Capítulo I – Cinema – Arte
Image and memory – a reflection about creative process in short-term memory
Imagem e memória – uma reflexão sobre processo criativo na memória de curto prazo
Hugo Canossa
CIAC – Instituto Universitário da Maia, Portugal
Rosimária Rocha
CIAC – Universidade Aberta, Portugal
Abstract
Talking about image and memory in the artistic scenario made us call upon Television and Cinema for having provide turning Art and life into a living memory and thus having contributed over the years to effective registration and dissemination of performing arts.
This article seeks to reflect on theory of functioning of memory and its relationship with psychology, aiming to create a technological ecosystem for the enjoyment of an artifact that allows interaction and behaviors analysis.
With the objective of enhancing a metamorphosis of cinema (linear, non-interactive, passive spectator) and veejaying (non-linear) with interaction and activity of the spectators, audience and operator / director write in real time the narrative of a film, always unique and unrepeatable. Regarding that, we present an artistic creation that propose viewing of videos, challenging user to replicate movements screened and create its own performance, mediated by the operator.
From relationship with music (which can be composed for each performance), from dance movements performed, reaction to its own dance, visitor will test reaction to its memory and himself. It is intended verify the ability of the participant and operator to reach deep and visible immersion levels, reflecting throughout the text on the ability to evoke short-term memory, its forms of production and storage.
Keywords: Art, Image, Memory, Artifact
1. Introdução
Envolvidos numa teia de sedução mediática, o cinema e a televisão são responsáveis pela construção de uma certa iconicidade visual e imagética. Toffler (2000, 156) chama a atenção para uma influência que ocorre desde muito cedo, quando uma criança já não recebe “imagens apenas da natureza ou de pessoas, mas também dos jornais, de revista de massas, da rádio e, mais tarde, da televisão”. O indivíduo, uno, vê-se perante a necessidade ou desafio, conforme a sua ‘capacidade’, de tentar contrapor-se a uma espécie de ‘totalização’, lutando por uma reconquista da sua unicidade, numa demanda por uma realidade própria, adquirida através de estímulos ‘reais’, ‘palpáveis’, em experiências próprias, pessoais. A luta pode ser desigual, pois, conforme assinala Ferrés (1998, 43), “os meios de massas audiovisuais são precisamente uma gigantesca indústria de sonhos e mitos” e “quem domina as imagens domina a pessoa”.
Quando se fala em imagem e memória no cenário das artes, evocamos nitidamente o Cinema, considerado por Balász (1978, 40) como a “única arte nascida na era do capitalismo” e da memória viva que, desde então, muito contribuiu na evolução, história e registo das Artes do espetáculo. Das primeiras experiências na década de 1920 com um aparelho que será denominado de televisão, à sua entrada como ‘eletrodoméstico’ a partir da década de 1960, verifica-se um impacto social de grande influência, principalmente no que diz respeito ao comportamento das pessoas. As duas Artes, que recorrem à junção de Imagem e Som, são importantes veículos de condução da memória.
Nessa perspetiva, apresentamos neste artigo o processo criativo do artefacto “Clash and Dance Yourself”, que possui uma relação conceptual muito próxima com a teoria do funcionamento da memória e a sua íntima relação com a psicologia. Na sua instalação foi criado um ecossistema tecnológico de fruição que permite a interação e a análise de comportamentos. Abordamos ao longo da investigação, que faz parte da Tese de Doutoramento em Média- Arte Digital em andamento, as seguintes questões: pode a memória de curto prazo ser reativada sem uma prévia perceção da necessidade de ativação? A que nível, ou níveis, de imersão conseguimos induzir um utilizador numa experiência de entretenimento vídeo?
Allado-McDowell (2020) afirma que podemos especular sobre o futuro da arte e da tecnologia, todavia, a melhor maneira de lhe dar entendimento seja diretamente através da criação artística. Assim, da narrativa audiovisual proposta em “Clash and Dance Yourself” o visitante é convidado a dançar por meio da projeção de uma vídeo-dança (onde está a ser filmado, sem que saiba) e estimulado a ultrapassar níveis de dificuldade até estar completamente imerso e “dançar-se a si próprio”. Nessa sequência, resultam necessidades tecnológicas, como a interpretação de um esqueleto cinemático, armazenamento e processamento dessa informação. Como objetivos da instalação temos: induzir o participante a interagir com a sua própria pose; transformar o participante numa entidade desmaterializada e referência de si mesmo; provocar ativações inconscientes da memória do participante; estabelecer métricas de medição do nível de imersão obtido pelos participantes.
No decorrer do texto são detalhados os conceitos envolvidos no processo de criação artística do artefacto e, por fim, são apresentados os resultados das exposições da instalação, suas ligações às imagens e memória de curto prazo.
2. As imagens de cinema e televisão como influenciadores da memória
A imagem de forma geral sempre influenciou a memória. As recordações de todos os momentos vividos por um ser humano são lembradas por meio de imagens; não raramente ouvimos pessoas que passam por experiências de quase-morte indicar que viram a vida a passar como num filme. Nesse âmbito, Barbash e Taylor (1997, 49) começam por conotar os filmes com a imediatez e a intemporalidade: “Os actos capturados em filme parecem ficar presos no tempo, repetindo-se a eles próprios em cada visualização. Alguns filmes, representativos de um determinado lugar e de uma determinada época, são mostrados posteriormente como se ainda fossem o melhor reflexo desse lugar e dessa época”. Assim, a vida imita a Arte e a memória reflete a vida.
Do cinema ao audiovisual, televisão e o posterior entretenimento associado, importa contextualizar que tanto as experiências no final do século XIX dos Lumière como Edison e o aperfeiçoamento “dos mecanismos do cinematógrafo [...] foram mais um interesse de ordem científica e industrial do que propriamente artística ou espectacular” (Geada, 1987, 45). Conforme Penafria (1999, 37-43), os pioneiros das imagens em movimento “deslocavam-se aos locais onde decorriam os acontecimentos que queriam registar e ‘documentavam’ esses mesmos acontecimentos”. A mesma autora lembra que as ações gravadas eram, essencialmente, manifestações da vida humana e ações para estudo e análise, como o movimento do cavalgar do cavalo, por Muybridge, e o voo dos pássaros e as formas de locomoção, registados por Marey. Para os pioneiros das imagens em movimento, o registo das atividades permitia captar aquilo que escapa ao olho humano e assim possibilitar “tornar lentos os acontecimentos que ocorrem rapidamente e, posteriormente, tornar rápidos os movimentos que ocorrem lentamente, como o desabrochar de uma flor”. Penafria refere ainda Vertov, que via na câmara um olho mecânico que cria uma “nova percepção do mundo, um mundo sem máscara, de ‘verdade nua’, que não se limita a reproduzir o que vemos, que aperfeiçoa e completa o olho humano, por natureza imperfeito”.
O cinema adquire, entretanto, um “prestígio cultural” que advém do valor que o público “atribui à imagem em movimento” (Elsaesser, 2001, 107-109), prestígio esse que tem aumentado de uma forma constante, ainda que, paradoxalmente, “a sua utilização como propaganda e persuasão contribuam também para a tornar suspeita”. A coleção de ‘material histórico’ que sobreviveu ao longo do século XX leva a pensar que “nada aconteceu nesse século sem que uma câmara o tenha registado”. Estas provas são apresentadas como verdade, devido à ideia de “registos materiais, modelo dominante da nossa cultura: [...] um acontecimento deixa um resíduo material, que o historiador verifica ser ‘autêntico’, passando em seguida a interpretá-lo como ‘documento’”. O efeito realidade da imagem em movimento surge a partir “não só das características de ícone, mas também da estrutura-tempo dentro da qual mantém o espetador, um ‘aqui e agora’ que, no entanto, já é sempre um ‘ali e depois’”. A impressão de realidade que deriva da imagem cinematográfica é atribuída pelos espetadores, “como se tratasse de um fragmento da realidade à qual se presta atenção através de uma janela grande, fluxo de vida autónomo e auto gerado” (Gubern, 1987, 269). A predisposição do espetador é abordada por Ferrés (1998, 103), para quem “bastam as aparências para criar a sensação de realidade. O criador fragmenta e seleciona. O inconsciente do espetador globaliza e completa”, ilusão e miragem “à qual o espetador adere e se presta porque necessita satisfazer algumas necessidades psíquicas”. A perspetiva industrial e empresarial vem à baila com Esteves (apud Brandão, 2016, 30), que fala de “um espaço de negociação permanente impondo o seu ritmo ao conjunto da vida social, [...] gerando então novos contextos de sociabilidade, com os seus próprios quadros de poder, com base em novas relações de dependência e de dominação”.
O surgimento da televisão teve uma influência assinalável na sociedade, com Geada (1987, 128) a distinguir o anterior fervor coletivo do espetador solidário do espetáculo em contraste com o ser solitário da televisão, a quem Ferrés (1998, 273) denomina de “instrumento representativo da indústria das consciências”, que “cumpre uma função essencial na modelação do caráter, na internalização de pautas de comportamentos, na filtragem de princípios e valores”.
O efeito do ato de visualizar a televisão despertou interesse desde muito cedo e mereceu pesquisas já nos finais dos anos 1960. De acordo com Jhally (1995, 76) ao citar pesquisas de Krugman, estudos demonstravam o hemisfério esquerdo do cérebro como lógico, racional e analítico, mas menos ativo que o direito, mais emocional e holístico. Se em “situações normais ambos os hemisférios processam a informação de maneira combinada, a experiência televisiva estilhaça essa ligação, deixando o espectador vulnerável aos apelos emocionais e não-racionais”. O poder da imagem no sistema neurológico foi também abordado por Pato citando Brea (2012, 96), quando apresenta a descoberta humana que verifica “que uma imagem fica na retina humana durante uma décima de segundo antes de ela desaparecer completamente”.
Jhally (1995, 240) lembra Mander e Winn como autores que consideravam a tecnologia televisiva uma atividade que provoca “dependência e alienação”. Se Mander atribui a culpa à televisão e defende a eliminação total da tecnologia, Winn sustenta que a “imagem que vemos no ecrã da televisão, pela sua própria natureza, elimina a visão periférica”. Jhally acrescenta ainda que a confusão sensorial decorrente da necessidade de focagem da imagem da televisão pode explicar a “espécie de transe que caracteriza a experiência televisiva” e o “fascínio tão forte e hipnótico”. Poderemos desde já começar a atribuir à TV o epíteto de colonizador imagético do cérebro, com os efeitos perniciosos normalmente associados aos processos de colonização? Mander (1999, 302) destaca “o poder exercido pela televisão ao substituir o nosso imaginário pessoal”, estendendo–se “às várias esferas da informação imagética do indivíduo. A nossa mente encontra-se preenchida por imagens de épocas, lugares, pessoas e histórias com que nunca estabelecemos contacto pessoal”. Brandão (2016, 59) cita Fernandes (2001) e Poster (1999) para referir a televisão como “quadro de referência colectivo, [...] funcionando como um grande templo da ritualidade moderna, [...] representação da verdade e da legitimidade social”, alertando de seguida para o poder sobrevalorizado das imagens televisivas, que se transformam em “referência à realidade”, com imagens que se transformam em realidade. Por sua vez, Elsaesser (2001, 112) aponta a curiosidade do acontecimento mediático como “drama da própria televisão, [...] encarnação do tempo televisivo, [...] representação do real”. Por seu lado D’amours (1998, 55, tradução nossa) descreve assim a televisão: “É um meio visual e os códigos visuais utilizados na representação da realidade social nos programas de notícias são uma parte importante da nossa cultura visual”. O caminho para o espetáculo parece instaurar assim uma espécie de hegemonia imagética, com uma profusão massiva de imagens que inebria todas as outras possibilidades, numa situação que Vilela e Barros (2018, 140) definem de “pandemia de imagens”.
Kosminsky (2015, 381-382) demonstra que, independentemente da “aparente heterogeneidade dos múltiplos canais de informação”, o que assistimos é a uma “crescente homogeneização que nos leva a compartilhar uma memória uniforme”. Paradoxalmente, vivenciamos igualmente o risco de um esquecimento coletivo. Com um passado cada vez mais presente, vivemos também “o medo do esquecimento”. É a “memória não confiável, a um passo do esquecimento, [...] realidade fluida e instável, [...] reconstruídas a cada acesso. [...] A inseparabilidade entre memória imaginada e memória vivida torna-se evidente”. As duas espécies de memória, natural e artificial, consideradas pelos antigos gregos, servem como ponto de partida nessa perspetiva adotada pelo autor.
3. Evocação da memória de curto prazo no artefacto “Clash (and dance) Yourself”
A memória e o seu funcionamento são alvo de interesse no campo da psicologia e outras áreas científicas, sendo inquestionável a sua importância para melhor compreensão do comportamento humano. Estudos de vários autores permitem percecionar um consenso relativamente à descrição dos vários tipos de memória, desde memória voluntária a involuntária, ou de curto prazo e longo prazo. A identidade e a memória entram na equação de Queiroz (2015, 411) quando infere que “a memória, a emoção e o senso de identidade estão intrinsecamente presentes na relação usuário-produto e interferem nos modos de apreensão dos objetos por seus usuários”.
Nunes (2008, 133) começa por dividir a memória voluntária de involuntária: define a memória voluntária como aquela que vem ao pensamento por nossa própria vontade, por procura intencional; e a involuntária, quando vem à mente espontaneamente, de modo automático, sem aparente intenção, sem esforço e sem o nosso controlo. A capacidade de recordação de experiências é dividida essencialmente em três níveis: sensorial, curto prazo e longo prazo, com Ferrão e Rodrigues (2000, 69) a relembrarem a volatilidade da memória sensorial (ou icónica). No mesmo sentido, Evans, Jamal e Foxall (2012, 91) descrevem a memória sensorial como um ‘armazenamento’ temporário e uma vez que foi formada sem atenção ou interpretação, pode ser rapidamente perdida. A memória de curto prazo reflete um processo consciente e ativo de memorização da informação recebida. Ferrão e Rodrigues (2000) comparam a memória de curto termo (ou primária) com a memória RAM dos computadores. Na mesma analogia, referem a memória ROM para descrever a memória de longo termo (ou secundária), aquela que retém as informações percecionadas e que são selecionadas e codificadas de uma forma permanente. A relação da memória com a aprendizagem e a sua interdependência é igualmente abordada por estes autores que relevam a importância de informação prévia ou conceitos-âncora na retenção de novas informações. Segundo Tomé (2003, 17), esta viagem de dados entre a memória de curto prazo e longo prazo é determinada por fatores como “a experiência do mundo e da vida”, que fortalecem “a passagem da informação ao estádio superior do conhecimento”. A memória é também referida por Lafontaine (2007, 51) como o símbolo da interioridade subjetiva e como papel central na psicanálise e do caráter irreversível associado ao conceito do inconsciente de Freud. Este processamento de informação, que ocorre em tempo real, de uma forma subliminar ou não, ocorre na rede neuronal, no que para Ernst (2019, 170) representa “uma espécie de microarquivo dinâmico de instantes”. Para este autor, tanto esta perceção neurológica como a cultura digital tem base na memória, mesmo que no “efémero armazenamento de curto prazo”.
No seu percurso geminado entre computador e cérebro, Neumann (2005, 98) entendia que “determinadas partes do sistema nervoso seriam variáveis no tempo e consoante o seu passado histórico e representariam, portanto, em si e por si mesmas, uma memória”. Acrescenta ainda a memória da parte genética, “elementos da memória” que afetam e de certa forma determinam “o funcionamento de todo o sistema”. Oliveira (2017, 167) fala da plasticidade do cérebro e do modo como “a capacidade de aprender e de modificar o seu comportamento à medida que ocorrem novas experiências [...], entra em jogo toda vez que vemos ou ouvimos algo novo, cada vez que criamos uma nova memória e cada vez que pensamos”.
O autor Berthoz (apud Barros, 2019, 63) vê a memória como sendo desenhada pelo cérebro, uma espécie de simulador biológico que cria e emula a realidade, projetando sobre o mundo perceções internas, em função das ações que prepara. O risco associado é a perversão do indivíduo em esquemas de pré-conceitos e a forma como essas interpretações afetam as relações com os outros. Mittal et al. (2008, 35) apoia-se na pirâmide de Maslow para descrever ego e estima (4.ª camada na hierarquia) como a necessidade de nos sentirmos bem connosco e ter auto-estima, enquanto Fachada (1998) compara com a teoria de Herzberg e os fatores de realização, reconhecimento e status. Entre o conceito de ego como significado de pessoa, si–mesmo (self) ou consciência (Rapaport apud Blanck e Blanck, 1983, 29), os mesmos autores lembram Freud, que define o ego como um órgão sensorial “da percepção, dos processos de pensamento, destinado assim, à percepção de estímulos externos e internos”. Continua, referindo-se aos conceitos de processos primários e secundários: “o processo primário dirige-se para a descarga livre da excitação, enquanto que o processo secundário ao empregar os traços de memória, emprega o pensamento como uma ação exploratória”. Na opinião de Castro (2015, 65), a perceção, a atenção e a memória podem ser expandidas nas funções psíquicas superiores, provocadas por uma experiência estética que contribua para “a promoção de processos de consciência, importantes para o desenvolvimento humano”.
O artefacto construído para a instalação Clash (and dance) Yourself parte da relação do ser humano com a sua própria identidade, ego, memória e de que forma podem ser estimulados numa fruição performativa. Desenvolve–se a partir das sugestões de funcionamento da memória de autores como Nunes e Zicherman, Linder e Freud. As diferentes etapas descritas pelos autores ajudam a sustentar a divisão de níveis de participação e a medir o possível sucesso na fruição do artefacto. O primeiro esquema, de Nunes (2008, 7), divide o funcionamento da memória em 5 passos (figura 1):
Figura 1 – Divisão do funcionamento da memória de Nunes (2008)
Zicherman, Linder e Freud (2013, 17) propõem a atribuição de mais poderes para o utilizador, através da construção de um sistema ‘gamificado’, que permita uma evolução através de 6 etapas (ver figura 2)
Figura 2 – Sistema de ‘gamificação’ de interação com um utilizador de Zicherman, Linder e Freud (2013)
Queiroz (2015, 411) cita Cardoso, que entende a memória como mecanismo primordial para a construção da identidade, considerando as experiências acedidas não pelos sentidos, mas sim pela memória. “A capacidade de lembrar o que já se viveu ou aprendeu e relacionar isso com a situação presente é o mais importante mecanismo de constituição e preservação da identidade de cada um”. Como pergunta Fachada (1998, 69), se “todo o comportamento é uma actividade dirigida”, conseguiremos fazê-lo tender “para a consecução de objectivos”? A forma como podemos gamificar o papel da memória num circuito de fruição funciona assim como ponto de partida para o artefacto Clash (and dance) Yourself. A partir do esquema de divisão de funcionamento da memória de Nunes (2008) e da teoria da imagética televisiva de Mander (1999), propomos um novo fluxo da memória humana televisiva do visitante (figura 3).
Figura 3 – Fluxo da memória humana televisiva do artefacto Clash (and dance) Yourself
Dance, (mesmo só sabendo depois que) está a ser filmado.
De que forma um utilizador reagirá ao seu reflexo digital, a si próprio e à replicação e confrontação de si próprio? Pode o utilizador replicar uma dança com a qual é confrontado e dançar o resultado desse confronto? De que forma pode o visitante evocar a sua memória de curto prazo, desconhecendo que necessitava da sua ativação? Terá a memória de curto prazo um armazenamento automático involuntário e possibilidade de evocação imediata?
Lembre-se, (mesmo só sabendo depois que) vai precisar.
De um ‘chamamento’, que se pretende encantatório, através da dança do(s) outro(s), à fragmentação da sua identidade, à reação e também relação consigo próprio, numa causalidade reacional e também relacional e a provocação de sensações que podem ir de agrado à estranheza, a um auto–confronto e talvez até auto–desconforto. Em suma, o utilizador confronta a dança de outros, confrontando–se posteriormente com o resultado do confronto da dança inicial, no fundo, com o resultado da sua tentativa de replicação. Abaixo podemos ver a experiência proposta ao visitante (ver figura 4).
Figura 4 – Experiência do visitante em Clash (and dance) Yourself (Canossa, 2020, 44)
Baseado no modelo de interface de Bricken (apud Giannetti, 2012, 108), desenvolvemos um modelo de comunicação entre os intervenientes do artefacto Clash (and dance) Yourself e a forma como as comunicações se estabelecem. O fluxo de inputs e outputs de conteúdos da experiência é gerido por um operador em modo veejay, em tempo real e não linear. Na figura 5 podemos ver o esquema de funcionamento do circuito. O operador sugere conteúdos ao utilizador (1). Este, participando com a sua dança, proporciona conteúdos para o operador (2), que os armazena e fornece de novo ao visitante (3). O visitante conclui a experiência vendo-se transformado no conteúdo e visitante, numa existência potenciada de si próprio (4).
Figura 5 – Fluxo de inputs e outputs de conteúdos do artefacto Clash (and dance) Yourself
A fruição do artefacto está diretamente relacionada com a participação e predisposição do visitante em aceitar o desafio. Através de uma narrativa audiovisual linear de gradação de dificuldade, manobrada em tempo real pelo operador, o visitante é desafiado, numa fase inicial através da reprodução de vídeos, a posicionar–se na área que lhe está destinada. O espaço para a dança é confinado, para que o seu corpo seja detetado pelo sensor e refletido na projeção em forma de esqueleto cinemático. O utilizador é então objeto de uma metamorfose, vendo refletido o seu esqueleto cinemático (entre a figura de doppelganger, um seu semelhante, um duplo virtual, e a figura de avatar, sua representação digital) sobre um conteúdo vídeo inicial, de figuras humanas em movimentos de dança, com enquadramentos de corpo inteiro, com os quais se confronta e tenta replicar.
Nesta fase, é ainda desconhecido para um primeiro visitante (e supondo que existem espetadores que se tornarão visitantes num momento posterior) o facto de estar a ser alvo de registo vídeo, com o qual será surpreendido na fase seguinte, quando for confrontado com a projeção do seu registo e desafiado para uma replicação de si próprio. Este fator surpresa acontece eventualmente ‘apenas’ para um primeiro visitante, que pode igualmente sentir estranheza aquando da observação da sua metamorfose, entre as figuras de doppelganger e avatar, mas agora também de clone. Nesta fase de auto–replicação e auto–confronto, com as imagens gravadas da dança anterior, o visitante ver–se–á envolvido num preceito individual (consigo próprio), com a (sua) própria identidade fragmentada em três corpos: a sua existência física; a projeção da sua existência física imediatamente anterior; o seu esqueleto cinemático.
O circuito atinge a sua finalidade quando o visitante demonstra querer ser participante, com o operador a gerir em tempo real conteúdos audiovisuais, aguardando pela fruição do visitante para obter matéria prima para geração de mais conteúdos, neste caso apenas visuais. A duração total dos diferentes momentos do artefacto é variável e também imprevisível, dependente que está da participação do visitante. Os conteúdos a apresentar no momento final estão dependentes da maior ou menor predisposição para a dança por parte do visitante, pelo que o artefacto vive, por vezes apenas sobrevive, impregnado da aleatoriedade dessa predisposição (Canossa, Coelho e Paulino, 2019, 585).
Na tabela 1 apresentamos níveis de imersão que perspetivamos proporcionar ao visitante do artefacto, juntamente com os comportamentos expectáveis e observáveis, correspondentes a diferentes momentos de execução do circuito, a que associamos as sensações provocadas e os mediadores químicos envolvidos.
Nível | Comportamento | Sensações | Medidor químico | Momentos |
---|---|---|---|---|
Nulo | O visitante não se envolve com o artefacto | Indiferença | Não desencadeado | M1 |
Superficial | O visitante deteta o seu esqueleto cinemático, mas não se envolve com a dança de referência | Recusa | Não desencadeado | M2 |
Médio | O visitante envolve-se com a dança de referência | Envolvimento Desconhecimento |
Acetilcolina; Noradrenalina; Dopamina |
M3 |
Imerso | O visitante não se envolve com a sua própria dança | Surpresa Estranheza Desconforto |
Não desencadeado | M4 |
Profundo | O visitante envolve-se com a sua própria dança | Satistfação | Acetilcolina; Noradrenalina; Dopamina |
M5 |
Tabela 1 – Níveis de imersão e parâmetros estabelecidos
As poses obtidas pelos visitantes na replicação dos vídeos de referência, bem como alguns destaques da participação dos visitantes nos momentos 3, 4 e 5 podem ser consultados através do link ou do QR code (ver figura 6) abaixo apresentados. Na figura 7 apresentamos algumas imagens registadas aquando da interação dos visitantes.
Figura 6 – QR Code da interação dos visitantes com o artefacto Clash (and dance) Yourself no Retiro DMAD 2018
Figura 7 – Imagens de visitantes nos momentos 4 e 5 do artefacto Clash (and dance) Yourself no Retiro DMAD 2018
Na tabela 2 apresentamos os resultados dos dados recolhidos, com números de participantes, momentos atingidos e níveis de envolvimento. De modo a proporcionar uma perceção gráfica do envolvimento obtido, atribuímos cores aos diferentes níveis de imersão, numa escala de cor fria para indiferença e cor quente para imersão total (figura 8).
Tabela 2 – Resultados obtidos no Retiro DMAD 2018
Figura 8 – Grau de envolvimento obtido no Retiro DMAD 2018
O número de pessoas que atingiu o nível mais profundo de imersão é reduzido, o que pode ser explicado pela natureza do evento onde a instalação foi exibida, uma vez que ‘expunha’ os visitantes a olhares que podem, de certa forma, retrair a envolvência. Assim, pretende-se em exibições futuras proporcionar uma fruição individual, de modo a atingir níveis mais profundos de imersão a um maior número de pessoas.
4. Considerações finais
Na arte, como em outros campos, o bastão tem sempre duas extremidades. “A fusão da arte e tecnologia evidencia a arte conceptual marcada pelo conhecimento do complexo. O tema da obra conceptual é a arte que se expõe como totalidade. A obra não é um fim em si: existe como um meio para a realização da arte como conceito” (Costa, 2004, 30). Conhecer a Arte passa muitas vezes pela compreensão dos processos criativos.
Este artigo parte de uma tese desenvolvida no âmbito do Doutoramento em Média-Arte Digital da Universidade Aberta – Universidade do Algarve para focar-se no estudo da memória humana e na forma como pode esta ser testada e estimulada através da participação num circuito audiovisual de performance. Pretendeu-se estabelecer uma divisão muito clara entre a parte teórica e conceptual, da qual se partiu para uma materialização de uma obra e a investigação efetuada durante a sua prática. As ideias e bases conceptuais do desenvolvimento da investigação resultaram numa instalação com o nome “Clash (and dance) Yourself”.
A partir da tabela de Nunes (2008, 7) estabeleceram-se diferentes etapas do comportamento observável do visitante e os parâmetros que complementem a perceção da imersão induzida. Conforme Canossa (2020, 41, tradução nossa), espera–se que os níveis de imersão obtidos desencadeiem mediadores químicos associados às sensações que se pretende provocar.
O artefacto foi apresentado na edição de 2018 do Retiro Doutoral do Doutoramento em Média-Arte Digital, no Centro Cultural Magalhães Lima, na cidade de Lisboa – Portugal. A exibição decorreu no espaço do salão principal do espaço, juntamente com artefactos de outros estudantes do doutoramento. Os visitantes usufruíram da exposição de uma forma aleatória, isto é, ‘passearam’ pelo espaço disponível e interagiram com as obras, se esse fosse o seu desejo e se o artefacto estivesse ‘livre’, sem outro participante. O próprio tempo que o visitante dispõe ou predispõe para a visita e participação influi na forma como interage com os artefactos.
Clash (and dance) Yourself foi então apresentado na versão 1.0 e a sua execução provocou uma sensação de ansiedade positiva pela imprevisibilidade e desconhecimento do comportamento que o visitante adotaria na sua fruição. Da exibição resultaram conteúdos que permitiram observar e analisar as reações dos visitantes, que foram do já referido envolvimento com a proposta efetuada, mas também com outro tipo de comportamentos, como rejeição da dança de si próprio e naturalmente momentos de maior ou menor entusiasmo.
Futuramente o artefacto será apresentado em sua nova versão que propõe, para além das imagens, composições musicais inéditas para cada exibição, além de reflexões mais aprofundadas acerca da imersividade dos fruidores.
Notas
Nota 1 – https://drive.google.com/file/d/1wb99pLhzRmAhUGX8ckZJ6xOmnsULwEff/
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Agradecimentos
Este trabalho é financiado através do Centro de Investigação em Artes e Comunicação - CIAC, Universidade Aberta / Universidade do Algarve, por meio de fundos nacionais da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia.