Abstract
The purpose of the article is to analyze, on the theories that guide the concept of expanded cinema, the two autobiographical works “Varda by Agnès” (2019) and “The Beaches of Agnès” (2008). While “Varda by Agnés” is based on a conference by Varda to reflect about creation process movies, “The beaches of Agnés” deals with the same object, but with an essayistic approach. In both works, the filmmaker of franco-belgian origin leaves traces that can be described and analyzed, and suggest clues in which we can reflect on the process and meaning of the her work, through the prism of convergency thinking. In this way, we intend to reflect on the meaning of the three fundamental words mentioned by Varda at the beginning of the film “Varda Por Agnés”: inspiring, creating and sharing. Therefore, “inspiring”, reading image references, the concept of “creating”, analyzing the creative processes, and how these art installations by Agnès Varda dialogue with his films – essays, and the meaning of “sharing”, observing how the process of displacing Agnès Varda’s works takes place from the conventional exhibition hall to art installations, and report the ways in which the artist shares experiences with viewers and displays them in different dispositives and spaces. This work’s proposal is also understand how the artist articulates representations, narratives and as they overflow to spaces other than those traditional exhibition halls and how other forms of art and media converge in the works of Agnès Varda, especially painting and photography. For this I will use the methodology proposed by Cecilia Sales (1998), analyzing the artist’s creation process, and traces left in testimonials granted in his autobiographical movies.
Keywords: Create process, Expanded Cinema, Agnès Varda, Convergences, Art installations.
Introdução
“Três palavras são importantes para mim: inspiração, criação e compartilha. A inspiração é a razão pela qual se faz um filme; a criação é como fazemos o filme...(...); a terceira é compartilhar: não fazemos filmes para assisti-los sozinhos, fazemos para mostrá-los. No fundo, é preciso saber o motivo daquele trabalho.”(Varda por Agnès, 2019).
Partindo desta premissa citada no início do filme Varda por Agnès (2019), o presente artigo, amparado em uma pesquisa em construção, se propõe a debater reflexões sobre o processo de criação de Agnès Varda, à luz dos teóricos que tratam sobre o conceito de cinema expandido. O objetivo é analisar as “palavras-chaves” mencionadas como possíveis instâncias de um processo criativo, verificando como a artista articula as representações, as narrativas que transbordam para outros espaços além das tradicionais salas de exibição, bem como outras formas de arte e mídias convergem nas obras de Agnès Varda, sobretudo a pintura e a fotografia. A partir de uma metáfora visual da figura desta cineasta como uma galáxia espiral, percorremos os caminhos desta espira de pensamentos desde a origem, onde nascem as reminiscências, reflexões e idiossincrasias pessoais, atravessando o processo de criação que lhe denota seu caráter estilístico e autoral, e se abre em um movimento de compartilhamento e na forma como esse cinema vardaniano se expande e se movimenta em torno de si pela convergência da memória da artista.
O último filme da cineasta é uma espécie de masterclass de cinema, um documento audiovisual no qual ela descreve sobre seu processo de criação, do prazer do acaso, em incluir partes da realidade em filmes ficcionais e da ficção em realidades documentais. Comparada por jornalistas e críticos a escritoras da envergadura de Virginia Wolf, Collete, Marguerite Duras, Agnès Varda costumava escrever todos os seus roteiros, uma marca do seu trabalho autoral o qual ela descreveu como cinescrita. Teóricos categorizam-nos também como filmes-ensaio, e avante das conceituações, as obras de Varda se expandem além das telas, trazendo elementos de composição, movimentos, pontos de vista, cor, referências em pintura e fotografia. Importante ressaltar que o último filme da cineasta é também o seu segundo filme autobiográfico, que ao completar 82 anos já havia produzido também “As praias de Agnès” (2008), outro importante documento audiovisual para investigação do percurso criativo da autora.
A partir desses documentos audiovisuais, podemos analisar fragmentos e afirmações da obra de Varda, que poderíamos considerar, na perspectiva de Cecilia Sales (1998), como vestígios deixados pela artista no documentário, ao explicitar generosamente o seu fazer criador, construindo os nexos onde se orientam os movimentos do olhar. “O interesse não está na forma, mas na transformação de uma forma em outra, por isso pode-se dizer que a obra entregue ao público é reintegrada na cadeia contínua do percurso criador.” (SALES, 1998, p. 19).
Sales comenta sobre os rastros deixados pelo artista como indícios dos percursos de criação. Agnès Varda torna claro de antemão nos documentários analisados, quais seriam as principais pistas para entender um pouco mais da trajetória de sua obra, bem como da relevância do documentário na discussão do audiovisual contemporâneo, em sua diversidade e processos de produção. A pesquisadora chama a atenção para materiais que relatam os processos criativos do autor, como no caso dos filmes de Varda que são basilares nesta pesquisa.
Sales também propõe um conceito de autoria de interação, uma autoria considerada distinguível, que não pode ser apartada dos diálogos com os outros, onde a questão de autoria se estabelece nas relações, ou seja, nas interações que sustentam aquilo que ela denomina como redes de criação.
Este modelo é analisado em um contexto das discussões acerca do cinema autoral, a partir do ambiente onde se perfazem as interações, dos laços, das interconectividades, dos sentidos e relações, em um contexto de complexidade, onde a criação é vista como um processo de transformação que “se alimenta e troca informações com seu entorno, se apropriando do mundo que a envolve” (SALES,1998, p. 96) .
O objetivo desta pesquisa, de certa forma, é seguir este traçado convergente de interações que unifica toda uma rede de criação autoral, partindo de uma dimensão ontológica e interpretativa do estudo de imagens, o qual trataremos como a instância do inspirar; discutir sobre procedimentos e recursos estilísticos no uso desse inventário imagético, o qual trataremos como a instância do criar; e, finalmente, entender de que modo este ciclo encerra sua completude no circuito da análise do processo de criação, pela reflexividade poética das convergências dos filmes para as videoinstalações, dos deslocamentos e das relações de espectatorialidade, e o qual denominaremos instância do compartilhar.
1. Inspirações: um inventário imagético refletidos em um espelho do pensamento
Roland Barthes comenta na teoria do “terceiro sentido”, que poderíamos distinguir três níveis na imagem fílmica: um nível “informativo”, que nos remete a um tipo de conhecimento originário do cenário, dos personagens, do figurino; um nível simbólico que diz respeito aos símbolos ligados ao tema do filme, ao seu autor e a seu referencial e, ainda, um nível obtuso, da ordem do sensível e que nos leva à emoção, ao afetivo. A partir desses três níveis, Barthes tentou compreender as projeções elaboradas pelo espectador e o caráter duplo das imagens, permitindo-nos entender a representação em sua dimensão simbólica e afetiva. Agnès Varda foi sobretudo - como frisa Yakhni (2014) - uma artista visual, que manejava com maestria todos os níveis e camadas de compreensão das imagens, àquelas que as inspiravam, as que criava e ressignificava, e as que compartilhava. A trajetória de vida da artista é também uma recorrência em sua cinematografia, e por meio dela, podemos compreender melhor o pensamento imagético que permeia seu trabalho. Nascida na Bélgica, se mudou com a família para França durante a Segunda Guerra para a cidade de Sète na região da Ocitânia. Quando jovem, estou filosofia na Sorbonne, mas abandonou o curso, ingressando na Escola do Louvre de Artes Plásticas e dando os primeiros passos na carreira de fotógrafa. As influências artísticas foram um forte componente no processo criativo de Varda, as quais ela mesma se refere como se tivessem sido “cortadas e coladas” em seus filmes, citando a inspiração em obras de Georges Braque no filme La pointe Courte (1955) ou de reconhecer em Le Bonheur (1965) o que chamou de óbvias inspirações, ao citar similaridades com imagens produzidas por Renoir, Manet Berthe Morisot (BARNET, 2016). Varda cita ainda as invenções estilísticas de Pablo Picasso na série de retratos de Vollard, das obras de Christian Boltanski, Francis Bacon e Jean Fautrier. “Todos esses artistas não somente me influenciam, como me alimentam, me inspiram” (VARDA in BARNET, 2016, p. 6).
As imagens são também receptáculos de uma espécie de sobrevida e de imanência das lembranças. “Vivo enquanto me recordo, eu vivo na memória.” Uma das frases de Agnés Varda em um de seus últimos filmes , Visages Villages (2017), pode ser considerada uma metáfora que permeia toda sua extensa obra filmográfica. Os movimentos da memória de Agnès se reproduzem pelo olhar e pela imagem sobre o outro, em um constante jogo onde se reafirmam suas referências estéticas.
Em Visages Villages (2017), os deslocamentos de um veículo representando por uma imensa máquina fotográfica ambulante, é a figura de uma imagem metafórica de um reflexo do modo de olhar de Varda. Os deslocamentos por estradas, seguindo o gênero road movie1, a partir desse peculiar veículo automotor transfigurado de sentido simbólico, em uma câmera fotográfica, leva consigo em seu interior, Agnès Varda e o artista visual JR. Eles percorrem cidades e vilarejos da França e a partir desses deslocamentos entre as localidades, se evidencia também os deslocamentos de sentidos de toda expressividade poética do documentário, e dos movimentos da memória de Varda. Uma espécie de imagem-memória, a que se refere Philippe Dubois, em que:
“cada filme é um dispositivo de imagem e de palavra, de cinema e de foto, que pode se revelar de forma comparável a um modelo de memória e de imagem mental. Deve-se traduzir tudo em imagens. A memória será visual ou não será. Mas o exercício visual dessa memória só será possível em pensamento, tudo se encontra aí em uma fórmula escrita interior em imagens.” (DUBOIS, 2012, p.11).
Nesse ponto, segundo o autor, é que se une a arte da memória e a da fotografia: como se fosse uma mnemotécnica mental, ou em outras palavras, de estímulo à memória. Paradoxalmente, na medida que constrói, a partir das imagens de outros sujeitos, espécies de novos locus de memórias - materializando em imagens que praticamente se traduzem em exposições itinerantes e convergentes no filme – Varda e alguns dos personagens, em diferentes momentos do documentário, se movimentam em sentido oposto, no que considero aqui como instantes de deslugar.
Segundo Fischer (2014), o conceito de deslugar está atrelado à dimensão das imagens do cotidiano, se mostrando atemporal e revelando uma natureza psíquico, intelectual-emocional. Basicamente o deslugar é uma situação, uma posição psíquica e emocional tingida pelas matizes do indeterminado e do indizível, enunciada pelo simultâneo de não estar dentro e não estar fora,
“e assumindo que a partir dessa perspectiva se delineia no cinema que enfatiza a temática do cotidiano e naquele que apenas tangencia aspectos relacionados ao corriqueiro, ao trivial, tanto poética quanto uma estética do deslugar”. (FISCHER, 2014, p.158)
Em um derradeiro gesto, a artista se coloca onde também não está: ao fazer um tributo aos personagens e lugares que esteve e aos seus filmes, Varda presta contas a si mesma e ao mesmo tempo, se coloca à margem do filme, como observadora. Ela comenta em vários momentos, sobre a fragilidade do próprio corpo de 89 anos, da vista fatigada e das pernas cansadas, mas segue o impulso do seus últimos sopros de vida, se equilibrando no limiar do envelhecer e da proximidade de sua finitude.
No documentário se observa também uma espécie de convergência interna nestes processos de criação. As fotografias de pessoas, animais e paisagens feitas nas cidades por onde os artistas percorrem são coladas em espaços públicos, em muros, fachadas de casas, em uma fábrica. As imagens podem ser consideradas, portanto, instalações artísticas a céu aberto, que são apresentadas no documentário. O público espectador das obras artísticas que se encontram nestes locais são também personagens do documentário. O espectador que vê o filme em uma sala de exibição é também um observador das instalações artísticas. Ou seja, como um jogo de espelhos, é a convergência da convergência dos dispositivos: da fotografia no filme, da instalação artística em fotografias e do documentário, que se mostram em camadas de sentidos, memórias e de espectatorialidade a partir da reflexão da imagem.
1.2 Reflexões nos espelhos dos pensamentos de Varda
A ideia de reflexão é metáfora do próprio ato de gerar um pensamento a partir de coisas que se refletem. O termo especular, do latim speculum surgiu devido à observação do céu e dos movimentos dos Astros, a partir da ajuda de espelhos. O espelho é o objeto que reflete a auto-imagem do sujeito. Todo retrato seria portanto, como argumenta Manguel (2001), um autorretrato que reflete o espectador. Como “olho não se contenta em ver, atribuímos a um retrato as nossas percepções e experiências. Na alquimia do ato criativo, todo retrato é um espelho” (MANGUEL, 2001, pg 177). O reflexo das imagens convergentes em Visages Villages é também um reflexo do pensamento e da memória de Agnès Varda, presentes em outras obras por meio das representações simbólicas que carregam em si essa ideia de reflexão: ao exibir seus equipamentos de trabalho (uma câmera de vídeo, uma câmera fotográfica ou a lente de uma câmera, que por extensão, é o olho simbólico da artista); ao utilizar e exibir fotografias (o registro físico e simbólico do olhar impresso da artista); ou espelhos (objetos que ganham um sentido metafóricomais profundos e que são constantes na filmografia de Varda). No seu filme ficcional mais emblemático Cleo das 5 às 7 (1962) o espelho é um objeto primordial na construção da narrativa. A personagem principal, a cantora Cleo, se desespera ao tomar conhecimento em uma consulta com uma cartomante, que poderia estar com uma doença grave que a levaria à morte. Após a revelação perturbadora, ela sai do local da previsão fatídica e se defronta com um espelho: um momento de fratura, em que Cleo se vê refletida. O terror desaparece subitamente e ela sorri. Durante o transcorrer do filme, o objeto será recorrente, em momentos de epifania em que atestam a reafirmação existencial de Cleo. Em Documenteur (1981), um plano mostra um espelho que reflete o corpo nu de Emilie, uma mulher recém separada e solitária, em um momento de redescoberta do próprio corpo e de sua identidade. A cena é rememorada em As praias de Agnès (2008) como um recorte comparativo de fragmentos de imagens da própria Agnès Varda na repetição do mesmo gesto da imagem de Documenteur (1981), um reflexo da vida pessoal da artista, no período em que o filme era produzido. “Olhando para trás, vejo que ela foi uma outra eu”.
O recurso do uso dos espelhos na obra As praias de Agnès (2008), com os objetos espalhados pela praia refletem a própria artista, outros pessoas que caminham pela praia, ou que refletem a imagem da equipe que acompanha o trabalho de Varda. Objetos que ganham a dimensão de elementos de memória utilizados ludicamente para provocar as metáforas da imagem e autoimagem, da reflexão do pensamento. “Pus um espelho na moldura e o usei nos filmes. Se queremos olhar os espectadores, temos de olhar para a câmera” comenta Agnès Varda enquanto ela mesma se vê no espelho, para depois posicioná-lo de modo que possa refletir o espectador. Segundo Souza (2018), esta é uma estratégia de desnudamento de contato entre cineasta e espectador, para que o recurso fílmico atinja este efeito. O mesmo acontece em Jane B por Agnès V. (1986/87), em que a câmera emoldurada se torna espelho, emergindo também uma outra ideia de reflexividade, a partir de um jogo lúdico que envolve a representação peculiar da atriz e cantora Jane Birkin por meio da recuperação de uma memória de gestos pictóricos (BORGES & JESUS), dada pela “imitação” das pinturas ou pela reiteração do jogo de espelhos. O olhar da artista, em dados momentos da obra, é o espelho, que reproduz a obra de arte ao deleite de seu próprio pensamento. Na obra, a atriz Jane Birkin se estira em um divã, em repetido gesto da modelo pintada em dois quadros de Goya: La Maja vestida (1797-99) e La Maja desnuda (1800). Samain (2012) cita a obra Mnemosine de Waburg e fala de uma espécie de supervivência das imagens, citando como exemplo a Vênus de Urbino reinterpretadas na obra de Varda, pois são imagens que pensam e dialogam no tempo que não seria o cronológico mas sim o tempo das imagens, um tempo anacrônico. “As imagens abrem e desdobram a história, a descobrem ou a encobrem, a reencontram e a ressuscitam, a fazem viver e existir (SAMAIN, 2012, p. 58).
Como parte do circuito do pensamento vardaniano, e de seu espelho prismático, na reprodução da obra de Goya e Ticiano poderíamos inferir que Varda seria também a espectadora das obras de arte e seu olhar seria a imagem reflexiva de seu pensamento, pela rememoração da representação pictórica e refletida ao espectador. São espelhamentos de seu modo de ver, a partir da reinterpretação e ressignificação de sentidos das imagens, que se concatenam, se desdobram, são recriadas e transformadas.
1.3 Instantes de memória no processo de criação
Agnès Varda esta em todos os lugares em suas obras. Mas ao mesmo tempo, em instantes de ruptura, não esta em lugar nenhum. No filme Visages Villages (2017), estes momentos mostram essa ideia de estar em todos os lugares mas também do não estar, seja pelas palavras e gestos ou pela performance da cineasta, tão característico de seus filmes. Ela se mostra aborrecida com o fato de JR não tirar os óculos e mostrar seus olhos. Um incômodo narrado no início do filme e que percorre toda a trama em determinados instantes, provocando um tensionamento no filme. Bachelard (2002), em delicada paráfrase, escreverá a respeito do “vago sofrimento, que sentimos quando vamos em busca dos instantes perdidos”.
Essa sensação de não pertencimento estão também presentes nas reflexões melancólicas das imagens-memória, e estão nos vãos de memória aos quais ela se refere. O veículo que leva Varda pelas estradas em Visages Villages é uma máquina-fotográfica, que vai fechando o final de um ciclo de vida, que percorreu tantas imagens com seu olhar peculiar. Um olhar que se desgasta com o tempo mas não perde sua essência, que é o ponto de contato com as pessoas, o que da a tônica característica de seu cinema de encontro e de toda sua expressão poética.
Para Blanchot (2011), a presença é tanto intimidade da instância quanto dispersão do fora, mais especificamente e a intimidade como for, o exterior tomando a intrusão que asfixia e a imersão de um e de outro, o que chamamos de vertigem do espaçamento. O tempo não é desdobrado, exteriorizado para fora do tempo, ao contrário: remete para sua intimidade mais autêntica. Cria um tempo imaginário sem se prender em uma linearidade cronológica. Ele evoca um tempo passado, mas o tempo em estado puro, a presença mesmo de uma ausência – o imediato. Imagens em camadas, forçadas a revelar a força da imaginação. Seguindo as pegadas dessas imagens – como reforça Bachelard – e tentar captar o momento em que “arrefecendo um pouco, elas se tornam metáforas”(BACHELARD, 2019, p. 266) .
Segundo a cineasta em depoimento no filme Varda por Agnés (2018), a obra “A Terra e os devaneios da vontade” teria influenciado suas reflexões sobre as imagens. Na obra, Bachelard explica que a imagem percebida e a imagem criada são duas instâncias psíquicas muito diferentes e seria preciso uma palavra para designar a imagem imaginada. “O devaneio comum é um do seus aspectos mais simples, mas teremos muito mais exemplos se aceitarmos seguir a imaginação imaginante em sua busca por imagens imaginadas” (BACHELARD, 2019, p.3). Na visão do filósofo francês, a imagem teria duas dimensões: uma realidade psíquica e uma realidade física, a qual estamos sujeitos à ação da imagem, as palavras não se encerram por pensamentos, elas teriam o porvir da imagem. Nesse sentido, poderíamos concluir pela sequencia do depoimento de Varda que as motivações de autodenominar o seu modo de fazer cinema como cinescrita advém dessa leitura de imagens: a imagem não deve ser estudada por partes, mas em sua totalidade, o que requer a convergência das impressões mais diversas, das impressões que vem dos vários sentidos. É somente com essa condição que a imagem assume valor transparente e envolve o ser em sua totalidade.
“A imagem é diferente, tem uma função mais ativa. Por certo, tem um sentido na vida inconsciente, por certo, designa instintos profundos. Mas além disso, vive de uma necessidade positiva de imaginar. Pode servir dialeticamente para ocultar e para mostrar. Mas é preciso mostrar muito para ocultar pouco, e é do lado desta mostra prodigiosa que temos que estudar a imaginação”. (BACHELARD, 2019, p.12).
O tempo revertido se constitui em repetição e um eterno recomeço. Sua natureza é espiralar. Uma ideia que para Blanchot se sustenta também na espira das memórias e do esquecimento. Para ele, colocar-se fora de si e fora do mundo é inaugurar uma experiência que é antes de mais nada inaugurar uma experiência, em que as coisas não são ainda. A consciência faz surgir algo inexistente no tempo real: o instante. O instante nada mais é do que uma abstração, pois não participa da natureza do tempo real (a duração), é um corte artificial efetuado pela inteligência, uma falsa ruptura, são “paralisações virtuais”. O instante, na acepção bergsoniana, é “imposto do exterior pela inteligência que não compreende o devir senão referenciando-o a estados imóveis” (SEIXAS, 2002, p. 14).
Nos filmes de Varda estes instantes se mostram como momentos de rupturas, momentos de reflexões, ou de demonstração de afeto, de reminiscências, sempre carregados de sentidos. Esta reflexão sobre os tempos da memória leva-nos à necessidade de considerar mais atentamente o fato de que eles remetem imediatamente à dimensão espacial: ou seja, os tempos da memória indicam também lugares de memória para se materializarem. Nesse sentido, a ideia de uma espiral pode também se aplicar a esses tempos de memória que circundam os trabalhos documentais de Varda e possibilitam a formação de uma memória audiovisual baseada em uma memória documental, que segundo Rancière (2010), seria a que registra os acontecimentos e que pretende reconstruí-los novamente. Rancière considera que uma memória não seria o conjunto de lembranças da consciência, mas um arranjo de vestígios e de produções constantes do mundo contemporâneo que não cessaria de registrar testemunhos de acontecimentos quaisquer e de coisas consideradas banais e que a memória se constitui de forma independente do excesso de informações e da escassez delas. Nesse sentido, a memória seria como uma obra de ficção, uma prática dos meios de arte para constituir um sistema de ações representadas, de forma agregada. Assim, um filme documentário não seria o oposto de uma ficção porque apresenta imagens da realidade cotidiana ou de documentos e arquivos. E como documentário, essa ficção de memória construída pelos meios da arte, não afastaria de uma lição do dever de lembrar, de não esquecer a imagem, que é necessário ligá-la a outra, olhá-la mais perto, reler o que se dá a ler.
2. A instância do criar: uma espiral em constante movimento
O filme Varda por Agnès (2019) é um documentário de processo de criação, ou seja, um registro de filmagens de obras, no qual Varda explica como seus filmes foram produzidos e quais as motivações que conduziram a abordagens de determinados temas. “A criação é como fazemos o filme. Quais os meios, qual a estrutura? Sozinha ou não, em cores ou não? A criação é o trabalho” (VARDA, 2019). Trata-se do registro de manifestação artística em ação, o percurso de criação que se apresenta como uma rede de ações onde a artista deixa transparecer recorrências significativas que possibilitam o estabelecimento de generalizações sobre o fazer criativo, a caminho de uma teorização que, segundo Sales (2016) permite lançar luzes que possam caracterizar o processo de criação do artista.
A pesquisadora enfatiza que a criação pode ser caracterizada pelo movimento criador e pelo estabelecimento de relações entre diferentes linguagens. Ao discutir imagens, palavras, sons, gestos, entre outros aspectos, podemos fazer uso de uma perspectiva metodológica que evidencia as tessituras dos processos de criação como um todo. Sales comenta que, ao analisar documentos de processo, podemos tentar investigar o pensamento em construção, que está em constante movimento e sempre estará inacabado. O pesquisador estaria sempre “as voltas com os meandros de criação, acompanhando a mutabilidade dos modos e rumos tomados pelas obras, e por isso não é possível afirmar que a interpretação levará a compreensão total da obra do autor analisado”, mas possibilitará, sobretudo pelas recorrências, conhecê-lo melhor e compreender o percurso autoral.
Como exemplo, Sales comenta sobre uma experiência relatada por Jean-Claude Bernadet ao visitar uma instalação do cineasta português Pedro Costa denominada “A respeito das situações reais” (2003). A montagem da instalação aludiria aos mecanismos de construção, onde teria sido utilizado os copiões da obra No quarto da Wanda (2000) na instalação. Para Sales, a reutilização de materiais usados no filme teria dado um novo ressignificado ao filme assistido anteriormente e por isso, a obra poderia adquirir uma nova perspectiva, da mesma forma como aconteceu em relação à instalações artística de Varda nomeada , inicialmente como Cabana do Fracasso e posteriormente, como a Cabana do Cinema (2006): ao reutilizar as películas do filme Les Criatures (1966), um retumbante fracasso comercial e de crítica e que reciclado, a obra ganhou a um novo sentido. Diz Vancheri:
“Agnés Varda, por sua parte, não hesitou em acompanhar sua obra de uma declaração de que, levando em conta essa nova disposição do material fílmico, gostaria de manter entre as imagens e seu dispositivo de apresentação uma dupla relação econômica e ontológica: “É cinema já que a luz é retida por imagens”. Definição minimalista, insuficiente para uns e inaceitável para outros, aparentemente pouco dispostos a estender o nome de cinema a formas tão excêntricas, pouco sensíveis em suma às aberturas do cinema expandido, do qual Gene Youngblood já havia desenhado o horizonte há cerca de 40 anos.” (VANCHERI, 2013. p.113)
Neste sentido, a característica estilística de Varda se estabelece também nessas relações e nas interações que sustentam, de certa forma, uma autoria em rede, construída ao longo do processo de criação. Muitas das temáticas recorrentes de Varda se derivariam (ou se transmutariam) em outras obras.
Nos documentários de Varda a cineasta cria interlocuções com o outro, estabelecendo vínculos, mas sempre referidos à condição de se circunscreverem a partir das experiências da cineasta, conforme se realiza a narrativa e transformações do filme em processo. Essa é uma das características mais marcantes das obras audiovisuais de Varda, também considerado como cinema de encontro, o que segundo Yakhni (2014), faria parte do processo de criação filmica, afetando todos os indivíduos envolvidos pela experiência do contato, fazendo com que a obra se construa ao vivo, pontuada pela liberdade do fluxo narrativo. Diz a autora:
“O que se percebe é uma perspectiva de tomar o cinema como uma escrita de si, como modo de subjetivação, sem fazer reverberar as prerrogativas de dar voz ao outro, ou apreender o real. (...) Seu cinema, mais ligado ao contexto das experimentações, ressitua o artista como criador, vem dar lugar a uma construção do real por atos de fabulação, em que a improvisação e o acaso vem participar ativamente do fluxo narrativo” (YAKHNI IN TEIXEIRA, pg 275, 2015).
Yakhni comenta de uma escrita além de si, que se expande e ressitua o artista como criador, dando lugar a uma construção do real por meio de fabulações, onde a improvisação e o acaso são participantes ativos do fluxo narrativo. Dentro da proposta de Sales que tange o conceito de autoria, este se constrói justamente nesta interação entre o sujeito e os outros, utilizando recursos de documentários imersivos, dispositivos e instalações para criar espaços interativos junto ao espectador. Varda, que já era pioneira do cinema desde a década de 1960, reinventou-se também como artista visual, ao propor novas formas de cinema do real, baseado em uma estética reflexiva, onde combina realidade, ficção, emoção, objetividade e subjetividade e novas relações do espectador com a sua arte e suas significâncias, um cinema múltiplo, no qual a artista constrói a sua escrita cinematográfica, com claras referências ao teatro, à fotografia, à pintura e à poesia, e a qual ela desenvolve um estilo de característica autônoma e livre. Uma concepção que se aproxima da câmera-stylo de Alexandre Astruc, conhecida pelo texto de 1948, “Du stylo à la caméra et de la caméra au stylo”, a qual a câmera, tal qual uma caneta, é utilizada para escrever o filme, representando a singularidade autoral como fator que o aproximaria do modo literário no ato de escrever.
Essa liberdade de escolha também se deve ao método de trabalho adotado por Varda ao que denominou de cinescrita: tomou para si a tarefa de todo o processo de elaboração filmica, desde a elaboração do roteiro, passando pela escolha de locações, do elenco, da montagem, das decisões que moldam a forma, o estilo e os significados produzidos.
Para Yakhni (2014), o cinema de Agnès Varda estaria ligado aos contextos das experimentações, ao recolocar a artista como criadora do real por atos de fabulação, em que a improvisação e o acaso participam ativamente do fluxo narrativo. Ela chama atenção também para o conceito work in progress que contribui para entendimento da narrativa da autora. Nesse sentido, a performance aliada a ideia ensaística, se constrói como elemento de apoio do movimento de expansão e tridimensionalidade das obras fílmicas de Varda. O processo do work in progress se opera pela hibridização de conteúdos, a interatividade da obra e a possiblidade de incorporação de acontecimentos de percurso . “A obra gestada em seu percurso ela é a trajetória, é o processo mesmo que se apresenta como obra”. (Yakhni, 2014, p. 158).
Este modo de representação performático pode ser identificado nos atuais documentários expandidos, uma denominação defendida pelo pesquisador Francisco Elinaldo Teixeira (2007). De acordo com o pesquisador o documentário expandido está ligado a uma série de operações que visam à ampliação das fronteiras do documentário, expansão dos seus limites em relação à ficção, ao experimental e ao próprio documentário em suas feições clássica e moderna. Dessa forma, segundo ele, o documentário expandido cria novas relações com os domínios ficcional e experimental. Para Arlindo Machado, a arte do movimento nasce e se mantém até hoje a partir dos signos da revolução e do experimentalismo. Refletindo a partir dos primórdios chegando a chamada era digital, o campo cinematográfico sofre transformações que abalam suas expressões técnicas, estéticas e conceituais. Uma história de produção e expressão do imaginário coletivo criada, sobretudo, por “sujeitos possuídos pela imaginação”.
3. Compartilhar: um processo convergente
Da criação para a compartilha. O sentido literal da palavra compartilhar é fazer parte de algo com alguém, dividir seu próprio universo interno, se enxergar no outro, expandir as possibilidades de subjetividades, sensorialidades, de emoções. Expandir as possibilidades criativas e elocubrações além dos perímetro de uma tela, em um movimento contínuo de deslocamentos, onde o inspirar, o criar e o compartilhar completam um ciclo espiralar, em um movimento contínuo movido pelo pensamento de Agnès Varda.
Em Varda por Agnès (2019), a artista Varda fala das intersecções do inspirar, criar e compartilhar. Esses três pontos fundamentais, que se entrecruzam, se diferenciam e se repetem. Ela mesma exemplifica essa formulação dos conceitos que permeiam seu trabalho quando fala da gênese de Les Glaneurs et la glaneuse (2000).
“No ano de 2000 surgiram novas câmeras digitais que possibilitavam filmar manualmente e poderia possibilitar trabalhos mais pessoais e íntimos com o uso dessa nova tecnología. Aquí eu volto a falar das três palavras que disse no inicio, às vezes a inspiração acontece e pode vir direto da realidade. Eu estava no Café Boulevard Edgar Quinet, a feira estava terminando, eu observava os feirantes carregando as caixas e cestas para suas caminhonetes. Os garis aguardavam com suas vassouras verdes de plástico e as pessoas começavam a chegar, agachavam- se e pegavam o que conseguiam encontrar. Uma ideia dominou a mente, por que eles pegam e comem aquilo que jogamos fora? Somente a frase ja era um tema por si só: senti que precisava fazer um documentário sobre este tema...não catamos mais as sobras das colheitas, mas ainda vemos o gesto em nossa sociedade saciada”. (VARDA por Agnès, 2019).
O choque da realidade observada durante um trivial café torna-se uma experiência estética: uma fratura da cotidianeidade2 que associa a cena da realidade à memória de pinturas que mostravam respigadores no campo produzidas por François Milet e Jules Breton. Fazer emergir a memória da pintura, conectá-la a um tema social contemporâneo, aliando as suas inquietações, foram pontos de partida para o desenvolvimento de um documentário icônico sobre o desperdício, mas também, de uma temática da recuperação que seria incorporada no processo criativo, retomando a ideia sobre aquilo que poderia ser descartado ou do tempo que descarta as pessoas.
Na trajetória de Les Glaneurs et la glaneuse (2000), Varda apresenta catadores urbanos e rurais que se abaixam para catar as sobras. Ela decide verificar o trabalho de uma cooperativa rural no interior da França , e ver em ação os catadores no meio rural, mostrando o descarte das batatas fora do padrão de consumo deixadas no campo. Varda captou imagens de várias pessoas que iam até o local buscar as batatas descartadas e observa que são toneladas do produto e muitas com o formato de coração. Ela apanha uma batata a filma de perto, leva outras para casa também. “Em um documentário mesmo com um assunto especifico, você é levado pelo que filma. (…) Corações falam de carinho, de amor. Foi algo muito poderoso. Não havia como não pensar sobre isso. Isso inspirou em mostrar catadores com afeto”. (VARDA, 2019).
Segundo Yakhni (2014), uma das características desse filme é o andamento que se dá por deslocamentos - o ponto de partida é a definição de glaneur e a reprodução do quadro de Millet, seguindo a narrativa de digressões, encontros, imagens e sentidos. O fluxo da narrativa pode ser associado ao ensaio, que possibilita livre associações de ideias e segundo a autora, a linguagem estilística que potencializa a proposta de um documentário expandido.
A repercussão desta obra gerou uma segunda produção: Deux Ans Après (Dois anos Depois), um resultado da percepção de Agnès Varda do efeito de um filme sobre o espectador. Com base em cartas recebidas após a repercussão de Les Glaneurs, Varda promoveu o reencontro de personagens na condição de espectadores do documentário, o que segundo Varda, seria uma espécie de crônica das reações ao primeiro filme. A autora também traz novamente a questão das batatas com forma de coração.
“Pude descobrir no filme, que ser quer informativo, por ser documental, o trabalho do inconsciente sobre ele. As batatas coração encontradas nos dejetos por estarem fora dos padrões permanecem como imagens emblemáticas. Só que desta vez filmei aquelas que depois de terem secado e apodrecido ainda voltam a germinar. A energía vegetal é bonita de se ver…” (VARDA in Yakhni, 2014, p. 181) .
Um mulher fora dos padrões, como a batata cordiforme, era quem se fantasiaria com uma roupa de batata para promover uma exposição artística. Envelhecida, e seca mais ainda com possibilidades de germinação, a batata fractal é uma metáfora de Varda. A batata é o centro da instalação Patatutopia, realizada na Bienal de Arte em Veneza em 2003, em uma seção de arte denominada Utopia Station. Como a batata fora do formato padrão, mas cheia de brotos, o cinema de Varda parte da simbologia desse coração fractal para construção de uma metalinguagem vardiana e autoreferencial.
Em três telas de projeções, a instalação Patatutopia apresentava imagens das batatas em forma de coração: no centro a batata com o cordiforme bem delineado e nas telas ao lado, as imagens de batatas envelhecidas, com detalhes de rugosidades provocadas pela ação do tempo e de detalhes dos brotos germinados. No ambiente imersivo foi produzido sons de inspiração e expiração, como se as batatas projetadas estivessem respirando. No entorno das três telas, setecentos quilos de batatas esparramadas no chão. Essa obra de deterioração marcou a entrada de Agnès Varda nas artes visuais e a própria artista comenta que a partir desta experiência aprofundou o modo de ver , um pouco mais complexo, deslocando sua obra para a tridimensionalidade das videoinstalações.
Dubois (2019) pergunta o que se converteria o cinema quando se abandona o cinema, como suporte, como instituição, como dispositivo, como lugar, como forma, todos mais ou menos canônicos? Em que se converte o cinema quando ele sai da sala de projeção onde tinha uma especificidade e força inigualáveis e ganha novos espaços de exibição? Aqui a questão também é o que resta do cinema em tudo isso? Não é a questão da morte do cinema mas ao contrário, sua expansão sua multiplicação seu potencial de propagação, o cinema expanded ou extended.
Os conceitos de inspiração, criação e de compartilhamento nesses trabalhos se forjam ao trazer a autora como uma respingadora de imagens de suas próprias obras e que se se relacionam entre si em diferentes sentidos, do conceito primário de reaproveitamento, passando pelo recolhimento de memórias, a readequação de novos olhares e de ressignificações dos objetos . São novas subjetividades reutilizando a simbologia das batatas recolhidas em novo movimento de aproximação e de diálogo entre suas obras e seu pensamento.
Figura 1 – “Respingadoras”. Fonte: Jean François Millet – 1857
(inspiração)
Figura 2 –“Glaneurs et glaneuse”. Fonte: Agnès Varda – 2000
(criação)
Figura 3 – “Patatutopia”. Fonte: Agnès Varda – 2003
(compartilhamento)
A convergência deste processo, passando pelas instâncias do inspirar e do criar, poderia ser considerada um sentido possível e de finalidade do conceito de compartilhamento da obra de Varda, a partir da migração dos dispositivos. Parente (2009) nos lembra que a forma cinema tradicional nos remete a imagem de um espetáculo que envolve a sala de exibição e uma tela de projeção, um dispositivo espetacular de produções de fantasmagorias, fruto de um processo de institucionalização sociocultural. Ele cunha a expressão cinema de dispositivo que surge como um contraponto ao cinema instituído. Pensando a partir do termo dispositivo, é possível escapar de dicotomias evitando determinismos, multiplicando telas, podendo explorar durações de tempo e espaço, mudando as relações com espectadores. Para Parente, a noção de dispositivo pode contribuir para a renovação da teoria do cinema, “sobretudo no que diz respeito a ideia de um cinema expandido sob todas as novas modalidades, ou se já é um cinema que alarga as fronteiras do cinema – representativo constituído”. (PARENTE, 2009, p.34).
Os painéis trípticos clássicos são conjuntos de três pinturas unidas por uma moldura tríplice. Separadas, cada imagem forma uma representação singular, mas unidas, ganham novo significado e se tornavam uma pintura una. Além de Patatutopia que se utilizada da tríade de telas, outras instalações posteriores de Varda foram inspiradas neste formato, como uma forma diálogo estabelecido com os trípticos dos séculos 15 e 16 e segundo qual a artista, que evocariam “emoções especiais”. Para Le Tryptique de Noirmoutier, Varda articula três painéis e projetos simultaneamente em três filmes de vídeo digital sincronizados.
Le triptyque de Noirmoutier (2006), uma composição formada por três telas, cada qual com uma cena diferente, mas que dialogam entre si. O painel esquerdo mostra a praia e mar. As outras atividades domésticas simples na casa de Varda. Na projeção central, o cenário é uma cozinha e na cena o homem toma sua cerveja enquanto a mãe idosa desembaraça um barbante e a esposa descasca batatas. “Sempre me perguntei coisa como: o que acontece antes e depois de um retrato em um filme: o que acontece quando saem do quadro?” (VARDA par Agnès, 2019).
Uma certa opacidade, onde o dispositivo é revelado , a consciência da imagem como superfície de construções significantes e nas quais o aparatos técnico e textual são essenciais e se colocam de modo mais ou menos revelador. A janela da tela transborda para suas laterais . No caso da opacidade, os dispositivos interpelam o espectador, possibilitando distanciamento ao revelar a própria presença dos sujeitos. Maciel (2008) argumenta, utilizando a ideia do poeta Ferreira Gullar, que, com a moldura, desaparece a relação entre a figura e fundo porque, nas palavras do poeta, “o fundo é o mundo”. “Ora, hoje o cinema-instalação é o cinema fora da tela, um cinema que gera uma situação na qual o espectador participa das imagens como uma experiência no tempo e no espaço”. (MACIEL, 2008, p. 74).
A última peça, Les Veuves de Noirmoutier (2006) é, segundo definição de Jordan (2019), um políptico etnográfico intrincado que consiste em vários filmes projetados simultaneamente de viúvas. Sua temperatura emocional é tal que requer um aparato especialmente elaborado.
Varda estabeleceu o dispositivo do espaço de uma forma muito particular, criando uma tela políptica, seguindo o padrão das pinturas de Jan van Kessel e a representação dos quatro continentes.
Figura 4 – “The continent of Europe” . Fonte: Jan Van Kessel – 1666.
Figura 5 – “Les Veuves de Noirmoutier”. Fonte: Agnès Varda – 2006
Um filme central gravado por Eric Gauthier em 35 mm mostrava na cena uma mesa na praia e as mulheres viúvas andando no entorno da mesa. Essa imagem era cercada por catorze telas menores. Havia catorze cadeiras na sala, dispostas de tal forma que cada uma delas teria um fone de ouvido para escutar individualmente o depoimento de cada viúva das catorze telas. Segundo Jordan (2019), Les Veuves expõe dramaticamente a tensão em Varda de controle e autoridade do cineasta/etnógrafo e a disposição para correr riscos com auto-revelação, com o intuito de aproximação emocional com o espectador. Jordan argumenta que alguns loops de vídeo implicariam na captura das emoções de perda, sugerindo uma espécie de repetição traumática a medida que os depoimentos se repetem, uma expressão da tristeza do luto compartilhado, mas que ao mesmo tempo é individual, ampliado pelas possibilidades do cinema convergente. Varda comenta que a instalação a interessou porque desejava mudar a experiência do público.
“Ali havia 14 pessoas cada uma ouvindo uma das viúvas, mas todas estavam juntas na sala , isso tornou a experiência ao mesmo tempo íntima e coletiva… Essa experiência trouxe-me muita confiança na arte, no sentido amplo, porque a arte atravessa culturas pauses nacionalidades, religiões e idades” (VARDA por Agnès, 2019).
A ideia da reciclagem é uma exemplificação do cânone do gesto inacabado presente na obra de Varda como temática e como processo de criação. Um pensamento recorrente que se forjou a partir da criação de Les Glaneurs et la glaneuse (Os catadores e eu), ressignificada na obra Patatutopia (Batatatopia) exposta na Bienal de Veneza em 2003 e novamente trabalhada em em Deux ans Après (Dois anos depois), e que também permeou a ideia de criação da exposição A ilha e ela (Lîle et elle). As obras artísticas que derivaram a partir da temática da reciclagem e do ato de recolher, ganharam novos sentidos e enfoques diferenciados. São também atos recorrentes da filmografia de Varda, que retoma imagens, temas, filmes, reiterando ou dando-lhes novos sentidos e novas possibilidades de olhares e reflexões. Novas figuratividades que permitem entrever, como uma possiblidade além do sentido, reencontrando uma certa imanência do sensível.
Considerações finais
Este artigo é baseado em uma pesquisa em construção, portanto, ainda não há uma conclusão definitiva: ainda há muitos caminhos para trilhar e refletir sobre o processo de criação de Varda, a partir dos vestígios deixados pela autora em suas obras. Mas alguns pontos podem ser observados no decorrer deste percurso, como o entrelaçamento das palavras inspirar, criar e compartilhar que norteiam o trabalho da artista, ao explicar o processo de criação de suas obras. Do ponto inicial da pesquisa, a partir da experiência de espectatorialidade, várias palavras surgiram como linhas que tramam uma emaranhada rede de criação buscando um entendimento sobre toda a obra de Agnès: afetos, presença, arte, fotografia, lembranças, cotidiano, fluxos de consciência, autenticidade, sensibilidade, liberdades, feminismo, acasos. Palavras que reverberam na filmografia de Agnès Varda e que estão sendo costuradas aos poucos, com análises e reflexões de uma vida colocada em perspectiva, onde se exprime uma estética de um microcosmo particular.
Em uma realidade tomada súbitamente por inseguranças e incertezas causadas por uma pandemia devastadora, entender e mergulhar na galáxia de Varda vem sendo um bálsamo em meio a tanta dor. A espiral de criação permeia os pensamentos, inspirações que remetem a questões universais, como tempo, espaço, o amor, o ódio, a memória, o sentido da vida e da morte; o modo como Agnès Varda traz suas referências por meio de um cinema de encontro, de resgate do sensível e da experimentação de novas formas e dispositivos. São frescores que nos faltam no cotidiano de dias tão sombrios. Agnès Varda deixou esse mundo em 2019, mas a obra dela sempre estará presente para que possamos acreditar que um mundo de gentilezas e olhares sensíveis, ainda seja possível.
Notas Finais
1Segundo PAIVA (2011) os filmes de estrada estão relacionados a dimensões intrínsecas do ser humano, se inscrevem no âmbito da representação da modernidade, explicitando suas crises e contradições , e conexões com os veículos automotores (neste caso, com um veículo- câmera fotográfica usado por Varda e JR).
2Fraturas e escapatórias são conceitos desenvolvidos por Greimas, sobre o modo de presença da estética no cotidiano; efeitos, que segundo relatos da própria Varda nos filmes autobiográficos que serviram como mote para inspiração de filmes bem como na articulação de acasos durante o processo de produção de suas obras.
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