Abstract
Dancing Lady (Robert Z. Leonard:1933) apparently has a trivial plot line: a young woman Janie Barlowe (Joan Crawford) would do anything to dance. She is a burlesque dancer, with a unique dance style, who struggles to succeed and to be recognized as a Broadway musical artist. During a performance she is arrested for “inappropriate behavior” and end up being bailed out by a millionaire playboy Tod Newton (Franchot Tone) who is secretly in love with her. The character Janie Barlowe, via bribery of Tod Newton, gets a part in a Broadway Show. Due to her talent (meritocracy), she is elevated to a star and Tod Newton jealously cancel the show. Janie Barlowe struggles between manipulation, love, and the desire to be a dancer. The career wins and she join Patch Gallaghe (Clark Gable) to put on the show again which is a huge success. In this paper we aim to analyze the film The Dancing Lady taking in account: (i) The film is an atypical musical that goes well beyond the confines of a “backstage musical” into areas richer, deeper, and darker, namely through the discussion of the female role in art and in society; (ii) the expression through dance, analyzed as meritocracy; (iii) the film features the screen debut of the dancer Fred Astaire, who appears as himself mirroring the concept of meritocracy in art.
Keywords: Dancing Lady; Film analyses; Dance Analyses; Artistic Identity; Sociology of Art
Dancing Lady: o Turbilhão da Dança
Dancing Lady, um filme de 1933 realizado por Robert Z. Leonard, é um filme musical em tudo característico da era de ouro de Hollywood. A temática segue o filão da indústria do Teatro Musical em expansão na retoma pós Grande Depressão. Em termos narrativos é um filme sobre os bastidores do show business, explorando as dificuldades da construção do espetáculo, bem como as adversidades económicas da indústria cultural. Estamos face a um filme dentro do filme, recorrência do filme musical das décadas de 20 e 30 do século XX. Todos os números dançados e cantados são da ordem do incidente; isto é, contribuem para a narrativa, mas não diretamente para a trajetória de ação das personagens e da dramaturgia da cena. Embora se fale de dança e da obsessão pela dança enquanto linguagem artística, quando esta aparece em Dancing Lady é na forma acessória e como entretenimento. No entanto, todo o filme anda em torno da dança, uma vez que a personagem principal - Janie Barlowe (interpretada brilhantemente por Joan Crawford) – luta pelo seu reconhecimento enquanto bailarina e, igualmente, para a legitimação da dança como linguagem artística. O argumento de Dancing Lady (na tradução portuguesa O Turbilhão da Dança) é da autoria de Allen Rlykin e P.J. Wolfson e é uma adaptação da novela de James Warner Bellah, com o mesmo título, datada de 1932. James Warner Bellah ficou, essencialmente, reconhecido pelas suas novelas e contos sobre a égide do western e dos movimentos pós-coloniais (contando com bastantes obras adaptadas ao ecrã). No entanto, e apesar da novela Dancing Lady, nos surgir numa tonalidade temática atípica ao autor, vai ser característica das inquietações que atravessam a obra deste novelista e contista. Com efeito, James Warner Bellah desenvolve um forte olhar histórico nas suas obras, dando particular atenção aos movimentos pós-guerra (ele foi um veterano da primeira Grande Guerra) bem como às convulsões sociais e económicas da sociedade americana pós Grande Depressão. Igualmente, coloca em cena franjas sociais que à partida tinham a sua invisibilidade garantida, sendo, por tal, excluídas de algum protagonismo narrativo. E será este o contexto de Dancing Lady: um retrato da sociedade norte americana desigual, onde a mulher artista é subalternizada e inferiorizada. Na novela encontramos eximiamente descrito a existência de um hiato socioeconómico intransponível na sociedade norte americana. Este fosso social vai revelar-se em diversas ordens, mas James Warner Bellah explora estas questões através da criação e recepção artística, neste caso, do teatro musical. Assim, de um lado encontramos um público elitizado, pertencente a um universo económico elevado, consumidor assíduo dos espetáculos da Broadway e, de um outro lado, um público massificado, caracterizado por trabalhadores, por desempregados, por uma classe económica frágil que terá, como seu espetáculo possível, o Vaudeville (teatro de revista). O autor retrata de forma crítica e acutilante as classes dominantes que, por seu prazer pessoal, vão assistir a espetáculos ditos massificados para espantar o seu tédio a ver o “espetáculo dos outros” numa versão miserabilista. Já o contrário não acontece, pois, o poder económico não permitirá ao público do Vaudeville/Teatro de Revista o acesso ao espetáculo da Broadway. No entanto, há uma outra nota importante a reter: as linguagens artísticas, a do Teatro Musical e a do Vaudeville são similares, mas, enquanto a primeira é considerada arte, a segunda fica colada ao Burlesco e ao Striptease, sendo as suas intérpretes conotadas com a prostituição. Inerente a esta realidade, James Warner Bellah irá falar da condição da mulher que é vista como propriedade do masculino, quer no domínio ideológico, quer no domínio económico. A salvação e/ou redenção da mulher artista (no caso concreto da bailarina) será, então, casar com o homem rico e ter no casamento a sua carreira possível. A passagem da novela para o argumento cinematográfico esbate este olhar algo sarcástico e acusatório sobre o domínio do masculino e o papel da mulher. Com efeito, a adaptação para o ecrã traz para a primeira linha o enredo amoroso (bastante incipiente na novela) bem como o universo do show business dando particular enfoque à incomunicação entre o empresário/produtor com capital económico e pouca cultura artística, e os artistas que em condições precárias montam espetáculos e tentam viver da sua linguagem. Naturalmente que todos os outros aspetos presentes na novela estão no filme e são explorados, principalmente a identidade artística, a meritocracia (tema caríssimo neste período de Hollywood) e o direito do feminino a ser legitimado artisticamente e, sobretudo, a ter voz independente da tutela de um masculino. Apesar do filme Dancing Lady ser aparentemente banal narrativamente, encerra questões pertinentes sobre o estatuto feminino e a identidade artística revolucionárias para os fóruns públicos da década de 30. Como já tivemos oportunidade de referir, o argumento anda em torno da personagem Janie Barlowe. Janie é uma bailarina talentosa, mas que, apesar do mérito pessoal, não consegue aceder às audições da Broadway e, por tal, fica refém dos espetáculos de Vaudeville que, como já referimos, eram conotados como arte menor e massificada. O filme começa com o Teatro de Revista/Vaudeville no qual Janie participa como bailarina e é, igualmente, nesta cena inicial que vamos conhecer a personagem Tod Newton, interpretado por Franchot Tone. Tod é um playboy milionário que, com um grupo de amigos, vai ao Teatro de Revista/vaudeville para se divertir, quer com a récita, quer com a observação do público que assiste ao espetáculo. Na apresentação desta personagem fica clara a arrogância social face ao “espetáculo dos outros”. A récita em causa é interrompida pela polícia pois houve uma denúncia sobre o tipo de espetáculo em cena e todo o elenco é transportado para o tribunal sendo acusado de falta de decoro. Tod Newton e os amigos seguem para o tribunal que está repleto de “público” para se divertirem com as acusações feitas às intérpretes e as suas respostas numa tentativa precária de defesa. Temos, nesta cena do tribunal, um verdadeiro espetáculo social em que um grupo de classe média alta assiste, como se fosse comédia, à humilhação de algumas mulheres a serem questionadas por práticas que não correspondem a qualquer realidade. Todas as inquiridas vão respondendo de forma irónica, perpetuando, desta feita, o jogo de enigmas e invisibilidades. Mas, quando Janie Barlowe responde ao interrogatório não se detém em jogos e assume assertivamente a sua identidade como bailarina e o seu desempenho como arte, que alega ser tão válida como a legitimada Broadway. A resposta para a sua coragem vai ser a prisão contra uma fiança que, obviamente, não pode pagar. Tod Newton fica impressionado paga a fiança e, como seria de esperar, apaixona-se. Janie deixa bem claro que o seu objetivo é a carreira artística e que deseja singrar como bailarina. Sem que ela saiba, Tod arranja-lhe uma audição e estamos face a uma crítica da star system que, aparentemente, valoriza a meritocracia mas que é porosa ao compadrio e à cunha. Efetivamente, Janie lutava desesperadamente pela hipótese de uma audição e todos os esforços lhe eram negados. Será meramente com a compra da audição pelo milionário Tod que ela tem a possibilidade de se mostrar e provar ao diretor artístico Patch Gallante (interpretado por Clark Gable) o seu valor. A partir desse momento Janie irá crescer dentro do espetáculo ascendendo, rapidamente, ao lugar de protagonista. Naturalmente que Tod não quer o sucesso artístico de Janie pois percebe que se esta escolhe a sua carreira, não escolherá o casamento. Então, da mesma forma displicente com a qual pagou ao produtor Jasper Bradley (interpretado por Grant Mitchel) para que Janie tivesse oportunidade para audicionar, também pagará para que o espetáculo seja cancelado. Desta feita, pensa Tod, Janie acederia ao casamento, o que efetivamente quase acontece. Num volte face final Janie descobre o esquema, termina definitivamente a relação com Tod e, juntamente com Patch Gallague e a sua equipa montam o espetáculo que será um enorme sucesso. A arte acaba por triunfar e a identidade, o estatuto e autonomia do(a) artista é reconhecido(a). Note-se que este filme, de forma subtil, tece uma relação entre o seu enredo e situações contemporâneas reconhecidas pelo público de então. Efetivamente, e como “personagens de si mesmos”, temos no filme Ted Healy, Art Jarret, Larry Fine, pertencentes à primeira formação do grupo cómico The Stooges (em português Os três Estarolas) que refletem no ecrã a história da sua formação marcada por percalços económicos e, principalmente, por questões de atribuição de legitimidade por parte do campo artístico. O outro caso de “personagem de si próprio” é Fred Astaire que surge como exemplo máximo de meritocracia. Note-se que Fred Astaire aparece como intérprete no espetáculo a ser montado sem qualquer estatuto de exepção e, enquanto atitude, assume-se como o bailarino que contracena com a protagonista e que, igualmente, se preocupa com o seu desempenho e a sua legitimidade. Dancing Lady, apesar de ser, como já afirmámos, um filme musical que segue a linha do filme sobre os bastidores do espetáculo, faz referência temáticas pertinentes e que merecem ser analisadas através de um olhar anacrónico: a identidade e estatuto do artista; a meritocracia na arte; a indústria cultural. Note-se que estes questionamentos vão além da sua inscrição na década de 30 do séc. XX sendo este, um debate atual nos tempos que habitamos.
A liberdade artística face a um espaço de possíveis
Das temáticas desenvolvidas em Dancing Lady destaca-se o carácter inter-relacional da natureza artística constituinte do espetáculo. Está patente a importância da “contracena” que se estabelece no fenómeno performativo, nomeadamente na interação dialogante entre o diretor artístico/coreógrafo, o compositor e o elenco. Note-se que a noção da identidade artística nas artes do palco e cinema estão na ordem do dia a partir da década de 30 do seculo XX e, arriscamos afirmar que esse debate se mantém acesso até aos dias de hoje. A década de 30 em plena recessão económica, por um lado e, por outro lado com a solidificação da indústria de espetáculo vai colocar em cena a definição do estatuto do artista, tendo em conta o seu enquadramento jurídico (surgem os primeiros sindicatos para os trabalhadores das artes) e a visibilidade social (onde adquire preponderância a noção de vedeta e celebridade). Note-se que, quer na década de 30, quer na atualidade, ainda nos deparamos com uma extrema dificuldade na definição da identidade e do estatuto artístico. Esta indefinição deve-se, provavelmente, à forte ambiguidade e polissemia dada ao conceito de artista, que é tratado diferentemente por vários sistemas de classificação. De facto, o(a) artista move-se num complexo de definições e classificações sociais a que não é alheia uma condição profissional sem cobertura jurídica ou corporativa precisa, condicionando a sua posição no mercado. A cumplicidade do círculo de pares e a heterogeneidade dos públicos são também fatores a refletir neste processo. Note-se que esta questão está muito bem desenvolvida no filme Dancing Lady. A equipa artística e equipa técnica são retratadas realisticamente na sua situação contratual precária, não recebem pelos ensaios, não têm qualquer salvaguarda jurídica e será só a solidariedade dos pares que mantém o coletivo em modo de sobrevivência económica. Outro aspeto explorado e que já tivemos a oportunidade de referir é a importância da recepção na legitimação do valor artístico. É o público que classifica o espetáculo atribuindo-lhe valor artístico que, consequentemente, terá reflexo no estatuto do(a) artista. Efetivamente, ser artista é também ter acesso a uma individualidade socialmente legitimada através da produção de práticas expressivas que lhe conferem um estatuto público e o situam socialmente. Esta individualidade socialmente legitimada irá forçosamente depender da recepção da obra e, igualmente importante, da crítica de arte que retroalimenta o mercado cultural. Ser artista é, então, pertencer a um grupo social produtor de visões do mundo; onde a individualidade é regulada pelo valor cultural da originalidade/singularidade e regida pelo primado da experiência social da subjetividade. Esta noção de singularidade artística colocará o(a)s artistas como figuras de excepção que sociologicamente apelam a um individualismo situado. Acontece que, face à análise do campo artístico, percebemos a inexistência de configurações sistémicas que, por um lado, reconheçam a identidade artística no espaço social e, por outro lado, que possibilitem a expressão singular e intrapessoal fundamental à subjetividade da vocação artística. Saliente-se que a individualidade e a singularidade como marca de identidade social e estética do(a) artista é feita de identidades e trajetórias pessoais, como já afirmámos, mas igualmente de uma correlação de forças criativas em que a confluência de desempenhos é fundamental, embora cada agente envolvido invista em si próprio como recurso para a ação criadora. A noção da confluência de interesses na criação artística está bem patente em Dancing Lady. É da interação de todas as linguagens artísticas, onde a improvisação adquire um papel fulcral que a criação do espetáculo é possível. No caso do Dancing Lady e na referência ao Teatro Musical (objeto de criação central do filme) não estamos, tanto, face a uma singularidade pessoal, mas antes uma co-singularização interativa. Desta forma, cada criação individual está sujeita a um grupo e a uma reciprocidade de perspectivas, fazendo com que, muito embora exista por vezes uma figura central (no caso de Dancing Lady será o diretor artístico, Patch Gallague), o processo artístico seja um trabalho com várias assinaturas e que só no seu todo se torna “entendível”. A produção artística coletiva só é então viável pela existência de quadros de interação criativa e contextual que pautam as experiências intersubjetivas num mesmo sistema de referências, conferindo um sentido ao projeto. Este aspeto está particularmente visível na cena em que os The Stooges ensaiam o seu número tendo o pianista ensaiador como olhar exterior que vai dando retorno. Outro momento é o ensaio coreográfico entre Fred Astaire e Janie Barlowe em que vão, em equipe colaborativa, gerindo as frases coreográficas e medindo o seu resultado. Este processo colaborativo vai, obviamente, recorrer sempre ao manancial técnico-expressivo do(a) artista bem como à sua capacidade criadora e à vontade de, através da sua função expressiva, dotar a obra de um novo sentido. Em Dancing Lady, e de uma forma subtil e elegante, está também patente a relação entre o estatuto artístico e as relações e poder que se estabelecem com o campo cultural, força dominadora de grande poder económico e de legitimação. Segundo Bourdieu (1996), a noção de artista é fruto da “emergência progressiva do conjunto das condições sociais que possibilitam a personagem do artista como produtor desse feitiço que é a obra de arte” (p. 250). A este processo são inerentes, por um lado, a autonomia do artista (competências específicas e reconhecimentos), e por outro, a autonomia do campo (emergência do conjunto de instituições específicas que condicionam o funcionamento da economia dos bens culturais). Desta forma, o campo de produção cultural ocupa uma posição dominada no interior do campo do poder, sendo percorrido por dois princípios de hierarquização: princípio heterónimo, favorável aos que dominam económica e politicamente o campo, e princípio autónomo defensor da “arte pela arte”, em que o fracasso temporal surge como sinal de eleição e de sucesso. Em Dancing Lady, assistimos a estes dois fracassos que terminam em “eleição” e “reconhecimento”. De um lado a bailarina Janie Barlowe que luta pela demonstração do seu mérito técnico e expressivo e que, finalmente, alcançará sucesso quando lhe surge a oportunidade da audição que lhe trará visibilidade. De outro lado o espetáculo que se ensaia e que o produtor, após suborno, cancela está imediatamente sujeito ao falhanço. Mas será esta sensação de rejeição, de exclusão por parte do campo de poder que fará com que a equipa artística se una para montar o espetáculo e singrar autonomamente face ao sistema da indústria cultural. Isto porque o grande público aderiu ao espetáculo fazendo dele um êxito de bilheteira. Assim, e como analisa Bourdieu (1996), pode-se falar de um princípio de hierarquização externa, em que o critério de êxito temporal será dominante, mensurável por um sucesso comercial ou notoriedade social. O primado será, neste caso, o(a)s artistas serem conhecido(a)s e reconhecido(a)s pelo grande público. No princípio de hierarquização interna o grau de consagração e de êxito mede-se pelo conhecimento e reconhecimento que o(a) artista adquire junto dos seus pares. Pode-se então referir que, de acordo com o princípio autónomo, se defende uma “arte pura” com um grau elevado de independência, sendo as forças simbólicas favoráveis a uma maior autonomia do criador. De acordo com o segundo princípio heterónimo, encontramos uma “arte aplicada”, em que o criador sofre mais diretamente as imposições e as sanções do mercado. Contudo, Bourdieu (1996) alerta para o facto de que, independentemente do grau de independência ou de subordinação, a criação artística não se conseguir dissociar do mercado, quer sendo por ele influenciada diretamente, quer mostrando desinteresse: Estas visões opostas do sucesso temporal e da sanção económica fazem com que haja poucos campos, exceptuando o próprio campo de poder, em que o antagonismo seja tão total “ os escritores ou os artistas de lados contrários podem, no limite, nada ter em comum a não ser a sua participação na luta de definições opostas da produção literária ou artística” (Bourdieu, 1996, p. 250) Nesta situação um dos indicadores mais visíveis da posição ocupada pelo(a) artista no campo dirá respeito ao público. A qualidade social e cultural do público tocado pela obra reflete o capital simbólico que o público tem, permitindo o reconhecimento do valor do artista. Ainda de acordo com Bourdieu (1996), torna-se assim “critério fundamental de avaliação, a oposição entre as obras feitas para o público e as obras que têm de fazer o seu próprio público” (p. 250). Será então a dimensão e a qualidade social do público (marcado por diversas origens sociais, trajetórias, afinidades), que irão estabelecer uma categorização da arte. Surge assim uma arte comercial, mercantil e popular, e uma arte de vanguarda dotada de um reconhecimento superior (consagrada). Para Bourdieu (1996), esta lógica de consagração vai influenciar decisivamente a trajetória do(a) artista, se o sucesso artístico pode ser medido pelo seu êxito comercial ou notoriedade social, o não sucesso revela-se mais ambíguo. Segundo este sociólogo, o não sucesso deve ser entendido em dois sentidos: o do artista “falhado”, em que nem o sucesso temporal nem o valor artístico são reconhecidos, e o do “falhado” provisório, em que existe o reconhecimento do seu valor artístico por parte dos pares. Em ambos os casos, estamos face ao “artista maldito”, em relação ao qual se confere uma existência reconhecida ao desfasamento entre o sucesso temporal e o valor artístico. É nesta ambiguidade de critérios de sucesso que se confunde o fracasso relativo e provisório do “artista maldito” com o fracasso puro do “falhado”. Para Bourdieu (1996), esta separação é sempre ambígua e incerta, fazendo com que o(a) artista, perante a indeterminação, aumente e alimente o nível de incerteza sobre o seu valor artístico fazendo ainda com que se possa verificar um retraimento dos possíveis. Neste sentido, a margem de liberdade do artista revela-se na forma de um espaço de possíveis, isto é “um conjunto de imposições prováveis são a condição e a contrapartida de um conjunto circunscrito de usos possíveis” (Bourdieu, 1996, p. 262). Então, a liberdade criativa não existe em sentido absoluto, uma vez que o(a) artista se encontra condicionado por um código específico de comportamentos e expressão. São estes códigos de criação que vão enquadrar a margem de liberdade d(a)o artista em relação às imposições objetivas que o campo propõe; desta forma, não será o artista o produtor de valor da obra de arte, mas sim o campo de produção que detém o poder de atribuir o valor à obra, produzindo assim a crença no poder criador do(a) artista. Na perspectiva de Bourdieu (1996) a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico, dotado de valor após ser socialmente instituído como tal. E isto só é possível através do reconhecimento da obra por espectadores dotados de disposições e de competência estética para atribuição de valor; no entanto, este processo de reconhecimento só é legitimado através do “conjunto dos agentes e das instituições que participam na produção do valor da obra através da produção da crença do valor da arte em geral e no valor distintivo desta ou daquela obra de arte” (p. 259). Esta crença no valor da obra irá implicar lutas na definição e classificação de fronteiras, potenciando desta forma o estabelecimento de hierarquias; isto faz com que o campo artístico se caracterize por uma permeabilidade de fronteiras, diversidade de definição do gosto e princípios de legitimidade. Em relação ao artista esta realidade leva a uma indefinição de postos, logo, a um lugar incerto no espaço social, resultando daí futuros incertos e dispersos. Por esse motivo, Bourdieu (1996) afirma que os artistas muitas vezes não podem assumir a função que consideram principal, a não ser na condição de terem uma profissão secundária de onde extraem o seu principal rendimento.
Dom, vocação, talento e reconhecimento profissional
A noção de dom, vocação, talento e reconhecimento profissional está igualmente explorado nesta obra. Todas as personagens “artistas” referem a incerteza e a indefinição do lugar social que ocupam. Destas diversas reflexões, desenvolvidas ao longo do filme, está sempre plasmada a angústia sobre a especificidade da sua identidade. Por exemplo, o diretor artístico Patch Gallague tem um discurso alicerçado nas noções de subjetividade e individualidade, que se traduzem no paradigma da singularidade da figura do artista. Este paradigma remete-nos para as noções de vocação e dom – condição inerente à capacidade expressiva e criativa – e para a noção de carreira – condição de sucesso, legitimidade e aceitação. O(a) artista estrutura-se, assim, através de uma socialização formal/académica, em que adquire as técnicas, os códigos e os instrumentos necessários ao trabalho artístico e através de uma socialização informal, em círculo de amigos e em circuitos fechados de grupos, em que sob o nome de talento/dom adquire e legitima a capacidade de autoexpressão identificadora do trabalho criativo. Nesta perspectiva, quando se trata do acesso à identidade dos artistas, a relação “entrar na profissão” – “fazer carreira” é descontínua e desarticulada. Por um lado, luta-se pela existência da noção de profissão ou carreira definida institucional e juridicamente; por outro, reclamam-se para a identidade artística critérios subjetivos de dom/vocação ou talento que contrariam os critérios gerais de acesso às restantes profissões. Assim, ser artista é uma “profissão de dom”, exigindo-se ao aspirante a artista uma certificação e aceitação por aqueles que já o são. Este processo de iniciação está bem patente na personagem Janie. Note-se que foi na visão transcendente e essencialista do dom que nasceu e longamente repousou a imagem mítica do artista, variável em consonância com o evoluir dos modos de organização da profissão e dos modos de reconhecimento social da identidade do artista. Então, e de acordo com os modos de organização da profissão e dos modos de reconhecimento da identidade do artista, a noção de dom está sempre presente no imaginário e nas práticas de atribuição e seleção do exercício da profissão, chegando intacta à contemporaneidade e aliando-se agora a uma nova noção de mercado. Desta forma, a imagem contemporânea do artista pretende conciliar os valores mercantis, instrumentais e os valores estéticos-expressivos. Este fenómeno leva, como refere Moulin (1983), à inversão nas lógicas de produção artística, pensadas agora num ciclo curto, com visibilidade imediata e voltadas para o mercado. Opera-se, assim, a deslocação do registo estético para um registo circunstancial, pautado pela pertinência social e económica da produção, passando agora o artista a pautar-se por outros critérios de legitimação. Como afirma Melo (1988), passa-se de uma situação de “legitimação pela obsessão” para uma situação de “legitimação pela circunstância”, em que o(a) artista é um criador(a) social, integrado(a) no mercado e atento(a) à sua carreira, que gere de forma oportuna. É de notar que, em plena década de 30, este dado tão nosso contemporâneo já estava bem patente. As personagens de Dancing Lady sabem que a oportunidade e circunstância se revelam fulcrais no seu acesso ao campo artístico e, consequentemente, ao seu estatuto enquanto artistas. Desta forma, o valor ou qualidade do(a) artista resulta da estreita ligação entre ele(a) próprio(a) e os agentes do sistema, principalmente mediadores e distribuidores. O estatuto e a identidade do(a) artista implicam uma profissionalização dos criadores, que passam a organizar-se em associações síndico-corporativas, valorizando-se os agentes mediadores. Verifica-se igualmente a tendência para a especialização das organizações culturais de produção e distribuição, que se traduzem em novas relações de trabalho, nas quais o tempo de criação se processa muito mais rapidamente. Passa-se, assim, de um tempo cronológico (o do criador livre) para um tempo tecnológico, no qual o artista tem de ser gestor. No filme, este dado está patente na “rapidez” com que se monta o espetáculo após o seu cancelamento, no diretor artístico assumir o papel de produtor e na associação corporativista que a equipa monta para viabilizar a carreira do espetáculo. Neste seguimento, e já em debate nesta obra surge a delicada relação entre a personalização das competências artísticas e criação de sentidos com o propósito de um estatuto profissional para a personalidade artística. Note-se que ver este tema abordado abertamente num filme de 1933 é extremamente vanguardista. Sabemos que nesse período iniciam-se os grandes movimentos corporativistas e sindicalistas para regulamentar as profissões artísticas (artes do palco e cinema). No entanto, esses movimentos eram fortemente abafados e cancelados pela indústria cultural e o facto de serem referenciados abertamente num filme demonstra uma consciência coletiva que ia ganhando força. Com efeito, em relação à situação profissional observa-se, no seguimento de Conde (1994), que por um lado o(a) artista tenta ganhar um estatuto análogo ao de outros perfis profissionais, com a inerente credibilidade ética, social e política junto de instâncias de regulação nacionais e supra nacionais; por outro lado, continua a colocar-se a questão específica das “profissões artísticas”, pautadas por uma “personalização de competências”, em que a individualidade do(a) artista é definida por critérios subjetivos e informais. Estas duas perspectivas acabam necessariamente por ter repercussões importantes na avaliação social da condição artística. Enquanto o(a) aspirante a artista espera a aprovação da sua identidade, recorre frequentemente a situações de pluriemprego. Desta forma, ao artista, na era de “legitimação pela circunstância” que caracterizará os séculos XX e XXI, é pedido que reconfigure a sua singularidade (condição de se ser artista) num contexto de grande concorrência que garanta a sua permanência no campo artístico. Ainda segundo Conde (1996), o(a) artista da era da circunstância vive na era da “criatividade situada”, em que, para justificar a sua singularidade, necessita de uma parcela de obsessão, de génio, de talento e de vocação. Igualmente o(a)s artistas passaram a ser socialmente representados como emblemáticos, “criadores de sentido”, sendo procurados pela atenção pública e política para efeitos sociais “úteis”. Este aspeto é visível na lógica da estrela e da celebridade e, em Dancing Lady, temos Fred Astaire a cumprir esse papel. Assim sendo, a imagem do(a) artista é contraditória. Por um lado, a profissionalização levou à desvalorização do artista em relação à “obsessão romântica”, promovendo a cultura profissional do(a)s artistas e o ideal da “cidadania normal”. Por outro, a funcionalidade com que foram investidos nas sociedades contemporâneas aponta para uma “sacralização”, conferindo-lhes um estatuto de excepção, de “Ser” dotado de uma condição incomum. Este processo terá um duplo sentido: minorar a desinserção ou lateralidade social dos artistas, em primeiro lugar; em segundo, reconhecer a sua instrumentalidade social. Verificamos, então, que o(a) artista vive num projeto de indeterminação pessoal, entre a apologia da autonomia distintiva do indivíduo face ao meio (projeto de singularidade necessário para se ser reconhecido como artista), e a tensão permanente para entrar no mercado de forma produtiva e com sucesso. Este efeito fica a dever-se ao mercado, que obriga o criador a entrar nas suas redes e que faz simultaneamente uma gestão de percurso e um investimento em si próprio, na sua capacidade de inovação e de criação. Neste quadro, como sustenta Conde (1996), a carreira, condição de sucesso na qual se procura conciliar a “singularidade” do criador com um reconhecimento formal e informal da sua identidade, passa então pelas “condições institucionais” que “fazem um nome”, que levam do anonimato relativo à mediatização, e de circuitos nacionais ao estrelato internacional. Porém, é necessário ter presente que uma carreira não se faz sem a encarnação pessoal dos valores artísticos que funcionam como guias simbólicos da ação. Verifica-se uma crescente aproximação entre a esfera do económico e a esfera do simbólico (impulsionada pela transformação na divisão social do trabalho cultural e artístico), tal como se verificam mudanças na avaliação social das respetivas profissões. Para esta autora, ser artista implica uma carreira, implica sucesso, tendo em conta que a noção de carreira se reporta às condições institucionais, passando por um percurso hierarquizado do anonimato relativo à grande mediatização. Assim, aos valores artísticos pessoais do criador (guia simbólico da ação), alia-se o valor definido pela “monetarização”, pelo preço das suas obras no mercado, pela aceitação mediática que tem. Nestes novos modos de estruturação do mundo da arte e da cultura, em que sobressai o desenvolvimento do sector das indústrias culturais, a tendência será para a diversificação das profissões culturais e artísticas, em que a avaliação da condição do(a) artista se altera, fruto de novas reorganizações nas hierarquias do campo intelectual e artístico. M. Santos (1994) chama a atenção para o facto de que a crescente profissionalização do(a)s artistas, a que não é alheia a diversificação e o alargamento do mercado de bens e serviços culturais e artísticos, não se traduz numa alteração significativa da situação artística em relação aos rendimentos auferidos (altamente irregulares), à segurança dos contratos (carácter provisório), à durabilidade da carreira (cada vez mais marcada pela imagem e pela moda), e às taxas de subemprego, pluriemprego e desemprego. Observa-se ainda a tendência para cada vez mais a obra e o(a) artista, para além de um valor simbólico, adquirirem um valor comercial, regulado por um poder económico. Este facto remete-nos para a constituição do mercado autónomo como forma dominante de organização cultural, que institui o espaço público como o espaço privilegiado na relação entre oferta e procura, onde a promoção, a difusão e a comercialização têm um papel fulcral. Assim, definir a identidade do(a) artista implica, como observámos, a reconstituição de todo um espaço mais lato, que influencia, potencia e determina o projeto artístico. Temos então de operar um esforço de análise, que sai do âmbito intersubjetivo e individual (referido como condição quase exclusiva de se ser artista) para um âmbito mais abrangente, que abarca diversas lógicas e onde se joga a imagem, o reconhecimento e o valor do artista (porquanto veicula a crença do artista enquanto cidadão de excepção). O artista procura, desta forma, construir a sua identidade socioprofissional num jogo entre a singularidade (desejo de exprimir uma determinada visão do mundo, de si) e a normatividade (desejo de ser reconhecido pelo meio artístico, por um conjunto lato de receptores). Neste sentido, o artista procura gerir a sua singularidade em função de uma expectativa de enquadramento e de reconhecimento no campo artístico. O artista passa, assim, a funcionar numa criatividade situada, em que pretende legitimar o seu projecto artístico. Este facto remete-nos para a constituição do mercado autónomo como forma dominante de organização cultural, que institui o espaço público como o espaço privilegiado na relação entre oferta e procura, onde a promoção, a difusão e a comercialização têm um papel fulcral. Ora esta relação implica para o artista a necessidade de um apoio de cariz económico maioritariamente assegurado pelo Estado e pelo mecenato. Este dado do mecenato (produtor/empresário) está bem patente em Dancing Lady como a única possibilidade de entrada no campo artístico. Há uma necessidade prévia de orçamento antes do retorno da bilheteira que assegurará a autonomia financeira e o reconhecimento da esfera da recepção.
Dancing Lady: Serei uma Estrela
Fica visível que Dancing Lady é uma obra fílmica com um forte potencial documental permitindo-nos uma análise anacrónica das identidades e fronteiras artísticas. Este olhar documental sobre o real, inspirado na vivência artística, refere a produção de uma realidade que não deixa de ser verdade, ainda que muitas vezes subjetiva e não mensurável metodologicamente. O valor da verdade é apenas o sentimento de acordo que nasce do confronto do mundo teórico e o das sensações, no instante em que se quer agir sobre o segundo utilizando o primeiro: a verdade é um valor operacional. E é dessa subjetividade operacional que trata o Dancing Lady. Nesse sentido, a arte não só cria como descobre a partir de pressupostos metafísicos e de juízos de valor. Poderemos então afirmar que a arte é também explicação e entendimento do mundo. Com isto não queremos dizer que Dancing Lady esteja num pressuposto tão consciente como acima descrevemos. No entanto, há nesta obra e na sua novela de partida muito de arquivo e documento do tempo que se vivia. Mas o filme não fica pelo documento, antes propõe outras formas de funcionamento e de reivindicação social. Dancing Lady fala da vida de todos os dias, ao referir a trajetória vivida das suas personagens. O quotidiano da prática artística é a base da criação, porém regista as memórias da identidade artística de uma época que, como tivemos oportunidade de analisar, continuam atuais. Note-se que a vontade do(a) artista se entender “metodologicamente” enquanto indivíduo e parte integrante de um todo social através da arte não é inédita, e remete-nos para os questionamentos sobre a funcionalidade da arte e, principalmente da natureza da identidade artística.
- Como se chama?
- Janie Barlow
- Profissão
- Trabalhadora Social
(…)
- Quer dizer que numa cidade como esta o único trabalho que encontrou foi no teatro de revista?
- O único trabalho onde podia dançar.
- E tinha de dançar?
- Sim, tinha de dançar.
- Porquê?
-Porque sou bailarina.
- Sabe porque é que está acusada?
- Porque sou a vítima. Não prendem uma mulher por rabiscar num papel ou datilografar. Sou bailarina e continuarei a sê-lo quando sair do tribunal.
(Dancing Lady, 1933, 07:31)
Bibliografia
Bellah, James Warner. 1932. NY: A.L. Burt
Bourdieu, Pierre. 1996. As regras da arte. Génese e estrutura do campo literário. Lisboa: Presença.
Conde, Idalina. 1994. “Artistas, profissão e dom - a condição Intelectual em Portugal” in Vértice nº 60, 77-85.
Conde, Idalina. 1996. “Amadeu, Almada, Dacosta - atopia em trajectórias singulares” in Caderno de Ciências Sociais, 15/16, 133 - 156.
Melo, Alexandre.1988. “Obsessão e circunstância” in Comunicação e Linguagens, 6/7, 203-207.
Moulin, Raymonde.1983. «L’artiste: de L’artisan au professionnel» in Sociologie du Travail, 4, 58-241.
Santos, Maria de Lourdes. 1994. “Deambulação pelos novos mundos da arte e da cultura” in Análise Social, 125/126, 417-435.
Filmografia
Dancing Lady. 1933. De Robert Z. Leonard. Archive Collection: WB. DVD