AVANCA | CINEMA

Na perspetiva do movimento cinematográfico: ‘Desenhando uma linha de paisagem’

Cibele Saque

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa, CICANT, Portugal

Abstract

In the perspective of the cinematographic movement, the ‘line’ implied in Drawing, as a means of aesthetic manifestation that accompanies man from immemorial time - become discipline of observation and systematic study as form of knowledge - is in this vision considered like a fundamental element of exploration, formation and understanding, when proposing the establishment of bridges between diverse and complementary areas of knowledge. Thus, through an in-depth study of the line element, it seeks to develop an intrinsic value to the Drawing, amplified by the approximation to an anthropological view of the line. By concretizing questions applied to observational levels of ‘a landscape line’, potential direct implications are related to the appropriation of levels of observation, movement studies and sustaining processes and creation for animated motion in cinema. The essay is presented through a reflection developed in three parts: the Design as a path of participated attention; approach to an anthropological view of the line; a line in the landscape animated. In this perspective, the artistic processes of observation and creation stand out, as fields of apprehension and study of what permanently moves, opening doors to contexts of animation cinema, in the framework of research and promotion of multidisciplinary knowledge that explore relationships between arts, media and culture.

Keywords: Line, Drawing, Art, Movement, Animation

Introdução

O presente ensaio, na perspetiva do movimento cinematográfico, por via de um estudo aprofundado do elemento ‘linha’, procura salientar o valor intrínseco do Desenho, na sua constituição de processos artísticos de observação e criação, como campos de apreensão e estudo do que permanentemente se move, abrindo portas a contextos de cinema de animação. A ‘linha’ implicada no Desenho, como meio de manifestação estética que acompanha o homem desde tempos imemoriais - tornada disciplina de observação e estudo sistemático enquanto forma de conhecimento – é pois, nesta visão considerada como um fundamental elemento de exploração, formação e compreensão, ao propor o estabelecimento de pontes entre áreas de conhecimento diversas e complementares. A ‘linha’, acedida primordialmente através da perceção do ambiente e traçados de desenho, estando direta e culturalmente associada a noções de limite, a funções de contorno, a elementos de estrutura estática ou dinâmica da forma, invoca a possibilidade de inúmeros patamares de observação e o encontro de vastos sistemas dinâmicos de construção de conhecimento. Assim, observando implicações no domínio do pensamento, do gesto, da materialização visual e respetivas relações ambientais, convoca-se a ‘linha’ como um elemento de acuidade visual, estruturante e transversal, nos caminhos de constituição de uma observação particularmente participada. Através de processos de correspondência de informação e estudo do movimento, pretende-se convidar a refletir e a abrir contextos de cinema de animação, no enquadramento de relações entre arte, media e cultura.

Desenvolve-se ao longo de três partes:

  1. Desenho como via de atenção participada
  2. Aproximação a uma visão antropológica da linha
  3. Uma linha na paisagem animada

1. Desenho como via de atenção participada

“A vida é uma linha, o pensamento é uma linha, a ação é uma linha. Tudo é linha.” (Brusatin, 1993, p.22) 1

Assinalando vias de estudo da ‘linha’, distingue-se inicialmente o autor Manlio Brusatin, arquiteto e historiador de arte, cuja investigação sobre a linha - ‘Storia delle linee’ (1993) destaca sentidos específicos do Desenho ao enfatizar a natureza de um trabalho complexo, que inclui valores semânticos, em práticas que implicam raciocínio, simbolismo e conhecimento técnico, de modo a que o traçar de uma linha assuma o significado de um exercício evocativo, reflexivo e concetual. A sua obra revela a ‘linha’ em múltiplas dimensões, nomeadamente quando enuncia a linha vista como a extensão pura de um perfil ou a complexidade extrema de um sistema, e ao mesmo tempo como a ambiência de um espaço, num sinal de ordem que habita fronteiras entre o mundo natural, a racionalidade e a composição estética. Apreender os mecanismos mais intrínsecos do desenho, compreender os seus valores e sugestões, emerge a cada imagem, revelando amplos espaços de encontro, como nomeadamente se ilustra através da contemplação de uma linha do horizonte: “No início há uma linha no horizonte onde primeiro não havia quase nada. E depois há um alto e um baixo, uma direita e uma esquerda, uma frente e um reverso, um princípio e um fim: o alcance da nossa própria visão.” 2 (Brusatin, 1993, p.10); e ainda pela contemplação de apreensões lineares, definidas e subtis, como a da claridade percecionada através de relva fresca, desenhada “por simples linhas de um verde mais claro.” (Brusatin, 1993, p.20, cit. in Saque, 2018, p. 283) 3 3a Aliás, as múltiplas dimensões que encontramos no seu discurso, são reveladoras de diversificados patamares de observação e de encontro de vastos sistemas dinâmicos de construção de conhecimento, os quais, abrangendo quer o princípio de uma linha, quer a sua dinâmica, contempla ainda a sua ambiência espacial e temporal. E com efeito, “De uma dimensão temporal a outra, a linha constitui-se num traço de criação, permanentemente presente”. (Saque, Valente, 2018, p.22)

Pois que, por vestígios históricos encontrados, estudados e interpretados, sabemos hoje, que outrora homens observavam e registavam elementos gráficos modelando formas, alusivas a animais ou outros elementos, produzidas com instrumentos e substâncias coloridas sobre pedras e paredes de cavernas ou ar livre, expressando conteúdo em mensagens. A nós chegadas, acentuadamente demarcadas por linhas e manchas, apresentam-se-nos como reveladoras de relações espaciais, claramente retratando a ambiência e vivência de espaços. Podemos, no entanto, dizer que, ainda hoje, se desconhece exatamente quando e de que modo, a apreensão e expressão humana através de elementos gráficos, se tenha iniciado. Ou mesmo dizer, não se conhecer com exatidão, quais as finalidades específicas e quais as suas leituras, à época do seu desempenho. Paralelamente, o mesmo poderia ser dito quanto a um início exato de reflexão associada a linguagem falada ou registada. Podemos, contudo, apreender que, percorrendo grandes distâncias e alcançando novos territórios, foram sendo vivenciados ambientes e sinalizados espaços com formas reveladoras de comunicação entre humanos. Numa clara alusão a relações com o espaço envolvente, acresce-se que a comunicação entre humanos, por via criação de formas lineares, entre outras expressões artísticas porventura ritualizadas, é há muito tempo considerada como um inequívoco traço característico da espécie humana. Tais capacidades, consideradas como claros indicadores de inteligência e cognição, revelam-se pela expressão de visão e pelo engenho para solucionar questões do quotidiano. Através da criação de objetos, da produção de desenhos gráficos em variados meios e utilizando diferentes técnicas. Com efeito, uma das mais ancestrais formas de o estudar diz respeito à observância de representações lineares, representativas e abstratas, produzidas através de técnicas de desenho, por via de pintura, gravura, ou técnicas mistas, em alusões à noção de significado simbólico. A linha e a impressão do movimento contida em imagens, evidenciam inquestionavelmente este campo de relações. “E contudo, quando foram descobertas em paredes de cavernas e em rochas em Espanha e no sul de França, no século XIX, os arqueólogos recusaram-se, inicialmente, a acreditar que representações tão animadas, tão naturais e vigorosas de animais pudessem ter sido feitas por homens da Era Glacial.” (Gombrich, 1993, p.22)

Em Portugal, a arte rupestre do vale do Côa, revela um particular interesse de estudo dos primórdios da arte humana. Destacando-se aqui o elemento linha, através da análise de inúmeras imagens gráficas, “vemos na arte paleolítica do Côa, o surgimento de uma verdadeira escrita do movimento.” (Luís, 2019, p.15) De uma importância científica e patrimonial inquestionável na atualidade, a arte rupestre, património nacional e mundialmente comum, revela no caso da expressão artística da “arte rupestre do Vale do Côa, um conjunto de características únicas, que a individualizam e destacam” (Luís, 2005, p.34) por comparação com outros vestígios datados de igual período e encontrados em diversos locais. Uma especificidade “quase de natureza intangível, revela-se-nos quando observamos as suas gravuras, admiramos a sua qualidade estética, quase contemporânea, e percebemos que elas constituem uma das chaves para a compreensão do modo de vida e mentalidade dos seus autores, há muito desaparecidos.” (Luís, 2005, p.34) Em observação dessas primordiais linhas, porventura podendo abrir chaves de compreensão até de nós mesmos.

Com efeito, considerando e analisando os elementos lineares contidos em algumas destas figuras, poderá depreender-se uma apurada capacidade de observação e uma frequente exploração de composições lineares, sugeridas através de várias sequenciações gráficas. As quais nos levam a conceber a possibilidade de representação expressiva do movimento. Como aliás argumentado pelo arqueólogo Luís, L. (2019) ao se referir a uma escrita do movimento com recurso a elementos de decomposição e recomposição do movimento. E ainda ao sentido etimológico adquirido pela palavra cinematografia, como ‘escrita do movimento’ (Luís, 2019, p.12) como ‘uma primeira cinematografia, que apresenta já os condimentos necessários que estão na origem de um dos elementos definidos por Munsterberg 4 para a invenção do cinema no século XIX: o registo de várias fases do movimento de objetos e a decomposição e recomposição dessas imagens sucessivas.”

Propondo um extenso salto temporal para a atualidade, poderá citar-se a perspetiva do antropólogo Tim Ingold, quando refere que “Metodologicamente, trata-se do potencial do desenho como forma de descrever as vidas que observamos e com as quais participamos, tanto em movimento como em repouso.” (Ingold, 2016, p.221) 5 Na apropriação e relações espaciais “por entre os espaços exploráveis do movimento e da pausa, da linha e do ponto, à medida que linhas nos confluem o conformar da forma.” (Saque, 2018, p. 283) Esta apropriação de relações espaciais e a alusão a especificidades contidas no processo de desenhar, poderão ser identificadas no desenho, numa perspetiva de igualmente se considerar “O momento de desenho, como um ato de relacionar, que implica um envolvimento sustentado de atenção inabalável. A ‘presença para’ sustentada do desenho (observacional) modela a resposta exigida no momento do encontro com o que é o outro, seja o mundo como é em si mesmo ou outras pessoas… A sustentada ‘presença para’ do desenho, portanto, mantém a possibilidade de ouvir de volta, não como uma promessa de imediatismo, mas como a possibilidade de tal compromisso revelar o objeto de atenção como é em si mesmo” (Marshall, Sawdon, 2012, p.7).

Com efeito, as referências à importância de se estabelecer níveis de uma atenção sustentada, no sentido de uma ‘presença para’, encontram-se igualmente referenciadas em variadas áreas de investigação e produção artística, ao enlevarem o estabelecimento de pontes, claramente atentas a relações espaciais. Estabelecendo paralelos com a musicalidade, através da referida dimensão de relacionar e ‘ouvir de volta’, numa atenção a correspondências presentes em diversas formas de apreensão e constituição de conhecimento, poderá fazer-se referência a reflexões de Ezio Bosso, pianista, compositor e diretor de orquestra italiano. Este, referindo-se ao porquê de se continuar a escrever concertos, ou o porquê de existirem sinfonias, justifica-o de modo análogo às razões pelas quais ainda se escrevem poesias, melodias, ou se criam outras formas artísticas, tratando-se de um claro confronto com o espaço. Nesta sua visão, a música confronta-se inevitavelmente com o espaço, tornando-se o próprio espaço, dado que ‘baseando-se no silêncio, numa subdivisão do nosso silêncio, a música se confronta inevitavelmente com o espaço’ 6 7 e ainda ‘tornando-se um exemplo de qualidade, mas não no sentido de se tocar bem (…); mas antes tocando com tudo de si.’8 9

Ainda segundo E. Bosso, pode mesmo dizer-se que, nomeadamente os músicos, tenham uma ‘obsessão’ pela atenção ao espaço desde sempre, no sentido de atenção, empenho e envolvimento, mesmo em primórdios de se fazer música, porventura até em grutas. Exemplificando-o e referindo-se à forma como se posicionam os instrumentos de uma orquestra, que pode ser considerada uma forma de arquitetura sonora, como é o caso da estereofonia, que serve a composição sonora de uma relação espacial. Neste sentido, a música em si, como meio de utilização de uma linguagem aparentemente simples, está também relacionada com a atitude do músico, com a sua lógica e linguagem, com o pensamento da dinâmica nos espaços que são reveladores desse campo de relações. Aliás na música, como no processo de desenho e animação de linhas, poderá considerar-se que as partes não são componentes que se juntam uma às outras, são antes movimentos com continuidade lado a lado, em relação espacial, umas com as outras. Não demarcando posições fixas, mas antes desenhando movimento em continuidade, deslocando-se ao longo do movimento de outros movimentos, quer seja o caso de advirem de elementos de composição sonora ou de grafismos visuais, nomeadamente lineares.

Concomitantemente, fazendo pontes transversais a diversas áreas de produção de conhecimento, faz-se ainda referência a reflexões de Ingold, que, tendo tido uma inicial orientação por via das ciências naturais, veio a desenvolver uma posterior orientação para projetos que procuram integrar os estudos antropológicos com práticas em arte, arquitetura e design. O autor, destacando um processo temporal de perca de uma atitude ecológica integrada nos métodos de investigação científica, a favor de uma crescente implementação dos mesmos em processos artísticos, enuncia relevantes ligações entre campos de investigação. Nas reflexões deste, em torno de questões ambientais, ciências naturais e arte, no seu artigo, ‘From science to art and back again: The pendulum of an anthropologist.’ (2016) faz aliás referência ao valor de uma “ciência fundamentada em maravilha tácita com a beleza primorosa do mundo natural, e em silenciosa gratidão por aquilo que devemos a este mundo pela nossa existência” 10 deste modo posicionando uma atitude observacional de atenção a correspondências implicadas no meio ambiente. Deste modo, no campo de uma apreensão e compreensão espacial e temporal do ambiente, Ingold levanta questões sobre um tipo de atenção a que denomina de – ‘atenção ecológica’ - referindo-se ainda a um crescente abdicar por parte da ciência para com esse tipo de atenção, ao não assistir à sua atual integração nos seus métodos, e ao fazer um paralelo que destaca a sua crescente adoção em investigação por via de disciplinas de arte, na sua vertente de uma atitude e atenção que contempla o respeito por princípios ambientais. Pois que, igualmente na perspetiva de apreensões de espacialidade sonora, como refere E. Bosso, aponta-se um campo de relações, para o qual já não se esteja porventura muito atento, dado estar-se mais habituado ao escutar de música em todo o lado, com um volume constante. O que aliás, igualmente pode ser considerado como ‘uma experiência espacial, no sentido de a potência sonora, a massa sonora, criar espaço dentro das nossas mentes’. 11 12

De uma forma muito abrangente e transversal, tais reflexões permitem o dizer-se que, em inúmeras áreas de estudo, pessoas de muitos lugares do mundo e em muitos momentos diversificados, sejam simultaneamente observadores e participantes de movimentos, numa ambiência espacial temporalmente envolvente. Através desta noção, salienta-se aqui a importância de uma participação observante atenta a estas ambiências espaciais e sugere-se que a disciplina de desenhar, possa promover uma particular atenção aprimorada e um desenvolvimento de ambos os campos em permanente relação, quer como observadores, quer participantes. Sugerindo assim, a quem desenha a possibilidade de se situar simultaneamente como observador e participante. Nesta perspetiva simultânea, a observação não é considerada como uma prática de identificação e destaque exclusivamente dedicada ao evidenciar de elementos que aparentam apelar a uma maior atenção, com consequente remoção de atenção a outros elementos presentes no contexto. Mas antes, a uma permanente atenção e correspondência com a ambiência espacial, numa ‘ecologia de correspondências’ que atende igualmente a trajetórias de uma produção criativa. Como refere Ingold, 2016, ‘(…) a correspondência é o movimento co-responsivo de coisas ocorrentes ao longo de várias linhas de se tornar.’ (Ingold, 2016, p. 30) 13

2. Aproximação a uma visão antropológica da linha

“Com um ponto, gera-se o mundo, com dois pontos, uma vida que é uma linha.” 14 (Brusatin, 1993, p.13)

Destaca-se aqui, que a par do inicialmente referido fascínio de Brusatin pela via de estudo da ‘linha’, o relevante autor Tim Ingold, na sua recente obra ‘Lines: a brief history’ (2016) “imagina um mundo em que todos e tudo consista em linhas entrelaçadas ou interligadas e estabelece bases para uma nova disciplina: a arqueologia antropológica da linha.” (Ingold, 2016, p.i) 15 Numa perspetiva que destaca atuais ambivalências e os férteis espaços de conjunção de visões, e onde se desafia a exploração dos parâmetros que enquadram as atuais relações entre os seres humanos e o seu ambiente natural, vem a propor o conformar de uma visão propícia a uma sistematização do olhar através de linhas. “O olhar de Ingold, constitui-se, pois, de um evidenciar de referências históricas entrecruzadas com observações de teor exploratório do meio envolvente no âmbito de paradigmas da atualidade.” (Saque, 2018, p. 283) Neste enquadramento, segundo Ingold, e de um modo bastante esclarecedor, “Leva apenas um momento de reflexão para reconhecer que as linhas estão em toda parte. Os seres humanos, como entidades que andam, falam e gesticulam, geram linhas onde quer que vão. Não é só o facto da criação de linhas ser tão omnipresente quanto o uso da voz, mãos e pés – respetivamente falando, gesticulando e movendo-se - mas sim no que subjaz a todos esses aspetos da atividade humana diária, pois ao fazê-lo, junta-os em um único campo de pesquisa” 16 (Ingold, 2016, p.1) que o autor procura delinear. Com efeito, a noção de confluência que alude ao movimento de forças motrizes presente e pareada numa apreensão linear, convoca bastas vezes a impressão de se lidar com informação de uma profundidade inalienável, quase insondável, mas de algum modo fundamental.

No seu processo de investigação e através de inúmeras práticas, Ingold sugere ainda não ser suficiente concentrar-se apenas nas próprias linhas, ou nas mãos que as produziram, tendo também que se considerar a reveladora relação entre as linhas e as superfícies nas quais elas são observadas e desenhadas. Destacando dois tipos de linhas que pareciam destacar-se, apelidou-as inicialmente de ‘fio’ e ‘traço’. “No entanto, numa inspeção mais próxima - fios e traços - pareciam não ser tão diferentes categoricamente quanto as transformações de um para o outro. Os fios têm uma forma de se transformar em traços, e vice-versa. Além disso, sempre que os fios se transformam em traços, superfícies são formadas e sempre que os traços se transformam em fios, são dissolvidos.” 17 (Ingold, 2016, p.2) Para uma melhor compreensão deste processo, importa revelar que o autor considera um fio como um filamento que pode ser enredado com outros fios, ou suspenso entre pontos num espaço tridimensional. Em um nível relativamente microscópico, os fios têm superfícies, mas não são desenhados em superfícies. Alguns exemplos com intervenção humana: uma bola de lã, uma madeixa de fios, um colar, uma rede, uma rede de pesca, uma linha de prumo, um circuito elétrico, linhas telefónicas, cordas de violino, a cerca de arame farpado, uma corda bamba, uma ponte suspensa. Alguns exemplos não artificiais, observados numa ordem linear da natureza: a forma de raízes, as plantas acima do solo que brotam em caules e rebentos, a estrutura de rede linear das folhas de árvores, os cabelos, as penas, as antenas e bigodes, o sistema vascular e nervoso interno dos corpos animais, entendidos como conjuntos de fios complexamente conectados. Aliás, na obra “Matéria e Memória, datada de 1896, o filósofo Henri Bergson, descreveu o sistema nervoso como um condutor com uma quantidade enorme de fios estendidos da periferia ao centro e do centro à periferia “18 (*) (Bergson 1991: 45cit. in Ingold, 2016, p.42) 19 (Bergson 1990: 47). Acresce que, para além da constituição interna de filamentos, alguns animais elaboram fios, como é o exemplo da aranha e do bicho-da-seda que exsudam fios do próprio corpo. Paralelamente os seres humanos, de forma especializada, elaboram fios, essencialmente através da recolha de matérias e dos movimentos artífices das mãos.

Por outro lado, para Ingold, o ‘traço’ sendo uma marca persistente deixada sobre uma superfície sólida, é gerada por um movimento persistente e contínuo. Sendo, a maioria dos traços visíveis, de dois tipos: aditivo e redutor. Uma linha desenhada com carvão no papel, ou com giz sobre ardósia, considera-se aditiva, já que o material do carvão ou giz, forma uma camada extra que se sobrepõe à base. Linhas que são arranhadas, marcados com sulcos ou gravados numa superfície, consideram-se redutoras, uma vez que, são formadas pela remoção de material da própria superfície.

Fios e vestígios de traços, abundam no mundo humano e não-humano. Com o movimento de animais, aparecem comummente como caminhos ou faixas. O caracol deixa um rastro aditivo de muco, mas os trilhos de animais são frequentemente redutores, causados por impressão na superfície da lama, areia, neve, terrenos duros, cascas de árvores. Os seres humanos também deixam vestígios redutivos na paisagem, através de movimentos frequentes ao longo da mesma rota a pé, conduzindo animais e veículos com rodas.

Mas, assim como os seres humanos são criadores e utilizadores de traços, eles também são criadores de traços através das suas mãos, estando ambas as ações intimamente ligadas, tanto na manipulação de fios como na inscrição de traços. Sem ajuda de qualquer ferramenta ou material, os seres humanos podem reduzir traços - por exemplo, na areia - com os dedos. Com ferramentas podem produzir vestígios em materiais como madeira, osso ou pedra. Aliás, a palavra escrita era originalmente referida com traços incisivos deste tipo. Por outro lado, os traços aditivos podem ser produzidos por implementação manual de fontes de pigmentos materiais em superfícies, incluindo canetas e pincéis. Ao que se acresce que no atual paradigma de tecnologias digitais em permanente expansão assistimos ao ampliar de todas estas possibilidades.

Ainda no âmbito da linha, além da noção de fio e traço, o autor revela a importância de nos concentrarmos nas relações entre eles e destaca uma terceira visão da linha, criada não por adição de material a superfícies, ou por incisão nestas, mas antes relativa a ruturas nas próprias superfícies, como cortes, fissuras e vincos. Aliás, recorre aos estudos de Kandinsky, em ‘O ponto, a linha, o plano’ 20, para se referir a “uma capacidade particular da linha [é] a sua capacidade de criar superfície.” 21 (Kandinsky 1982:576, cit. in Ingold, 2016, p.45) Visualmente, refere-se a uma capacidade da linha reta para criar um plano bidimensional, por meio de um deslocamento lateral. São exemplo disso o plano linear da lateral de um móvel, o corte em uma superfície do solo criando uma nova superfície vertical nesse processo, as linhas de sulco no campo de um fazendeiro ao arar a terra. Cortar uma folha de papel ou tecido, não cria uma superfície, mas divide o material. Enquanto os cortes podem resultar de forças acidentais, as fissuras geralmente resultam da fratura de superfícies quebradiças causadas por pressão, colisão ou desgaste, resultando em rachas geralmente irregulares e transversais a linhas de quebra, comumente observadas na natureza - no gelo quebrado, na lama afetada pelo sol, na madeira morta de casca de árvores. Assim como podem ser encontradas em artefactos.

Mas, segundo Ingold, para além de linhas, que fazem parte de fenómenos reais, presentes no meio ambiente, ou nos corpos dos organismos, também é possível pensar a linha em um sentido ‘mais visionário’ ou metafísico. “Assim, da linha do movimento e do crescimento, fui levado ao seu inverso, a linha pontilhada - a linha que não é uma linha - uma sucessão de instantes em que nada se move ou cresce.” 22 (Ingold, 2016, p.3). Poderíamos assim dizer, que o desafio à atenção, aqui, é este: o situar de um princípio e de um fim de um movimento linear, dentro do instante e do espaço infinito. A exemplo, observemos uma linha de paisagem…

3. Uma linha na paisagem animada

Considerando o exemplo de observação de uma paisagem - quer se esteja num contexto de contacto direto com uma paisagem em ambiente real, ou contactando com uma paisagem através de uma imagem fotográfica - e se se pretender observá-la aprimoradamente através da prática de desenhar, por certo se assume inicialmente - após alguma prática de Desenho - a possibilidade de: se imprimir uma atenção mais focada; a capacidade de se captar algumas linhas que ao serem graficamente registadas vão distinguir elementos de informação; o se fazer referência a delimitação de conteúdos formais; o estabelecer relações de posicionamento espacial; o destacar impressões de intensidade, dinâmica visual, entre outras. Em termos gerais, pode dizer-se que, na contemplação de linhas apreendidas numa paisagem, sejam elas mais ou menos evidentes, se reconhece a influência de se lidar com vastos campos de perceção visual e respetivas vias de captação de elementos variados, que permitam uma expressão gráfica, num alargado campo de opções, a caminho da constituição da imagem visualizada. Efetivamente, através de um intencional estudo do meio envolvente, numa constante busca de sentidos através dos próprios sentidos, considera-se um estabelecer de inter-relações que permitam chegar a uma elaboração gráfica desenhada. E do mesmo modo se considera a implicação de processos de leitura, quer ao longo do seu desenvolvimento gráfico, quer perante a própria representação desenhada ao longo das suas fases de elaboração.

Utilizando pois, o exemplo de inter-relações com o meio envolvente, leia-se paisagem, a par da abrangência reflexiva sugerida por Ingold - ao sugerir formas dinâmicas de observar, compreender e descrever, acompanhadas de um permanente movimento de gerar questões sob renovados pontos de vista - e de acordo com os processos enunciados anteriormente, várias questões poderiam ser situadas enfocando-se o elemento linha. Uma primeira questão poderia ser endereçada à existência real, ou não, de linhas na paisagem; ou questionar, se por outro lado, a impressão visual de linhas se constitui apenas através de um recurso da mente, com consequente viabilidade gráfica. Ou dito ainda de outro modo: poderá dizer-se que as linhas observadas se encontram realmente na paisagem em observação? E as linhas visualmente mais proeminentes, serão essas as que maioritariamente optamos por representar? E terão essas linhas proeminentemente, observadas na paisagem, uma materialidade real, ou poderão elas mesmo ser só, e apenas, o resultado de uma abstração visual?

Com efeito, em exercícios de desenvolvimento de técnicas de desenho, relativas a estudos de paisagem, poder-se-ia ainda perguntar: se a observação e o registo de linhas de imagem, surge maioritariamente através de construções visuais apreendidas e desenvolvidas aprimoradamente ao longo do tempo, suportadas por níveis de observação, mas também a par de modos convencionados, como por exemplo através de relações espaciais de perspetiva, delimitação e definição de contornos, entre outros? E se, ao serem progressivamente desenhadas, corresponderão a um destacar de elementos visualmente captados por um lado, acrescida de representarão advinda de uma conjunção de informação anteriormente estudada e relativa a elementos contextuais? E ainda o interesse de se questionar, se no seu processo de um registo gráfico muito atento a processos de desenvolvimento, estarão incluídas noções simultâneas de observador e participante, assim como de ‘leitor’ passo a passo? E que instantes de dinâmica e movimento percecionado progressivamente se elegem, na tradução de uma complexidade visual apreendida no meio envolvente, e nos processos de compor a imagem de uma paisagem?

Estas e outras questões inerentes, refletem pois a constituição de uma atividade – o desenhar – cujas relações e processos complexos, poderão conduzir a desenvolvimento de investigação aprofundada com significativos reflexos no campo da observação e representação; no campo de uma apropriação de processos humanos de elaboração de informação, no que se refere a possibilidades de um relacionamento com a paisagem envolvente; no campo da apropriação de sistemas de produção e composição de imagem, particularmente relevantes também na criação de imagem animada. Com efeito, pode neste âmbito, considerar-se a paisagem, como uma ambiência espacial que proporciona imagem advinda de um mundo repleto de evidências de materialidade, forma, superfície, qualidade, detalhe, a par da permanente inter-relação dos seus elementos dinâmicos em permanente movimento e transformação.

Ilustrando o anterior enquadramento de questões levantadas, a propósito de observação e representação de uma paisagem, refere-se a título de exemplo, um estudo reflexivo aplicado a uma obra visual, desenvolvido por meio de reflexões aplicadas ao trabalho fotográfico de Nisha Keshav, ‘Linhas na Paisagem’ (2015), e apontando-se a questão inicialmente colocada por Ingold quando este pergunta: ‘Existem linhas na paisagem? Muitos diriam que não existem.’ 23 (Ingold, 2017, p. 56) Ingold, lançando um convite a uma observação aprimorada de detalhes, vem nomeadamente a destacar: os sulcos de um campo arado, onde a superfície do chão é perpetrada por luz solar em ângulos que iluminam os cumes de um dos lados, deixando outros lados em sombra; sendo que nesse caso, muito embora não se observem diretamente linhas quando se observa com uma maior proximidade, essas linhas revelam-se aparentes no próprio solo. O mesmo se poderia dizer com o exemplo de uma corrente de água a escorrer ao longo desse mesmo sulco, aparentando o definir de limites lineares, por contacto, onde a água encontra a terra; contudo não se encontrando a linha que o inscreve. E se o céu de um dia solarengo e ventoso, em aparente contacto direto com o sulco, apresentar deslocações de nuvens que indiciam movimento e direção, igualmente não se apreende visualmente a linha dinâmica com que o vento imprimiu deslocação. E de facto, o mesmo poderia efetivamente ser dito, se procurássemos encontrar uma linha de horizonte plenamente à nossa frente.

Contudo, considerando um outro contexto de observação através de um exercício simplificado de desenho uma paisagem, com um lápis e papel, a partir do real ou a partir de uma imagem fotográfica, poder-se-ia, com alguma facilidade delinear algumas linhas que a nossa perceção identifica e distingue, como por exemplo os limites de um campo, troncos de árvores, folhas de plantas, bordas de um caminho, sulcos na terra, linha de horizonte, nuvens. Coloca-se assim em questão, o processo de identificarmos e elegermos esses elementos lineares. E reforçando os modos dessa apreensão, como podem eles ser igualmente reconhecíveis por outros? Ou seja, pode perguntar-se: onde poderão ‘estar’ as linhas que observamos e desenhamos num esboço, caso não sejam diretamente observáveis, nem identificáveis como linhas, no mundo dos fenómenos? Este processo, tratar-se-á de uma leitura visual sustentada pela interpretação de um esboço, cujas linhas seriam uma expressão visível do modo como a mente humana apreende informação, destacando, selecionando e compondo elementos? Discernindo e distinguindo partes que podem ser identificadas, nomeadas, separadas, conjuntas? Será um meio e a essência da uma nossa aproximação visual aos conteúdos lineares, essencialmente enfocando elementos limítrofes como: céu e terra, terra e água, fechado e aberto; ou relações entre linhas: convergentes e divergentes, curtas e longas, densas e leves, unindo e dispersando...? A questão da existência ou não de linhas na paisagem, mantém-se. E, porém, Ingold afirma, ‘Existem linhas na paisagem’ 24 (Ingold, 2017, p. 58)

Para uma abordagem experimental a esta questão, acompanha-se aqui o autor, quando sugere o exercício de se desenhar uma linha com um lápis de grafite sobre papel, observando de perto a linha registada, através da perspetiva de uma ampliação. Ou seja, por meio de uma observação do processo de demarcação de uma linha, que remeta para apreender a noção linear que regista, e posteriormente perscrutar a sua qualidade gráfica sob o ponto de vista de uma ampliação focal. A mancha alongada que foi demarcada, apresentando diferentes larguras e densidades, gerada pelo abrasar da grafite na superfície do papel, ganha então uma aparência diversa daquela que se obtém através de uma primeira observação direta, sem recurso a ampliação. A respeito desta conclusão, o autor refere a existência de linhas com um valor de presença material, na perspetiva de abertura a um sentido mais abrangente. Considerando-se tanto noções aditivas, como subtrativas. Sugerindo, pois, o fazer-se paralelos a semelhanças diretas com os exemplos de sulcos marcados por pneus, marcas de um arado na terra, entre outros efeitos que, de modo análogo, ao um efeito abrasivo da grafite, se poderiam identificar visualmente como interpretações de linhas presentes na imagem visualizada. Pergunta-se, se alterando a perspetiva angular de aproximação, poderemos ou não encontrar claros paralelos a ambos os registos lineares? Com efeito, sob um ponto de vista mais dinâmico e avaliado por diferentes distâncias oculares, poderão identificar-se paralelos. Ainda que de características e qualidades diversas, quer observadas pela perspetiva direta de um mundo de fenómenos visualmente captado, quer suportadas num mundo de teor gráfico ampliado por instrumentos de suporte à visão, poderão estabelecer-se pontes que sustentam quer a sua dimensão visual, quer os processos de serem gerados. Um outro aspeto relevante a salientar na contemplação de impressões lineares de uma paisagem, diz, pois, respeito à perspetiva dinâmica do observar. Paralelamente à questão anteriormente endereçada, se as impressões lineares forem observadas, não na perspetiva de uma separação de elementos, ou destaque dos elementos de que são formados, mas sim contemplando um campo mais abrangente de elementos como os exemplos de terra vincada num sulco, uma correspondência entre chuva e luz solar, uma oscilação de folhas pelo vento, poderemos aproximarmo-nos de informação linear extremamente relevante. Porventura de âmbito mais subtil e em apropriação de relações entre elementos visuais dinâmicos, neste sentido, Ingold afirma “Há linhas na paisagem porque cada paisagem é forjada em movimento, e porque este movimento deixa traços materiais ao longo dos múltiplos caminhos do seu processo. Perceber essas linhas não é ver as coisas como elas são, mas ver as maneiras pelas quais as coisas estão em movimento” 25 (Ingold, 2017, p.58), sendo esta uma potencial primazia nos processos de apropriação e criação de imagem.

Do mesmo modo, se chama a atenção a perceções diferentes do gerar da matéria, do grão, de texturas, de efeitos de deslocações. Linhas de força e atrito, correntes de água, voo de pássaros, deslocação de nuvens. Com efeito, com alguma facilidade, se deteta primeiramente que “A linha pode ser distinguida do seu elemento, mas não o elemento da linha. A marca de lápis distingue-se do papel, mas não o papel da marca; o sulco é distinto da terra, mas não a terra do sulco; as nuvens do céu, mas não céu das nuvens” 26 (Ingold, 2017, p.59), sendo neste âmbito necessário implementar um particular foco de atenção às relações presentes a ambos domínios. Poderá, pois, ser esta uma possibilidade de se empreender um aprofundamento de atenção ao que permanentemente se move e transforma? Deste modo, se afirma-se aqui um potencial de riqueza de observação desses processos, que além de nos poderem apoiar numa captação e expressão de elementos, ainda nos permitam uma ampliação de perspetivas, que como refere Ingold corresponderia ainda a ‘(…) um caminho para honrar as formas da natureza, de não apenas contemplar sua beleza, mas conhecê-los por dentro.’ 27 (Ingold, 2016, p.18)

Assim, por via de um estudo aprofundado do elemento linear ampliado pela aproximação a uma visão antropológica da linha, na conceção implícita na presente abordagem, procura-se trazer um contributo reflexivo que alude a relações de correspondência direta e dinâmica, entre a observação e representação, no sentido de consubstanciar uma investigação com potenciais reflexos em práticas artísticas. Procurando-se ainda atravessar um posicionamento em torno do que pode significar uma atitude humana em contacto com o mundo, através de práticas de uma ampliada observação participante que atravessa elementos de contemplação, perceção, linguagem, leitura, questionamento e desenvolvimento de processos criativos. Atravessando consistentemente, modos de atenção e habilidades práticas que permitem o vivenciar de particularidades dinâmicas, considerando os contextos e os modos como acontece e se desenvolve ‘o mover’, o sentir e o pensar em apreensão, com implicações na vivência do mundo. Procurando-se por fim, enunciar e fortalecer razões para a criação e construção de mensagem que consubstancie particulares posicionamentos de uma participação observante e de vias para a sua elaboração criativa. De facto, numa atitude de se assistir à presença dinâmica do que se observa pela consideração da sua natureza mais intrínseca, procurando-se um modo participado de perceber e responder, questiona-se em plano de fundo, os modos de criação de mensagem, o porquê de continuamos a criar histórias, a desenhar, a compor e a partilhar. Conclusivamente, acentua-se aqui, que o exemplo de observação de uma paisagem, permite sugerir um enfocar de particular atenção a observação do movimento implicado no crescimento e desenvolvimento de imagem, pela apreensão de vias de constituição de elementos contextualmente presentes no meio envolvente, a par da constituição de imagem desenhada. Valorizando-se os modos simultâneos de observar e conceber imagem através do mover, do conhecer e do descrever, que atendem a linhas de força, de crescimento e de movimento, como processos abertos em permanente conformação.

E de facto, Ingold, na sua obra ‘On human correspondence’ (Ingold, 2017) referindo-se à prática antropológica, acentua a importância de uma participação observante. Salientando ainda que observar não corresponde a ‘objetivar’, definindo tópicos circunscritos de observação, mas antes a algo que atende, que disponibiliza atenção a pessoas e a coisas, aprendendo com elas, movendo perceções e práticas. Salienta-se assim a dinâmica e o potencial de uma observação ‘com o meio ambiente’, numa exploração contínua e experiencial das possibilidades e potencialidades da vida humana. Podendo dizer-se, ora com mais claridade, não se retratar aqui de vias para uma incorporação de coisas em seus contextos, nem de uma interpretação, mas antes de procurar restaurar qualidades de presença ao mundo à nossa volta, incluindo atendimento e resposta como vias de criação. Pretendendo-se ainda o estabelecer de uma aproximação a noções de um ‘mover’ e avançar em apropriação de tempo real. Nesta perspetiva ampliada, considera-se que a antropologia pode constituir-se como uma disciplina de amplo potencial de ‘correspondência’, e os processos artísticos de observação e criação, potencialmente poderem ser enlevados, através de práticas de Desenho e criação de imagem para cinema de animação. Enunciado por fim, implicações diretas em estudos de movimento, processos de criação de movimento animado e apropriação de níveis de observação, enfoca-se a amplitude observacional apontada por Joana Quinn, na obra ‘Basics Animation’, “A ênfase na observação em desenho para animação não pode ser excessivamente sublinhada no sentido em que é importante desenhar a partir da vida, e não a partir de uma imaginação que já tenha sido colonizada por formas de imagem estabelecidas.” (Wells, 2008, p. 49) Aliás a importância da compreensão deste processo de desenvolvimento de uma escrita do movimento como um processo, fica ainda mais evidente quando se estabelecem paralelos comparativos entre cinema e animação, pois “a ‘sucessão de fases calculadas’ é um processo consciente para a animação e inconsciente para o cinema” (Denis, 2010, p.41, cit. in Luís, 2019, p.13) sendo que, os princípios básicos do movimento que as ligam, revelam origens que poderemos considerar intimamente ligadas a formas de registo do movimento. E ainda, considerar que, como refere Brian Fay em ‘What is Drawing - A Continuous Incompleteness’ (2013) “Talvez a força do desenho e sua durabilidade seja o momento de encerramento que nunca chegará.” (Fay, 2013, p.20, cit.in Saque, Valente, 2018, p.26)

Na perspetiva do movimento cinematográfico, considera-se conclusivamente que os processos artísticos de observação e criação, aqui ampliados por campos de apreensão e estudo dinâmico do que permanentemente se move, sugerem um abrir de visão com potencial aplicabilidade em contexto de estudos de cinema de animação, no enquadramento de investigação e promoção de relações entre artes, media e cultura.

Notas finais

1 Texto original: ‘La vita è una linea, il pensiero è una linea, l’azione è una linea. Tutto è linea.’ (Brusatin, 1993, p.22)

2 Texto original: ‘In principio c’è una linea all’orizzonte quando prima non c’era quasi nulla. E dopo c’è un alto e un basso, un destra e un sinistra, un dritto e un rovescio, un principio e un fine: l’accerchiamento della nostra stessa vista.’ (Brusatin, 1993, p.10)

3 Texto original: ‘(…) da semplici linee di un verde piu chiaro.” (Brusatin, 1993, p.20)

3a Saque, C. (2018), ‘Uma linha que desenha olhar’, Confia 2018, 6 ed. Conferência Internacional em Ilustração e Animação, Ed. Instituto Politécnico do Cávado e do Ave, Barcelos, p.281-289. (Saque, 2018, p.283)

4 Münsterberg, H. (1916). The photoplay: A psychological study. D. Appleton.

5 Texto original: Methodologically, it is about the potential of drawing as a way of describing the lives we observe and with which we participate, both in movement and at rest, (…)” (Ingold, 2016, p.221)

6 Referência original: ‘basata sul silenzio, una suddivisione del nostro silenzio, la musica si confronta inevitabilmente con lo spazio’.

7 Bosso, Ezio. 2010. ‘Culture Nature’, intervista a Ezio Bosso, La Stampa.

8 Referência original: ‘(…) diventi l’esempio della qualità, ma non nel senso di suonare bene, non basta; bisogna suonare con tutte se stesse.’

9 Bosso, Ezio. 2017. ‘Il nostro Verdi. Luogo di passione e allegria’, intervista a Ezzio Bosso. Acedido em 3.02.19.

10 Texto original: ‘This was a science grounded in tacit wonder at the exquisite beauty of the natural world, and in silent gratitude for what we owe to this world for our existence.’ (Ingold, 2016, p.1)

11 Referência original: ‘È un’esperienza spaziale anche, perché la potenza sonora, la massa sonora creano spazio dentro nostra testa.’

12 Bosso, Ezio. 2010. ‘Culture Nature’, intervista a Ezio Bosso, La Stampa.

13 texto original: ‘(…) correspondence is the co-responsive movement of occurrent things along their manifold lines of becoming. (Ingold, 2016, p. 30)

14 Texto original: “Con un punto si genera il mondo con due punti una vita che è una linea.” (Brusatin, 1993, p.13)

15 Texto original: “imagines a world in which everyone and everything consists of interwoven or interconnected lines and lays the foundations for a completely new discipline: the anthropological archaeology of the line.” (Ingold, 2016, p.i)

16 Texto original: “It takes only a moment’s reflection to recognize that lines are everywhere. As walking, talking and gesticulating creatures, human beings generate lines wherever they go. It is not just that line-making is as ubiquitous as the use of the voice, hands and feet – respectively in speaking, gesturing and moving around – but rather that it subsumes all these aspects of everyday human activity and, in so doing, brings them together into a single field of inquiry.” (Ingold, 2016, p.1)

17 Texto original: “Yet on closer inspection, threads and traces appeared to be not so much categorically different as transforms of one another. Threads have a way of turning into traces, and vice versa. Moreover, whenever threads turn into traces, surfaces are formed, and whenever traces turn into threads, they are dissolved.” (Ingold, 2016, p.2)

18 Texto original: “In his Matter and Memory, dating from 1896, the philosopher Henri Bergson described the nervous system as ‘composed of an enormous number of threads which stretch from the periphery to the centre, and from the centre to the periphery” (Ingold, 2016, p.42, tradução livre, cit. in Bergson 1991: 45).

19 Bergson, H. (1990). Matéria e memória. Tradução Paulo Neves da Silva. “Esse condutor compõe-se de uma quantidade enorme de fios estendidos da periferia ao centro e do centro à periferia.” (Bergson, 1990: 47)

20 Kandinsky, W. (1926). Ponto Linha Plano; trad. José Eduardo Rodil. Lisboa: Edições, 70, 1987.

21 Texto original: “a particular capacity of line [is] its capacity to create surface (Kandinsky 1982:576, my emphasis)” (Ingold, 2016, p.45, tradução livre, cit. in Kandinsky 1982:576).

22 Texto original: “Thus from the line of movement and growth I was led to its obverse, the dotted line – the line that is not a line – a succession of instants in which nothing moves or grows.” (Ingold, 2016, p.3)

23 Texto original: ‘Are there lines in the landscape? Many would say there are not.’ (Ingold, 2017, p. 56)

24 Texto original: ‘There are lines in the landscape’ (Ingold, 2017, p. 58)

25 Texto original: ‘There are lines in the landscape because every landscape is forged in movement, and because this movement leaves material traces along the manifold ways of its proceeding. To perceive these lines is not to see things as they are but to see the ways along which things are going.’ (Ingold, 2017, p.58)

26 Texto original: ‘The pencil mark is distinguished from the paper, but not the paper from the mark; the furrow is distinguished from the earth, but not earth from furrow; the clouds from the sky, but not sky from clouds.’ (Ingold, 2017, p.59)

27 Texto original: ‘(…) way of honoring the forms of nature, of not just contemplating their beauty but knowing them from the inside.’

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