Capítulo I – Cinema – Arte

Images of the domestic work in the Brazilian cinema: an inventory fictional feature-length films from 1958 to 2019

Imagens do trabalho doméstico no cinema brasileiro: um inventário de ficções entre 1958-2019

Daniel Augusto de Matos Assunção

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil

Abstract

Brazil is the country with the largest number of domestic workers in the world. It’s clear that the positions occupied by a domestic worker in Brazilian society are surrounded by three main factors (gender, race and class) and this intersection creates a place of vulnerability and subalternity.
The cinema and movies produced by a country are a place for the images and representations which a society creates of itself. (Aumont 2012). Acknowledging the extreme vulnerability inflicted upon domestic workers, how Brazilian movies portrayed the domestic workers: creating and reinforcing stereotypes or breaking them? This is an important question, because the way a character or a series of characters are portrayed in movies reveals how a society perceives these groups.
This work’s methodology is inspired by the works of two researchers, Sonia Roncador (2008) e Mariana Souto (2016). For this communication, the intention is to craft an inventory of domestic workers images and representation in Brazilian movies. The selected body of work is composed of fictional feature-length films, released from 1958 to 2019, in which the domestic workers are the main or very prominent characters.
With these variety of movies, it is possible to establish comparisons, frictions and dialogues; there also patterns amongst movies from the same period or production cycles, as chanchadas, pornochanchadas or contemporary movies. The intention is to perceive relations between the movies and also categorize them based on the stereotypes they promote or how they break these stereotypes.

Keywords: Brazilian cinema, Contemporary brazilian cinema, Domestic workers, Maids

Introdução

O Brasil é o país com a maior concentração de trabalhadoras domésticas remuneradas no mundo. 6,356 milhões de brasileiros, sendo 97% do contingente, mulheres. Para pensar o trabalho doméstico remunerado no Brasil é importante ter em mente um tripé fundamental: gênero, raça e classe. Sobre o gênero, pode-se afirmar que o trabalho doméstico se funda a partir da divisão sexual do trabalho (Engels, 1984). A partir da formação das famílias e do advento da monogamia, que o autor considera “uma forma de escravização de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito entre os sexos” (Engels 1984, 70), o homem torna-se responsável por tudo que diz respeito à esfera pública; a mulher, subjugada pelo homem, que se torna proprietário do lar, passa a reinar sobre os assuntos domésticos: “A mulher cuida da casa, prepara a comida, confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda em seu domínio: o homem na floresta, a mulher em casa.” (Engels 1984, 178).

A divisão sexual dos trabalhos gera, por consequência, um processo no qual o trabalho doméstico, desempenhado primordialmente por mulheres, seja visto como inferior, por não ser uma atividade lucrativa, dentro da lógica operacional capitalista. Ele é, então, a “manipulação mais disseminada e a violência mais sutil que o capitalismo já perpetuou contra qualquer setor da classe trabalhadora.” (Federici 2019, 42) pois não foi somente imposto às mulheres, mas também “transformado em um atributo natural da psique e da personalidade feminina (...) porque foi destinado a não ser remunerado.” (Federici 2019, 42-43).

A hipótese de que a inserção das mulheres na esfera pública e no trabalho realizado fora do lar como “uma forma de transformar as mulheres em figuras autônomas, independentes, emancipadas do lar”, postulada por Engels (1984, 182), é provada por Federici (2019) ser um equívoco: “Como anos e anos de trabalho feminino fora de casa têm demonstrado, conseguir um segundo trabalho não muda esse papel (...), aumenta nossa exploração como também reproduz simplesmente o nosso papel de diversas formas” (Federici 2019, 50). A única forma de romper com o contrato sexual seria “uma recusa massiva em sermos donas de casa, posição esta que, nós todas nos damos conta, é a primeira causa da discriminação contra a mulher.” (Federici 2019, 116).

A partir da segunda metade do século XX, a independência e autonomia financeira de muitas mulheres brancas de classe média e alta, bem como o processo de emancipação dessas de seus companheiros, passa pelo uso de mão de obra de mulheres de classe mais baixa, geralmente sem acesso à educação formal e de maioria negra. A partir desse ponto, como esclarece Sônia Roncador (2008) fica mais evidente a dimensão racial, já que o trabalho doméstico remunerado “possibilitou o investimento feminino em trabalhos remunerados e intelectuais (...) sem que se alterasse o contrato matrimonial a divisão sexual do trabalho” (Roncador 2008, 137).

No Brasil, é impossível dissociar o trabalho doméstico remunerado e a escravidão (Carvalho 2003), principalmente por causa do processo de colonização sofrido pelo país, cuja estrutura era patrimonial-patriarcal (Freyre 2004). Dentro desse sistema, as tarefas ditas domésticas eram realizadas por mulheres, livres e brancas, e por escravas, de origem indígena, nos primeiros anos de colonização e, posteriormente, em maior quantidade, de origem africana. Além da divisão sexual do trabalho, dentro da lógica escravocrata, havia uma divisão racial das tarefas domésticas. Atividades desonrosas eram delegadas às mulheres. A escrava negra era quem realizava a maior parte dos afazeres domésticos e braçais nas casas das famílias brancas, nas quais a mulher branca era objeto de honra, educação dos filhos e administração dos serviços domésticos (Frota 2014).

A abolição da escravidão reconfigura as relações de poder e controle entre empregados e patrões, servos e senhores. “No Brasil as negras passaram diretamente da senzala para o trabalho doméstico.” (Melo 1998, 8). A dimensão de classe social é percebida por meio de práticas comuns à formação da categoria. Mulheres pobres e, em muitos casos, de áreas afastadas dos grandes centros urbanos, trabalham em troca de casa e moradia, sem nenhum tipo de contrato formal, verbal ou escrito. Socialmente, a empregada doméstica ocupa um “lugar” marcado por várias posições de vulnerabilidade: seja por causa do machismo, do racismo ou da desigualdade social fundantes à profissão.

O que chamamos de lugar, posicionado concretamente na sociedade brasileira, é de extrema subalternidade. A noção de subalternidade apresentada aqui é aquela cunhada por Spivak (2010), e remete a um sujeito pertencente a grupos marcados “pelos modos específicos de exclusão dos mercados, de representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante.” (Spivak 2010, 7). Esse grupo de mulheres, latino-americanas, pobres e não-brancas se constituem enquanto sujeitos políticos, naquilo que Spivak chama de violento arremesso: “entre patriarcado e imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento arremesso.” (Spivak 2010, 119).

Desenvolvimento

A partir do lugar de subalternidade ocupado pelas empregadas domésticas, encontramos em Shohat e Stam (2006) ferramentas interessantes para pensar de que maneira grupos subalternizados podem ser representados ou figurados no cinema. Os filmes que compõem esta comunicação se envolvem na problemática de figurar, representar, criar imagens, de um grupo subalternizado, com direitos trabalhistas precários, cujas demarcações sociais são explicitadas (gênero, raça e classe). É um grupo que “historicamente marginalizado, não tem controle sobre sua própria representação” (Shohat e Stam 2006, 270). Portanto, cabe aqui, nas nossas articulações acerca do cinema brasileiro, refletir sobre “Que histórias são contadas? Por quem? Como elas são produzidas, disseminadas, recebidas? Quais são os mecanismos estruturais da indústria cinematográfica e dos meios de comunicação?” (Shohat e Stam 2006, 270).

O cinema é um lugar de construção de imagens e representações que uma sociedade produz acerca de si mesma (Aumont 2012). Dessa maneira, como o cinema brasileiro penetrou e foi penetrado pelo lugar de subalternidade experienciado pela classe de trabalhadoras? As figuras das empregadas domésticas que o cinema brasileiro produziu ao longo das décadas dizem também sobre o modo como a própria sociedade brasileira lidou com as trabalhadoras, pois “um personagem ou uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas de um período do cinema como também de um período da sociedade” (Aumont 2012, 98).

Com esse lugar em mente, podemos avançar para a pergunta norteadora da comunicação: Quais figuras da empregada doméstica o cinema brasileiro produziu? De que maneira o nosso cinema figurou ou produziu a forma visível da representação da classe: reforçando ou rompendo os estereótipos presentes no imaginário social?

A metodologia mais adequada pareceu ser a construção de um inventário com pequenos agrupamentos de filmes. Duas autoras, Sônia Roncador (2008) e Mariana Souto (2016 e 2019), são fontes de inspiração, tanto por se dedicarem a essa temática, como pela forma em que operacionalizam inventários e constroem ferramentas para as análises de seus corpus. O trabalho de Roncador (2008) faz uma revisão sobre a empregada doméstica na literatura brasileira, enquanto Souto (2016) investiga o conflito de classes no cinema brasileiro a partir de um inventário: é na aproximação de diferentes filmes e nos diálogos entre obras propostos por ela que emerge o problema da sua pesquisa. Para compor o inventário da presente pesquisa, utilizamos dois critérios centrais: 1) escolhemos exclusivamente longas metragens ficcionais e 2) optamos por filmes nos quais a empregada doméstica é a protagonista da trama ou é uma personagem secundária extremamente relevante, cuja exclusão afetaria significativamente a obra.

As obras que integram o corpus deste projeto são: Cala a boca, Etelvina (1958) de Eurides Ramos; Minervina vem aí (1960) de Eurides Ramos e Hélio Barroso; Sonhando com milhões (1963), de Eurides Ramos; Cuidado, madame (1970) de Júlio Bressane; Como é boa nossa empregada (1973), de Ismar Porto e Victor di Mello; Perdida (1975), de Carlos Alberto Prates Correia; Tudo Bem (1978), de Arnaldo Jabor; Romance de empregada (1988), de Bruno Barreto; Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi; Domésticas - o filme (2001), de Fernando Meirelles e Nando Olival; O Casamento de Louise (2001), de Betse Paula; Trair e coçar é só começar (2006), de Moacyr Góes; Trabalhar Cansa (2011), de Marco Dutra e Juliana Rojas; Casa Grande (2014), de Fellipe Barbosa; Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert; Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho; As Boas Maneiras (2018), de Marco Dutra e Juliana Rojas, e Três verões (2019), de Sandra Kogut.

Partindo dos filmes acima mencionados, apostamos no movimento de construir um inventário de filmes, com pequenos grupos e subgrupos (Souto 2019). Criar coleções, agrupamentos é um gesto narrativo de proporcionar diálogos que, originalmente, não existiriam: “esta é a ideia que nos interessa: a posta em relação de elementos que, antes apartados, agora são aproximados por um gesto ativo do pesquisador” (Souto 2016, 18). As coleções são úteis quando o objetivo da pesquisa é “mais do que se deter sobre traços verticais das obras, apreender a dinâmica e as conexões entre elas” (Souto 2019, 1-2).

O trabalho de Roncador (2008) é uma inspiração para nossa pesquisa, porque ao catalogar diferentes figurações das trabalhadoras domésticas presentes na literatura brasileira, ela as agrupa de acordo com o período histórico. Da belle époque, com o fim da escravidão e advento de uma empregada invejosa, interesseira e perigosa de se ter em casa; aos modernistas e seu investimento na criação do imaginário acerca das servas sexualizadas e amas de leite assexualizadas; aos correios femininos em jornais que evocavam a figuras de uma doméstica criativa e inventiva, escudeiras de seus patrões, até, por fim, o próprio testemunho dessas empregadas, escritos por elas, chegamos a categorias que são úteis para a nossa pesquisa.

Para a presente comunicação, optamos por apresentar os filmes em um atlas, agrupando filmes a partir do modo como figuram as empregadas domésticas, buscando aproximações e distanciamentos. As relações entre os filmes se dão somente por operacionalização nossa, buscando garantir a “aparição ou emergência do problema” (Souto 2006, 27) da nossa pesquisa. Outra pessoa poderia, partindo dos mesmos filmes selecionados por nós, realizar outros agrupamentos, outros arranjos. Não ignoramos que tais obras “são objetos vivos, dotados de desejos, ideias, algo a dizer e autonomia no mundo.” (Souto 2019, 2) e as inúmeras possibilidades de investigação, contato, diálogo e fricção que outros arranjos poderiam apresentar.

Dividimos o corpus em três grandes agrupamentos: A ridicularização da empregada, A sexualização da empregada e A conscientização da empregada. A organização desses grupos foi guiada não por uma abordagem cronológica (o ano de seu lançamento), mas pelos modos dessa relação (a maneira como figuram as empregadas domésticas). Os agrupamentos não são exatamente excludentes entre si, mas complementares, pensando nos aspectos narrativos e visuais. A ordem de apresentação dos filmes, divididos, também, em pequenos subgrupos ao longo do texto, foi pensada também em uma escala, partindo da obra que julgamos mais conservadora e opressora no que tange à figuração das empregadas até a última, que traz uma visão peculiar, distinta e fora dos padrões dedicados à classe.

A ridicularização da empregada

Cala a boca, Etelvina → Minervina vem aí → Sonhando com milhões

O primeiro agrupamento abriga obras nas quais o procedimento de figuração das empregadas domésticas gira em torno de uma ridicularização. As personagens são desastradas, enxeridas, curiosas, bisbilhoteiras e invejosas. Signo da diferença dentro do lar e cuja presença dentro da casa dos patrões causa toda a sorte de conflitos tomados como cômicos dentro da diegese dos filmes.

Tal figura é inserida com mais força dentro do cinema brasileiro a partir do ciclo das chanchadas, comédias com números musicais, produzidas no Brasil entre 1920 e 1950 (Augusto 1989). Os filmes possuíam um humor carnavalesco, marcado por troca-trocas, confusões e números musicais (Catani e Souza, 1981). As produções lidavam “com os tipos brasileiros clássicos, ridicularizavam a hierarquia social.” (Dias 1983, 50). Os conflitos de classes sociais não eram sublimados, mas, antes, evidenciados e reforçados, “podemos perceber que a contradição ricos x pobres não é escondida, pois ainda que de forma simples, a chanchadas faziam críticas aos ricos” (Dias, 1983, p. 59), além de, debocharem de uma sociedade “que valoriza qualquer símbolo de status até mesmo os falidos, com seus títulos de nobreza.” (Dias 1983, 60).

Apesar de Dercy ter interpretado outras empregadas, tivemos acesso, infelizmente, somente às cópias de Cala a boca, Etelvina e Minervina vem aí e Sonhando com milhões (cuja protagonista é Agripina). Dirigidos por Eurides Ramos e produzidos por Oswaldo Massaini na Cinedistri, eles fazem parte de uma estratégia empreendida por Massaini para associar a atriz, Dercy Gonçalves, aos personagens de empregadas interpretados por ela. (Ramos 2014, 6).

Em Cala a boca, Etelvina a personagem principal precisa se passar pela patroa durante a visita de um tio rico de seu patrão. Minervina, vem aí traz o cotidiano de Minervina, em situações que revelam o caráter explosivo e insolente da empregada, sem viradas muito importantes e Sonhando com milhões, Dercy é Agripina, uma empregada que trabalha para funcionários públicos e que tenta convencer o patrão a aceitar propina de usineiros para uma licitação ilícita.

Trair e coçar é só começar → O casamento de Louise → Domésticas - o filme

No período de retomada do cinema brasileiro, mais precisamente entre 2000 e 2001, duas comédias estabelecem um diálogo claro e evidente, por meio de suas tramas farsescas e cômicas, com as chanchadas, sem, entretanto, conseguir alcançar o nível de subversão a figura de Dercy Gonçalves causava. O Casamento de Louise e Trair, coçar, é só começar e Domésticas - o filme trazem novamente a figura da empregada doméstica como uma personagem cômica, localizadas no centro de suas tramas, emulando diversas das situações criadas pelas chanchadas, como as farsas, os desentendimentos e as inversões de papéis entre empregadas e patroas.

Em Domésticas - o filme, como sugere o título, o foco central da narrativa é um grupo de trabalhadoras. Único filme do corpus no qual os patrões nunca são vistos, apenas citados. Por causa da multiplicidade de protagonistas, as tramas se atravessam, sem uma condução linear. Raimunda, Roxane, Quitéria, Créo e Cida são mulheres cheias de sonhos, mas poucas expectativas de realizá-los. Aliás, a comédia de erros nos moldes das chanchadas, com desencontros que permeiam todas as subtramas, se encaminha para um filme, que assim como no Brasil dos anos 2000, não oferecia nenhuma possibilidade de acesso a direitos ou ascensão social às empregadas. A montagem é acelerada, videoclipada, como se veria posteriormente na filmografia de Fernando Meirelles, com uma composição dos quadros privilegia os cômodos das empregadas, o transporte coletivo e suas casas, em detrimento, por exemplo, dos cômodos dos patrões ou qualquer outro signo dos mesmos.

Trair e coçar é só começar, comédia cheia de atores da Rede Globo, com linguagem bastante televisiva, traz Olímpia (Adriana Esteves), uma empregada carismática e fofoqueira, que presta atenção aos mínimos detalhes e acontecimentos da vida de seus patrões, como protagonista. Golpista, a personagem envolve os patrões, vizinhos e amigos dos vizinhos em uma rede de mentiras. O filme finaliza com a empregada enganando mais uma vez os patrões e fugindo, sem que arque com nenhuma das confusões que criou. Em inúmeros momentos, a personagem faz uso indevido das bebidas e batons dos seus patrões, corroborando com uma noção comum de que a empregada é apropriadora e consumidora desautorizada de tais pertences. Ela também cobra para revelar informações, se mostrando manipuladora e chantagista, a fim de alcançar seus objetivos pessoais.

O casamento de Louise bebe nas chanchadas a partir de seus troca-troca, apresenta duas personagens homônimas: Louise (Sílvia Buarque) e Luzia (Dira Paes). As semelhanças entre as personagens incluem também suas datas de nascimento e aproximações em suas histórias pessoais, mas acabam por inscrevê-las em contextos sociais distintos: Louise é uma violinista clássica e Luzia é uma empregada doméstica semianalfabeta. O mote da trama é um almoço que Louise organiza para seduzir o maestro da orquestra com quem ela trabalha, o sueco, Helstrom (Mark Hopkins). Durante o evento, o ex-marido de Luzia, Bugre (Marcos Palmeira) aparece com a intenção de reconquistar a ex-esposa e levá-la para morar na Bolívia, onde ele conseguiu um contrato como jogador profissional de futebol.

Os pares românticos são trocados e, ao final do filme, as duas personagens femininas acabam em lados opostos: Luiza vive uma vida de luxo em uma Suécia gelada, tocando panelas profissionalmente e até serve feijoada para rainha; Louise abre mão de sua carreira de violinista para acompanhar o marido, agora jogador de futebol na Bolívia. A empregada passa a ser chamada de Louise no novo país, já que os suecos não conseguem pronunciar Luzia ou Luzineide, efetivando o caráter duplo do filme e que se encontra no título da obra.

O que une os seis filmes deste grupo são uma movimentação, por parte de seus realizadores, em criar figuras de empregadas domésticas a partir da comicidade e ridicularização. A maior parte do humor e das situações cômicas engendradas pelos longas surge na disparidade entre o universo das empregadas e o universo das patroas, colidindo e produzindo piadas. A característica iniciada nas chanchadas, por causa do gênero é valorizada uma construção de personagem cujo humor é físico, cômico, escrachado e imensamente popular, por vezes se apropriando da estrutura das comédia de erros, dos equívocos, é atualizado nos outros filmes, ainda que um intervalo de mais de quarenta anos seja estabelecido entre eles.

O uso dos estereótipos que conformam as empregadas em um lugar diminuto e inferiorizado, ainda que haja ambiguidade, pois se tratam de personagens fortes, irreverentes e desobedientes, os próprios filmes carregam um discurso no qual essas características são negativas e as personagens tidas como exemplos são aquelas elegantes, educadas e que ocupam outra posição social. As domésticas também são vistas como moralmente volúveis, interesseiras e desonestas.

A sexualização da empregada

Como é boa nossa empregada → Casa Grande → O casamento de Louise → Cronicamente Inviável

O segundo agrupamento compreende obras, de diferentes ciclos de produção e gêneros, que constroem a figura da empregada doméstica primeiramente por um processo de sexualização e objetificação das personagens. Trata-se da herança colonial, da servitude aos patrões, na qual o corpo das escravas pertencia aos seus senhores. Tais filmes evocam corpos negros e racializados, corpos aos quais o processo de construção das personagens passa pela sexualização, a fim de construir a figura da empregada doméstica como aquela que serve sexualmente aos patrões.

Como é boa nossa empregada é uma pornochanchada dividida em três episódios. O mote temático é a relação sexual entre empregadas e seus patrões. O primeiro episódio, “Lula e a Copeira”, traz o personagem principal Lula (Pedro Paulo Rangel). Com a demissão da atual empregada de sua casa, a mãe de Lula coloca anúncios nos jornais em busca de uma nova empregada. O garoto passa a supervisionar o processo de contratação da nova empregada, permanecendo na rua de sua casa, dissuadindo as diversas candidatas que chegam ao endereço, antes mesmo que elas possam realizar a entrevista. O objetivo é eliminar as trabalhadoras mais velhas e menos atraentes.

Desde a contratação de Clara (Vilma Chagas), percebemos a noção de que a empregada é, de fato, uma propriedade da família. Enquanto serve o jantar, pai e filho esfregam suas pernas na perna da moça. Tal noção de propriedade e do uso que pai e filho fazem da moça será retomado no desfecho da trama: após a demissão de Clara, a personagem passa a ser sustentada pelo seu ex-patrão, que a mantém num apartamento cheio de confortos. O homem se despede da empregada e marca o próximo encontro para a semana seguinte. Ao sair da residência, Lula aparece para varanda para mais um encontro sexual, que parece ser recorrente. A empregada doméstica continua a ser propriedade da família, sendo usufruída por pai e filho. Há outra empregada no episódio, Gertrudes (Clélia Simões). Trata-se de uma mulher negra, retinta, religiosa. Um corpo negro sem sexualidade, oposto a figura esguia e sensual de Clara.

No segundo episódio, “O Terror das Empregadas”, acompanhamos Bebeto (Stepan Nercessian), um jovem de dezesseis anos, com desejos sexuais incontroláveis. O principal problema do personagem é sua fixação por empregadas domésticas, o que causa diversos transtornos e constrangimentos, para as empregadas e para sua própria família. “Então você continua se metendo com empregadinhas?” É a reação da mãe de Bebeto ao encontrá-lo com a empregada na cama. O que começa como algo da ordem do risível, com as empregadas rindo e fugindo do garoto, se torna mais sério quando uma delas expõe sua virgindade para se livrar desses inoportunos ataques, tentando preservar-se.

Preocupada com a saúde do filho, a mãe de Bebeto marca uma consulta com um psiquiatra. O profissional tenta naturalizar as práticas do personagem: “Ora, ora, isso é normal. No Brasil, como ainda não temos educação sexual, os rapazes costumam ter sua educação sexual com (...) as empregadas, pois elas já estão em casa, são mais acessíveis.” O diagnóstico é de que o jovem sofre um “problema de inferioridade”, por isso sente atração sexual por alguém de uma classe social inferior a dele.

O último é “O melhor da festa”, comédia de erros cujo personagem principal é o empresário Naná (Jorge Dória), grande moralista e que preza pelos valores clássicos, criticando o namorado “cabeludo” de sua filha ou o fato de seu filho manter relações sexuais com as empregadas da família. Naná, entretanto, marca um encontro com uma empregada mulata, esguia e sensual (Aizita Nascimento). O desfecho envolve uma troca de casais, na qual um amigo de Naná (Carlos Mossy) tem um caso com a esposa do empresário (Neuza Amaral).

Casa Grande é protagonizado por Jean, filho de uma família burguesa em pleno declínio. As empregadas da família são Rita (Clarissa Pinheiro) e Noêmia (Marília Coelho). Noêmia é religiosa, negra com tom de pele bem escuro, cujo corpo é gordo. A construção de sua personagem passa pelo ponto da abnegação, da entrega e bondade, sem nenhuma dimensão sexual. Rita é sensual, tom de pele mais claro, esguia, engraçada e espalhafatosa, usando roupas extravagantes com estampas de animais e maquiagem forte e colorida, sendo inclusive criticada por sua patroa por isso. As duas personagens representam dois estereótipos praticamente em lugares opostos de um espectro: a mulata sensual e a mãe negra.

Nos primeiros minutos, depois da abertura, um plano geral da “casa grande” e cenário principal do filme, Jean vai até o cômodo da empregada, que seria o que podemos entender, por meio de uma analogia ao título do filme e à cena anterior, a “senzala”. Ele bate na porta e, quando responde seu nome, é autorizado a entrar. Ali, Jean e Rita assistem televisão juntos. O rapaz percorre o corpo da empregada tentando massageá-la e arrisca algumas tentativas de beijo.

Os encontros, que se repetem na narrativa, servem para a iniciação sexual do personagem. Sentado no sofá de Rita, ele ouve as aventuras sexuais da empregada em detalhes explícitos, suas preferências. (“Eu amo quando beijam minha bunda.”) O corpo da empregada é algo fundamental dentro do filme, parte da iniciação sexual de Jean, um território que o jovem pode percorrer sem proibições. Ao contar vários detalhes de sua vida sexual, Rita se apropria e dialoga com um imaginário social acerca dos escravos domésticos, principalmente as mulheres, que contavam histórias de ninar de ninar para entreter os filhos de seus senhores. A cena final do filme, utilizada no próprio material de divulgação e no cartaz do longa, é Jean fumando, após perder sua virgindade, na cama de Rita.

Luzia, de O casamento de Louise, é mais uma atualização do estereótipo da mulata sensual. Suas roupas são curtas, ela samba e seduz os homens à sua volta. A diferença racial entre Luzia, empregada, e Louise, patroa, é também evidenciada. No evento principal da trama, um almoço, Luzia prepara uma feijoada. Diálogos absurdos são proferidos a partir deste alimento: Louise diz que a empregada sabe cozinhar bem feijão pois é neta de escravo e o maestro sueco, convidado para a festa, diz que não sabe dizer o que é mais gostoso: a feijoada ou a empregada. Luzia se casa com o maestro e passa a ser patroa na Suécia.

Por fim, Cronicamente Inviável é um filme cujo protagonismo está ancorado mais em uma temática, a inviabilidade do Brasil e suas contradições enquanto nação e sociedade, do que em um personagem em específico. Com uma galeria de personagens representantes de diversos estratos sociais da sociedade brasileira, uma delas é Josilene (Zezeh Barbosa), empregada de Maria Alice (Betty Gofman). Em um dos diversos flashbacks do filme, é revelado que os pais de Josilene trabalharam para os pais de Maria Alice, de maneira informal e precária. Numa relação herdada de mãe para filha, Josilene agora é funcionária de Maria Alice, sofrendo humilhações do marido da patroa.

A construção da narrativa que, a princípio, parece crítica sobre os reflexos da escravidão no Brasil, se revela frágil e rasa, pois Josilene, uma mulher negra retinta, é também passista de escola de samba. Josilene aparece novamente ao final do filme, diferente de sua patroa, que protagoniza vários segmentos do longa. A empregada é flagrada na cama da patroa com seu amante. O desfecho ocorre da maneira mais inusitada: Josilene é espancada pelo amante até a morte, enquanto Maria Alice foge. A mulata sexualizada paga com a vida por macular a cama da patroa. Um encerramento inesperado e que revela a crítica rasa, vazia e preconceituosa pretendida pelo filme.

Neste grupo de filmes há um claro e evidente exemplo daquilo que Laura Mulvey (1991) chama de olhar masculino, pois por meio dessas empregadas servis e sexualizadas, em consonância não só com o imaginário colonial, mas em diálogo também com um tipo de construção do olhar e das imagens cinematográficas dentro da própria história do cinema “as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência codificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual” (Mulvey 1991, 444). As personagens deste subgrupo não estão apenas aprisionadas por uma lógica colonial, são também vítimas de uma engrenagem “simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do cotidiano linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher”. (Mulvey 1991, 438).

Ainda que, em certos momentos, os filmes possam fazer um movimento crítico em relação às classes média e alta brasileira, tal crítica é esvaziada quando tais obras ancoraram seu ponto de vista no filho dos patrões ou dos próprios patrões, como é o caso de Como é boa nossa empregada, Casa grande, Cronicamente Inviável ou quando investem em personagens que correspondem a dois tipos e estereótipos marcados do imaginário da cultura brasileira; a mulata sedutora e a mãe preta, papéis muito específicos e planificados, sexuais ou castas/cuidadoras do lar, como é o caso de O casamento de Louise.

A conscientização da empregada

O terceiro agrupamento é fertilizado pelo gesto reflexivo, por parte dos seus realizadores, de desvelar as violências e explorações vivenciadas pelas empregadas e evidenciar o trabalho doméstico remunerado como fruto de uma construção social. Ao invés de normalizar o trabalho doméstico como natural, inato às mulheres negras e pobres, tais filmes buscam compreender e localizar dentro da sociedade brasileira este trabalho, resultado de um processo histórico e social. Entretanto, tais obras não estão imunes à utilização de estereótipos e construções caricaturais e reducionistas no que tange a figuração das empregadas domésticas.

Perdida → Tudo bem → Romance de empregada

O início dessa movimentação pode ser percebida em Perdida, cuja protagonista é Estela (Maria Sílvia), jovem pobre do interior mineiro. Sem possibilidades profissionais, ela começa a trabalhar como doméstica. Logo nos minutos iniciais do longa, uma perturbadora sequência mostra as violações sexuais às quais a moça é submetida por parte de seu patrão e do filho. Ao flagrar o comportamento de ambos, a patroa decide castigar Estela, obrigando-a a comer feijão queimado, enquanto é assediada pelos homens. Dentro deste inventário é o único filme a retratar as relações sexuais forçadas entre patrão e empregada como o que de fato são: violência sexual. Após os episódios, a personagem deixa a casa em que trabalhava e passa a se prostituir

Tudo bem é povoado por uma dezena de personagens em um apartamento de classe alta na cidade do Rio de Janeiro. Por causa de uma reforma de grandes proporções a família proprietária do imóvel precisa lidar com toda sorte de figuras subalternizadas. Duas personagens se destacam: as empregadas. A partir da segunda metade do filme, as personagens assumem espaço gigante na tela: uma se torna beata milagreira e recebe em seu corpo as chagas de Cristo; a outra, interpretada por Zezé Motta, protagoniza uma sequência musical subversiva, cantando a canção Como nossos pais (música de Belchior, na versão popularizada por Elis Regina) na cozinha de seus patrões, nua.

A sensualidade é característica marcante da personagem de Zezé Motta, que transa com pedreiros que trabalhavam na reforma e se prostitui para complementar a renda. Em outra sequência, a personagem ironiza a postura de sua patroa (interpretada por Fernanda Montenegro), sempre doente e prostrada na cama. Motta veste as roupas da patroa e se deita na cama dela, imitando os pedidos infantilizados da empregadora. Quem a serve é a outra empregada doméstica, uma mulher branca. Motta ordena chá e quando o recebe, joga xícaras e pires pelos ares, gargalhando. Depois, ela se esfrega em sua colega de trabalho, simulando o sexo de seus patrões.

Dez anos mais tarde, Romance de empregada chega aos cinemas. A construção de sua protagonista, Fausta (Betty Faria), se realiza sem nenhum apoio em caricaturas ou referenciando construções anteriores presentes na cinematografia brasileira, como as empregadas das chanchadas e pornochanchadas. É uma personagem difícil de ser categorizada como mocinha ou vilã, uma complexidade rara se compararmos a maioria dos filmes do corpus, que investem na construção do personagem tipificado.

Assim como em Domésticas e Que horas ela volta? é um dos poucos filmes do corpus a mostrar a existência das personagens para além dos muros dos patrões, revelando a casa, seus vizinhos e a condição de vida das empregadas, os trajetos em transporte público coletivo na ida e volta do trabalho. Fausta vive numa vizinhança de chão de terra batida, sem saneamento básico, com recorrentes enchentes e é vítima de violência doméstica. Nas idas para o trabalho, em um metrô lotado, conhece um idoso que se interessa sexualmente por ela. Fausta passa, então, a extorquir o homem, aplicando pequenos golpes e chantagens, cuja pequena reserva financeira é capaz de lhe proporcionar pequenos luxos, diferente da sua relação conturbada com o marido alcoólatra e desempregado. O final trágico do filme, uma enchente que alaga o barracão de Fausta e mata os dois homens com quem ela é se relaciona, é comum aos desfechos das empregadas cinematográficas. Entretanto, os três filmes iniciam um primeiro passo em relação a um olhar mais reflexivo sobre o trabalho doméstico remunerado dentro do cinema brasileiro.

O casamento de Louise → Cronicamente Inviável → Domésticas - o filme

O segundo subgrupo traz filmes unidos por uma enorme proximidade temporal. Lançados entre 2000 e 2001, O casamento de Louise, Cronicamente Inviável e Domésticas - o filme, são muito mais semelhantes do que os títulos possam sugerir. São longas compostos por uma grande quantidade de tramas paralelas e personagens principais; narrativas fragmentadas em diversos pontos de vista; e efeitos visuais e narrativos como flashbacks ou a emulação de um documentário dentro do próprio filme ficcional.

Tais mecanismos são utilizados para evidenciar a origem das empregadas domésticas, produzindo imagens e relatos acerca de suas infâncias, juventudes e a falta de possibilidades no mercado de trabalho com vínculo empregatício. Por meio desses procedimentos, também, a experiência de desigualdade social e o contraste das condições sociais entre patroas e patrões e as empregadas é explicitada. O desejo por parte desses realizadores não garante, porém, que a figuração das empregadas não será problemática: as personagens são extremamente caricatas, reproduzindo padrões das chanchadas e das pornochanchadas, seja pela ridicularização ou pela hipersexualização.

Em Domésticas - o filme, por exemplo, as protagonistas desprovidas de qualquer capacidade reflexiva, extremamente ignorantes e burras, com sotaques carregados ou vozes estridentes. O casamento de Louise e Cronicamente Inviável investem na figura da mulata sensual, boa de samba e boa de cama. No primeiro, Luiza se torna patroa ao se casar com o maestro sueco, primeiro interesse de sua patroa, não antes de ser comparada a uma feijoada. A ascensão social pelo casamento, único destino possível às empregadas. No segundo filme, Josilene, a passista de escola de samba, paga um preço alto por usar a cama de seus patrões. Tal espaço não é destinado a ela ou a qualquer mulher de sua classe social. A personagem, ao ser flagrada pela patroa, confessa desejar viver um dia como ela: assistindo vhs em uma cama de casal. O preço é a morte, ser espancada pelo próprio amante. Mesmo com as melhores intenções, tais realizadores não conseguem escapar de uma tradição imagética e cinematográfica. A empregada doméstica, vulnerável na sociedade brasileira, é também subalternizada na misè en scene dos filmes.

Que horas ela volta? (2015) → Três Verões (2019)

Que horas ela volta? é focado em Val (Regina Casé) uma mulher pernambucana que deixa a filha, criança, em sua cidade natal e parte para São Paulo, em busca de melhores condições de vida. Val transfere para Fabinho (Michel Joelsas), filho de Bárbara (Karine Telles) e Carlos (Lourenço Mutarelli), todo o carinho que não pode dedicar à sua filha biológica, Jéssica (Camila Márdila). Jéssica decide tentar vestibular para a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Estado de São Paulo, a mesma para a qual Fabinho se inscreveu. Para realizar a prova, Jéssica pede à Val que passe alguns dias morando com ela. Val, que mora em um cômodo apertado na casa dos patrões, vê seu mundo mudar completamente com a chegada da garota, uma forasteira dentro de um universo cheio de regras tácitas, como é o ambiente doméstico. É a postura curiosa de Jéssica que faz com que Val questione inúmeras das regras que ela própria introjetou. A trama se finaliza com a aprovação de Jéssica no vestibular e com Val abandonando seu emprego e se tornando massagista.

O filme inicia um passo em direção a um Brasil otimista, marcado por políticas públicas de redistribuição de renda, características dos governos Lula (2003 - 2011) e Dilma (2012 - 2016). Nesse país, a ascensão social, muitas vezes, se dava por meio do acesso à educação formal. Um país com direitos trabalhistas garantidos às empregadas domésticas em paridade a outras categorias de trabalhadores, com a Emenda Constituição conhecida como PEC das Domésticas, de 2013. Um país, porém, no qual quem ascende socialmente é Jéssica, filha da empregada e não Val, que abandona o emprego e a família da patroa para morar em uma favela sem um trabalho formal.

Que horas ela volta?, por meio da câmera cotidiana de Muylaert, oferece um retrato próximo e afetuoso de sua protagonista, ainda que se valha do humor para tanto. Val é engraçadinha, produz bordões e memes, cujo sotaque pernambucano emulado por Casé dialoga com as domésticas de Dercy Gonçalves, ainda que opere em níveis caricaturais bem menores do que os das chanchadas e dos dois primeiros agrupamentos. Importante ressaltar que Casé é reconhecida por programas de auditório de forte apelo popular e por inúmeros personagens de comédia.

Quatro anos após o estrondoso sucesso de Que horas ela volta? Casé interpreta novamente uma empregada doméstica, desta vez, Madá em Três Verões. Madá é uma empregada doméstica e governanta de uma família de elite, no Rio de Janeiro. Após o patrão ser preso em um escândalo de corrupção, ela e os outros empregados passam a morar na mansão, em um condomínio de alto luxo. Sem salários, sem emprego e sem a possibilidade de receber, pois o empregador está preso, o grupo de funcionários, encabeçado por Madá, passa a vender móveis e bens da casa que não foram penhorados pela justiça e alugar (com a permissão do pai do patrão, que vive na casa) o imóvel para turistas e viajantes, como forma de gerar renda.

Diferente de Val, que carrega certa subserviência e um apego às regras tácitas e acordos não ditos, normas de conduta e convivência na casa dos patrões, Val é uma personagem com mais agência sobre sua própria vida. Madá é mais capaz de perceber os traços de subalternidade e desigualdade que os patrões impõe e, por isso mesmo, consegue romper com mais força, ao passo que Val é muito apegada à figura de Fabinho e ao inegável afeto que construiu durante as duas décadas de serviço.

Mais uma vez, também, um Brasil é refletido nas telas, com as inúmeras operações anticorrupção deflagradas pela polícia brasileira, atingindo a classe alta do país. O filme é sobre aqueles que ficam, que não tem para onde ir depois de perder sua fonte de renda. Se a patroa de Madá pode viver no exterior, junto com o filho, e esquecer o escândalo de corrupção que envolve, para Madá e seus colegas de trabalho, o futuro possui menos possibilidades, com salários atrasados e o desemprego. Estas duas comédias, retratam certo período da sociedade brasileira e, mesmo que as atuações de Casé estejam ligadas aos outros papéis desempenhados por ela na televisão e a um imaginário cômico acerca das trabalhadoras domésticas, tecem comentários progressistas e que rompem, ainda que de maneira frágil e discreta, com o lugar da empregada no cinema brasileiro até então.

Aquarius (2016) → Trabalhar cansa (2011) → As boas maneiras (2018) → Cuidado madame (1970)

O último subgrupo tem como denominador comum a utilização da presença da empregada na diegese dos filmes, como invasora (Souto 2016), para produzir horror, transformando as empregadas em monstros, fantasmas ou aparições sobrenaturais. Em Aquarius, um estudo de personagem centralizado em Clara (Sônia Braga), as empregadas domésticas, principalmente uma empregada doméstica negra, retinta, que rouba jóias da família, que peregrina pela casa, é um pesadelo recorrente da personagem principal. Ainda que nas periferias do filme, elas são tematizadas. Ladjane, a empregada viva da protagonista, é uma gêmea de Val de Que horas ela volta? o que demonstra uma passagem interessante entre o filme de Muylaert e Mendonça Filho.

Trabalhar cansa e As boas maneiras aprofundam ainda mais a empregada no horror como figura responsável pelo desencadeamento do sobrenatural. A contratação da empregada em Trabalhar cansa, de maneira informal e sem vínculo empregatício, é o início de uma série de desconfortos no lar e na família da personagem principal do filme, desencadeando também forças sobrenaturais. Quanto mais a patroa oprime sua empregada, mais a existência dos personagens se torna desconfortável, mais um monstro inominável ganha força. As boas maneiras, dirigida pela mesma dupla de realizadores, trabalha também, pela metáfora do horror, as relações desiguais entre patroa e empregada, tensionando também o relacionamento afetivo e sexual entre as duas.

As boas maneiras apresenta também uma relação entre empregada e patroa, totalmente consensual, e um dos únicos exemplos de sexo lésbico (junto com Cuidado madame) do corpus. Juntas, as personagens constroem um relacionamento sexual e afetivo e, com a morte da patroa, a empregada adota o filho dela e cria como se fosse seu. O desejo da empregada não dilui as barreiras sociais entre ambas e, em certos momentos, a personagem fere suas mãos ou se deixa ser mordida pela patroa, que deseja carne humana por estar grávida de um lobisomem. A complexidade de tais relações mostra uma personagem com agência.

O último filme desta coleção é Cuidado madame, cujo movimento autocrítico e autoconsciente faz um desafio à categorização, tornando-o um acontecimento de difícil apreensão. Não se trata de cinema de gênero como as obras antecessoras, ainda que monstrifique as empregadas. Helena Ignez e Maria Gladys, interpretando empregadas, perambulam pela cidade, gritam, performam cenas de nudez, tortura e assassinato. Na primeira metade do filme Ignez é patroa e Gladys uma empregada, que mata a primeira. Na segunda metade do filme ambas são empregadas à procura de uma patroa para assassinar. É o filme que mais subverte o papel da empregada doméstica no imaginário social e o filme que mais destoa das imagens produzidas acerca da classe trabalhadora na cinematografia brasileira, ao retratar uma revolta das empregadas, da maneira mais brutal e trash possível.

Conclusão

Shohat e Stam (2006) apresentam reflexões sobre as imagens e representações de povos e culturas não eurocêntricas, não brancas, povos que estão localizados na periferia, na subalternidade, se tomarmos o sujeito branco e ocidental como referência universal. Embora estejam tratando de povos e culturas, a noção da subalternidade é fundamental ao livro, e não parece um salto argumentativo usá-la, aqui, para nossas críticas às imagens produzidas das trabalhadoras domésticas remuneradas. Os autores apontam que muitos desses estudos buscam demonstrar em que medida determinados filmes cometem erros históricos, biográficos, de maneira cartesiana, como se houvessem apenas boas e más representações. Tal abordagem é falha: “como se a verdade de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessível, e “mentiras” fossem facilmente desmascaradas.” (Shotat e Stam 2006, 261).

Filmes são complexos e, ao apostar na metodologia de Souto (2016), entendemos as obras como seres vivos, dotados de sentidos, discursos e, também, contradições. Um filme pode, em muitos aspectos, ser progressista em relação a determinadas figurações, propondo e avançando em debates, rompendo com imagens consolidadas e estereótipos e, ao mesmo tempo, em outras frentes e em outros aspectos, ser conservador, conformador e se utilizar de estereótipos e caricaturas. Mais do que classificar os filmes aqui citamos em grupos de bons ou maus filmes, o desejo desta pesquisa é realizar um mapeamento e apanhado em torno do tema do trabalho doméstico remunerado e, a partir disso, perceber e evidenciar de que maneiras, por quais procedimentos fílmicos, estas obras produzem imagens acerca da classe de trabalhadoras.

É evidente como o imaginário coletivo penetrou (ou foi penetrado) pelo cinema, que absorveu completamente a subalternidade da empregada doméstica. Por isso, ao apresentar os filmes, evidenciamos os mecanismos por meio dos quais esse imaginário de violências é reiterado pelo cinema e de quais maneiras os filmes, podem também, romper com os sentidos presentes na coletividade. Não à toa o último filme citado nesta comunicação é Cuidado madame: um lembrete dos momentos em que a arte funciona como um coquetel molotov, capaz de explodir estruturas e re-imaginar universos. Da mesma maneira que as personagens são docilizadas, hipersexualizadas, servis aos patrões, sem perspectiva de futuro e imersas em uma rede de tragédias cotidianas, elas também podem andar pelas ruas a esmo e assassinar suas patroas, num gesto metonímico de fim de uma exploração secular racista e classista. Os filmes podem encenar relações sociais tradicionais ou propor novos rearranjos. O cinema pode.

Referências bibliográficas

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Filmografia

Os filmes Perdida, Cuidado madame e Três Verões não foram lançados em formatos físicos. Tivemos acesso a Perdida e Cuidado madame em cópias online no Youtube; Três Verões foi assistido na televisão.

As Boas Maneiras. 2018. De Marco Dutra e Juliana Rojas. Brasil: Imovision. DVD.

Aquarius. 2016. De Kleber Mendonça Filho. Brasil: Imovision. DVD.

Cala a boca, Etelvina. 1958. De Eurípides Ramos. Brasil: DynaFilmes. DVD.

Casa Grande. 2014. De Fellipe Barbosa. Brasil: Imovision. DVD.

Como é boa nossa empregada. 1973. De Ismar Porto e Victor di Mello. Brasil: Coleção Canal Brasil. DVD.

Cronicamente Inviável. 2000. De Sérgio Bianchi. Brasil: Versátil Home Vídeo. DVD.

Cuidado, madame. 1970. De Júlio Bressane. Brasil.

Domésticas - o filme. 2001. De Fernando Meirelles e Nando Olival. Brasil: Imagem Filmes. DVD.

Minervina vem aí. 1960. De Eurides Ramos e Helio Barbosa. Brasil: DynaFilmes. DVD.

O Casamento de Louise. 2001. De Betse Paula. Brasil: Europa Filmes. DVD.

Perdida. 1975. De Carlos Alberto Prates Correia. Brasil.

Que horas ela volta?. 2015. De Anna Muylaert. Brasil: Paris Filmes. DVD.

Romance de Empregada. 1988. De Bruno Barreto. Brasil: Paramount Filmes. DVD.

Sonhando com milhões. 1963. De Eurides Ramos.Brasil: DynaFilmes. DVD.

Trabalhar Cansa. 2011. De Marco Dutra e Juliana Rojas. Brasil: Lume Filmes. DVD.

Trair e coçar é só começar. 2006. De Moacyr Góes. Brasil: Fox Filmes. DVD.

Três verões. 2019. De Sandra Kogut. Brasil.

Tudo Bem. 1978. De Arnaldo Jabor. Brasil: Versátil Home Vídeo. DVD.