AVANCA | CINEMA

Um Percurso pelo Cinema e pela Escola

José da Silva Ribeiro

CEMRI – Universidade Aberta, Portugal
Centro de Estudos de Cinema e Narrativas Digitais, AO NORTE, Portugal

Abstract

The cinema plays its pranks on us. We start in the chairs of a dark room projecting ourselves on the images that move us or alert us to the joys and dramas of life. Then we move away looking in a more critical and detached way. We even dare to take a camera, go to a cinema course, experiment with editing even when technological resources still did not allow us to go far beyond sketches of a project. We often take cinema to meetings with friends, girlfriends, colleagues and thus the tribe that is solidified and polemic around a film is born. When we find out she has impregnated us and employed us and she goes with us to our profession and to the situation of retirement. As a teacher I took it to school and at school I used it when and how much I could. Then, at the University, I crossed the path to retirement around the cinema. Not always peacefully. I often encountered Bergala. In the writing. In the reassembly of the Lumière films. In the États généraux du film documentaire de Lussas. When reading L’Hypothèse cinéma (2002) I considered it the best pedagogy book that I had ever read. Bergala says that the great hypothesis of cinema or art, at school, is the encounter with otherness, that is, the encounter with the radically other, in the school context, without, however, a break with teaching being necessary. and with classical pedagogy instituted.

Keywords: Autobiographical path, Hypothesis Cinema at School, Alterity, Cinema and Education, Bergala.

Introdução

Entre as experiências vividas na escola, como professor do 2º ciclo, destaco três pela contradição que encerram e porque remetem para a dupla face do cinema e da escola – a razão e a emoção; os desafios e as dificuldades do trabalho docente. As experiências juvenis da escola e do cinema situam-se, também, entre estes dois eixos. Haverá outras experiências escolares para além destas, mas entendo, que se poderão inscrever dentro destas duas polaridades. Refiro-me sobretudo às experiências burocráticas, que se vão acentuando nas escolas, afastando professores e alunos. Tentemos esquecer estas, mesmo que continuamente presentes no nosso quotidiano.

A primeira experiência decorre da utilização de uma imagem num teste de história de Portugal do 2º ciclo do Ensino Básico em Portugal – Escola Preparatório de Espinho. A imagem representa a assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 1494. Era então estudante de cinema na ESAP – Escola Superior Artística do Porto (Cooperativa Árvore) e decidi, num teste de história, apresentar uma imagem (prática usada nas situações de ensino), a tapeçaria que representa a assinatura do Tratado, aos alunos (10 - 12 anos) e pedir a identificação do acontecimento, dos intervenientes, dos símbolos, que identificam as partes envolvidas no tratado. Sinais que poderiam, de algum modo, identificar se o acontecimento se localizava em Portugal ou em Espanha (sinais de fixidez e mobilidade e sua ligação ao título da tapeçaria). As respostas foram satisfatórias na maior parte dos alunos. No entanto, os pais de uma aluna manifestaram à escola e à direcção regional discordância desta prática. Nesse mesmo ano, solicitei, à Direção Regional de Educação do Norte, dispensa para realizar um exame no curso de cinema, que frequentava. A resposta foi negativa, com a indicação de que esta área não fazia parte da formação específica (científica) ou pedagógica do professor. Na verdade, como diria o professor Dominique Coujard aos “Cahiers du Cinéma” de dezembro/2000: “ainda hoje, as artes são, no liceu, consideradas como a última roda da carroça” (in Sousa, 2001). O filme Numa Escola em Havana (2014) de Ernesto Daranas traz-nos uma leitura atual da tensão entre interesses dos alunos, protagonizados pela ação educativa de Carmela, e o carater autoritário, diria mesmo cínico, da nova geração de dirigentes da escola. Entre a proposta do trabalho de casa de Carmela, do início do filme escrever “um parágrafo sobre um tema livre, escrito na primeira pessoa” e a tentativa de a aposentar compulsivamente, mas como forma de homenagem e gratidão pelos serviços prestados, decorre a memória de Carmela e uma ação educativa expandida para além dos muros da escola e das leis, regulamentos e poderes instituídos pelos novos dirigentes escolares formatados pelos processos burocráticos – oposição entre as lógicas de mediação e as lógicas burocráticas.

Assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494)

Claro que estes episódios não demovem os professores de criaram e desenvolverem a sua identidade, a sua marca específica, no processo de ensino-aprendizagem – de ousarem, não obstante o risco.

No ano seguinte, na mesma escola, criei um clube de cinema, mas sobretudo, não deixei de integrar o cinema no ensino da história. Baseava-me então em Marc Ferro, que mais tarde viria a conhecer e participar com uma das suas colaboradoras – Michael Lagny, num júri de doutoramento na Sorbonne. Um dos filmes escolhidos para as aulas foi Spartacus (1960) de Stanley Kubrick. Não pelos múltiplos prémios atribuídos ao filme, mas porque, ao tratar o Império Romano, inscrito no programa de história, a revolta dos escravos poderia contribuir para esclarecer alguns objetivos importantes da temática: identificação das fronteiras do império, de onde precediam os escravos; o circo romano; a organização política, etc. Seria difícil prever, nos objetivos da atividade, as questões emocionais desencadeadas, pelo filme, nos jovens alunos. Ao visionar o fragmento, que vos apresento, os alunos emocionaram-se de forma incontida. A emoção reforçou a apreensão dos outros aspetos da atividade, explorados a partir do filme. Passados alguns anos, alguns ex-alunos, que participaram nesta atividade, já adultos, abordando-me, diziam I’m Spartacus. Recordavam das aulas apenas este acontecimento e a forma como conheceram esta temática.

Esta experiência remetia para uma anterior - Interdisciplinaridade na Escola. Neste contexto, os professores de música, trabalhos manuais (atualmente educação visual e tecnológica, português e línguas) encenaram, com os alunos do 2º ciclo do Ensino Básico, a Cármen de Bizet. A realização de um pequeno filme (registo videográfico) sobre o processo – bastidores e apresentação pública (aberta aos pais dos alunos) e a posterior apresentação aos encarregados de educação, aproximaram estes da escola, entrando, através da mediação audiovisual, na performance /desempenho dos filhos na escola e na emoção, perante o seu desempenho. Hoje, passadas mais de duas décadas, será interessante provocar o reencontro dos participantes com estas imagens. As imagens permitem-nos fazer estudos estenográficos longitudinais e estudar as mudanças sociais e culturais e os percursos de vida dos jovens alunos. Estas experiências acabaram por determinar o meu percurso académico – formação em cinema e antropologia visual (licenciatura, mestrado e doutoramento), criação de Grupo de Investigação em Antropologia Visual (Laboratório de Antropologia Visual / Media e Mediações culturais) na Universidade Aberta de Portugal, organização da Conferência Internacional de Cinema de Viana do Castelo integrada nos Encontros de Cinema de Viana do Castelo e do Curso de Verão integrado em Filmes do Homem - Festival Internacional de Documentário de Melgaço, Encontros de Fotografia, Cinema e Artes Digitais integrado no Festival de Documentário Brasileiro de Pirenópolis e uma intensa cooperação e aprendizagem com muitas Universidades e grupos de pesquisa espelhado pelo Brasil e consequentemente o estar aqui e partilhar este percurso.

Estas situações não são muito diferentes das vividas no ensino universitário – obstáculos institucionais, ausência de uma formação sistemática, desinteresse de uma parte significativa de estudantes. Também, não são muito diferentes de país para país. Marc Piault refere, que na Universidade, em França, foi “por um efeito singular da sociedade, da base, isto é dos estudantes, que a pressão provém, no sentido de fazer entrar o cinema na prática do estudo e no trabalho de campo [em antropologia]… reconhecido como necessário e indispensável e que as instituições de nossas disciplinas tardam em reconhecer e hesitam em encorajar (1999: 14,15). A escola e muitos professores “consideram ainda a imagem, como um inimigo, de que se devem defender” (Bergala). Não necessariamente os mais velhos. O historiador medieval alemão, Hans Belting, nascido em 1935, cria uma profunda mudança, na reflexão sobre as imagens, desenvolvendo uma hipotética Antropologia das Imagens, em que constata: “os filósofos não gostam das imagens e continuam a olhá-las com desconfiança, pois são potenciais rivais dos seus escritos” (Belting). Não apenas os filósofos, mas todos os que vêem nas imagens, antes como agora, uma ameaça aos poderes convencionais da escola e da sociedade e das crenças (iconoclastia ou iconoclasmo) “não sei se o sistema educativo pode ter a seu cargo a arte como bloco de alteridade, mas estou convencido de que o deve fazer e que a escola, desde as suas bases, o pode fazer” (Bergala, 2007: 36). A história da educação em Portugal conhece muitas situações deste tipo – o entusiasmo de José Sasportes e José-Augusto França e mais tarde (1978-79) o projeto de DL do Plano Nacional de educação artística e a Educação pela Arte, de Madalena Perdigão ou ainda os ambiciosos projetos da Cooperativa Árvore, de criar o ensino artístico, da pré-primária ao doutoramento.

Em França, Bergala parte para o desenvolvimento do projeto “Cinema e Cultura na Escola”, do Plano de Jacques Lang, enquanto Ministro da Educação, da sua extensa experiência no cinema (professor em escolas de referência Universidade de Paris III: Sorbonne Nouvelle e na FÉMIS) e na escrita sobre o cinema (crítico, ensaísta, colaborador, diretor e editor dos Cahiers du Cinéma e especialista em Jean-Luc Godard). Sublinha, também, a sua experiência de infância e juventude, como o momento decisivo na sua história de vida. Refere que a escola e o cinema constituíram as duas formas de salvação pessoal: “a escola, em primeiro lugar, salvou-me de um destino de aldeão, no qual nunca teria tido acesso nem à vida, nem à cultura de adulto, que acabariam sendo as minhas” (Bergala, 2007: 13). Um professor insistiu com sua mãe para que continuasse os estudos de ensino médio, embora na época a educação só fosse obrigatória até os 12 anos. “O cinema entrou na minha vida, no coração de uma vida triste e angustiada, como algo que, logo soube, seria a minha tábua de salvação” (Bergala, 2008, p. 14). Na sua terra natal, havia três salas de cinema. Todos os domingos à tarde, ele podia assistir a um filme. Foi naquelas tardes que o cinema se constituiu definitivamente na sua opção de vida, permitindo-lhe rejeitar a proposta de vida de seu pai, centrada na caça, na pesca e na vida de campo. Particularmente atraído por filmes, cujos pequenos heróis se concentram num objetivo; uma obsessão para se salvar, num mundo em que a única oportunidade de existir, passava por resistir, impulsionado por uma paixão pessoal. Esse é o caso dos filmes de Abbas Kiarostami, realizador que despertou seus interesses de pesquisa (Bergala, 2007). Resistir é também a ideia de Lapalantine em Leçons de cinéma pour notre époque: politique du sensible (2007): resistir pela (Des)teatralização do cinema – além da cenarização do teatro e da narrativa do romance (cinema etnográfico, Bresson, Rosselini, Tati, Kiarostami, Pedro Costa), resistir à teoria do conflito central (Raul Ruiz) não se trata de oposição à dramatização, mesmo no cinema etnográfico, mas da recusa do valor absoluto da dramaturgia, das imagens e sons meramente instrumentais, das dicotomias – bons e os maus, dos heróis, o valor dominante do confronto e dos tempos fortes, resistir à irreflexibilidade do totalitarismo visual (1. a centração não deve fazer-se na insistência do ver, 2. as músicas e palavras devem advir da plasticidade das imagens, 3. o cinema pode permitir-nos escutar as vozes, as músicas, mas também as sonoridades, que não deixam de mudar ao longo do tempo e de sociedade para sociedade e o silêncio); resistir pela recusa da dramaturgia artificial e do didatismo. Remete Laplantine para o filme Ossos (1997) de Pedro Costa.

A resistência / insistência de mais de duas décadas de ensino de ensino da Antropologia Visual na Universidade Aberta de Portugal contra a corrente mais abundantes de críticos e detratores acabaria por ser justificada quando em 2001 e 2015 a Associação Americana de Antropologia aconselhada pela Sociedade de Antropologia Visual reconhece que “os Media Visuais Etnográficos (especificamente filme, vídeo, fotografia, multimédia digitais e exposições) desempenham um papel significativo na produção e aplicação do conhecimento antropológico e integram ofertas de disciplinas de cursos e de resultados da investigação” e abre considerável mente o leque que atividades passíveis de serem desenvolvidas:

Esta abertura, importante no âmbito da antropologia, pode facilmente alargar-se a outras áreas disciplinares ou interdisciplinares. Os filmes de pesquisa e documentação são aplicáveis a todas as áreas disciplinares e com imenso sucesso observamos uma imensa produção recente de filme em que a escola e os seus atores são protagonistas: La cour de Babel (2014) de Julie Bertucelli, Numa Escola de Havana (2014) Ernesto Daranas, Entre Les Murs (2008) de Laurent Cantet (referimos apenas três filmes premiados). Estes e muitos outros filmes criaram um intenso debate teórico no âmbito das ciências da educação, da formação dos professores, no estado atual da escola e papel desta e dos professores na integração ou no afastamento dos alunos do percurso escolar. Estes e outros filmes mostram as dinâmicas e os conflitos na Escola, as emoções a paixão e as deceções no desempenho das funções docente e o complexo mundo dos alunos que a escola acolhe. Outras funções mais pragmáticas e funcionais como os filmes destinados ao ensino ou a inovação na utilização dos media na escola – na pesquisa/exploração ou na exposição de temáticas ou na organização de atividades (curadorias) em torno do cinema são igualmente aplicáveis no sistema educativo.

Cinema na escola, encontro com a alteridade

Será possível o cinema na Escola? E as artes na escola? Todos constatamos as dificuldades e os constrangimentos. Durante muito tempo os constrangimentos tecnológicos e económicos. Resolvidos estes, os constrangimentos políticos e institucionais. As atividades criativas são pouco conciliáveis com os locais, com os horários, com uma estrutura curricular disciplinar e disciplinada, com professores com formação generalista e obrigados a cumprir programas, horários e compromissos de diversa ordem, finalidades do ensino orientadas para realização de exames e obtenção de classificações. O cinema e as artes são, no entanto, objetos de ensino e ensinados na Escola. Poderá passar-se além disso mesmo – o ensino do cinema?

Muitas experiências desenvolvidas na escola e a quantidade de Blogs que as documentam, demonstram que sim. Esta esperança levou, em França, Jack Lang, enquanto ministro da Educação, a criar Le plan pour les arts et la culture à l’École (2002). O plano, assinado pelo ministro delegado do ensino profissional Jean-Luc Mélenchon e o ministro de edução nacional Jack Lang, considerava a educação artística e cultural uma prioridade da política educativa, que trazia algo de novo ao sistema educativo: dirige-se à inteligência sensível, focaliza-se na realização de projetos artísticos na escola, oferece aos estudantes valores de emoção, fornece meios de expressão: “Elle s’adresse à l’intelligence sensible, trop souvent négligée, en faisant appel à des démarches nouvelles et concrètes qui mettent l’accent sur la réalisation de projets artistiques dans l’École. Elle offre aux enfants des expériences qui mettent en valeur l’émotion dans une grande variété de moyens d’expression“(2001:5). O Plano previa três objectivos principais: 1) A generalização a todas as crianças de práticas mais experimentais e personalizadas; 2) diversificação das áreas artísticas abrangidas (artes em todos os seus estados); 3) continuidade das ações do jardim-de-infância até ao fim do secundário.

A filosofia do plano baseava-se “no desejo de romper com a tradição: é preciso considerar a arte como algo mais que um suplemento da alma do sistema de ensino, uma matéria a praticar após todas as outras, e sacrificada aos conhecimentos considerados como mais “fundamentais”. Esta oposição, esta hierarquização deve desaparecer. O plano propõe-se dar às artes e à cultura um local central em nosso sistema de ensino”. São quatro as áreas do programa: Artes da representação (o corpo, o gesto, a voz e a língua – literatura, teatro), as artes visuais (do olhar à mão – artes plásticas, cinema, fotografia), as artes da construção e da cultura da memória (património e arquitetura), as artes do quotidiano e o mundo da ciência (artes do gosto, design, músicas atuais, cultura científica e técnica).

No plano Cinema uma arte e uma cultura, considera o cinema (documentário ou ficção) antes de tudo como fazendo parte do capital de referência essencial à educação inclusiva no mundo atual. Linguagem no cruzamento de outras artes (teatro, música, dança, pintura, etc.), o cinema é considerado portador de saberes, mas também uma prática criativa e o visionamento metódico das obras contribui para o desenvolvimento do imaginário e pensamento crítico. Para que isso possa ser possível, tornava-se necessário um conjunto de negociações sobre os direitos autor, de forma a permitirem a utilização legal dos filmes e materiais audiovisuais, neste projeto educacional. Foi, pois, disponibilizado às escolas um conjunto de filmes.

As principais linhas de orientação do plano são as seguintes: 1) Reintroduzir uma cultura cinematográfica onde ela desapareceu do território nacional, equipando o maior número possível de salas de aula com dispositivos polivalentes, a fim de que o ecrã constituía um segundo quadro na escola; 2) Visionamento de obras integrais em sala e nas aulas, promover a aproximação interativa de extratos, documentos, de acordo com as noções temáticas ou históricas, e permitindo práticas simples de filmagens e montagem de sons e imagens; 3) Promover e realizar uma pedagogia (inovadora) da criatividade, em que cada aluno terá de fazer um experimento pessoal, concreto e prático do ato criativo, usando uma câmara ligeira e um software simples de montagem, de modo a permitir que as crianças compreendam a imagem em movimento, através da manipulação concreta; 4) Fornecer um fundo de filmes de referência, cujos direitos serão liberados para projeção em sala de aula; 5) Dar continuidade aos dispositivos e práticas existentes - “Escola e cinema”, e “Estudantes do secundário no cinema”, e incluir nos cursos profissionais de cinema projeções em sala e fazer intervir na formação, o mais possível, profissionais do ofício – realizadores, técnicos, autores, roteiristas /guionistas, etc…

A missão de conceção e realização do Plano - Le plan pour les arts et la culture à l’École, no que se refere ao cinema - Le Cinéma: un art et une culture, foi confiada a Alain Bergala, que apresentou um projeto ambicioso: tenta dar um novo alento e estruturação a um ensino do cinema, desde o início da escolaridade ao fim do secundário.

Para Bergala, o cinema na escola constitui uma das formas de encontro com a alteridade, encontro com o radicalmente outro, mas não em ruptura com as normas. Não pode estar apenas nas mãos de docentes especializados, de programas pré-estabelecidos, em horários fechados ou dentro da escola e de uma estrita lógica disciplinar. Como elemento perturbador de valores, comportamentos, relações, não é propriedade e couto do professor especialista, mas aberto a outros intervenientes – aos seus criadores. A arte e consequentemente o cinema criam alguma desordem, escândalo e anarquia. Semeia desconcerto nas instituições (locais, horários, turmas, gestão dos meios de criatividade, entrada de estranhos na escola). Não pode conceber-se sem uma dimensão experiencial, sem a experiência do fazer, sem o contato com os artistas, as pessoas que o fazem em todas as suas faces e etapas, com os profissionais do ofício de fazer filmes. O cinema, como a arte na escola é suscetível de criar entusiasmos e resistências. Cita Godard “existe a cultura, que é a regra e a arte, que é a transgressão”. Alerta para o perigo da tendência para normatizar e para a necessidade do encontro com a alteridade, isto é, de criar algo novo (diferente) na escola.

Como vimos anteriormente, a força e novidade desta hipótese radicam na convicção de que qualquer forma de encerramento nos programas, nos horários dos alunos, nos docentes especializados, na lógica disciplinar reduz o alcance simbólico da arte e o seu poder de revelação. O cinema dá conta desta dificuldade no ensino do cinema e das artes na escola e as perturbações ou inquietações nas famílias. Escolhemos dois filmes em que esta situação é relevante - Clube dos Poetas Mortos (Dead Poets Society) (1989) de Peter Weir e Fanny e Alexander (1982) de Ingmar Bergman. Em Clube dos poetas mortos (Dead Poets Society) (1989) expõe-se as dificuldades no ensino da literatura (poesia e do teatro), do desenvolvimento do pensamento criativo (pedagogia criativa) e participação nas práticas criativas. O conflito, que estas práticas criam na escola e suas estruturas, nas clivagens entre os estudantes, nos contextos familiares, é relevante. Em Fanny e Alexander (1982), apontado frequentemente como autobiográfico, mostra-se o contraste entre a educação no seio de uma família de artistas (transgressão) e de família normal, profundamente marcada pela moral protestante. Nos dois casos, a relação cinema – escola – educação – família questionam-nos profundamente, pela temática – da representação da escola no cinema e das artes na educação. Esta escolha não é casual, mas motivada pelos debates, que provocaram na escola e pela utilização que fiz de fragmentos, na prática educativa, há duas dezenas de anos atrás. Quando comecei a rever os filmes para esta comunicação, senti a angústia de falta de tempo para tratar uma tão ampla e densa problemática, presente nos filmes e na obra de Alain Bergala - L’hipothèse cinéma. Petit traité de transmission du cinema à l’école et ailleurs (2006). Tarefa impossível. Este texto não é mais que algumas notas, um pequeno esboço, decorrente de múltiplas experiências vividas e das referências para que remeto os leitores. Como diria Bergman “não tomem isto como se fosse um manual de utilização de uma máquina, ou se preferirem assim, tomem tudo isto como um manual, ou, como qualquer coisa, considerem por exemplo isto aqui, como se fosse um pequeno palito de madeira para ajudar a esticar o lábio”.

Deixemos de lado a questão, sempre discutível do que se possa entender por qualidade dos filmes como obra cinematográfica e dos critérios de atribuição dos grandes e pequenos prémios. Bergala inicia o debate, mas não lhe dá solução, ainda bem, que permite estabelecer critérios de escolha de filmes a integrar no Plano Le Cinéma: un art et une culture. Recorda-nos, no entanto, que não assistir a filmes de qualidade durante a infância, significa perder uma possibilidade, que não irá acontecer com a mesma intensidade mais tarde. É como se as impressões produzidas, nos primeiros anos, pelo cinema, deixassem uma marca inesquecível na memória afetiva pessoal (Bergala 2005, 2008). Os filmes encontrados tarde demais “permanecerão parcialmente não revelados” (Bergala, 2008, p. 61). Implicitamente, o cineasta também nos convoca para acordar a criança no adulto espectador, no professor, no artista.

Em Clube dos poetas mortos o professor Keating nas aulas de Literatura (língua inglesa) apela aos valores como a liberdade de pensamento e de expressão, que colidem frontalmente com os que são defendidos no colégio; ao “Carpe diem” (aproveita o dia), proclamado pelo professor, encorajando os alunos a ganharem coragem, a perderem o medo, para experimentar desafios e confrontar-se com experiências, que nunca antes ousariam enfrentar – leitura expressiva, interpretação (livre) e criação literária, subjetividade dos olhares (dos pontos de vista) – o que os alunos vêem sentados nas mesas, no exterior voltados para as fotos evocativas da memória do colégio, no exterior do colégio, ou de forma mais ousada de pé em cima das mesas; ao trabalho em conjunto – criação do “Clube dos Poetas Mortos” que reúne furtivamente à noite, numa gruta, nas imediações do colégio, em que o grande tema é a poesia, mas também as múltiplas descobertas da juventude. O questionamento destas práticas começa a tornar-se notado. É, porém, o suicídio de Neil, brutalmente reprimido pelo pai no seu desejo de fazer teatro, que vai desencadear uma situação de confronto entre a direção do colégio e o professor Keating, acusado de instigar os seus alunos à desobediência. O professor é expulso e a direção do colégio toma medidas violentas, para que tudo volte à ‘normalidade’.

A instituição (Academia Welton em Vermont), contexto em que este acontecimento e esta trama de acontecimentos se localizam, assenta em quatro pilares: “tradição”, “disciplina”, “honra” e “excelência”, que os estudantes carregam nos estandartes na cerimónia de abertura do ano lectivo. Os pais acompanham os alunos nesta cerimónia, como forma de expressar a transferência, que fazem para a escola (observar a gestualidade e a micro-gestualidade na cerimónia de abertura) da missão de educar os seus próprios filhos, sobretudo de garantirem o acesso às melhores Universidades. É durante essa cerimónia de abertura do ano que o diretor do colégio, Mr. Nolan apresenta o novo professor de Inglês, John Keating, ele próprio um antigo aluno deste colégio. O filme merece uma análise fina e uma reflexão mais profunda, que a possível nesta comunicação e neste curto texto escrito. Ficaremos por esta curta síntese e notas de reflexão.

A alteridade introduzida por Keating neste colégio centenário remete para três questões fundamentais. O ensino das artes, no caso da literatura, não consiste numa análise supostamente científica (conhecer a métrica, a rima e as figuras de retórica, perfeição e importância do poema, a dimensão horizontal, a vertical e a área do poema… descrito em “Understanding Poetry” de J. Evans Pritchard que Keating madou retirar do livro) do texto poético nem numa leitura informada em que a poesia se perde no texto analítico – texto normativo que antecede a fruição da obra. A poesia tem de ser vivida como refere Keating “Não lemos e escrevemos poesia porque é ‘giro’. Lemos e escrevemos poesia, porque somos membros da raça humana. E, como tal, estamos plenos de paixão”. Para isso, apela ao vivido com a expressão “carpe diem”, que atravessa todo o filme – aprendendo a escutar a memória das múltiplas gerações que passaram pelo colégio, mas também a memória da própria poesia, pela evocação de Horácio e mais tarde pela reabilitação de Shakespeare, como autor a estudar. “Se escutares bem de perto, ouvirás o ciciar do seu legado. Vá em frente, abaixe-se. Carpe Diem, estão a ouvir? Carpe... Carpe Diem... aproveitem o dia, meus amigos...tornem as vossas vidas extraordinárias...”. Uma pedagogia do sensível, do prazer, da procura de si e da memória, que se opõe à pedagogia repetitiva das declinações do professor de Latim. Uma pedagogia de abertura – o grupo de discussão autónoma, centrado na poesia, mas aberto à música, ao teatro, às descobertas juvenis e à integração dos mais tímidos, aos exorcismos dos medos - Knox, apaixonado por Chris ousa correr o risco e declarar-lhe o seu amor; Charlie escreve um artigo no jornal do colégio, em nome do Clube dos Poetas Mortos, fazendo uma petição para que sejam admitidas raparigas no Colégio. Apela a uma pedagogia da criação, ao desenvolvimento da confiança e autoconfiança, à superação e à dádiva – expor-se através da escrita. Todd, pressionado pelo professor, emociona-se e constrói um poema em plena aula. O professor Keating contempla e estimula o aluno a libertar-se da sua timidez, perante a turma estupefacta.

A relação das famílias com a escola e com as artes atravessa o filme. As famílias escolheram este colégio como passaporte para as melhores Universidades, contrariando, por vezes o desejo dos filhos. Neil, contra a vontade do pai, decide entrar numa peça de teatro, dando assim satisfação à sua decidida vocação de ser ator. O sucesso de Neil, na peça de teatro, cria uma sequência de reações em cadeia. Neil é publicamente humilhado, levado para casa e enviado orientado, para uma escola militar. Neil suicida-se. A administração, representada pela pessoa do diretor Mr. Nolan, interroga Charlie, que é severamente castigado e ameaçado de expulsão, caso não revele, o que é o Clube dos Poetas Mortos.

Na cena final do filme, Nolan, o diretor, substitui o professor Keating. Este entra para levar seus objetos pessoais. Antes de sair, Todd, o aluno mais tímido, levanta-se e repete as palavras “Oh, Captain, my Captain”, senha que muitas vezes utilizaram. Segue-se Charlie, que se levanta na sua carteira e diz também “Oh, Captain, my Captain”. Depois, Pitts e os outros. Mais de metade da turma faz o mesmo, perante o desespero de Nolan e o olhar comovido de Keating. “Obrigado, rapazes”, são as últimas palavras do professor aos seus alunos.

As vicissitudes do ensino e da prática das artes na escola, a centralidade das experiências vividas, e de abertura à sociedade criaram no filme a situação dramática. Como nas situações descritas no filme, a hipótese do cinema na escola é a de encontro com a alteridade, isto é, o encontro com o radicalmente outro no contexto escolar sem, no entanto, ser necessária uma ruptura com o ensino e com a pedagogia clássica instituídos. O tema da necessidade contínua de negociação atravessa a história do cinema, mas, sobretudo, pode, diria mesmo, tem de ser uma constante no processo educativo regressando de novo ao poema de Horácio “Podemos sempre ser melhores. Basta pensarmos melhor”.

Uma instituição de educação (Escola) pode ter a seu cargo a arte ou o cinema, como um bloco de alteridade? A escola estará preparada para este trabalho? É, no entanto, frequentemente, para muitos alunos, o único lugar onde o encontro com o cinema e com a arte se pode realizar. É, pois, uma das suas missões. Deve fazê-lo contribuindo para a mudança de hábitos e mentalidades. Hoje, mais do que nunca, torna-se necessário construir novas dimensões e dinâmicas sociais, culturais e económicas, aquelas que as artes adquirem na atualidade, mas também e sobretudo, porque o mais importante objetivo da educação é o desenvolvimento integral do indivíduo (da pessoa).

O filme de Bergman, Fanny and Alexander (1982) é um filme sobre o teatro, o cinema e a educação em contexto familiar. Apontado, frequentemente, como autobiográfico ou testamento de Ingmar Bergman aborda a sua paixão pelo cinema e pelo teatro e pelos personagens, que inventou ao longo dos anos. Não é uma autobiografia, mas definido desta forma por Bergman, em 1982, ano de realização deste filme, “Quando faço um filme sirvo-me da experiência acumulada em 40 anos de trabalho em cinema. A minha profissão é uma profissão baseada na experiência. Na intuição e na experiência” (Bergman: 1982).

O teatro está profundamente presente no filme: Alexander brinca, encenando num teatro miniatura; as marionetas presentes ao longo do filme; o teatro que a família Ekdahl dirige numa adormecida cidade sueca, no começo do século XX – anos da infância de Bergman, e onde Oscar Ekdahl, o pai de Fanny e Alexander, morre de um enfarte fulminante durante um ensaio de Hamlet, no qual interpretava o papel do fantasma. Este facto abrirá o filme para o drama, que a família enfrentará; a própria vida familiar e os ambientes dos Ekdahl assemelham-se a cenários e a uma representação teatral, à qual não faltam a presença de atores e atrizes. Até a lanterna mágica, como primeiro passo para o cinema dado no século XVII, pelo jesuíta austríaco Athanasius Kircher, está no filme, como presente de Natal dado a Alexander e que, depois de recolher ao quarto, na noite de Natal, a utiliza para contar uma história premonitória do drama que acontecerá na família.

Em lanterna mágica (1988) livro de memórias, escrito anos mais tarde, Bergman retoma, no título, a história de infância de troca com o irmão de alguns soldadinhos de chumbo por uma lanterna mágica e o psicodrama familiar, que define tantos dos seus filmes e particularmente em Fanny e Alexander. Retrata o pai, um severo pastor protestante, e o retrato magoado da mãe, feito a partir de fotografias. A iniciação sexual de Bergman. Os seus problemas de saúde. Os casamentos e infidelidades. O teatro, a paixão por Strindberg (presente na cena final do filme) à burocracia estatal. O incessante combate com Deus. As simpatias da família pelo nacional-socialismo. A perseguição fiscal, movida pela Suécia ao cineasta de sucesso. O assassinato de Olof Palme. O mestre Sjöström. O encontro com Chaplin e Garbo. O elogio a Tarkovsky. E… sempre Liv Ullmann!

A história do filme começa com o teatro miniatura de Alexander. Depois a solidão e casa vazia, a vida que decorre na rua, o tempo e a animação das formas humanas e o olhar atento de Alexander. A casa é aquecida (contraste com o frio do exterior), prepara-se e prossegue a festa da noite de Natal (no teatro e em casa) em que se encontram as três gerações da família, as criadas e também os actores do teatro da pequena cidade, dirigido por Óscar. Todos reunidos em torno da velha e antiga actriz Héléna Ekdahl. Com a morte de Oscar, vítima de enfarte enquanto ensaiava Hamlet, Émilie abandona a direção da companhia, para se casar com o bispo Edvard. Estava cansada de representar papéis e queria viver na verdade, a paixão. Casa com o bispo Edvard Vergenus. Por amor e respeitabilidade, renuncia à carreira de atriz e vai viver com os filhos na residência do bispo. A paixão viria a tornar-se um pesadelo. Na sinistra casa, em que Émilie se instalou com os seus filhos, o bispo revela a sua verdadeira natureza: puritano, sádico, perverso; enclausura Émilie e maltrata as crianças. Os fantasmas da sua primeira mulher e das suas filhas, mortas afogadas, atormentam Alexander, criança sensível e imaginativa. As formas de violência física e psicológica são uma constante. A casa do Bispo transforma-se, para a mãe e os filhos, num inferno puritano do qual se torna difícil sair, mas que a morte do bispo finalmente permite. Trata-se de um retorno à vida animada, criativa e divertida da família Ekdahl.

Gustav Adolf Ekdahl num discurso no final do filme Fanny e Alexander (2.45.50): “minha querida e queridos amigos. Não façam caso, são tontarias. A minha sabedoria é simples. Haverá quem a deprecie, mas importa muito pouco. Perdoa mãe, notei que levantaste a ceia. Pensas que teu filho está a falar muito, não te preocupes, serei breve. Daqui em diante, os Ekdahl não sairão do mundo para ver como as coisas estão. Não pensem. Não estamos preparados para estas excursões. Ignoraremos a grandes coisas. Viveremos no nosso pequeno mundo (braços abertos sobre as crianças, as crianças olham o tio). Contentar-nos-emos com isso, cultivá-lo-emos e fá-lo-emos melhor. Ainda que repentinamente a morte chegue, se abra um abismo, uive a tormenta e a desgraça se abata sobre nós. Tudo o que sabemos. Não pensemos em coisas desagradáveis. Nós, os Ekdahl, gostamos das nossas ilusões. Tire-se ao homem as suas ilusões e ele enlouquecerá e se acoitará. Devemos compreender as pessoas. De outra forma, não podemos amá-las ou criticá-las. Devemos compreender o mundo e a realidade e com plena consciência criticar a sua absurda monotonia. Não se entristeçam queridos, magníficos artistas, atores e atrizes, são vocês que devem dar-nos os prazeres sobrenaturais e mais ainda, as nossas mais profundas emoções. O mundo é uma cova de ladrões e a noite está caindo. O mal rompe suas cadeias e corre pelo mundo como cão raivoso. O veneno afeta-nos a todos, aos Ekdahl e a todos os outros. Nada escapa nem a Viktoria, nem à pequena Aurora (filha de Émile e do Bispo). Assim são as coisas. Sejamos felizes como pudermos. Sejamos amáveis, generosos, carinhosos e bons. É necessário, não é nenhuma vergonha, ter prazer neste mundo. Boa comida, sorrisos gentis, árvores em flor, valsas. Meus queridos amigos, passo o tempo a falar e podem interpretar como quiserem as divagações sentimentais de falador sem educação e o arrastado falar de um homem velho. Não me importa. (toma Aurora criança nos braços) Tenho uma imperatriz nos meus braços. Pode tocar-se, mas não tem medida. Um dia, ela provará, que tudo o que disse está errado. Um dia não só governará o pequeno mundo, mas tudo”. O filme termina com a leitura, preparatória para a encenação da peça de Strinberg, uma das paixões de Bergman, Um sonho - “Sobre a frágil base da realidade a imaginação tece a sua teia e desenha novas formas, novos destinos”.

Fanny and Alexander (1982) Ingmar Bergman

O filme centra-se nas crianças Fanny e Alexander, como é referenciado no título e retrata o contraste entre a educação em ambientes familiares diferenciados. No primeiro a centralidade das artes nas vivências familiares – como na vida de Bergman e no filme grande parte das histórias são vividas em torno do teatro e da Lanterna Mágica, antecessor do cinema, fascinado pelo jogo de sombras e luzes que lhe revelavam uma realidade plena de magia. A morte, sempre presente no filme, mostra o contraste na vida do realizador – o pai pastor protestante, educado sob as rígidas normas que a condição familiar lhe impunha e as dos meninos protagonistas do filme.

Centrei a minha atividade na escola em torno deste filme na sequência / fragmento em que Alexander, na noite de Natal se situa entre a leitura e as imagens para contar a história dramática. “Aqui está a linda menina guapa e bela nada sabe o que a espera. Está só. Só em casa. Sua mãe morreu e seu pai diverte-se com dissipados amigos. Quem virá quando o relógio da torre der as doze badaladas. Oh que medo… oh… que coisa terrível, a alta figura que flutua nos brancos raios de luz perto de minha cama. Oh… é minha mãe morta, é a alma de minha mãe”. O grito do irmão mais velho interrompe a narrativa e atrai a mãe, Émile. “Basta de fazer tanto barulho menino. Vamos dormir…. Émile apercebe-se do cheiro de petróleo da lanterna mágica e conta a Óscar. Óscar entra no quarto das crianças, acende a luz, vê uma velha cadeira e coloca-a em cima da mesa iluminada pela luz do candeeiro do quarto das crianças e conta a história da cadeira. As crianças, fingindo dormir, entusiasmam-se pela história e começam a levantar-se. Óscar manda-os deitar e retira-se para o quarto do casal. Foi esta história que utilizamos para que os alunos contassem outra, a partir de um objeto vulgar.

A razão e a emoção no cinema são uma constante nos filmes de Bergman. Em Lágrimas e Suspiros diz “Estou cansado de constatar que a fantasia é sempre obrigada a prestar contas à razão! A inspiração precisa comportar-se com sabedoria diante das exigências da realidade…” e expõe sua relação com as imagens: “o que pretendo com estas imagens? De novo, quais são as intenções? Não sei, não posso jamais assegurar com um mínimo de certeza. Talvez, mais tarde, possa apresentar uma justificação plausível. A única coisa que sei, é que um certo prazer em me libertar de uma situação, me leva a fazer o que faço, o prazer de criar um espaço no meio do caos de impulsos desorientados e contraditórios, um espaço em que a imaginação e o desejo de um rigor formal, num esforço conjunto, cristalizem um componente de minha conceção da vida: o desejo absurdo e nunca satisfeito de comunicação, de comunhão, as desajeitadas tentativas de cancelar o isolamento e a distância”.10.

Como se fez ou pode fazer o cinema na escola?

Poderemos esquematizar a intervenção de Bergala, apontando para o seguinte decálogo de atividades constitutivo de uma agenda pedagógica precisa e que contempla a multiplicidade de perspetivas de abordagem do cinema: 1) Trabalhar com o cinema como arte, promovendo um encontro com a alteridade na escola; 2) Analisar minuciosamente filmes – obras integrais e fragmentos de filmes a partir de um tema ou questões históricas do cinema e de documentos fundamentais à análise; 3) Criar um acervo de filmes alternativos aos de cinema de consumo – Bergala não esclarece parâmetros para as escolhas a integrar neste acervo; 4) organizar a possibilidade do encontro com os filmes em contextos diversificados da cultura cinematográfica (cineclubes, cinemas, sala de aula equipadas para o efeito); 5) Designar, iniciar, tornar-se passador (seleção de filmes sem desconsiderar o gosto pessoal); 6) Aprender a ver os filmes - visionamento repetido dos filmes, respeito pelo tempo da criança e dos jovens e estabelecer ligações e redes de ligações entre os filmes ou fragmentos de filmes explorado relações temáticas, temporais, espaciais; 7) Decompor os filmes em planos com fotografia digital e produzir planos com dispositivos / tecnologias simples (importância do plano) 8) Criar oportunidades de edição não-linear, como oportunidade para repensar a criação; 9) Criar oportunidades de criação individual e coletiva; 10) Fazer exercícios: Minuto Lumiére - resgate do primeiro cinema.

Vimos, anteriormente, as dificuldades do “encontro com a alteridade na escola”. A abertura da escola à inovação e à diferença é uma tarefa difícil. Há, porém, algumas aberturas introduzidas pelas tecnologias. Os computadores, as redes sociais, o Youtube - Como o maior fenómeno da cultura participativa (Burgess e Green), os quadros eletrónicos (como ecrã multiusos) começam a fazer parte do quotidiano da escola. Cremos, que acelerarão a introdução da imagem, das artes e do cinema na escola. Este facto social é responsável por profundas mudanças na sociedade e na cultura, que acabarão por entrar na escola, transformando-a e libertando-a de alguns constrangimentos. Os constrangimentos tradicionais do cinema também parecem ter sido superados, como afirma a cineasta iraniana Samira Makhmalbaf “Três métodos de controlo externos reprimiram o processo criativo dos cineastas do passado: o político, o financeiro e o tecnológico. Hoje, com a revolução digital, a câmara pode ignorar essas formas de controlo e ficar à disposição do realizador”.

A análise minuciosa e informada dos filmes – das obras integrais e fragmentos de filmes a partir de um tema ou questões históricas do cinema e de documentos fundamentais à análise, são também um objetivo ao alcance da sala de aula. A abordagem, porém, não poderá ser apenas linguística e crítica, como refere Bergala, ao fazer um inventário do estado da pedagogia do cinema. A abordagem linguística e semiótica decorrente da hegemonia das ciências da linguagem- linguística, semiologia, semiótica; a resposta ideológica decorre do desenvolvimento da análise crítica. Para Bergala, há duas razões: uma de tipo histórico (coincidência do momento hegemónico das ciências da linguagem com o auge da ideia do cinema na escola) e outra de tipo ideológico (formar o espírito crítico das crianças a partir de circuitos de análise do cinema, para abordar criticamente a media em geral). De fato, nem a concepção linguística da produção de sentido, nem a ideológica defensiva contribuem intencionalmente com uma aproximação sensível do cinema, como arte. A clássica ilusão pedagógica consiste em acreditar, que as coisas podem passar cronologicamente em três fases: 1) análise de um plano ou sequência; valorização do filme a partir da sequência e formação do juízo, fundado na análise. Salienta a necessidade de renunciar a estas abordagem propondo o encontro com os filmes: organizar a possibilidade de encontro com os filmes, assinalar, iniciar, fazer-se passador, tecer laços com os filmes; desenvolver uma pedagogia da criação, uma análise da criação: acercar-se do cinema de uma maneira aberta sem se apegar a normas de um saber rígido: definições de movimentos de câmara, escolas de planos, regras de montagem, etc... análise fílmica clássica - compreender, decifrar, ler filmes, análise de criação – Bergala pretende deslocar o foco da leitura analítica e da crítica dos filmes para uma leitura criativa, que coloque o espectador no lugar do autor; que o leve a acompanhar, na sua imaginação, as emoções de todo o processo criativo, suas escolhas e suas incertezas. Nesse faz de conta, o espectador pode partilhar aspetos não racionais, mais intuitivos e mais sensíveis da vivência do artista, que são fundamentais para quem pretende aprender uma arte.

Criar um acervo de filmes alternativos aos de cinema de consumo – Bergala não esclarece parâmetros para as escolhas a integrar neste acervo. Atualmente os filmes disponíveis online satisfazem os critérios mais exigentes. Há, no entanto, necessidade imperiosa de criar um acervo de filmes e de informação complementar e acesso aos direitos de autor, para serem usados nas programações culturais do cinema na escola.

A cultura cinematográfica criou rituais específicos – visionamento dos filmes em sala escura (sala de cinema). É objetivo do programa organizar a possibilidade do encontro com os filmes em contextos diversificados da cultura cinematográfica (cineclubes, cinemas, sala de aula equipadas para o efeito). François Truffaut referia “Eu não gostaria de ver um filme, pela primeira vez, em vídeo ou na televisão. Um filme vê-se numa sala de cinema. Cinema e vídeo são como a diferença do livro que se lê e um livro que se consulta. Para mim, como cinéfilo, ver um filme em vídeo perturba a minha vida… ver um filme em vídeo dá-nos uma visão mais íntima. Como cinéfilo sou fanático do vídeo”. Esta aparente contradição nas palavras de François Truffaut, usadas na abertura das versões comerciais da coleção Les filmes de ma vie, chama a atenção para as diferentes formas de distribuição e circulação dos filmes. O Filme é, em primeiro lugar, um espetáculo para que se construíram edifícios, exclusivamente dedicados à sua exibição, em que as condições de visionamento são muito específicas – boa reprodução de imagem e som, sala escura, tela branca, em que se projecta o filme perante uma plateia de espectadores pagantes, acomodados em cadeiras confortáveis. Ir ao cinema, ver um filme em sala, é (era) um ritual complexo decorrente de escolhas e de ações muito diversificadas, decididas pelo espectador – escolha do filme, da sala, decisão de sair, ir só ou escolher parceiros para o filme, adquirir o bilhete, assistir à projeção, conversar sobre o filme. Os filmes têm outras formas, igualmente festivas. em que são apresentados coletivamente: festivais e mostras de cinema, eventos e sessões em que os filmes são enquadrados em temáticas abordadas por outros meios remetendo direta ou indiretamente para os filmes. Estas formas de ver os filmes não são estáticas, mas continuamente reconfiguradas (Ribeiro e Horta, 2010: 21). Ver filmes em DVD (Digital Video Disc), BD (Blu-ray Disc), Televisão digital, Internet, etc. são formas complementares de receção e apropriação. Alguns destes meios e suportes dispõem de processos de navegação hipermediática, que permitem ao espectador fruir, não apenas o filme como espectáculo, mas as condições particularmente favoráveis à análise minuciosa dos filmes, à consulta ou visionamento repetido e mesmo a interactividade (escolha de capítulos, de documentos de rodagem, de crítica cinematográfica, de um interminável conjunto de extras). A relação do espectador com o filme é hoje mais elaborada, informada e a apropriação mais íntima e democrática. Com efeito estes meios entram na generalidade das casas e a distribuição de filmes tornou-se pouco onerosa e vulgarizada. Por outro lado, a utilização das tecnologias digitais como a informática, a internet, o som e as imagens digitais criaram novas formas de visionamento e de exploração de um filme – melhor qualidade de som e imagem, facilidade de acesso, distribuição e utilização, novas formas de receção e apropriação dos filmes. No programa Cinena na Escola estas diversas situações devem ser contempladas, servindo seus objetivos específicos.

Quando se refere aos professores, Bergala (2007) apropria-se do conceito de “passador”, proposto por Serge Daney (1944-1992, francês crítico de cinema, que consiste em compreender o agente de transmissão como aquele que dá algo de si mesmo, que acompanha o percurso, que liga (as pontes e o tráfego) os filmes dos alunos com as grandes obras – o trivial e o sublime, o terreno e a obra (ex. Minuto Lumiére), que corre os mesmos riscos daqueles, que tem sob sua orientação e responsabilidade. Diz também: o professor deve saber passar as suas escolhas, os filmes que tenham significado para si, o seu gosto pessoal e sua relação íntima com as obras de arte pois “quando aceita o risco voluntário, por convicção e por amor pessoal a uma arte, de se tornar ‘passador’, o adulto muda de estatuto simbólico, abandonando por um momento o seu papel de professor, tal como definido e delimitado pela instituição, para retomar a palavra e o contato com os alunos de um outro lugar dentro de si” (Bergala, 2007: 64)

A tendência do professor para explicar o filme deverá ser contida, proporcionando formas de aprender a ver os filmes, respeitando o tempo das crianças e dos jovens e sempre que necessário proceder a visionamentos repetidos. O professor não poderá esquecer que a “a perceção visual [e sonora] é um processo quase experimental, implicando um sistema de tentativas, a partir do qual são emitidas hipóteses, e em seguida verificadas ou anuladas. Este sistema de tentativas é largamente determinado pelo conhecimento prévio do mundo e das imagens: pela apreensão das imagens, antecipamos, agarrando ideias feitas a partir da nossa perceção” (Aumont, 1991: 62). Não há, pois, um olhar inocente. A imagem não pode representar tudo, o espectador fazendo actuar o seu saber prévio, “saber lateral”, preenche as lacunas dessa representação “as diferentes constelações do saber lateral do receptor que intervêm em qualquer tipo de receção da imagem saturam-na ou deixam-na indeterminada”. (Schaeffer, 1990: 79). A experiência do aluno deve ser tida em conta. Se a intencionalidade do realizador ou do dispositivo de receção ou de apropriação ou de análise do filme podem condicionar a receção, a experiência do aluno em relação aos acontecimentos representados ou à forma do filme constituem campo fértil para a análise do filme e da interação do aluno e das suas vivências com o filme. As questões estão lá, no filme, mas não deixam de estar no vivido do aluno. A relação do aluno com o filme é uma relação específica, diferente da relação textual, porque é baseada na percepção sensorial, próxima da realidade, mas também, porque neste campo, o processo de escolarização tem dificuldade em normatizar a análise dos sons e das imagens (Ribeiro e Horta, 2010)

Um dos objetivos e das práticas do cinema na escola é de estabelecer ligações e redes de ligações entre filmes, explorando as diversas cinematografias e a história do cinema ou entre fragmentos de filmes, explorando relações temáticas, temporais, espaciais. A atividade desenvolvida com os fragmentos dos filmes – plano e sequência é importante para uma análise minuciosa, condição para a criação, pedagogia da criatividade. O plano é considerado como “a menor célula viva, animada, dotada de temporalidade, de devir, de ritmo, gozando de uma autonomia relativa, constitutiva do grande corpo-cinema” (Bergala, 2007: 124). Esta unidade mínima do filme, constitui um elemento ideal para uma análise minuciosa – controlo do espaço (enquadramento e proximidade / proxémica, tempo, a ação, a composição visual, o som), e para a tomada de consciência das complexas escolhas, que terão de ser tomadas em conta, no processo criativo.

Enunciamos algumas questões que nos parecem pertinentes colocar aos alunos: Onde está colocada a câmara? O que mostra e que esconde? Qual a relação da câmara com o que é filmado? O movimento de câmara (velocidade, direção, utilização do tripé) também faz parte da mensagem do filme? Quais as razões internas das escolhas (colocar o espectador no lugar do protagonista, destacar o fundo ou a forma)? Quais as razões externas das escolhas (condições e constrangimentos reais de filmagem, censura e outros constrangimentos sócio históricos, opções estéticas pessoais, de “escola” ou de género)? Em relação ao som enunciamos algumas perguntas: Que sons acompanham as imagens? Estão diretamente ligados às imagens ou são externos? Que relação entre som e imagem? Qual a origem da música do filme? Qual o seu papel (ou função)? Qual o papel do silêncio? Como é que as sonoridades constituem formas identitárias do grupo ou cultura filmada? Qual o tom da narração/ do comentário? O narrador é omnisciente? A narração ou o comentário traz-nos alguma informação nova? Será que há uma diferença entre as vozes no filme e a voz do filme?

O trabalho realizado com fragmentos dos filmes - plano, sequências, não implica que se deva desestimular o interesse, o desejo de assistir aos filmes na íntegra e, se possível em sala. A estratégia de uma filmoteca na escola possibilita a acumulação, não apenas de filmes, mas também de experiência de utilização, da escrita sobre essas experiências – planos de atividades, reflexões, etc., da troca de informação entre professores. Uma filmoteca cria uma multiplicidade de possibilidades e de (re)encontros com os filmes.

Decompor os filmes em planos ou extrair fotografias digitais e produzir planos com dispositivos / tecnologias simples são atividades criativas, que podem ter múltiplas utilizações pedagógicas, nomeadamente de escrita a partir das imagens e práticas de associação de imagens como iniciação à montagem cinematográfica e à sonorização.

A criação de atividades de edição não-linear com tecnologias simples constitui uma oportunidade de passar do visionamento e da análise dos filmes, à criação. Quando alguém se confronta com a realidade, num tempo curto, num enquadramento fixo, perante uma qualquer ação do quotidiano, terá de prestar atenção a todos os pequenos detalhes e ao controlo de uma multiplicidade de variáveis. É também um ato único e irrepetível aquele em que a câmara capta a fragilidade de um instante. A pedagogia do cinema deverá dar prioridade ao ato criativo. Ato criativo, como atividade livre, evitando formas dogmáticas e normas rígidas, por vezes enunciadas nos manuais de abordagem do cinema como linguagem. Torna-se necessário a aprendizagem de noções e competências básicas. Jean Rouch refere algumas destas competências: 1) Ver muitos filmes, ver repetidamente os filmes, mesmo os maus filmes, encontrar aí soluções que possam ser utilizáveis em novas situações de realização; 2) Ter ideias claras do que se quer fazer, isto é, saber para onde quer ir, para onde vai o filme, qual o seu fim, mas também a sua finalidade, o seu objetivo. Sugere para isso, que a montagem do filme e do projeto comecem pelo fim; 3) A terceira condição é a formação ou acompanhamento técnico. Fazer uma formação técnica completa, isto é, aprender a carregar, regular e manusear uma câmara; aprender a enquadrar, a improvisar um enquadramento; aprender a manipular a imagem; aprender a fazer e a utilizar iluminação; aprender a realizar a edição ou montagem final do filme. 4) Utilização da câmara pelos realizadores do projeto: “pessoalmente, penso que o realizador deve ser o seu próprio operador de câmara. Um enquadramento improvisa-se ao longo de um movimento” (Ribeiro e Horta 2010: 35). Estas competências, definidas por Rouch, são perfeitamente compatíveis com a pedagogia do cinema, defendida por Bergala.

Para Bergala, os componentes fundamentais do gesto de criação cinematográfica são: a escolha, a disposição e o ataque (Bergala, 2007: 125), que estão presentes em qualquer fase do processo de produção (na filmagem, na montagem e na mistura som, construção da banda sonora e pós-produção). A escolha consiste na tomada de decisões em relação às diversas variáveis da criação cinematográfica (atores, cenografias, cores, ritmos, planos, utilização dos sons). Dispor os elementos significa, colocá-los em relação uns com os outros na filmagem, na montagem, na construção da banda sonora, na relação dos sons com imagens. Como afirma a pedagogia godardiana da criação, é na montagem que podemos criar mais livremente, alterando a ordem dos planos, que não precisam ser dispostos na sequência em que foram filmados. Finalmente, atacar refere-se a agir, atuar, determinar o posicionamento da câmara - o ângulo ou o ponto de ataque sobre os acontecimentos escolhidos e a forma de os filmar, e fazê-lo. Concretamente, isso significa a determinação de quando aperto o botão, quando inicia a filmagem, quando termino o plano, como faço os cortes de entrada e saída a partir da planificação; e de como utilizo os sons na construção da banda sonora e na relação com as imagens.

Se esses gestos cinematográficos são válidos para toda forma de criação, devemos pensá-los também no contexto da atividade do professor no trabalho em cinema com os alunos. Sua tarefa, quando encarada criativamente, também supõe uma série de escolhas coletivas (conteúdos, espaço, tempo, entre outras), dispor os diferentes elementos em jogo (a ordem de introduzir os conteúdos, organizar os trabalhos grupais, etc.) e atacar no sentido de tomar decisões para a efetiva realização da experiência de aprendizagem. Estas articuladas com a direção que orquestra a atividade visando a unidade e coerência da obra e direção de uma equipa.

A hipótese cinema prevê a criação de oportunidades de criar algo individual e coletivamente. Bergala interroga-se se é possível uma verdadeira experiência de criação na aula, num contexto institucional ou em que contextos é possível. O discurso pedagógico vigente aborda também as questões da produção coletiva, partilhada, colaborativa. Para Bergala, a experiência criativa e a prática de realização em meio escolar é individual. A conceção orgânica de que cada aluno ocupará o seu lugar num “coletivo” de rodagem é uma utopia, um mito a desconstruir. Uma “equipa real de cinema nada tem de uma doce utopia anarquista em que cada um encontra harmonicamente o seu lugar segundo as suas capacidades e seus anseios de criação. É uma configuração fundada sobretudo na eficácia e no rendimento, de tipo militar, ultra hierarquizada e em que cada chefe de secção (imagem, som, encenação, etc.) é responsável pelos seus [profissionais, colegas, etc.] e pela qualidade do seu trabalho. O diálogo de criação limita-se de facto a diálogo entre “generais” [responsáveis pelo som, imagem, encenação, etc.]” (Bergala, 2007: 193-194). Esta proposta rompe com estereotipada distribuição de funções do tipo “a menina mais bonita será a actriz… o dominante o realizador, o tímido o script]. A realização cinematográfica na escola terá sentido se for capaz de superar estes estereótipos, definindo claramente funções e exigindo um desempenho eficaz e de qualidade. O ato coletivo de produção cinematográfica na escola é realmente esta orquestração de funções e papeis diferenciados – trabalho coletivo, mas uma só cabeça. Não será também neste aspeto que o cinema prepara os alunos para a vida social?

Fazer exercícios Minuto Lumière consiste em fazer o resgate do primeiro ato de fazer cinema. Bergala sugere, iniciar o fazer cinema na escola pelo “Minuto Lumière”, que consiste na experiência de fazer o aluno passar pela vivência de filmar, como se filmou pela vez primeira, como os irmãos Louis e Auguste o fizeram no final do século XIX. Como, com a película do cinematógrafo, se poderia filmar aproximadamente 50 segundos, fazer o exercício Minuto Lumière supõe vivenciar a origem do cinema e os “gestos cinematográficos” de escolha (de espaço, enquadramento, momento, etc.), a disposição (dos elementos a serem filmados), o ataque (filmagem), o controlo do tempo de ataque.

Em 1995, nos États géneraux du filme documentaire em Lussas, Bergala refere-se ao momento mágico de recriação das origens do cinema.

“O cinema é sempre jovem quando parte verdadeiramente do gesto que o fundou, das origens. Quando alguém pega numa câmara e encara o real por um minuto, num enquadramento fixo, com uma atenção extrema a tudo vai acontecer, retendo a respiração perante o que há de sagrado e irremediável porque uma película química ao rodar na câmara capta a fragilidade do instante, e cria o sentimento de que este minuto é único e não se reproduzirá jamais no tempo. O cinema renasce para aquele que filma tal como no primeiro dia em que uma câmara rodou. Quando se está neste momento nativo do ato cinematográfico, é-se sempre o primeiro cineasta, de Louis Lumière a um ou uma jovem de hoje.

Talvez tenha sido esta essência no cinema que descobriram os que fizeram este filme: filmar um plano é estar já no centro do ato cinematográfico, que existe neste ato bruto de captar um minuto do mundo, o grande poder do cinema, e esta convicção torna-se efectiva, após a revelação dos planos, estes mostram-nos o mundo sempre de uma forma surpreendente, nunca

como julgamos vê-lo, este na maioria das vezes mostra-se mais imaginativo que o próprio cineasta, o cinema ultrapassa aquele que o faz.

Este filme é um filme completo, tem as virtudes da experiência íntima na qual tem origem. Mostra-nos o estado de algumas cidades francesas em 1895, sem qualquer ostentação por parte do autor, com a humildade maravilhosa dos operadores Lumières, mas também a sacralidade que um jovem ou uma criança sente na sua “primeira vez”, como que uma experiência inaugural decisiva. O mundo revela-se cómico e angustiante, familiar e enigmático, tenso e sinuoso, satisfatório e enganador, previsível e surpreendente, agressivo e tranquilizador, aleatório e determinado, e oferecido e renitente, naturalista e fantástico, opaco e transparente, comum e sublime, próximo do real e cheio de histórias, de suspense, de personagens, de ficções latentes. Em suma, o cinema.
Bergala, 1995: 57

Conclusão

Do Percurso pelo Cinema e Escola verificamos que a força e a novidade Hipótese Cinema de Bergala, radicam na convicção de que qualquer forma de encerramento nos programas, nos horários dos alunos, nos docentes especializados, na lógica disciplinar reduz o alcance simbólico da arte e o seu poder de revelação. Será que na atualidade a sociedade, a escola e o cinema, só nos oferecem produtos de consumo rápido, de caducidade e de consumo obrigatório ou há ainda lugar para o desejo de saber, de explorar, de descobrir, de criar? Este desejo do professor e do aluno, ou dos parceiros no processo de aprendizagem, pode inscrever-se nos programas curriculares atuais? Se há uma possível mudança, ela não nos revela uma outra sociedade, um outro contexto, em que não é apenas possível criar, mas necessário criar? Tentamos contrapor à hipótese cinema de Bergala, à possíveis práticas do cinema inscrita nos curricula escolares e ver como a excelência de muitas das suas propostas são promissoras de uma outra forma de inscrição do cinema na escola. Escrevi este texto entre três encontros: o IV Colóquio de pesquisa em educação e midia - Cultura: Encontros de Desencontros no Rio de Janeiro (2014), Os Encontros de Cinema de Viana do Castelo (2015) e reencontro com os colegas no 5º Colóquio de Pesquisas em Educação e Mídia e 1a. Escola de Primavera em Educação e Mídia, com a proposta de reescrita do para publicação. Como diria Flaherty acerca do cinema, a escrita de um texto, como um filme, é uma tarefa interminável que só a violência dos compromissos assumidos lhe permite dar um fim ou o reinício de uma nova escrita. Mas também tentamos aprender com o que vamos verificando nas escolas ou na universidade as produções dos alunos e seus interesses pela utilização das tecnologias do som e da imagem associadas à cada vez maior disponibilidade de Hardware e Software exigem aos professores processo de formação contínua e às escola mais o desenvolvimento de competências dos alunos que a transmissão de conhecimentos por vezes efémero e sempre em continuas mudanças.

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Ribeiro, José da Silva e HORTA, Ana Paula Beja. Imagens e Sonoridades das Migrações. 2010. Disponível em: <http://www.oi.acidi.gov.pt/docs/Col_Cadernos_OI/Caderno_OI3_.pdf>.

Sousa, Paulo Teixeira. O cinema na escola - o projeto de Jack Lang. A Página da Educação, nº 98, 2001.

Filmografia

Clube dos poetas mortos. 1989. Peter Weir. EUA.

Entre Les Murs (2008) de Laurent Cantet, França.

Fanny e Alexander. 1982. Ingmar Bergman. Suécia.

La cour de Babel. 2014. de Julie Bertucelli, França.

Numa Escola de Havana. 2014. de Ernesto Daranas. Cuba.

Ossos 1997. de Pedro Costa, Portugal.

Spartacus. 1960. de Stanley Kubrick, EUA.