Abstract
This conference proposes to investigate the methods of audiovisual description for people with visual impairments, as well as, from a case study, to deepen and problematize the exclusive sense of vision as preponderant in the reception of films. The scarce field of research on the processes and policies of inclusion in cinematographic art has gained relative relevance in recent years, above all, from the very question presented in films whose thematic of blindness is under discussion, among them: The miracle of Anne Sullivan (1962) by Arthur Penn; Dance in the dark (2000), by Lars Von Trier; Tirésias (2003) by Bertrand Bonello and Essay on blindness (2008) by Fernando Meirelles Bird Box (2018) by Susanne Bier.
Keywords: Cinema, Hybridism, Blindness. Disability visual, Audiovisual Methods.
Percursos de um método
Um método de leitura audiovisual não pode ser confundido com um manual passo a passo de condução. Antes de um método, ele se apresenta como uma conduta a partir da qual só é possível vislumbrar a sua eficiência levando em consideração um conjunto de práticas que protagonize o(s) sujeito(s) implicado(s) na fruição fímica. O desafio de descrever uma imagem, uma cena, uma atmosfera para uma pessoa com deficiência visual implica não apenas uma legenda a mais, diante da tela, mas um modo de coexistir na experiência do outro. Perceber seus diferentes tempos e modos de interação, além do visual imaginado, implica, sobretudo, afastar-se de um modelo capacitista que, muitas vezes, impede a fruição estética em sua ampla potência de significações.
O trabalho apresentado é fruto de uma pesquisa realizada com o artista multimídia com deficiência visual Thales Lopes, compreendendo assim um longo período de realização de leituras críticas, debates e reflexões em torno da cegueira, enquanto questão presente em filmes contemporâneos e experienciada em seu próprio modo de existir. Priorizou-se, através das relações artísticas (artes visuais, artes cênicas, performance, música), refletir o conceito de “não lugares”, proposto por Marc Augé, evidenciando o espaço fronteiriço entre os temas abordados na filmografia selecionada e analisada, assim como os modos de recepção pelo estudo de caso em questão. Além do dispositivo teórico e conceitual, selecionou-se cinco filmes, cuja temática envolve o hibridismo entre as linguagens, bem como a cegueira como tema e modo de fruição estética, são eles: O milagre de Anne Sulivan (1962) de Arthur Penn; Dançando no escuro (2000) de Lars Von Trier, Tirésia (2003) de Bertrand Bonello, Ensaio sobre a cegueira (2008) de Fernando Meirelles e Bird box (2018) de Susanne Bier. Para além do estudo e reflexão acerca do modo como a cegueira se articula e é apropriada pelo campo de investigação, e por diferentes linguagens, foi necessário pensar uma metodologia de descrição audiovisual em decorrência das necessidades do artista multimídia Thales Lopes. O vínculo entre a experiência do artista e pesquisador com a temática dos filmes constitui ponto crucial na condução das leituras audiovisuais realizadas, assim como na inserção de outros aportes possíveis que contribuíram para compreensão das obras selecionadas.
A ação da pesquisa centrou-se no modo de hibridismo entre o cinema e suas múltiplas possibilidades de diálogo com outras linguagens, campos e saberes, priorizando a experiência da sala de projeção como campo de experimentação sinestésico. Por se tratar de um artista multimídia, com habilidades no campo das artes cênicas, da pintura e do canto, foi possível inserir à audiodescrição dos filmes em outros espaços de experimentação dentro de outras linguagens. Para além da descrição das cenas foi necessário criar comparações entre lugares cotidianos presentes na experiência do pesquisador e artista com deficiência visual do artista. Entender o campo expandido da imagem projetada e descrita para além da descrição visual envolve uma interlocução entre as partes, paradas sucessivas, comparações entre o repertório visual, além de uma escuta atenta aos modos de captura da imagem. Buscou-se entender como as imagens visuais e sonoras repercutiam no modo por meio do qual o artista as recepcionava e como elas eram sentidas em seu corpo, bem como elas se efetivavam na experiência cruzada com os textos críticos e teóricos sobre os filmes. Dessa forma, priorizamos os aspectos que envolvem a temática da cegueira em filmes contemporâneos, inserindo a problemática dos diferentes modos de perceber e de sentir que o discurso fílmico provoca no observador. Assim, foi possível, paralelo às discussões críticas e teóricas, refletir sobre o lugar advindo da experiência do outro, de seu ser e estar no mundo. Para tanto, foram sistematizados os seguintes princípios condutores:
- buscar sempre, a partir da descrição audiovisual, o registro das sensações e percepções sentidas no corpo do artista;
- compreender como tais sensações e percepções se associavam à condição de cegueira vivenciada pelo artista;
- comparar, sempre que possível, a experiência de fruição fílmica com imagens e memórias cotidianas, incluindo as de caráter biográfico;
- intercalar as leituras teóricas e críticas, produzidas sobre as obras selecionas, com as maneiras de perceber e de sentir do artista multimídia, confrontando-as.
Esses recursos e dispositivos operaram em função de uma (re)poetização através dos enquadramentos, angulações, focalizações e edições de imagens que estão contidas nos traços apropriativos de alguns filmes, possibilitando novas formas de fruição. Para tanto, foi desenvolvida uma metodologia de descrição auditiva-gestual da imagem, bem como o aprofundamento do conceito e noção de “não-lugares”, proposto por Marc Augé (2012). Leitura preliminar que serviu de gatilho para a reflexão acerca do modo com que Thales Lopes, ao descrever sua condição diante do mundo e do contexto acadêmico e artístico, sentia-se.
A cegueira nos filmes selecionados aparece como um não-lugar possível de interelação com campos expandidos de emissão, produção e recepção. Um território nômade, a partir do qual mitos retornam e se ressignificam (Édipo Rei e Tirésias, por exemplo). Por algum tempo, o cinema esteve associado aos seus aspectos narrativos e de montagem (Griffith e Eisenstein), mas tão logo se consolidou enquanto linguagem passou a compor rico material de discussão, de reescritura e de apropriação, abordando temas polêmicos e se colocando como espaço de imersão, interação, reflexão comportamental, cultural e social. Nesse contexto, percebe-se que o tema da cegueira vem ganhando força na produção contemporânea, sobremaneira, enquanto agenciamento de mitos clássicos que retornam e modos de fruição e experimentação estética que apelam para distintos modos de sentir e de perceber o(s) sentido(s) do filme.
A metodologia adotada no desenvolvimento da presente pesquisa foi qualitativa e da ordem da pesquisação a partir de um estudo de caso. O artista pesquisador inseriu-se também como agente de auto-observação e partícipe, conduzindo e elucidando parte dos dados coletados. Primeiro, por sua cegueira e baixa visão ser decorrente de seu albinismo; segundo, por ser artista e desenvolver uma poética que envolve processos de criação a partir dos diversos modos de percepção do olhar. Para Evgen Bavcar 1:
Aceitar a cegueira é admitir o mundo dos objetos que manifestam a sua materialidade através das sombras que lhes asseguram uma realidade tangível, além da transparência absoluta do todo-visível. Não podemos virar reféns da luz fugindo à fatalidade mítica que nos priva da alegre fusão com a natureza, para poder tomar distância e entender o enigma da Esfinge. Por isso, nunca quis considerar a cegueira no mero plano individual, isto é, no gueto do grupo social do qual pertenço, mas sempre em um contexto mais amplo da experiência universal.
Nesse sentido, foi necessário realizar leituras presenciais e descrições audiovisuais dos filmes assistidos. Todos os encontros foram gravados e registrados. Antes da discussão sobre o tema da cegueira, buscou-se entender os princípios de alteridade entre a relação do olhar como meio próprio do teatro e do cinema, acrescidos de outras linguagens. Para Marc Augé: “Se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque os processos de simbolização colocados em prática pelos grupos sociais deviam compreender e controlar o espaço para se compreenderem e se organizarem a si mesmos” (Augé, 1994b, p.158).
Antes de passar para análise fílmica, foi necessário diagnosticar os diferentes modos de percepção da cegueira no campo das artes e de suas formas de representação. O estudo sobre o mito de Édipo Rei como protagonista da tragédia de Sófocles, trazendo a cegueira como forma de consciência do erro, espécie de punição, revelou-se de suma importância para pensar o tema em sua genealogia mítica. Os mitos de Tirésias e de Édipo se entrelaçam e constituem uma espécie de primeira matriz estética da temática.
Desse modo, a metodologia participativa envolveu criação de estratégias que facilitassem o entendimento do corpus sem, contudo, simplificá-los. A complexidade em trabalhar com tema próximo à realidade e à vivência diária do artista envolveu a preparação de materiais não só textuais, fílmicos, mas também interativos com outras linguagens. Adotou-se uma perspectiva interdisciplinar e transdisciplinar no sentido não só de diálogo com outros campos de saberes, mas de atravessamentos entre aspectos vivenciais e experimentais de percepção. Todas as orientações ocorreram em forma de “leitura dramática”, exemplificadas com objetos estéticos de diferentes linguagens. Os encontros com a orientação foram fundamentais, bem como o acompanhamento do Componente Curricular Cinema e Teatro, ministrado pelo orientador do Projeto de Pesquisa. A partir dos encontros e discussões, houve o desejo de compreender, entender e observar como o artista enxerga e reconhece as pessoas, os objetos e lugares no seu cotidiano, fazendo analogias dos espaços dentro do seu campo de percepção, partindo das informações captadas pelos outros sentidos (tato, olfato, paladar, audição). Nas análises fílmicas, iniciamos com mapeamento das cores, com noção de espaço, observando os signos dentro dos filmes previamente selecionados, sendo realizado o processo de audiodescrição através da dublagem em tempo real. Vale destacar, que os aspectos inclusivos que envolvem o cinema enquanto linguagem foram percebidos e explorados durante todo o processo de análise dos objetos e do papel do pesquisador frente ao tema e à sua experiência como artista.
Além da perspectiva temática, vimos que a cegueira aponta também para um autoconhecimento, uma introspecção ao mesmo tempo em que apela para outros sentidos, forçando-os a preencher lacunas e ausências. O próprio título da obra literária de José Saramago Ensaio sobre a cegueira (1995) traz no vocábulo ensaio a imprecisão do território, o ato de experimentar a partir do que não se vê, de recriar um mundo possível onde os limites do visível e do invisível sejam testados. Um olhar antropológico que seja capaz de descortinar a visão que tudo ofusca. Para Tereza Sá, referindo-se à obra já citada de Marc Augé:
A dicotomia lugar/não lugar é de certo modo uma dicotomia dupla, pois o que está em causa são simultaneamente os espaços construídos e os espaços vividos. Os primeiros, que correspondem ao “não lugar”, são aqueles que possibilitam a aceleração do tempo; os segundos têm a ver com as relações que aí acontecem. O autor estabelece assim um contraste entre as interações que se praticam nos “não lugares”, denominados relações de “solidão”, associadas à ideia de “contratualidade solitária”, e as que se praticam nos “lugares antropológicos”, denominados relações de sociabilidade. (SÁ, 2004, pp.212-213).
A ideia de sujeito descentralizado advém de um constante processo de deslocamento desde a modernidade à pós-modernidade. Tal fenômeno gera intensos encadeamentos de fragmentação territorial em que o indivíduo está localizado, onde esse mesmo sujeito será marcado por uma pluralidade de identidades nos variados contextos que ocupa e representa. É com base neste não-lugar, nesta não-integralização do sujeito que devemos pensar as interconectividades entre o cinema, o teatro, a dança, a música e demais artes. No entanto, embora cada linguagem possua suas especificidades, há um elemento de ligação que converge, segundo nossa análise, para o mesmo alvo, a saber: o corpo em movimento. Desse modo, ao deslocarmos as especificidades da linguagem cinematográfica, como, por exemplo, os aspectos de roteirização do texto e os espaços poéticos guiados por uma narrativa movida pelas ações de cada personagem em conflito e em não-conflito, constituem modos de percepção diretamente ligados ao espectador. Os aspectos cenográficos e as técnicas de enquadramento, angulação e edição não apenas provocam os deslocamentos, mas criam também áreas de (re)territorialização a partir de uma hibridização de territórios, anteriormente, previamente definidos. No livro Cinema em Choque: diálogos e fronteiras (2014), os escritores Carlos Gerbase e Cristiane Freitas afirmam:
Para evoluirmos na problematização do tema seria necessário tratar a questão das fronteiras entre linguagens, não mais como cercas que separam a experiência, mas como possibilidade que, a todo o momento, eventos artísticos escapam para o outro lado. Ou melhor, que ocupam aquele espaço entre as cercas, aquele não lugar, lugar de ninguém. Portanto, o conflito está não naquilo que cada linguagem tem da outra ou no que ambas compartilham, mas na mudança de concepção. Em vez de fronteiras, margens. (GERBASE, Carlos, FREITAS, Cristiane, 2014, p. 146).
O problema da margem, nesse sentido, conduz o cinema para esfera do social e de suas implicações enquanto arte inclusiva, fomentadora de debates e de questões que envolvem os espaços de inclusão e de exclusão da sociedade. Quando apontamos o corpo como núcleo estruturante para o qual concorrem todas as formas de linguagens artísticas na contemporaneidade, estamos afirmando não só o corpo individual, mas sobretudo, maquínico, poético e social. Nesse sentido, o cinema tem a capacidade de lançar nossos olhares para questões de amplo alcance, inserindo uma lente de aumento em lugares pouco percebidos, pouco abordados de modo consciente e crítico.
Da cegueira da tela à cegueira do corpo
Um dos primeiros filmes a abordar a questão da cegueira no cinema foi O milagre de Anne Sulivan (1962) de Arthur Penn. Nele, uma professora com deficiência visual é contratada por uma família para ensinar uma pré-adolescente a se comunicar, depois de inúmeras tentativas frustradas. A partir de um longo processo de adaptação, a professora estabelece um sistema de gestos que introduz a protagonista no mundo da linguagem e da comunicação. O filme mistura a linguagem cinematográfica com a pantomima teatral, o resultado é uma emocionante e complexa forma de ver o mundo sob outra razão, a do corpo. O sucesso da professora contratada em muito se deve a não querer “curar” a cegueira, mas compreendê-la em sua potência, sendo ela mesma portada em seu corpo, seu modo de organização no mundo permite identificar os pontos de acesso em relação ao outro, estabelecendo uma alteridade na identidade. O filme marca a inserção da cegueira como elemento estruturante do roteiro. Trata-se, portanto, de pensar o lugar de fala não só na arte, mas no campo da escrita e da política.
Imagem 01: Cena do filme em que a criança cega se rebela contra o método da tutora.
A experiência da cegueira, quando representada no cinema, assume diversas conotações. Do trágico à punição; da fatalidade à superação; do melodramático à ironia. Em Dançando no escuro, de Lars Von Trier, a personagem Selma Jezkova, imigrante nos Estados Unidos, portadora de uma doença hereditária que a fará inexoravelmente perder a visão, protagoniza o drama a partir de sua condição existencial. Ação, tempo e espaço dependem de sua condição. É a iminência da cegueira e o medo de ver também seu filho Gene ficar cego, o impulso que norteia todos os elos de tensão e de movimentação da protagonista na trama. As dificuldades das situações cotidianas enfrentadas por Selma, quando percebidas, através da audiodescrição por Thales Lopes, assumiram um processo de projeção-identificação e fomentaram a discussão acerca da cegueira como trauma e medo iminente, por parte da sociedade, de tal condição. O medo da perda da visão como condição trágica, no filme de Lars Von Trier, permitiu ampliar o espaço de reflexão, expandido-o para além da narrativa fílmica. A condição de estrangeira da personagem, no contexto fílmico, levou Thales a questionamentos sobre o trágico e o melodrama enquanto gêneros, além de instigar a problematização entre a aparência e a essência, ironicamente, tematizados no filme. Outro aspecto importante, foi o da percepção crítica das proposições levantadas por Lars Von Trier, entre elas: o gênero musical como espaço de fantasia e projeção onírica de Selma em contraposição aos fatos reais vivenciados no quotidiano da personagem; o problema do estrangeiro e do imigrante nos Estados Unidos, bem como a possibilidade de se perceber como estrangeiro em sua própria pátria, sensação que a cegueira também tangencia enquanto condição apartada de um mundo pensado para os videntes, incluindo o cinema.
Imagem 02: Cena do filme em que Selma canta na prisão.
Em Tirésias (2003) o caráter inclusivo se matem de modo ainda mais político, trazendo como ação apropriativa o mito grego para a figura de uma travesti brasileira em Paris. A apropriação aqui pode ser vista tanto como tradução do mito, quanto como atualização e reescrita (BEIGUI, 200). Nesse caso, a cegueira é exposta como parte de denúncia da violência para com o corpo diferenciado. O corpo minoritário do travesti (prostituta) é punido severamente pelos valores morais. A figura do Padre, nesse sentido, responsável pelo sequestro, isolamento, privação da visão e por cegar Tirésias corresponde ao ato de punição social. O filme aponta para uma tensão entre exclusão e inclusão, a partir da qual o mito é atualizado. Nos filmes analisados e lidos pela audiodescrição, foi possível compreender a cegueira como um espaço simultaneamente estético, ético e político através e, sobretudo, de sua organização em obras e processos artísticos híbridos. O cinema como território e arena de questões sociais e antropológicas constitui lugar privilegiado para inclusão de subjetividades e de diferenças. Entre as ruas de Paris, aparece Laurent Lucas, ator que interpreta o personagem Terranova. Nota-se um espaço diegético no momento da caminhada do mesmo. Logo depois, aparece uma voz narrando em pensamento do próprio personagem uma narrativa poética, a seguinte frase: “a cópia é perfeita, e o original é imperfeito”. Em seguida, ele aparece em um museu admirando esculturas de mármore, após este ocorrido, o mesmo reclama do seu próprio jardim por não ter rosas. De acordo com o mito, Tirésias visitava o monte Citeron, montanha da região central da Ática, consagrada antigamente ao deus Dionísio e às musas, quando de repente encontrou um casal de cobras venenosas copulando, e ambas se voltaram contra ele. Tirésias matou a fêmea e imediatamente se transformou em mulher. Sete anos depois, indo orar novamente sobre o mesmo monte, encontrou outro casal de cobras venenosas copulando. Matou o macho e se transformou novamente em homem.
Imagem 03: Cena do filme em que Tirésias dialoga com a personagem do velho que o abriga.
O artista multimídia Thales Lopes reconheceu a ambiguidade da personagem como condição de quem está dentro e fora ao mesmo tempo, na luz e na sombra, criando uma relação direta com a sua condição ambivalente.
Em relativamente recente artigo escrito sobre o livro do José Saramago, intitulado “O explícito e o implícito da cegueira social na obra de José Saramago, Cristiane Agnes Stolet Correia esclarece-nos:
A palavra ensaio tanto pode ser o verbo conjugado na primeira pessoa do singular do Presente do Indicativo como pode ser o substantivo. No título da obra de Saramago, por não haver nenhum artigo que delimite o nome ensaio fica a possibilidade de se entender o vocábulo nas suas duas acepções (verbo e substantivo). E por que não ser os dois? Primeiro vamos pensar a partir do verbo. Se Saramago escreve o verbo ensaio, quando eu o escrevo / leio, quando você o lê, o verbo continua conjugado na primeira pessoa do singular do presente do Indicativo, mas o referencial de primeira pessoa muda. Qualquer indivíduo que tenha contato com este verbo assim conjugado pode tomá-lo pra si, pode dizer-se: eu ensaio. O eu ensaio, então, passa a ser vários “eus” ensaiando. Como verbo, desempenha a função sintática de verbo transitivo direto. Quem ensaia, ensaia alguma coisa. Mas ensaia o quê? O eu ensaio, então, passa a ser vários “eus” ensaiando. Como verbo, desempenha a função sintática de verbo transitivo direto. Quem ensaia, ensaia alguma coisa. Mas ensaia o quê? Ensaio sobre a cegueira. Agora o vocábulo em questão foi compreendido como substantivo, núcleo do objeto. Sendo o núcleo, é a palavra principal, a mais importante, o que pode ser reforçado semanticamente pela preposição sobre que aparece em seguida. Sobre pode indicar “na parte superior de” (CORREIA, p. 01). 2
A ênfase dada em sua análise ao substantivo “ensaio” em detrimento da cegueira aponta não apenas para uma escolha, mas revela um discurso que afirma a cegueira como um outro espaço de negociação, não muito bem compreendido. Seguindo o argumento lexical da autora, é justamente a cegueira o sujeito do verbo “ensaiar”, é ela que permite uma visão sobre outra perspectiva e ângulo diferenciado. Espaço que parece ter compreendido bem o Fernando Meirelles ao transpor a obra para a película. É através da inexplicável epidemia, a “cegueira branca”, que acomete os moradores da cidade anônima que os desconhecidos passam a se conhecer e a, paulatinamente, se revelar. Ela, a cegueira, é uma espécie de Pharmakós (φαρμακός), veneno que tanto pode matar, adoecer, quanto curar. O aspecto social da cor, escolhida por José Saramago nessa diretriz é revelador. A neutralidade da cor branca aponta para uma anemia, uma neutralidade radical, uma apatia generalizante.
Entendemos que a cegueira tanto no livro quanto no filme deve ser compreendida como dispositivo estético e político, ela ativa nos acometidos uma sensação de parada frente ao automatismo da vida, funcionando como um chamamento para os valores já esquecidos dentro de uma sociedade produtivista e de consumo. Talvez, sua ação simbólica conduza a um não lugar (AUGÉ, 2012), cuja utopia não tenha se desfeito de todo. Uma esperança que requer para além da visão formatada, outras formas de percepção da realidade em sua infinita complexidade. A cegueira, assim, torna-se uma marca antropológica resultante de uma “visão” da sociedade, ela marca uma alteridade paradoxalmente à ausência de identidades fixas e singulares das personagens em ambas as obras (literária e fílmica). O visível e o invisível se mostram como lados de uma mesma moeda. “Ver” não significa muita coisa em um mundo no qual tudo nos afasta dos sentidos e processos e nos automatiza em uma corrente capitalista e, na maioria das vezes, desprovida de sentidos. O lugar do manicômio no filme é exemplar nesse contexto, ele atesta o espaço dos acometidos pela “peste”, ele representa a Nau dos Loucos, o lugar para onde seguiam, na Idade Média, os acossados pelo fenômeno da loucura (FOUCAULT, 1961, p.07).
A “peste branca” lembra de perto a que acomete Tebas quando Édipo adquire anagnorisis (ναγνρισις), a partir de seu inexorável erro: deixar de conhecer a si próprio em função de seguir o fluxo dos acontecimentos. Outro aspecto importante e, pouco abordado pela crítica, é a gestualidade da cegueira, isto é, a cegueira como um Gestus social no sentido que Bertolt Brecht atribuiu ao termo. Grande parte da crítica afirma que Fernando Meirelles optou por seguir o roteiro da obra, sem alterá-lo de modo significativo. Em verdade, há um elemento muito importante no filme que inaugura um tipo de cinema sinestésico que interage diretamente com o espectador, a saber: a tela do cinema em vários momentos fica branca o que faz do espectador um agente do filme, tomado e contaminado pela cegueira. Esse recurso ousado aponta para a quebra da quarta parede, recurso próprio da pièce bien faite do teatro realista.
Imagem 04: Cena da travessia em que as pessoas acometidas pela cegueira branca cruzam a cidade, guiados pela protagonista do filme.
A cegueira passa a se configurar, então, como um não lugar, paradoxalmente, como um modo de ver as coisas e o mundo; forma diferenciada de perceber os espaços decalcados e institucionalizados no sentido de Gilles Deleuze (1990). Tal relação fica evidente no filme. Nele, a cegueira é branca, negando o estereótipo do lugar “escuro”, ausência de luz, ela se revela pelo excesso de claridade. Outro fator importante, no filme, é o modo de entendimento do mecanismo que separa a cegueira coletiva da cegueira individual. Na concepção de Fernando Meirelles, ela se coloca também como uma doença social, impeditivo das relações humanas efetivas. Já no caso de Tirésias de Bertrand Bonelo, a cegueira traz a marca de uma atualização do tema pela ótica do transexual em sua experiência marginal e mítica, ela deflagra uma atualização do tema pela via apropriativa. No primeiro, a cegueira é comum a todos; no segundo, ela é individual e intransponível.
Bird box, aparentemente, repete a trama da epidemia coletiva, contudo, a interrupção da visão ocorre não por uma cegueira, mas por um excesso de visualidade. Baseado no livro de Joash Malerman no qual a protagonista no final cega a si mesma, o filme de Susanne Bier trai o destino distópico da personagem, Malorie. Podemos refletir sobre uma lógica da contaminação que aparece também em Ensaio sobre a cegueira, porém a lógica de contaminação assim como a perspectiva da cegueira ou privação da visão enquanto confinamento se mostram diametralmente opostas. Se em Ensaio sobre a cegueira predomina os aspectos de um humanismo social adquirido a duras penas, em Bird box, temos um humanismo voltado para o existencial. No primeiro, predomina a interação social e coletiva como “esperança” de regeneração do elo perdido; no segundo, é a experiência psíquica ameaçada pelo desconhecido, nossa caixa de pássaros, que se encontra no limite. Tratam-se de filmes que antecipam nosso atual contexto pandêmico e que preconizam, de certo modo, a ruína das relações e o isolamento da experiência nas sociedades midiáticas e de consumo. 3
Imagem 05: Cena da travessia do rio em que a protagonista carrega a criança, ambas privadas da visão.
A travessia, presente nas duas películas, torna-se uma metáfora poderosa do olhar para dentro e do olhar para fora. Tanto o rio em Bird box, quanto a cidade em Ensaio sobre a cegueira se revelam ao leitor/espectador como signos importantes, ambos apontam para a necessidade de se reinventar a partir de um mundo inadaptado para você. Na experiência de descrição audiovisual dos dois filmes, Thales Lopes explorou bastante essa ideia de adaptabilidade/inadaptabilidade do mundo às suas necessidades. A sua condição também de pessoa com albinismo revelou-se importante para associação com a “cegueira branca”, presente no filme de Fernando Meireles e posteriormente no livro homônimo de José Saramago. O branco como espaço e condição de invisibilidade, transparência e traumas de sua fase escolar repercutiram na fruição por parte do artista multimídia.
A audiodescrição é encontro e não transcrição
A partir das leituras realizadas, filmes analisados, encontros e seminários, percebemos que o cinema dialoga desde seu surgimento com outras linguagens, mas que sua inserção em abordagens antropológicas, históricas, filosóficas e sociológicas é bem mais recente. A possibilidade de compreender os filmes como material de reflexão dentro de áreas interdisciplinares permitiu melhor compreender a cegueira para além do campo temático e transpô-la a outros lugares e territórios, ao da própria metodologia em jogo na descrição audiovisual para pessoas com deficiência visual. Thales Lopes, descrevendo a experiência da leitura, proporcionada em um dos momentos da experiência audiodescritiva, do filme Tirésias, revela-nos:
O dialogo e a voz do leitor sempre antecede a cena, e aos poucos vai introduzindo o cenário e as ações dos personagens, associando também objetos do cotidiano, ligados ao meu cotidiano, aos que aparecem nas cenas como, por exemplo, um banco de jardim em frente ao Departamento. A leitura das imagens é acompanhada por pausas, respeitando o meu tempo de apreciação, os símbolos descritos são elucidados e referenciados, estimulando a pessoa com deficiência a anotar e registrar perguntas, a pensar e a pesquisar a simbologia e sua representatividade dentro do filme. É sempre uma leitura poética, não só descritiva dos cenários e figurinos. Por exemplo na descrição da cena em que Tirésias assume o lugar de ele e de ela, simultaneamente, abre-se para uma discussão sobre androginia e identidade de gênero. A discussão se encerra sempre com uma frase poética, como por exemplo: Aparece a imagem do fogo que clareia, a larva tem a ver com a escuridão opacidade, com a lagarta em transformação e metamorfose.4
Na qualidade de agente diretamente ligado à problemática foi possível estabelecer uma relação entre sujeito e objeto da pesquisa, priorizando os aspectos cartográficos da cegueira. Por ser um pesquisador e também um artista, a escolha do tema foi de fundamental importância para a constituição de um método capaz de inserir a experiência e a prática artística nos campos de investigação abordados. Os cinco filmes revelam três modos de percepção distintos de pensar a cegueira, apresentando-a ao espectador como dispositivos estéticos, éticos e de agenciamento social, importantes na composição de sua identidade no mundo. Portanto, conclui-se que a cegueira ocupou e ocupa espaço importante na configuração estética ao longo do tempo, sendo relida em diferentes épocas. Ela potencializa, dessa forma, não apenas seu caráter de “deficiência”, mas de diferença, permitindo ser observada por distintos ângulos. Durante muito tempo, a cegueira esteve associada apenas à patologia. Contudo, nas obras contemporâneas analisadas, percebe-se sua força inclusiva enquanto fruição estética de temas marginalizados. O desenvolvimento da presente pesquisa abriu um vasto leque de possibilidades para exploração do ponto de vista acadêmico-científico em outros futuros projetos de investigação.
Notas
1Texto “Um outro olhar”. Evgen Bavcar é fotógrafo com deficiência visual e pesquisador do CNRS (França). O texto citado foi traduzido por e Francis Poulet, estudante de Antropologia em Lyon, França; revisão de Maria Carolina Vecchio e Freda Indursky. https://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/bavcar_evgen._um_outro_olharcartografias_e_devires_2003.pdf. Acessado em 18/04/2021.
2https://docplayer.com.br/21686786-Titulo-o-explicito-e-o-implicito-da-cegueira-social-na-obra-de-jose-saramago.html . Acessado em 10/04/2021.
3O coronavírus se tornou, desde 2019, uma pandemia mundial. Atualmente, o Brasil é um dos epicentros da doença. No país são aproximadamente 400.000 mortos.
4Parte do texto produzido pelo artista sobre o tipo de audiodescrição adotada, após a sessão do filme Tirérias (2003), de Bertrand Bonello.
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Filmografia
O milagre de Anne Sulivan (1962) de Arthur Penn. DVD.
Tirésia (2003) de Bertrand Bonello. DVD.
Ensaio Sobre a Cegueira (2008) de Fernando Meirelles. DVD.
Bird Box (2018) by Susanne Bier. DVD.
Figuras
Imagem 01
https://turismoadaptado.wordpress.com/2017/01/21/o-milagre-de-anne-sullivan-filme-baseadio-na-historia-real-da-surdocega-helen-keller/ Acessado em 13/04/2021.
Imagem 02
https://www.uziporai.com.br/2019/05/cinema-um-filme-que-todo-o-mundo-deve-assistir-o-milagre-de-anne-sullivan.html. Acessado em 13/04/2021.
Imagem 03
https://www.juponline.pt/opiniao/artigo/37422/ensaio-ficcao-negacionismo-realidade-pandemica.aspx. Acessado em 13/04/2021.
https://magicopensamento.files.wordpress.com/2015/01/tiresia2.jpg. Acessado em 13/04/2021.
Imagem 05
https://filmow.com/dancando-no-escuro-t4764/. Acessado em 13/04/2021.