado.
Invisibilidades e os modos de aparição do formato 4x3
No Brasil é significativo o número de produções cinematográficas que se lançaram em um espaço de trânsito entre memórias subjetivas e as memórias históricas, muitas vezes, negociando as visibilidades e as invisibilidades da história como forma não apenas de estar em um espaço híbrido, mas sobretudo de refletir sobre esse espaço. Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2014), Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015), Ela volta na quinta (André Novais, 2016), Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), Ilha (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2018) são alguns dos filmes mais recentes que trouxeram experiências limiares para discutir espaços fronteiriços de diversas ordens no cinema. Um cinema que quando encontra o silêncio fala, quando se depara com histórias ocultas as desenterra. Entre a memória subjetiva e a histórica, seus personagens, diretores e espectadores caminham pelas narrativas fílmicas carregando as histórias para “além da fronteira de nossos tempos”. (BHABHA, 2007, 23).
Para refletir sobre como o cinema que tem formulado, em sua estrutura fílmica, formas de passagem entre espaços interditados, temos adotado o conceito de cinema do entrelugar. “Partimos do estudo de Silviano Santiago sobre o de “entre-lugar”2. Santiago pensou o processo identitário, como um tecido de ligação entre diferentes culturas” (BOGADO 2017,16). A potência do termo, enquanto um espaço de interação, nos motivou a adotar o conceito para os estudos de cinema, não apenas pelo seu caráter agregador, mas, sobretudo, por percebermos que as narrativas fílmicas contemporâneas têm operado, por meio da linguagem, nesses espaços fronteiriços e silenciados no passado como forma de enfrentamento no presente.
A fotografia trêmula e arriscada desafia modelos impostos de enquadramento e composição clássicas: constrói outras estéticas (e políticas) que culminam novas possibilidades de linguagem audiovisual: nossas possibilidades de linguagem audiovisual, nossa oralidade imagética com acento próprio. A proporção da imagem exibida na tela é uma importante manobra expressiva que atinge em cheio a fruição espectatorial, bem como cria modos de aparição de afetos oprimidos, reorganizando regimes de invisibilidades históricas. Em Até o fim os realizadores escolheram o formato de tela 4:3, uma proporção que já foi categorizada enquanto “janela clássica”, mas hoje causa estranhamento. A proporção mais quadrada remete ao jogo dialético do tempo: entre o nosso presente distópico, de genocídio e encarceramento de corpos negros e o passado colonial. A forma menos retangular do que o 16:9 (widescreen) e o 21:9 (cinemascope) promove um corte na imagem, o 4:3, enquanto um quadro menor, acaba por deixar de fora uma porção da imagem. A força desse corte, em nada aleatório, aciona o olhar do público a buscar as porções de imagem que estão fora dos limites do quadro. Essa relação entre a parte visível e não visível da imagem potencializa o gesto fabulativo das personagens e dialoga simbolicamente com a narrativa. As memórias das irmãs Arcanjo trazem para cena inúmeras violências impostas pela figura paterna, incluindo o estupro da primogênita. Do abuso sofrido por Geralda, nasce sua “irmã” Vilmar. Vilmar desconhece sua história, não imagina que seja filha do pai-avô. Um segredo que não aparece no álbum da família Arcanjo. Um dos modos de aparição dessa violência vem através da relação de construção e dissolução do formato 4:3. No momento em que há uma queda de energia no bar, Geralda resgata a habilidade que tinha na infância de narrar histórias de terror para as irmãs pequenas. Sem luz elétrica, iluminada apenas por um lampião, a borda do quadro é desfeita. E enquanto Geralda narra a história fantasmagórica de um homem misterioso, o formato da tela permanece alongado enlaçando porções do quadro que até então permaneciam apartadas.
Fig. 1: As irmãs Arcanjo, formato de tela 4:3
Fonte - Até o fim, (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020, Rosza Filmes)
Fig. 2: Geralda, dissolução da tela 4:3
Fonte - Até o fim, (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020, Rosza Filmes)
A fabulação de terror contada por Geralda se assemelha a história do abuso sexual sofrido por ela. A estética da imagem, ao pulverizar a borda do quadro, sugere que não há fronteira entre a memória imaginada e a memória vivida da personagem. Hannah Arendt e Didi Huberman (2012), estudiosos do Holocausto sinalizam como “instantes de verdade” o movimento operado pela imaginação enquanto recurso possível para desenterrar a verdade, “Se a verdade faltar, encontraremos, contudo, instantes de verdade, e esses instantes são, de facto, tudo aquilo de que dispomos para ordenar este caos de horror” (ARENDT apud HUBERMAN 2012, 50).
Em Até o fim, não há sequer uma imagem do pai. Não ouvimos sua voz. Ele sequer tem nome. Mas sua presença no filme é sufocante. Os espectadores constroem os sentidos deste Pai seguindo seus rastros por meio do verbo, nas narrativas de suas filhas.
Para pensarmos essa imagem do pai fora de quadro, mas imponente na cena, vamos evocar os estudos de Marie-José Mondzain (2013). A partir da querela da imagem divinal entre iconoclastas e iconófilos, no período do bizâncio, Mondzain procura refletir sobre a patologia das imagens no mundo contemporâneo. Entendemos que o conceito de “economia” operado pela pesquisadora, seja uma contribuição revolucionária para os estudos da imagem contemporânea. No modelo econômico, defendido pela autora, a economia sequestra do ícone [imagem] o estatuto da arte. Para ela, é o jogo entre o enigma e mistério, a negociação entre o visível e não visível, o que está dentro e fora de quadro, operado pelo olhar de quem vê que é a morada da arte. Trata-se de depositar na circulação de sentidos e afetos, nos espaços entre o estatuto da arte. “Não é o ícone [imagem] que é uma arte é a economia”, diz ela (MONDZAIN 2013, 153).
A relação é a potência, a arte é um modo de aparição e não uma representação. O olhar que acolhe e reflete sobre as imagens é que instaura mundos. Quando Mondzain defende que a imagem da encarnação divina não é uma in-corporação, mas uma in-maginação abre-se uma janela para a fabulação. É nesse espaço obscuro, inexato, incompleto, construído pela poética do quadro no filme - em que o pai foi “economizado” - que o nosso olhar se instaura e, ao lado das irmãs Arcanjo, nossas memórias subjetivas e histórias são acionadas e passamos a fabular junto com elas. Ao refletirem sobre como a brutalidade do pai dizimou sonhos e possibilidades, Geralda diz sentir saudades do que elas poderiam ter sido, no entanto, Vilmar diz “A gente ainda pode ser. Quem tá morrendo é o velho”. O revisionismo histórico da herança colonial não é apenas lamento, das frestas da narrativa e do espaço fílmico brotam formas de intervenção.
Por um lado, o espectador deve ser libertado da passividade do observador que fica fascinado pela aparência à sua frente e se identifica com as personagens no palco. Ele precisa ser confrontado com o espetáculo de algo estranho, que se dá como um enigma e demanda que ele investigue a razão deste estranhamento. Ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel do cientista que observa fenômenos e procura suas causas. Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer as vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro. Nós reconhecemos estas duas atitudes paradigmáticas sintetizadas pelo teatro épico de Brecht e pelo teatro da crueldade de Artaud. Por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por outro, deve perder toda distância. Por um lado, deve mudar o seu modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve abandonar a própria posição de observador. (RANCIÉRE 2010,109-110).
A proporção 4:3 é quebrada no fim do filme, quando os corpos de Rose, Bel, Geralda e Vilmar cantam juntas a canção “Até o Fim”, de Arnaldo Antunes e Cezar Mendes. Seus corpos, em catarse, preenchem toda a tela, após resgatar, assimilar, enfrentar, e expurgar fantasmas que as atormentavam. Ao partilharem seus traumas e conflitos do passado decorrentes de uma truculenta relação com os fantasmas do colonialismo, do racismo e do patriarcado, reconhecem esse passado doloroso nos seus presentes, e por meio do afeto e da partilha, (re)constroem suas histórias.
Considerações finais
Não tem fim, esse filme. Ele é uma proposta de recomeço. Enquanto a imagem desaparece na tela, a canção ecoa sob o fundo preto, antes de serem introduzidos os créditos. As reflexões de Kênia Freitas e José Messias (2018), amparada em Mbembe, são capazes de fornir sensações que repercutem durante o breu (en)cantado: o futuro será negro ou não será [futuro]. Os referidos autores alertam que Achille Mbembe, filósofo camaronês, afirmou que uma em cada três pessoas será africana ou descendente de africanos num futuro bem próximo: daqui a 30-50 anos. “O futuro negro é o futuro da Terra”, articulam Kênia e José (FREITAS; MESSIAS, 2018, 7), mas o enigma que instiga Mbembe é: como converter essa “vantagem” demográfica em “riqueza” ou produção de “riqueza”?
Aqui, residiria sua visão de um futuro negro, um devir-negro do mundo, para Mbembe. Daí ele ser categórico em colocações sobre o “dualismo manifesto da negritude. Numa inversão espetacular, ela se torna o símbolo de um desejo consciente de vida, uma força emergente, alegre e plástica, completamente engajada no ato de criação e capaz de viver em meio a diferentes temporalidades e histórias de uma vez” (Mbembe, 2017: 6-7) Se o futuro planetário é negro, ao menos populacionalmente, como argumenta Mbembe, outra perspectiva afrofuturista que nos parece importante para a discussão desse texto volta-se para o futuro do passado. Nesse caso, para o entendimento que a população negra contemporânea é sobrevivente de um apocalipse, do nosso próprio processo de abdução. (FREITAS e MESSIAS 2018,7)
Até o fim não se esgota com o término da projeção. Ele se prolonga pelos debates, pelas conversas, por ações, que permeiam diferentes temporalidades. Ele está aqui, agora. O filme transborda a performance fílmica, na trilha de André Brasil (2011), e a alcança a dimensão performativa, pois convoca espectadoras a refletir sobre seus contextos coloniais, de racismo, de machismo, para que reajam e intervenham nas suas materialidades históricas, e fabulem o porvir.
Walter Benjamin cultivou uma perspectiva materialista e dialética da história – ocupou-se em pesquisar (dentre outros vários fenômenos) a força crítica de um fragmento do passado que interfere no presente, através da imagem. Assim, o tempo não é homogêneo, a história não é uma continuidade natural, e o presente é uma teia de vários momentos do passado:
O que distingue as imagens das “essencias” da fenomenologia é seu índice histórico. O índice histórico das imagens diz, pois, não apenas que elas pertencem a uma determinada época, mas, sobretudo que elas só se tornam legíveis numa determinada época. E atingir essa “legibilidade” constitui um determinado ponto crítico específico do movimento em seu interior. Todo presente é determinado por aquelas imagens que lhe são sincrônicas: cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (BENJAMIN 2006, 504-505)
A imagem dialética de Benjamin faz convergir teorias de história, do saber e da imagem. Na relação dialética, a captação de um instante no presente pode trazer um lampejo de um passado, de modo a reconhecê-lo – passado – no presente. É um estado de suspensão. Ou um despertar: de que a história não é linear. Ela é construída – e não apenas reflexo de. A imagem anacrônica possibilita revelar a historicidade por detrás e para frente dela, e que a História não é um destino, mas ação. Pessoas, em conjunto, através de suas ações constroem a história: portanto, ela pode ser transformada (e não apenas assistida).
Impossível ponderar negritude sem considerar deslocamento temporal: como podemos fabular um futuro livre da opressão racial e colonial? A questão pode ser reformulada na trilha do pensamento de Fanon (2008): como, refletindo sobre o passado, agora no presente, podemos descolonizar nossas mentes do futuro? “O problema da colonização comporta assim não apenas a intersecção de condições objetivas e históricas, mas também a atitude do homem diante dessas condições” (FANON, 2008, 84).
Bel, personagem de Até o Fim, é um excelente exemplo dessa provocação. No filme, Bel representa uma produtora do audiovisual brasileiro que ganhou um Oscar. Cabe salientar que muitos longas do Brasil já foram indicados em algumas categorias do evento, mas nenhum levou a estatueta para casa. Bel, uma mulher, negra, do Recôncavo da Bahia, conseguiu o feito: e ela não cansa de lembrar isso, até o fim. Bel inspira – nos rastros da fabulação crítica – novas visões do amanhã.
Ao passo em que Até o fim reconhece e dá a ver o apagamento de narrativas invisibilizadas fruto de violências que circundam o passado-presente, o filme não se contenta em denunciar opressões, ele dá um salto e fabula especulativamente o futuro, por meio de Bel, que instiga no imaginário coletivo fabulações especulativas de um futuro negro promissor. São imagens que faltam e que substituem as imagens de violência que estamos acostumados a consumir sobre os corpos negros.
No esteio do argumento que atenta às imagens que faltam sob o espectro da negritude, cabe trazer o afeto – esta palavra que é ao mesmo tempo imprecisa e específica, mas que demanda, provoca, perturba, interrompe, relembra, acolhe: o corpo… sensações, o inominável, o inenarrável, o indefinível: o afeto. Os filmes da Rosza são atravessados por esse termo, esse sentimento, essas imagens de dengo entre os corpos negros.
Em Até o Fim, o afeto entre as irmãs é articulado por meio do dissenso e da acolhida. Elas estão sempre num jogo de pirraça e risada. Isso também é afeto! Que está presente em gestos mínimos, como o abraço que Rose dá em Geralda após desatar um nó que perpassa toda a narrativa fílmica. Esse gesto, em detalhe, ocupa todo o quadro e a montagem dilata a sua temporalidade. O afeto também pode estar centrado na forma, como na cena em que Geralda prepara a moqueca de siri para Ary e Glenda, no começo do filme: a iluminação quente, a trilha sonora dengosa, os planos em close, a lente que ofusca a receita mágica.
A Rosza filmes está dentre aquelas produtoras que cavam um lugar entre, como uma amálgama do amplo conceito de Tercer Cine, que acende o debate de “um cinema de destruição e construção; destruir o modo de vida colonial e construir novos modos de agir e de viver” (NÚÑEZ, 2006, 236). Fabiàn Núñes (2006) articula Fanon para trazer à tona uma pergunta cheque: no momento da luta de libertação e emancipação de povos de países subdesenvolvidos, a cultura fica suspensa? “Em suma, a própria luta é um fenômeno cultural?” (NÚÑEZ, 2006, 233). O autor conduz uma resposta também provocadora do próprio Fanon à inquietação em comento: a cultura é a manifestação da consciência nacional, e a consciência nacional é a forma mais elaborada da cultura.
Na esteira desse fundamento, é salutar convocar Stuart Hall (2016), quando afirma que a cultura é uma produção que está sempre em mutação. O teórico cultural e sociólogo nos lembra que estamos em constante processo de formação cultural: “Cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de tornar-se” (HALL, 2016, 56). E o cinema é um dos dispositivos culturais mais poderosos de gerar imagens de mundos. Ele não só é uma ferramenta de captar e representar o mundo vivido, como também é um dispositivo capaz de incutir, no inconsciente coletivo, futuros imaginários socioculturais.
As linguagens operadas pela Rosza, em Até o Fim, cutucam o presente-passado em direção ao futuro, por meio de chaves poéticas que engendram novas experiências audiovisuais de percepção estética e produção ética, atenta à alteridade. Ratifica-se esta palavra – linguagens – no plural, tendo em vista que Até o fim articula dança, música, poesia, canto, performance, nesta outra linguagem: o cinema em ponto de ebulição que fabula existências negras a partir de múltiplas conexões.
Notas Finais
1Neste ano de 2021 também está previsto o lançamento do filme Mugunzá (Direção: Ary Rosa e Glenda Nicácio).
2A grafia do conceito de entrelugar existe com ou sem hífen, Santiago adotou o termo com hífen, nesta pesquisa empregaremos a palavra sem o sinal de hífen por entendermos de se tratar de um espaço que procura formas de passagem como possibilidade de implodir fronteiras.
Referências bibliográficas
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BOGADO, Angelita Maria. O Cinema do entrelugar: imaginários de um passado em fluxo na obra documental contemporânea brasileira. 2017. 176 f. Trabalho Tese (Doutorado em Comunicação) – POSCOM, Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.
FREITAS, Kênia; MESSIAS, José. O futuro será negro ou não será , Das Questões: v. 6 n. 1 (2018): Extremophilia.
HALL, Stuart. Diásporas, ou a lógica da tradução cultural. In: MATRIZes. V. 10 - Nº 3 st/dez. 2016, São Paulo. p. 47-58.
MONDZAIN, Marie-José. Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do imaginário contemporâneo. RJ: Contraponto, 2013.
NÚÑEZ, Fabiàn. O Pensamento de Frantz Fanon no cinema latino-americano. In: Comunicação&política, v. 29, nº3, p. 225-240.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.
SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco. 2000.
Filmografia
Até o fim. 2020. De Ary Rosa e Glenda Nicácio. Brasil: Rosza Filmes.
Arábia. 2017. DeAffonso Uchôa e João Dumans. Brasil:Branco sai, preto fica. 2014. De Adirley Queirós. Brasil: Ceicine.Café com Canela. 2017. De Ary Rosa e Glenda Nicácio. Brasil: Rosza Filmes.
Ela volta na quinta. 2016. De André Novais. Brasil: Filmes de Plástico.
Ilha. 2018. De Ary Rosa e Glenda Nicácio. Brasil: Rosza Filmes.
Orestes. 2015. De Rodrigo Siqueira. Brasil.
Voltei. 2021. De Ary Rosa e Glenda Nicácio. Brasil: Rosza Filmes.