Capítulo I – Cinema – Arte

Academic performance as ritual of creation and activism in the post-digital era

A performance académica como ritual de criação e ativismo na era pós-digital

Pilar Pérez

Universidade Autónoma de Madrid, Espanha

Selma Pereira

Instituto Politécnico de Castelo Branco

CIAC - Centro de Investigação em Artes e Comunicação, Portugal

Adérito Fernandes-Marcos

CIAC, INESC-TEC.

Universidade Aberta / Artech-International, Portugal

Universidade de São José, Macau, China.

Abstract

Performance-ritual as a form of unconventional action, spontaneous and immediately directed to an audience inserted in a given scientific, artistic, or cultural event, has been adopted as a vehicle for artistic intervention and social criticism taking the university as the platform for creativity, freedom, and questioning of the normal-hegemonic and power structures.
In this article, we approach five performative interventions carried out between the years 2008 and 2010, in the path of the so-called “academic performance,” which took place in Japan, Spain, Portugal, and Cape Verde, where the ritualism and the dynamics of power were reflected and questioned, their meaning and exercise, in the university space, as well as the gradual hegemony of the university reform project known as the Bologna model.
In the article, we analyze each of these performances from the symbolic, iconographic, pointing to the space of post-digital creation.

Keywords: Academic Performance, Ritual, Archetypes, Activism, Post-Digital, Creation Cycle.

Introdução

A performance-ritual como ação não convencional, explorando arquétipos e símbolos sociais, constitui uma ferramenta antropológica em voga desde a ancestralidade, seja como ritual de iniciação, afirmação social, interpretação do mundo, mas sobretudo como questionamento de estruturas de poder (Turner, 1988; Turner, 1969). Segundo Turner, os rituais podem suspender o fluxo da vida quotidiana e de desestabilizar relações pré-determinadas pela estrutura social, reencenando modelos tradicionais de representação e dando lugar a uma criatividade que desestabiliza esses mesmos modelos. As performances têm uma enorme potencialidade transformadora, de geração de tensões e reformulações em ordens estabelecidas. A performance assume-se como parte integrante da experiência, podendo oferecer análises do mundo social a partir de imagens dramatúrgicas. É na articulação e associação de emoções mobilizadas no momento presente às memórias de experiências passadas, que a performance pode interligar essas emoções e memórias, renovando-as. Esse encadeamento possibilita novas interpretações do mundo social, levando o próprio sujeito e o grupo a assimilar aspetos da realidade e também do desconhecido, o que viabiliza as transformações. A performance como rito mostra-se, assim, como um dos caminhos de análise das tensões da estrutura social e dos elementos anti-estruturais que ela contém; possibilitando analisar as experiências divergentes e anti-estruturais, convidando a observar como se movimenta a vida em sociedade, evidenciando suas contradições e transformações estruturais (Schechner, 2003; Dawsey, 2006; Cavalcanti, 2013; Borges, 2019). É esta mesma sociedade onde irrompem episódios de conflito e de tensão, um espaço simbólico de representação da realidade social que permite aos atores sociais estarem à margem da sociedade, onde a performance-ritual recorre à inversão de papéis, tornando-se um espaço simultaneamente reflexivo onde as estruturas de experiência grupal são copiadas, desmembradas e re-significadas (e onde se denuncia a forte relação entre a performance, política e resistência) (Raposo, 2017).

A denominada performance académica define-se como performance-ritual que explora os arquétipos e símbolos sociais para, a partir da universidade, realizar ações de intervenção performativa de crítica social e de questionamento do quotidiano e das estruturas de poder especialmente consideradas aquelas com origem ou propaladas pelo universo universitário. A performance académica tende a ser espontânea e dirigida imediatamente a um público inserido em um determinado evento científico, artístico ou cultural ou de outra índole, do universo universitário, constituindo-se como um veículo de intervenção artística e crítica social de confronto direto com os atores sociais do normal-hegemónico e as respetivas estruturas de poder (Pereira, Pérez e Fernandes-Marcos, 2020).

Neste artigo debruçamo-nos especialmente sobre o trabalho artístico de Pilar Pérez. Este é marcado por performances-rituais, maioritariamente realizadas em contexto académico, implementadas individualmente ou em grupo, onde predomina a carga simbólica, o ativismo, a crítica ao poder, à vida/carreira universitária contemporânea, e às questões de sexo/género. Analisamos 5 performances académicas que foram implementadas entre os anos 2008 e 2010. A primeira performance foi realizada em Beja, Portugal, em 2008 denominada “Baile Académico I”, seguindo-se a performance em Osaka, Japão, ainda no mesmo ano, com o título “Baile Académico II no Japão”; a terceira performance teve lugar em Barcelona, Espanha, em 2009, intitulada “Baile Académico III: a ameaça”; a quarta aconteceu em Óbidos, Portugal, em 2010, com o título de “Baile Académico IV: pedigree académico”; e a última performance foi realizada na cidade de Mindelo, Cabo Verde, em 2010, intitulada “Baile Académico V: Isto é arte! Isto não é arte!”. Estas performances-rituais-académicas foram desenvolvidas e apresentadas em diferentes congressos de educação e arte.

Em cada “Baile Académico”, a construção dos arquétipos foi primordial, onde o simbolismo esteve presente, e muitas vezes representado na indumentária e acessórios, que têm também um grande destaque na fase de incubação e de interação-reação com o público, que representa o destinatário principal, o objeto interpelado.

Com este artigo visamos trazer à discussão o papel da performance académica, com a sua dimensão de performance-ritual, simbolismo, ativismo e cariz transdisciplinar inerente, como instrumento de crítica social e de intervenção na academia. O artigo está organizado da seguinte forma: em I- A prática artística de Pilar Pérez e o Baile Académico, apresentamos uma contextualização da série longitudinal no percurso artístico de Pilar; no capítulo II- Descrição das performances, apresentamos a preparação ritualística e as fases/momentos de cada uma das performances. De seguida, em III- Contextualização teórica, abordamos a performance-ritual e a importância da indumentária na construção do arquétipo da performance. Segue-se IV-Análise do processo criativo à luz da estética do pós-digital, onde propomos uma discussão do processo criativo na concretização de performances académicas como atividade artística pós-digital; terminando o artigo com as Conclusões.

I- A prática artística de Pilar Pérez e o “Baile Académico”

O trabalho artístico de Pilar Pérez em performance académica começou em 1995, com o seu projeto de conclusão de curso “Via Crucis”, na Faculdade de Belas Artes da Universidad Complutense de Madrid. O trabalho de Pilar Pérez assume um caráter ativista, apresentado sob a forma de performance-ritual, com uma importante carga simbólica. Na construção conceptual predomina a questão de sexo/género. A maioria das suas performances têm como ponto de partida um momento quotidiano ou extraordinário da vida académica. Algumas das suas performances são peças longitudinais, como “Ente-Pato Corporativo” (2006-2007), “Baile Académico” (2008 a 2010) “Uniforme Posbolonio” (Outubro de 2011 a Outubro de 2015) e “Yo visto a mi maestra” (2016-2018). As suas performances são marcadas pela importância dada à indumentária, às vezes uniformes de aspeto militar, para a construção do arquétipo, e a repetição de ritmos que usam a permanência, o estar no tempo, como parte das chaves usadas nesta trajetória criativa e vital (Pilar Pérez in Pereira 2019, 30-31).

A ideia que deu origem a “Bailes Académicos” surgiu em 2008, quando Pilar Pérez e Arantxa Marco Hernando participaram no Congresso de Educação Artística Sentidos Trans-Ibéricos, organizado pela INSEA (International Society for Educantion through Art) Portugal. O próprio título do evento foi um gatilho motivador para a incubação da performance. Na época, Pilar Pérez era orientadora de doutoramento de Arantxa, e juntas começaram a refletir sobre uma possível contribuição performativa para o congresso, trabalharam sobre a importância do ritual e do simbólico tendo o foco, específico, em como tudo isto acontece na academia. Com esta iniciativa começaram os “Bailes Académicos”.

Fig. 1: Pilar Pérez na performance “Auto Boda”.

A série “Bailes Académicos” teve como precedente o trabalho artístico de Pilar desenvolvido até então: Em 2002, na defesa da tese do seu doutoramento, em que a Pilar recriou o acontecimento académico, na performance “Auto Boda” (veja-se Fi. 1 a 3), transformando aquela mudança de status (de doutorando ou candidato em doutor), num peculiar casamento de união simbólica consigo mesma. Já nessa ocasião usou os elementos de qualquer ato ritual (vestidos, iconografias ...) invertendo-os de forma a dar-lhes um significado diferente: “meu vestido de noiva branco, minhas “damas de honor, de tese” em branco”. O “ramo de tese” que lançou quando já era doutora. O “bolo da tese” (“Tese quase mil folhas”). O formato da tese, livro encadernado em branco, com letras douradas e uma fotografia embutida como um pequeno missal, em grande formato. Ou a maneira litúrgica pela qual mudou a introdução formal do ato de defesa. Definindo os seus orientadores de tese como “padrinhos” e os membros do tribunal como “padres”. No final deste processo, Pilar fez uma viagem de “núpcias” e foi a Cabo Verde passar quinze dias para viver uma experiência de viagem, criatividade e investigação, mas em plena liberdade, sem a necessidade de recolher material para uma tese. Esta performance foi a influência mais marcante para a série “Bailes Académicos’’, pois já indicava uma orientação para a futura investigação.

Fig. 2: O Bolo da Tese da performance “Auto Boda”.

Fig. 3: Ramo da Tese da performance “Auto Boda”.

II - Descrição das Performances

Beja, 2008. Baile Académico I

A performance “Baile Académico I” foi desenvolvida por Pilar Pérez e Arantxa Marco Hernando (na época a Pilar era orientadora de doutoramento de Arantxa). A performance teve como ponto de partida a dança, escolhida por dois motivos primordiais: pela importância que se atribui ao corpo na sociedade contemporânea e a escassa presença do corpo no meio académico; e pela metáfora de ter que “dançar” ao som de uma determinada música, ou seja, adaptar-se a certos imperativos.

Fig. 4: Os sapatos de “Baile Académico I”

As artistas entendem que o campo académico tende a ser definido por uma certa rigidez nos protocolos, regulamentos, mesmo num mundo como o atual em que a perda dos rituais é evidente, mais notória em Espanha (país de origem das artistas) que em Portugal. Neste ponto, as artistas consideraram que talvez fosse um paradoxo realizar a performance em Beja, cidade de um país (Portugal) onde os rituais académicos têm valor e dignidade (quando comparados com Espanha). A performance planeada era assim transgressora, mas na mesma transgressão estava o respeito e a apreciação pela força dos rituais. Por outro lado, o congresso estaria cheio de espanhóis, e a própria performance também exigiu simbolicamente uma espécie de união dos “ibéricos” na valorização das diferenças.

Para encenar a performance do “baile” a primeira etapa era a iconografia e estava claro para as artistas que o traje adequado deveria ser o de uma bailarina clássica, com o maillots, o tutu, o casaco traçado e os sapatos clássicos de ballet. A dança clássica com a sua disciplina e sacrifícios, assemelha-se à construção de uma carreira na vida académica: longos anos para construir, com muito esforço e paciência, um longo currículo (justamente o oposto da maioria dos currículos profissionais noutros ambientes de trabalho).

O traje de bailarina escolhido foi o branco, tal como o chapéu de doutoramento em Belas-Artes que as artistas envergavam. O branco é símbolo de pureza e inocência, embora esta dança performativa implicasse uma perda de inocência e um certo atrevimento, visto que Arantxa naquela época ainda não era doutora, o que constituía uma nova transgressão, pois ela já vestia o hábito antes de ter condições de “merecê-lo”.

O figurino era complementado por alguns acessórios: um avental de faralae que pensaram usar durante o jantar, uma mala com a bandeira espanhola e um mapa ibérico com um touro e duas bandeiras de Portugal. Nos momentos mais marcantes da performance, as artistas usavam sapatos de dança vermelhos brilhantes, com saltos.

Fig. 5. Pilar Pérez e Arantxa Marco Hernando preparando-se para a performance “Baile Académico I”.

Esses sapatos de dança vermelhos foram muito importantes porque estão vinculados ao tema que Pilar e Arantxa se propunham apresentar no congresso e que deu origem a um artigo: “Os sapatos vermelhos atrás de vitrines e telas digitais. Aplicação de um conto de fadas para reescrever a globalização” (Pérez e Marco 2010). Neste trabalho realizado na Universidade Autônoma de Madrid, com futuros alunos de Educação Primária, as artistas desenvolveram um processo criativo baseado no conto de fadas: Las zapatillas rojas. A forma como reaproveitaram esse arquétipo simbólico na indumentária teve ligação com a ideia de “vício”, pois no conto esses sapatos vermelhos que não param de dançar e levam a heroína da história a viver um processo de devastação e queda no submundo. Paralelamente a esta questão, o pormenor introduzido pelos sapatos vermelhos de dança relaciona-se com aquele possível comportamento viciante de “acumular méritos académicos”.

A incubação da performance foi muito intensa. Vestiram os figurinos da performance durante os vários dias de congresso, de manhã até à noite. Com eles saíram para a rua, apanharam o autocarro que as levava até ao local da conferência, foram ao jantar de gala, às visitas culturais, e até apanharam boleia.

Esta performance foi composta por várias micro-performances que se desenvolveram como micro danças ao longo do congresso e que terminaram com uma dança absolutamente kitch, no hotel onde as artistas estavam hospedadas, acompanhando a canção, do “Chiki-chiki” de Rodolfo Chikilicuatre, que defendeu a Espanha no Festival Eurovisão da Canção daquele ano, e que coincidiu com a data da performance.

Entre as conclusões mais significativas que as artistas salientam sobre a condição de performers nos dias do congresso, está a reificação a que se haviam submetido. Os colegas do congresso pediram para tirar fotografias com elas, mas não foi possível fazer qualquer palestra como costuma acontecer nos congressos. Tinham sido possuídas de alguma forma pela energia do personagem iconográfico que encarnavam na condição de gêmeas, de serem duas mulheres, vestidas da mesma forma e fazendo o mesmo.

Para Pilar Pérez, o elemento surpresa faz parte da autenticidade do que acontece, face ao elemento transgressor e ativista que se move, algo que de outra forma ficaria turvo pelos protocolos e seria muito mais facilmente assimilado pelo “sistema”. O cariz espontâneo da performance, pelo menos em um primeiro momento, permite potenciar a crítica social de confronto direto com os atores sociais, o público presente no congresso.

Osaka 2008. Baile Académico II: “En Japón”.

O “Baile Académico II” foi realizado no Japão, em Osaka, durante o Congresso Internacional de Educação Artística da INSEA e também foi conduzido por Arantxa Marco e Pilar Pérez. A ideia era usar rituais performativos como um significante de algumas situações paradoxais que ocorrem em congressos académicos.

Neste caso, a questão que mais interessou às artistas foi a dificuldade de comunicação sentida quando se se participa em uma conferência onde os parâmetros linguísticos são muito diferentes. Naquela época estávamos num congresso no Japão, Pilar não falava japonês e não podia usar os seus conhecimentos de português e francês ou espanhol porque essas línguas não são utilizadas como linguagem corrente/aceite no mundo dos congressos internacionais. A língua imposta pela comunidade científica e artística nos congressos internacionais é o inglês, idioma que a Pilar não dominava. Então, ocorreu-lhes que Pilar poderia ler uma apresentação muito sucinta em inglês, sem qualquer preparação linguística prévia, porque como não sabia o idioma iria pronunciar as palavras de qualquer maneira, o que só por si, já constituía um pormenor muito performativo.

Fig 6. Pilar Pérez e Arantxa Marco Hernando em “Baile Académico II”.

Arantxa ajudava a Pilar na transição performativa, porque sempre que os slides da apresentação eram trocados, ela fazia alguns passes de tapping e castanholas. Nesse sentido e com uma iconografia muito simples de uma saia longa e uma flor no cabelo, iria emular a ideia estereotipada que muitos países e especificamente no Japão, têm da Espanha, associada ao flamenco. E a Pilar envergava um vestido preto, típico de uma deputada.

Esta foi uma performance muito simples e dadaísta onde a chave foram os recursos iconográficos muito medidos, e uma forma de falar empregando outra língua que estava absolutamente fora do normal.

Barcelona 2009. Baile Académico III: “La amenaza”.

Em 2009, em Barcelona, também durante um Congresso de Educação Artística, a performance “La amenaza (a ameaça). Baile Académico III”. A performance foi assumida por um grupo de sete mulheres que em conjunto incubaram e realizaram a ação. Os parceiros eram alunos de doutoramento dos programas pré-Bolonha de Criatividade e Terapia Artística. Tinham desenvolvido um workshop conjunto sobre os medos e como encontrar recursos de criatividade e autoconhecimento que as pudesse proteger e servir como antídoto para enfrentar os medos, principalmente os irracionais. Para isso utilizaram a reconstrução de um ritual e desenvolveram um trabalho colaborativo no qual cada um dos participantes processou à sua maneira transformadora um processo comum em que se ligavam aos seus diferentes medos e ameaças.

Fig.7: As participantes de “Baile Académico III”.

Decidiram compartilhar este processo de criação coletiva e de arte-terapia no congresso e para isso prepararam, além do artigo que foi publicado nos anais (Pérez, 2009) uma performance que desenvolveram in loco.

Como primeira questão fundamental, a indumentária. Como se tratava de um trabalho sobre medos e ameaças, e como naquela época estava para ser implementada a reforma de Bolonha, tomaram como ponto de partida essa mesma reforma e os efeitos destrutivos colaterais que consideravam estar a implicar no ensino universitário. Para isso criaram o que seria o “Uniforme Bolonio” (Pérez, 2014), um uniforme que já estava codificado e que María Román e Pilar usariam durante todo o ano letivo.

O uniforme Bolonio ou “Bolonho” consistia de uma t-shirt preta ou camisola, jeans e um avental preto com uma bandeira espanhola em um dos lados. Era um avental de chefe de cozinha e na cabeça colocaram uma bandana preta, bordada em preto e vermelho com a frase “Bolonia a la española” (Bolonhesa à espanhola), escrita com o tipo de letra Arial, utilizada na maioria dos textos acadêmicos. Esses dois acessórios, bandana e avental, eram usados nas atividades das artistas enquanto docentes, e eram colocados ao entrar na sala de aula.

Fig. 8: A indumentária da performance “Baile Académico III”.

Na performance em Barcelona, usaram o mesmo figurino mas incluíram algumas variações: pintaram os rostos de branco (uma das companheiras Aída Miró é um palhaço), lábios vermelhos e unhas amarelas (como símbolo da suposição dessa ameaça iminente). No peito foi colocada uma borboleta amarela, também símbolo de esperança.

Durante o congresso interagiram com os participantes com diferentes jogos e também dançaram nos intervalos, assumindo o ser “objeto” do corpo performativo.

Óbidos 2010. Baile Académico IV “Pedigree Acadêmico”.

Esta performance teve sua origem em um sonho. Naquele sonho Pilar viu-se com dois cães de raça pura que se penduraram ao seu corpo e acompanharam os seus passos. A ação foi desenvolvida novamente num Congresso de Educação Artística da INSEA Portugal. A roupa nesse caso era simples e inspirada no sonho de Pilar, constituído por um fato cinzento de estilo masculino. Uma camisa preta e sapatos baixos. Os cães vivos do sonho foram substituídos por dois cães “de pura raça”, com “pedigree” mas de peluche. Os cães mantiveram as denominações das raças nas suas etiquetas.

Neste congresso Pilar participou como uma artista convidada e, portanto, a sua visibilidade performativa ficaria marcada pelo significado da sua intervenção académica.

Fig 9. Pilar Pérez à chegada ao congresso em Óbidos, trajando o arquétipo.

Uma das coincidências sincrónicas que ocorreram foi a presença do Presidente da República Portuguesa, o Prof. Aníbal Cavaco Silva, que por acaso entrou na sala onde Pilar participava como ouvinte. Como Pilar Pérez explica: “O Presidente dirigiu-se aos participantes presentes para nos desejar uma feliz e produtiva conferência e quis dizer “portugueses e estrangeiros” e naquele momento, não pude evitar, levantei-me da cadeira como se tivesse mola, cumprimentei-o estendendo a minha mão “Pilar Pérez de Madrid, Espanha”. O presidente segurou a minha mão com ambas as mãos e ficamos algum tempo enquanto nos fotografavam. Claro, eu tinha os meus dois cachorros de peluche devidamente pendurados na minha fatiota. E foi a esposa do Presidente que se terá apercebido que havia algo na minha roupa que não “combinava”, pois aparecia numa das fotos apontando e com o rosto perplexo. Além disso, imediatamente depois, a escolta de segurança se aproximou com cautela suficiente ao avistar os objetos que estavam pendurados em mim. O incidente terminou sem mais histórias. Durante a minha palestra, a presença dos cachorros de peluche pendurados não pareceu afetar a plateia e, como já estava acostumada com eles, também não me senti particularmente incomodada.”

Fig 10. Pilar cumprimenta “formalmente” o Presidente da República Portuguesa, Prof. Aníbal Cavaco Silva.

Este pedigree acadêmico (a raça de animais de peluche enfiados num cinto militar ornamentado) foi incorporado à performance longitudinal que culminou em todas os “bailes acadêmicos” e foi chamado de “Uniforme Posbolonio”, acompanhando Pilar em alguns eventos e micro performances.

Refletindo sobre o Baile Académico III, Pilar Pérez considera que o traje masculino provavelmente funcionou como um antídoto para a anormalidade dos cães pendurados. As pessoas falavam comigo naturalmente e não produziam a estranheza e distorção de outros trajes de apresentação. Era relativamente fácil de transportar. O traje foi usado por Pilar durante toda a estada no congresso, incluindo as refeições e viagens.

Cabo Verde, Mindelo 2010. Baile Académico V “Isto é arte! isto não é arte!”

É o último dos «Bailes Académicos». A peculiaridade desta performance foi o facto de ter sido concebida no próprio congresso. Os integrantes da performance foram sete participantes do congresso de educação artística, três mulheres e quatro homens, de diferentes nacionalidades: Portugal, Moçambique, Cabo Verde, Brasil e Espanha.

Fig. 11. Durante a performance “Isto é arte! Isto não é arte!”. 2010, Mindelo, Cabo Verde.

Tudo começou após um jantar em que Pilar, falando com um dos participantes, aquele manifestou o seu desânimo porque alguém lhe tinha afirmado categoricamente que o que estava a desenvolver no seu trabalho na área da arte digital “não era arte”, uma posição estereotipada e dogmática, de imposição de uma normalização académica e definição autoritária do que poderia ser considerado arte ou não. Como resultado de tal impacto, e numa conversa animada, Pilar começou a apontar com o braço para um lado e para o outro afirmando de forma enfática: “Isso é arte! Isso não é arte!”. Nasce assim o conceito de uma nova intervenção crítica.

A performance foi incubada nos dias seguintes em conversas com os restantes participantes. Todos concordaram que a mensagem deveria ser uma clara crítica à doutrinação, dogmatismo e julgamento autoritário da academia sobre o que é ou não arte, e como tal pode representar uma tremenda armadilha intelectual pois pode estabelecer muros na universidade, onde o pensamento e criatividade devem correr e desenvolver-se livres. Aos poucos foram decidindo os elementos iconográficos que fariam parte dessa performance, algumas camisas do futebol local, jeans, pintura labial vermelha (para todos os homens e mulheres), apitos para acompanhar o “líder”. A performance deveria assumir a forma de uma marcha militar representando o autoritarismo académico, comandada por um “lider”. A escolha do “líder” acabou por recair em um colega moçambicano, ex-militar, que lhes deu uma pequena instrução de como marchar militarmente e que indicava os passos a seguir no pequeno percurso a fazer em grupo na concretização da performance. Essa apresentação foi como um estranho desfile militar feito, é claro, sem aviso prévio, aproveitando um dos intervalos do congresso para o almoço. Aí estava, portanto, o público, objeto final da performance, integrando no seu seio o autoritarismo académico.

Durante a performance propriamente dita, o líder desempenhou o seu papel de forma magnífica, pois como costuma acontecer com os líderes, uma vez que lhe é entregue o poder ele negligenciou o programa pré-definido e improvisou, fazendo um “discurso categórico e dogmático”, com gritos de guerra, ordens de marcha e paragem, apontando para a direita e afirmando com autoridade militar “Isto é arte!”, para depois apontar na outra direção para impor categoricamente uma outra definição dogmática “Isto não é arte!”, enquanto o público, algo perplexo, assistia, ciente da crítica, ferozmente denunciadora, de um congresso de educação artística onde alguns se arrogavam de querer construir muros delimitadores do que “era arte ou não era arte”.

Para a Pilar a performance acabou tendo um grande impacto pessoal pois, na noite anterior, tinha sido agredida na rua por um assaltante. O seu corpo estava muito magoado e qualquer movimento era muito doloroso. Marchando de forma militar com o corpo tão dolorido representou realmente um acréscimo de sofrimento físico. Para se fortalecer, escreveu sobre as contusões que sofreu nos ombros a palavra “Plaf”, como acontece nas histórias aos quadradinhos de super-heróis. Para a artista, a experiência foi muito impressionante e a fez sentir-se muito bem. Apesar da dor física, encontrou uma grande oportunidade de poder realizar esta performance logo após ter sido assaltada. Todos os integrantes da performance testemunharam ter vivenciado uma profunda catarse na qualidade de membros da academia.

O tom militar e os conceitos que acompanharam Pilar Pérez, foram também o ponto de partida para a performance “Uniforme Posbolonio”, que começou um ano depois, em 2011, e durou quatro anos.

III - Contextualização Teórica

Performance-Ritual

Para Pilar Pérez, uma universidade ao ser detentora de uma estrutura e formatos rígidos, mas não ter rituais, constitui um sinal de empobrecimento. Ou seja, o universo académico tende a ser definido por uma certa rigidez nos protocolos e regulamentos, inserido numa sociedade contemporânea em que a perda dos rituais se torna cada vez mais uma realidade. Curiosamente a ausência de rituais é mais evidente em Espanha do que em Portugal, dado que em Portugal ainda se mantêm as tradições académicas em várias instituições de ensino superior. O envergar o traje académico tanto pelos estudantes e professores representa um exemplo da manutenção desses rituais.

Contextualizando esta vivência da performance-ritual, encontramos características já presentes na origem das artes cénicas. O apolíneo e o dionisíaco é uma dupla conceptual, que desde a cultura grega é utilizada para expressar a oposição entre o impulso sereno e contemplativo (de Apolo) e o impulso obscuro, imoral e orgiástico (de Dionísio).

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) em “Origem da tragédia” explica com o binómio, apolíneo-dionisíaco, a criação artística e a potência criadora, associando ao impulso apolíneo as disciplinas da filosofia, ciência, artes figurativas e ética; e ao impulso dionisíaco, as religiões do mistério, a música, a dança, concluindo ainda que essa conciliação falha em vários campos artísticos, só encontrando total realização na tragédia (Nietzsche, 2002), ao que nós completamos, esta dialética do apolíneo e do dionísio existe também na performance-ritual.

Outro fator importante é a catarse, termo utilizado por Aristóteles para designar a “purificação” sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramática. Se considerarmos o conceito de catarse do ponto de vista da psicanálise, é um método utilizado para trazer à consciência e libertar recordações recalcadas. No âmbito da experiência estética, a catarse assegura o distanciamento de si, numa experiência libertadora de viver uma condição alternativa à habitual (D’Angelo e Carchia 2009).

Quando na década de 1970, a performance afirmou-se como expressão artística autónoma, ficou associada à sua postura radical que na época, tendencialmente, questionava as definições e o caminho da arte assim como procurava demolir categorias e questionar práticas artísticas (Goldberd, 2007). Nas décadas de 70 e 80, Victor Turner (1920-1983) investigou as relações entre o ritual e o teatro, considerando o ritual relacionado ao processo social e performativo. O autor considerava o teatro como uma fonte de conceitos e metáforas cuja sua análise permite compreender a vida social (Cavalcanti, 2013; 2015).

Se entendermos por ritual, a dimensão expressiva, simbólica e comunicativa da conduta humana, este pode ter uma ação simbólica. Turner explica estas dimensões ritualísticas através da análise de rituais de passagem, que marcam etapas e mudanças vividas coletivamente. Assim, a performance-ritual relaciona-se intrinsecamente com o conceito de experiência, numa articulação faseada das emoções do momento presente e das memórias das experiências passadas, viabilizando transformações, fomentando o espírito crítico e ativo da sociedade e convidando a novas interpretações (Borges, 2019).

Neste âmbito é digno de referência a produção artística da performer Marina Abramovic, que desde a década de 1970 explora a catarse e a espiritualidade, levando o corpo a atingir os limites físicos e mentais, com o objetivo de atingir uma experiência espiritual plena. Abramovic, influenciada por rituais tribais, proporciona ao público experiências transformadoras que, através da fruição artística, mudam a perceção que cada um tem sobre o tempo, o espaço, o mundo e sobre si próprio.

Nestas performances-rituais, o artista não se impõe como um criador de objetos para contemplação, mas sim como “motivador para a criação”, elevando a criação artística à intervenção cultural (Müller, 2016).

Nas performances analisadas no presente artigo, principalmente nas performances coletivas “Baile Académico III” e “Baile Académico V”, é notória quais as características de performance ritual e o seu processo criativo, onde o arquétipo permite aos participantes vivenciarem, depois de uma preparação ritualística e recorrendo a papéis metafóricos (arquetípicos), experiências singulares, formativas e transformativas, partilhadas entre o grupo de participantes, mas também e sobretudo visando o público presente e circunstanciado, maioritariamente do universo académico.

A importância da indumentária e da moda na construção do arquétipo da performance

Nas performances académicas de Pilar Pérez, a roupa/figurinos assumem um papel de relevo na construção de arquétipos, no processo de incubação e na reação do público perante a performance. Tomemos como exemplos a performance “Baile Académico I” (2008) e “Baile Académico IV- Pedigree Académico” (2010), analisadas no presente artigo.

Em “Baile Académico I”, Pilar e Arantxa escolheram o fato de bailarina clássica, com o maillot, o tutu, o casaco traçado e os sapatos clássicos de ballet, de forma a realçar a iconografia da performance. Ao experimentarem as roupas, as artistas vivenciaram uma sensação de estranheza, dado não terem os corpos características das bailarinas clássicas. O figurino foi complementado pelo chapéu de doutoramento, um avental de faralaes, uma mala com uma bandeira espanhola e um mapa ibérico com um touro. Para além disso, tinham uns sapatos de dança vermelhos brilhantes com tacão alto, que as artistas usavam apenas nos momentos mais “performativos” da interação. Estes sapatos vermelhos remetiam para o conto de fadas “Las zapatilhas rojas” mas também a uma “piscadela” introduzida pelos sapatos vermelhos de dança, numa analogia ao comportamento académico viciante de acumular méritos académicos.

Fig. 12: Figurino completo da performance “Baile Académico I”.

Nesta performance, o facto de serem duas mulheres com arquétipos iguais e figurinos idênticos, fazendo as mesmas ações, levou-as a encarnar o papel de gémeas. O público, neste caso os participantes no congresso, pediam para tirar fotografias com elas, mas Pilar e Arantxa não chegaram a partilhar falas com outros companheiros, como costuma acontecer nos congressos.

Em “Baile Académico IV - Pedigree Académico”, Pilar começou a desenvolver o arquétipo a partir de um sonho, em que a artista se viu com dois cães de raça pura a rodeá-la, pendurando-se ao seu corpo e acompanhando os seus passos. A roupa foi inspirada nesse sonho, Pilar vestiu um fato com estilo masculino, camisa preta e sapatos baixos. Os cães do sonho foram substituídos por cães de peluche, com as denominações das raças nas etiquetas.

Refletindo sobre esta performance, Pilar Pérez considera que o traje masculino funcionou como um antídoto para a anormalidade dos cães pendurados. As pessoas que se cruzaram com a artista e os próprios colegas do congresso, falavam-lhe normalmente e não mostravam a estranheza e a distorção vivenciados perante outros figurinos de performances anteriores.

O vestuário é utilizado nas performances académicas analisadas, como uma forma de caracterizar o arquétipo, um importante componente na incubação, mas também na interação com o público, condicionando muito as respostas deste ou maximizando a transmissão da mensagem.

O vestuário/a moda pode ser entendida como um processo social, complexo, de negociação e de navegação através de múltiplas ambiguidades e contradições associadas a:

  1. i. Dinâmicas complexas transnacionais, que são simultaneamente visuais e materiais, virtuais e tangíveis, locais e globais;
  2. ii. Incorporação, simultaneamente, dos valores de género, raça, etnicidade, sexualidade, classe, identidade nacional, idade/geração, país, entre muitos outros;
  3. iii. Adaptação ao mundo social ao mesmo tempo que expressa a singularidade individual dentro desse mesmo mundo (Kraiser 2013).

Seguindo o pensamento de Gillo Dorfles (1984), a moda é um dos mais importantes fenómenos sociais e contemporâneos da contemporaneidade, e um dos padrões mais seguros para medir as motivações psicológicas, psicanalíticas, da sociedade. A moda engloba tanto uma cultura material quanto um sistema simbólico. Encapsula uma força sócio-cultural ligada à modernidade e à pós-modernidade, um sistema intangível de significações. É feita de coisas e de signos, agentes individuais e coletivos, que se aglutinam pela prática de produção, consumo e de representação (Rocamora 2015).

No âmbito da performance-ritual a moda faz incursões explícitas na fase da incubação pela via da escolha da indumentária e adereços pela sua forte carga simbólica, essencial na construção dos arquétipos. É pelo sistema intangível de significações que a moda proporciona e que atravessa a contemporaneidade, amiúde associada às estruturas de poder, que a torna incontornável como parte integrante da performance-ritual.

IV - Análise do processo criativo da performance-ritual à luz da estética do pós-digital

Referimo-nos ao pós-digital como sinónimo da contemporaneidade, caracterizada pela ubiquidade da tecnologia digital, a contestação explícita da sua onipresença física em todos os aspetos da vida quotidiana. Seguindo a linha de pensamento de Hans Ulrich Obrist (2015), a geração de artistas pós-digitais habituados à internet e à tecnologia computacional, são claramente influenciados/inspirados pelo digital, embora muitas vezes desenvolvam os seus trabalhos em materiais tangíveis. A era pós-digital é sinónimo, assim, da nossa contemporaneidade, digital, híbrida, multidisciplinar e, tendencialmente, transdisciplinar.

O pós-digital e a inter- e multidisciplinaridade a ele inerente trazem novos domínios e interpretações na arte, enquanto potencia a criação de novas expressões e narrativas estéticas, abrindo as portas a desafios e hipóteses renovadas, tanto formalmente, como face à reação do público aos temas tratados e a cenários de fruição-experimentação propostas.

As performances que compõem a série “Baile Académico” não contêm explicitamente elementos digitais, ainda que em “Baile Académico II” tenham recorrido a um sistema de projeção de imagem. Contudo os participantes e público, maioritariamente participantes das conferências sobre artes em que estas performances analisadas foram apresentadas, estão inseridos na cultura digital, sendo notória o à-vontade do público e dos participantes com o uso de tecnologias móveis, ao fotografarem as artistas em “Baile Académico I”, e na discussão sobre a arte digital ser ou não ser considerada arte que serviu de leitmotiv para o “Baile Académico V”. Embora a componente digital não fizesse parte explícita da performance, este esteve presente na cultura dos participantes e manifesta-se no relato de Pilar Pérez e nos registos digitais da performance que permitiram uma continuação espácio-temporal do evento, através dos meios digitais.

Outra característica pós-digital é o recurso à transdisciplinaridade face aos problemas da contemporaneidade que cada vez mais se impõe à lógica da produtividade e da eficácia, acentuando a rutura “entre um saber cada vez mais acumulativo e um ser interior cada vez mais empobrecido leva à ascensão de um novo obscurantismo, cujas consequências sobre o plano individual e social são incalculáveis.” (Freitas, Morin & Nicolescu, 1994). Entendendo a visão da transdisciplinaridade tal como definida na Carta da Transdisciplinaridade, esta não pretende o domínio de todas as disciplinas, mas sim a abertura de todas, “na medida em que ela ultrapassa o domínio das ciências exatas por seu diálogo e sua reconciliação, não somente com as ciências humanas, mas também com a arte, a literatura, a poesia e a experiência espiritual”.

Analisaremos o processo da criação da performance-ritual através do ciclo de criação, desenvolvido com base no modelo do ciclo de criação digital de Fernandes-Marcos (2017).

Fig. 13 Ciclo da criação da performance à luz do pós-digital. Adaptação do ciclo de criação de Fernandes-Marcos (2017).

Neste contexto propomos o ciclo de criação, à luz do pós-digital, onde o conceito é o “ponto de arranque” do ciclo. Nas performance-ritual este conceito representa a visão primordial do artista convertida na ideia geral da forma da performance. Ou seja, o ciclo mantém o conceito inicial como “ponto de arranque”. A partir daí o artista, sozinho ou em colaboração com outros participantes, começa a projetar e a construir conceitos, entrando num processo não linear, que o leva até à performance, mas que não acabará aí, continuará através da produção teórica, publicações científicas e comunicações acerca da performance realizada, mas também do próprio processo criativo, em si.

Na fase “Desenho do Conceito”, o artista questiona-se sobre o conceito inicial, inicia-se a conceção da ideia que dará origem à performance, testando diferentes relações entre conceitos, criando esboços e desenhos exploratórios. Esta fase permite ao(s) artista(s) planear(em) o processo e conceber ideias mais complexas. Analisando esta fase no contexto do “Baile Académico” I, III e V, corresponde às conversas iniciais da artista Pilar Pérez com os participantes e as primeiras ideias de como passar da performance e como poderíamos tornar essa performance numa experiência coletiva. No “Baile Académico IV”, esta etapa corresponde à análise do sonho de Pilar e à construção da ideia da performance e do arquétipo performativo a partir desse sonho.

Na fase seguinte, a artista incorpora o arquétipo, sente o peso da indumentária, integra esse arquétipo na situação/espaço envolvente, presta atenção à vivência no local, aos pormenores, símbolos, equilíbrios e desequilíbrios do dia-a-dia. Começa a ser construída a narrativa da mensagem a partir do conceito/ideia inicial. A mensagem proporcionará aos espectadores a conexão emocional que permitirá a evocação de memórias e a narração da obra.

No “desenho da experiência” é definido a forma como a narrativa da performance irá ser transmitida ao público, e como os elementos e símbolos serão adaptados aos materiais e limitações da apresentação ao público. Nesta etapa são importantes os momentos de revisita às fases anteriores e a interpretação de resultados assim como uma análise do processo a seguir.

A meditação estética é uma atividade central no ciclo de criação, já enunciada por Fernandes-Marcos (2017) e inclui os momentos de contemplação em que o artista e equipa revisitam as etapas anteriores, as decisões tomadas durante o projeto e o planeamento das seguintes. É fundamental que neste momento de contemplação o artista e a sua equipa possam antever o efeito da performance-ritual, o efeito interventivo e crítico pretendido, face à implementação real e concreta e as suas limitações. É um processo de antevisão, revisão e ação criativa rumo à performance final.

Na fase do “desenho da performance”, são definidos todos os elementos constituintes da performance. Na fase da materialização da performance, são construídos e testados todos os elementos da performance.

Por fim, temos a apresentação da performance ao público e o momento de retroação final. Esta etapa é baseada nas decisões tomadas durante o ciclo de criação e sujeita a alterações resultantes dos momentos de reflexão.

Neste ciclo de criação, a colaboração em rede entre participantes e com equipas multidisciplinares intensifica-se, dadas as diferenças de suportes, matérias e disciplinas inerentes a este caráter híbrido dos artefactos.

Conclusões

Neste artigo apresentamos, analisamos e discutimos um conjunto de 5 performances académicas longitudinais, intitulado “Baile académico”, desenvolvido por Pilar Pérez, entre 2008 e 2010, e apresentadas em diferentes congressos de educação e arte.

Este conjunto de performances académicas analisado são performances-rituais que através da construção de arquétipos e símbolos sociais, relacionados com a universidade e a vida académica, e da ação performática, enquanto intervenção artística, (individual ou coletiva) são indutores de pensamento, crítica social e de questionamento de estruturas de poder, com principal foco no universo académico/universitário.

Analisamos individualmente estas performances, através dos registos digitais e do relato da artista. Enquadramos “Baile Académico” no percurso artístico de Pilar Pérez, e simultaneamente, apresentamos e discutimos o conceito de performance-ritual e a importância da indumentária na construção dos arquétipos performativos. Por fim, na sequência da investigação que os autores do artigo têm desenvolvido, analisamos o processo criativo deste conjunto de performances à luz da estética pós-digital e o respetivo ciclo de criação.

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