Narrativa e discurso através da “Montagem” fotográfica

Mayara Fior Oliveira

IFSP – Campus Avançado São Paulo, Brasil

Abstract

In photograph the association of images occurs in sequential photographs, photographic series, essays or in in selecting photos to exhibition through photo books, galleries, installations, etc. The film, on the other hand, consists in slices of time and space, that united and organized through the montage can generate a narrative.
The process of photographic post-production, the one that starts in the instant after the click, can be closely compared to the montage and post-production film process, once the union of two or more images generates a new meaning, different from the isolated meaning of each one. This idea can be used both in the film editing, as well in the conception of photographic narratives.
And this is what paper proposes, reflect about the correlations between the cinematographic montage and photographs selection for the narratives construction.
In cinema montage theory there are some extremely important theorists and directors that can be availed when we think about photographic “montage” and the discourse construction through the association of images. In this way the text approaches some the most important directors and theorists of film editing, seeking to reflect about their methods and how they can be applied in the photographic “montage” and how they can contribute to expand photography narrative possibilities through the images association to generate new discourses.

Keywords: Photograph, Montage, Film Editing, Narrative, Discourse

Narrativas Visuais e a Fotografia

“Diante da pergunta, o menino hesitou um instante e lascou:

Fotografia?... É quando a televisão pára de mexer, fica tudo paradinho e a gente pode olhar as coisas devagar. É o maior barato!”

(Kubrusly 2003, 8)

“É a fotografia um intrigante documento visual cujo conteúdo é a um só tempo revelador de informações e denotador de emoções.”

(Kossoy 1989, 16)

Já é de amplo conhecimento que a fotografia é a antecessora do cinema. O nascimento e evolução das técnicas fotográficas e a possibilidade de guardar imagens do real em um suporte foi também o que possibilitou o nascimento do cinema.

O filme nada mais é do que a concatenação de diversas “fotos” capturadas sequencialmente, em geral cerca de 24 fotos (que chamamos de frame) por segundo. Precursor do cinema, o fotógrafo Eadweard Muybridge já visionava-o através de seu experimento de análise de movimento do galope de cavalos1 através da fotografia. Para isso utilizou-se de 12 câmeras posicionadas lado a lado acionadas pela largada do cavalo através de um fio2. Aqui a sequência de fotografias já aparece para descrever algo – no caso o movimento do cavalo – assim como posteriormente aconteceria nos planos cinematográficos.

Ao longo da história da humanidade, diversas formas de expressão foram usadas para gerar narrativas, contar histórias e passar informações. Acompanhando a tendência imagética a fotografia e o cinema se uniram às formas de expressão universais, o das narrativas visuais, que não necessitam do conhecimento prévio de uma determinada linguagem para serem lidos ou sentidos.

Em seu desenvolvimento, tanto a fotografia, quanto o cinema trabalharam no sentido de criar narrativas e discursos, cada vez mais complexos, que transcendessem o simples registro. Formas de se produzir e exibir fotografias de modo a gerar novos discursos ou refletir de maneira mais contundente a intenção dos autores têm sido exploradas, estudadas e testadas incessantemente ao longo de sua história.

Como atesta Kossoy:

A deformação intencional dos assuntos através das possibilidades de efeitos ópticos e químicos, assim como a abstração, montagem e alteração visual da ordem natural das coisas, a criação enfim de novas realidades têm sido exploradas constantemente pelos fotógrafos. (Kossoy 1989, 32):

Para Aumont (2005), a narrativa é um “conjunto organizado de significantes, cujos significados constituem uma história”, assim toda fotografia carrega uma narrativa, uma história por trás do registro temporal e objetivo, já que é composta por diversos signos visuais.

Como pontuado por Kossoy (Kossoy 1989, 29): “Toda fotografia tem atrás de si uma história”. Ele aprofunda a noção da história da imagem fotográfica para além da narrativa, descrevendo a história possível de cada fotografia em três níveis: a intenção para que ela existe – a narrativa interna da imagem, o ato do registro da fotografia e os caminhos percorridos por esta fotografia. Aqui nos deteremos ao potencial narrativo interno, no discurso carregado por cada imagem.

Segundo Agra e Figueiredo Júnior (Agra and Júnior 2014, 23) “A estrutura da narrativa visual é composta a partir de seleções e combinações feitas diante das possibilidades oferecidas por cada um de seus recursos constitutivos”.

Portanto o domínio dos recursos e dos elementos visuais sígnicos se faz necessário para que possam ser trabalhados de modo a transparecerem a mensagem e a estória a ser contada, já que o discurso é construído a partir da organização coerente desses elementos. Uma das formas de ordenação desses elementos é justamente o que chamamos de Montagem, que pode se referir ao processo de organização interna da imagem, bem como ao processo de união de diferentes imagens (como veremos adiante).

Então a partir de uma única fotografia é possível desmembrar uma história, mais detalhada ou não dependendo da complexidade da composição interna dos elementos. Ou seja, a imagem individual já carrega, por si só um discurso, no entanto, apesar do potencial narrativo de cada fotografia, a correlação de fotos selecionadas para cada tema ou evento pode criar uma narrativa ainda mais complexa e rica.

Para Maria (apud Salgado 2014, 22) “Uma série ou conjunto de fotos pode funcionar como uma narrativa, sendo que o método de produção e a forma de apresentação podem sugerir ao público indícios visuais sutis que darão corpo à leitura.”

Considerando as diversas formas de expressão de narrativas visuais, podemos dizer que temos dois níveis da narratividade fotográfica: um relacionado à narrativa interna da imagem e outro na correlação de imagens.

Em uma única fotografia pode-se alcançar um efeito figurado por meio de funções estéticas, e da relação abstrata que é criada entre os signos e o observador. Mas, esse caráter conotativo pode se tornar ainda mais evidente nas séries fotográficas; nelas, as ideias podem ser intensificadas através da montagem. (Agra and Júnior 2014, 22).

A ampliação das possibilidades narrativas da fotografia se dá, desse modo, através da associação de imagens de modo a gerar um sentido. Essa associação de imagens pode ser através de fotografias sequenciais (o experimento de Eadweard Muybridge é um exemplo), séries fotográficas, ensaios, etc. Ou construída ainda na seleção para exibida através de fotolivros, exposições, instalações…

Narrativas através de sequência de imagens existem desde os primórdios, exemplo disso são as pinturas nas cavernas ou os murais egípcios. Mas foi com a fotografia e a reprodutibilidade que as narrativas sequenciais se consolidaram.

Narrativas construídas a partir de imagens sequenciadas foram produzidas ao longo da história da humanidade como uma forma de registrar acontecimentos, e consequentemente, de comunicar. A impressão de movimento e a passagem do tempo passaram a ser representadas através da sequência de imagens estáticas, inicialmente por meio do desenho e da pintura. Mas, com o surgimento de novas tecnologias, as narrativas visuais e seus modos de representação evoluíram, e em 1872, os primeiros registros fotográficos de imagens sequenciadas foram produzidos por Eadweard Muybridge. (Agra and Júnior 2014, 19).

Das formas mais comuns e concisas de expressão narrativa fotográfica através de conjunto de imagens estão as séries fotográficas e os ensaios. Para Agra e Figueiredo Júnior a unidade visual é a principal linha condutora das séries fotográficas:

Na série fotográfica, as imagens conduzem uma narrativa através de seus recursos visuais, passando a reforçar características espaciais e temporais, orientando a compreensão da história ou da ideia que é mostrada, por meio de uma unidade temática e estética. (Agra and Júnior 2014, 20).

Duane Michaels é um dos exemplos mais utilizados quando se trata da criação de narrativas através da sequência de imagens. Suas sequências são construídas no sentido de criar uma narrativa de fato, transcendendo as formas sequenciais que apenas registram o movimento: “A obra de Duane Michals traz narrativas que transcendem o ‘‘mostrar’. Ao justapor fotografias ele consegue ir além dos significados superficiais, atingindo um nível de questionamento (muitas vezes filosófico) no observador”. (Agra and Júnior 2014, 28).

Sabemos portanto que a construção da narrativa e do discurso através de fotografias é influenciado diretamente pelos elementos específicos da fotografia, bem como pela mera aproximação de imagens, e também é influenciada pelo meio em que será exposta. Todos elementos envolvidos na produção e exibição fotográfica colaboram para a construção de sentido e de uma narrativa, como bem pontuam Agra e Figueiredo Júnior (2014, 24) “Os significados e efeitos provocados pela obra procedem da maneira como cada parte interage com as outras e como elas são arranjadas de forma a influenciar o sentido da totalidade”.

Figura 2: Série “The spirit leaves de body” de Duane Michals. Fonte: http://metmuseum.org/

Figura 3: Série “The spirit leaves de body” de Duane Michals. Fonte: http://metmuseum.org/

Fotografia e Montagem

Considerando então que o filme é composto por diversas fotos sequenciais, não seria absurdo supor que as etapas de pós-produção de um filme e da fotografia carregam suas semelhanças.

O workflow da pós-produção de um filme se dá resumidamente da seguinte maneira: com o material já captado, o montador organizará o material, etiquetando-o (em pastas ou em programas específicos) separando-o por dia, cena ou tema, como melhor lhe convir. Revisando o material excluirá (ou separará) os planos que de forma alguma serão usados, por que deram errado por algum motivo. Feito isso a montagem se inicia, e ele colocará os planos escolhidos numa sequência lógica de modo a gerar um sentido, uma narrativa. Concluída toda etapa de montagem, inicia-se o restante da pós-produção que por vezes conta com tratamento de cor ou adição de efeitos especiais. Algo muito semelhante se dá no workflow de pós-produção, pós-click, da fotografia: o fotografo etiquetará seu material de acordo com critérios relevantes, descartará as fotos que não ficaram boas e fará uma seleção das boas para serem exibidas de acordo com a mensagem que ele gostaria de passar. Feito isso a imagem fotográfica pode passar por um tratamento de cor e adição de efeitos.

A etapa da montagem cinematográfica propriamente dita, de forma simplória, consiste na ordenação de planos de uma forma lógica de modo a gerar uma narrativa compreensiva. Os planos são essas tomadas de um determinado ponto de vista e enquadramento, muito semelhantes aos da fotografia, diferenciando-se dela unicamente pelo registro espaço/tempo, que é possibilitado através da captura de diversas fotos sequenciais.

Um filme, qualquer que seja sua linha formal, é constituído dessas fatias de tempo e espaço, que unidas e organizadas através da montagem constitui-se numa narrativa. A variação dessa ordenação permite a construção de múltiplos sentidos discursivos. O papel da montagem é unir essas fatias – que sozinhas já carregam um sentido próprio – de modo a gerar uma narrativa mais complexa e nova.

Como bem coloca F. Catanho:

Na fotografia, no cinema, ou em outras artes audiovisuais, a mensagem a ser transmitida está justamente contida em uma determinada sequência de imagens escolhida pelo editor. [...] Cada imagem possui sua unidade de sentido, mas ao serem colocadas em conjunto, em determinada sequência, ela perde este “sentido individual” para ganhar um sentido maior, que extrapola o individual: o de narrativa de uma história. (Catanho 2007, 83)

Isso é possível por que a montagem é o produto sintético dos quadros e não somente a soma deles.

[…] de um lado, a montagem afeta diretamente as capacidades emocionais do espectador e, de outro, interfere também diretamente na significação do discurso, pois torna relativos os possíveis sentidos absolutos que têm os planos isoladamente. (Leone, Mourão, and Leone 1987, 49).

A união de duas ou mais imagens geram um novo sentido, diferente do significado isolado de cada uma delas. Essa noção pode ser utilizada tanto na montagem fílmica, quanto na concepção de narrativas fotográficas.

Tendo consciência dessa semelhança da pós-produção fílmica e fotográfica, o fotografo pode utilizar-se de teorias da montagem cinematográfica para ajudá-lo na criação de narrativas mais efetivas, ao passo que os montadores podem inspirar-se em seleções de séries de grandes fotógrafos com o mesmo intuito. Burmester discorre em sua tese sobre as aproximações, cada vez mais frequentes, entre cinema e fotografia, trazendo diversos exemplos de como uma linguagem influencia a outra.

Fotografia e cinema aproximam-se cada vez mais. A fotografia tende a se mexer mais (procurando a montagem, o texto, a série, a sequência, o livro, um movimento particular conquistado em sua imobilidade de princípio). O cinema, por sua vez, perseguido pelo desejo de congelar-se, livrar-se do excesso de movimento e continuidade, percorre o caminho oposto, uma busca pela pausa, um tempo de absorção do sentimento e da elaboração do pensamento para então prosseguir. (Burmester 2013, 27).

Dentro da teoria da montagem cinematográfica existem alguns teóricos e realizadores extremamente importantes que podem ser aproveitados quando pensamos na “montagem” fotográfica e na construção de discurso através da associação de imagens.

Temos duas linhas de montagem e associação de imagens, uma é a narrativa clássica, no qual um conjunto de imagens pode ser explicita, contando uma história linear, outra é mais sensitiva e discursiva, dada através do clima ou tom dado ao conjunto das imagens. Assim como pontua Magni:

A montagem narrativa seria mais simples e factual, construída através de uma sequência lógica ou cronológica de planos, que contribuem para que a ação progrida dramática e psicologicamente. Já a montagem expressiva seria aquela baseada na justaposição de planos, com objetivo de produzir um efeito direto e preciso pelo choque de duas imagens. (Magni 2015, 6)

Em ambos os casos a narrativa e o discurso estão presentes, potencializados pela seleção e associação corretas das imagens. Na história do cinema, diversos realizadores criaram, testaram e teorizaram essas formas de expressão narrativa e discursiva. A seguir abordaremos alguns dos mais importantes realizadores e teóricos no que se refere à montagem, buscando refletir sobre alguns de seus métodos e como eles podem ser aplicados na “edição” fotográfica.

Linha narrativa clássica

Edwin S. Porter e David W. Griffith são considerados os inventores da linguagem cinematográfica como conhecemos hoje, por conta do desenvolvimento da montagem cinematográfica para além da ordenação dos planos de forma cronológica. Antes deles o enquadramento dos planos eram sempre em grandes planos, frontais e fixos, imitando o ponto de vista de um espectador de teatro.

Foi com Porter que surgiu pela primeira vez a montagem narrativa. Ele introduziu a ideia da associação de planos filmados em lugares distintos, para gerar uma narrativa única, assim como iniciou de forma primária a concepção da montagem paralela (o “enquanto isso” do cinema). Porter instituiu com seus filmes a noção de que a aproximação de dois planos distintos gerava outra realidade que não estava presente neles:

Ken Dancyger (2006) lembra que Porter defendia que dois planos filmados em lugares diferentes, com distintos objectivos, podiam, quando unidos, significar algo maior do que a mera soma das duas partes, e que a justaposição podia criar uma nova realidade, maior do que a de cada plano individual. (Canelas 2005, 2).

Um exemplo contundente de como imagens separadas criam uma nova narrativa é seu filme “Life of an American Fireman”, no qual ele mesclou imagens de um filme documental sobre bombeiros à imagens ficcionais por ele filmadas para criar uma narrativa única de salvamento.

David W. Griffith na elaboração de seus diversos filmes ampliou as possibilidades narrativas da montagem inciadas por Porter. Dentre suas principais contribuições está a seleção dos planos de modo a aumentar a dramaticidade narrativa do filme. Canelas lista em sua publicação as principais contribuição de Griffith para a linguagem cinematográfica no que concerne à montagem:

Os contributos de Griffith, para a evolução da montagem cinematográfica, foram inúmeras, destacando-se: a variação de planos para criar impacto emocional, incluindo o grande plano geral, o close-up (grande plano), insert (plano de pormenor de um objecto), câmara subjectiva (o ponto de vista da personagem ou do actor) e o travelling (deslocação da câmara de filmar no espaço), a montagem alternada, a montagem paralela, os flashback (retrocessos temporais), as variações de ritmo, entre outras grandes contribuições.(Canelas 2005, 3).

No que tange a seleções fotográficas, é necessário atentar-se a essas técnicas e às diversas possibilidades narrativas decorrentes da aproximação de imagens, descobertas e desenvolvidas primordialmente por esses realizadores. Se o desejo do fotógrafo é o de construir uma narrativa através de suas fotografias, é importante que ele tenha conhecimento dessas técnicas, para que possa utilizar-se dessa linguagem de forma intencional de modo a construir uma narrativa mais concisa. Ou em última instância não produzir correlações errôneas e mal compreendidas nas seleções fotográficas.

Linha discursiva

Nessa linha traremos quatro cineastas e teóricos russos, que na primeira metade do século XX, desenvolveram suas teorias a partir da linguagem já desenvolvida à época por Griffith. O grande destaque desses teóricos é o de terem dado para a montagem um papel ímpar na construção da “gramática” cinematográfica.

O cineasta Kulechov foi responsável por um dos principais experimentos que comprovam a geração de novos sentidos através da aproximação de imagens. Nesse experimento, conhecido como “Efeito de Kulechov”, aproximou um plano inexpressivo de um ator com outros três planos, primeiro um plano de um prato de sopa, depois um caixão com uma criança morta e então com uma mulher. As imagens apresentadas separadamente a um público tiveram interpretações diferentes, apesar de o plano do homem ser sempre o mesmo, as leituras foram: um homem com fome, tristeza e desejo.

Assim Kulechov mostrou que cada imagem pode representar algo novo quando contextualizada com outras, que se seguem ou antecedem. A montagem atribui um novo significação a ela. A respeito disso Canelas comenta:

A partir dos resultados desta experiência, Kulechov desenvolveu a ideia de que o choque, ou conflito, é inerente a todos os signos visuais do cinema. Dito por outras palavras, um plano adquire significado em relação aos que o antecedem e se lhe seguem. O confronto destes planos propicia um terceiro nível de significado que é criado na mente do público. (Canelas 2005, 6).

Pudovkin foi outro realizador russo que teorizou a importância da montagem para gestão do discurso e da narrativa. Seu principal objetivo era o de consolidar uma gramática fílmica, de modo a controlar o processo de transmissão de ideias através da construção narrativa. Para tanto formulou a teoria da Montagem Construtiva.

A produção textual versus o cinema é uma comparação muito contundente dada por ele para o entendimento de como a associação de imagens gera significados diferentes, variando de acordo com sua organização. Para ele a função das palavras na construção do texto é a mesma que a dos planos na construção de um filme. As palavras podem carregar diferentes significações quando associadas a outras palavras. Assim, Imaginemos que cada fotografia ou plano é uma palavra, cada frase uma cena, cada parágrafo uma sequência e por fim a união dessas sequências o filme, assim como a união do parágrafo gera um texto. Claro que todas essas palavras, ou planos, são ordenados de forma lógica de modo a gerar o discurso desejado. Assim, segundo o próprio autor:

Se a montagem for uma mera combinação descontrolada das várias partes, o espectador não entendera (apreendera) nada; ao passo que se ela for coordenada de acordo com o fluxo de eventos definitivamente selecionados, ou com uma Iinha conceitual; seja ele movimentado ou tranquilo, a montagem conseguira excitar ou tranquilizar o espectador. (Pudovkin 1983, 62)3.

Para utilização da sua teoria na seleção e disposição de fotografias para uma narrativa, podemos considerar alguns métodos levantados por ele quando discorre sobre a Montagem Relacional.

Um deles, que pode ser usado, é o por Contraste: nesse método a montagem consiste em utilizar-se de imagens contrastantes para reforçar uma ideia. Ele exemplifica da seguinte forma: “Suponhamos como sendo nossa tarefa, contar a situação miserável de um homem, morto de fome; a estória impressionará mais profundamente se associada a glutonice sem sentido de um outro homem bem-sucedido na vida” (Pudovkin 1983, 63). Aqui você dispõe de duas imagens contrastantes para gerar uma reflexão no observador.

Mais um método que pode ser usado de forma interessante nas narrativas fotográficas é o do Simbolismo, que nada mais é do que usar de metáforas para representar algo, passando ideias através de representações abstratas. O exemplo dado nesse caso é do filme “A greve”: “[…] a repressão aos trabalhadores é pontuada por planos da matança de um boi num matadouro. O roteirista deseja, dessa maneira dizer: da mesma forma que um açougueiro derruba um boi com o golpe de um machado, os trabalhadores são assassinados a sangue frio e cruelmente.” (Pudovkin 1983, 64).

E por fim outro método citado por ele, que já é bastante utilizado em séries e ensaios fotográficos, é o Leitmotiv, que pode ser aplicado no caso da fotografia através da reiteração de elementos visuais, dando maior ênfase a um tema específico.

O principal autor russo da linha discursiva é Eisenstein. Ele é até os dias atuais o principal teórico da montagem cinematográfica. Desenvolveu, ao longo de sua vida, diversos experimentos e teorias acerca da capacidade discursiva da montagem, em busca de uma verdadeira gramática visual. Para ele a autoria de um discurso fílmico estava centrada sobretudo na montagem. Sua linha de pensamento fluiu principalmente para a reflexão sobre a geração de sentido através do conflito de imagens justapostas.

A montagem, na perspectiva de Eisenstein, é a arte de expressar e de significar, por relações de dois planos justapostos, de tal forma que esta justaposição origina uma ideia ao expressar algo (ao produzir um sentido) que não está presente em nenhum dos dois planos separadamente. O conjunto é superior à soma das duas partes (Rodríguez Raso apud Canelas 2005, 10).

Ele usa como exemplo e inspiração para a montagem intelectual o hieróglifo japonês, onde na junção de duas imagens distintas há um novo significado. Exemplifica ele: “uma boca + um pássaro = “cantar” (2002) e explica:

É exatamente o que fazemos no cinema, combinando planos que são descritivos, isolados em significado, neutros em conteúdo – em contextos e séries intelectuais.

Este é um meio e um método inevitável em qualquer exposição cinematográfica. E, numa forma condensada e purificada, o ponto de partida do “cinema intelectual”. (Eisenstein 2002, 36).

Aumont comenta (2005, 236) que para ele a montagem é um fenômeno universal, que está presente em todas as formas de linguagem e representação, ou até mesmo nos elementos do mundo, já que o resultado gerado pela justaposição de elementos está sobretudo na ação do observador, na sua ação de análise e síntese das combinações.

E é pensando nisso e através do aprofundamento de suas ideias sobre a justaposição de quadros é que temos o melhor exemplo para utilização de sua teoria na seleção e ordenação de fotografias, de modo a gerar um discurso ou narrativa coesa.

O choque entre as imagens e a síntese gerada dele é o que gera o discurso, para isso “A justaposição visual, ativada pela montagem, deve ser feita deliberadamente; de forma que os elementos possam se reforçar, ou entrar em conflito a fim de criar um efeito novo.” (Agra and Júnior 2014, 23).

Figura 5: Fonte: “A forma do filme” (2002). Exemplo de movimento artificialmente criado e geração de sentido por justaposição.

Mais tardiamente Eisenstein aponta também para a importância do que chama de “Montagem Vertical”, que consiste em pensar a composição, ou montagem, dos elementos internos e simultâneos ao plano. Ou seja, percebe a importância da narrativa interna de cada plano e seu potencial discursivo. Nesse ponto sua teoria se aproxima no que já falamos a cima acerca do potencial narrativo de cada fotografia individualmente. Leone o Mourão destacam que nessa fase:

O correto, para Eisenstein, seria, então, passar a ocupar-se da natureza do princípio unificador, ou seja, que o conteúdo das imagens fosse conseguido não somente através de uma justaposição de plano, mas, também, através de um trabalho interno ao próprio plano – montagem interna, como já vimos. Assim, os planos isolados e sua justaposição estarão em correta e mútua relação.(Leone, Mourão, and Leone 1987, 53).

E por fim podemos trazer a tona mais um realizador e teórico russo, Dziga Vertov, criador e difusor do movimento “Cine-Olho”.

Para Vertov a montagem perpassava todas as etapas da realização de um filme, desde a concepção da ideia e do recorte da temática, que para ele já era uma montagem, até o processo empreendido na moviola na junção dos planos para construir uma narrativa. Ele afirma: “Todo filme do ‘Cine-Olho’ está em montagem desde o momento em que se escolhe o tema até a edição definitiva do material, isto é, ele é montagem durante todo o processo de sua fabricação.” (Vertov 1983, 263)4.

Ele separa a montagem em três linhas gerais, três etapas: Num primeiro momento há a “montagem” do tema, o recorte de um assunto diante de vários possíveis. Num segundo momento a montagem ocorre no planejamento da filmagem, na escolha do que e como será filmado. E por fim a montagem propriamente dita, que ele chama de Montagem Central e descreve como:

Associação, adição, subtração, multiplicação, divisão e colocação entre parenteses dos trechos filmados do mesmo tipo. Permuta incessante desses pedaços-imagens até que todos sejam colocados numa ordem rítmica em que os encadeamentos de sentido coincidam com os encadeamentos visuais.” (Vertov 1983, 264).

Essa concepção de Vertov da constante montagem até o resultado discursivo final, pode ser emprestada a nossa reflexão sobre a “montagem” fotográfica, já que em muitos casos de séries e ensaios há uma pesquisa prévia a cerca do tema, bem como um planejamento de execução das fotografias, que culminam na seleção das principais para exibição. Considerando edição ou montagem, como um recorte e arranjo das possibilidades narrativas, então segundo a concepção Vertoviana de montagem, o fotógrafo também está em constante processo de montagem do seu trabalho fotográfico.

Conclusão

A partir do que foi posto até aqui sabemos que as narrativas visuais são construídas através de elementos internos a uma imagem ou através da associação de diversas imagens. Para se chegar a uma narrativa coesa é necessário um empenho na composição e organização desses elementos, de modo que os signos construam o sentido desejado para a obra. A esse empenho podemos chamar de “montagem”. Como destaca Leone e Mourão sobre a universalidade da montagem: “se tomada sob o ponto de vista articulatório, verificaremos que ela pertence a todo o universo da arte” (Leone, Mourão, and Leone 1987, 9).

Desse modo podemos dizer que há uma espécie de montagem também na produção fotográfica, se levarmos em conta sobretudo a concepção Vertoviana ou até mesmo a montagem vertical de Eisenstein.

Mas se considerarmos que a exibição (seja por meio de exposição, livros, web site, etc) de trabalhos fotográficos raramente é feita com uma única peça, e que em geral são difundidas um conjunto de fotografias que possuem um ponto em comum entre si, podemos ampliar a possibilidade de influência das teorias de montagem nas seleções fotográficas, já que algumas dessas teorias refletem sobretudo as possibilidades discursivas através da aproximação de imagens.

O uso de um conjunto de fotos não somente é um fato, como também potencializa a intenção narrativa ou discursiva do fotografo. A cerca disso Agra e Figueiredo Júnior concluem:

A elaboração de uma montagem específica de um conjunto de fotografias favorece o pensamento não só acerca de uma estética fotográfica, mas também provoca novas perspectivas de suas condições de criação, produção e recepção, deslocando (ainda mais) o foco do resultado final em si para todo o processo criativo, no qual a leitura da obra é parte fundamental. Uma vez que é através do conflito entre as imagens. (Agra and Júnior 2014, 29).

Conhecendo os métodos de construção narrativa e de discurso, o fotografo consegue se expressar melhor através de suas seleções, além de conseguir evitar que mensagens não desejadas sejam passadas pela associação errônea de imagens. Para tanto, trouxemos a tona diversas teorias e práticas da montagem cinematográfica que demonstram a variedade da possibilidade discursiva pela associação de imagens. Desse modo conseguimos aproximar as realidades da fotografia e da montagem, relembrando que a interdisciplinaridade é sempre bem-vinda na construção de novas possibilidades criativas.

Notas finais

1 Muybridge não apenas essa, mas diversas análises de movimento. É possível ver algumas, acompanhadas de seus textos científicos em suas publicações “The Human Figure in Motion” e “Animals in motion”.

2 (Kubrusly 1983, 41)

3 Texto presente na compilação feita por Ismail Xavier chama “A experiência do cinema: antologia”, devidamente referenciada na bibliografia.

4 Idem nota 3.

Referências Bibliográficas

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