O Acossado e o cinema moderno da desmistificação godardiana

Regis Frota1

Presidente da Academia Cearense de Cinema, Brasil

Abstract

The French film “À bout de souffle” (Acossado, 1959) directed by Jean-Luc Godard represents the transgression of social, political and aesthetic norms. Having begun a new cycle in twentieth-century cinematography, this film questions, explains, and parodies American gangster films. We intend, here, to interpret them on their foundations and aesthetic results.

Keywords: French cinema, Jean-Luc Godard, “A bout de souffle” (Acossado,1959), Norms transgressions.

1. Introdução.

Há 60 anos, o cineasta Jean –Luc Godard abalava os alicerces da estética cinematográfica clássica, consagrada durante a primeira metade do século XX através do predomínio modelar hollywoodiano, ao revolucionar a cinematografia com seu filme “À bout de souffle” (Acossado, 1959).

Na verdade, nossa intenção, com este texto é tentar interpretar o impacto que o filme de estreia do cineasta suíço/francês Godard causou na estética cinematográfica do século XX. O antiilusionismo e a desmistificação que sua obra apregoa (mui especialmente neste filme clássico que, ora, estudamos) atingiu um caráter filosófico, programático e, de alguma maneira, hostil aos padrões anteriores, fosse no ocidente europeu ou na América.

Acossado é um filme que inicia o modernismo no cinema2, enquanto paródia e sátira reflexiva (alguns historiadores pretendem, no entanto, atribuir esta autoria ou a paternidade desse movimento estético ao cineasta Ingmar Bergmann, com seu filme de 1954, Monika e o desejo), na medida em que o jovem Jean-Luc Godard (juntamente com os conhecidos “jovens turcos”- críticos cinematográficos do Cahiers du Cinema como François Truffaut e outros), partiu para a prática da elaboração fílmica, com uma visão crítica cáustica de sucesso.

A referência que farei, a seguir, de algumas sequências ou alguns planos narrativos do filme Acossado tem sempre a intenção de recordar ao leitor/espectador a natureza lúdica e transgressora desse tipo “moderno” de cinema, cuja sutil didática mostra-se dialética como o teatro brechchiano. Após as recordações imagéticas e narrações dialogais, passaremos ao exame particular de algumas características godardianas da desmistificação e do seu antiilusionismo artístico.

2. Desenvolvimento

Enquanto paródia dos filmes de gangster norte-americanos, Acossado já principia mostrando o protagonista Michel Poicard (Jean-Paul Belmondo3) como o típico “malandro” –seja pela indumentária, a um tempo, desleixada e pretensiosa, seja pelos hábitos de insistir no consumo de tabaco e óculos escuros, passando, com insistência, o dedo polegar nos lábios, ao baforar os cigarros, qual herói de Casablanca, etc4), que vive, descontraída e descompromissadamente, dando sempre “cabeçadas na humanidade”, fazendo biscates, trocando de carros roubados, cobrando dívidas inexistentes.

A primeira sequência do filme– caracterizada pelo uso incomum, à época, da “câmara na mão” principia com um primeiro plano do ator Jean-Paul Belmondo fumando e lendo jornal, na rua, ao tempo em que confidencia ao espectador que se trata, então, de um FDP, “pois isso tem que ser feito”... A namorada engana ou entretém o guarda de trânsito, enquanto Poicard liga direto a ignição de um carro, o qual rouba, antes de dirigir-se em disparada, por determinada rodovia, nas cercanias de Paris, dando tchau para a amante cúmplice.

Chama a atenção do espectador, no inicio do filme, quando, Poicard (Belmondo), dirigindo carro roubado, em alta velocidade, e, após diversas ultrapassagens, mira para a câmara, ao indagar/afirmar: “se você não gosta do mar... se você não gosta da montanha... se você não gosta da cidade... então se dane!”

O raios solares penetram nas copas das árvores, atingindo o painel dianteiro do carro; Poicard (Belmondo) se irrita com a luz solar e, retirando pistola do painel do carro, atira no sol. Outra irreverência transgressora, anti-ilusionista e desmistificadora do Acossado, porquanto imediatamente, antes, constatara e dissera: “le soleil est beau”!

Logo é perseguido por guardas de trânsito, em motos, os quais são, gratuita e sumáriamente, assassinados, executados pelo protagonista. Após a execução, Poicard (Belmondo) foge, correndo a pé, pelos verdes campos dos vinhedos franceses, sob acordes musicais de filme de suspense americano, cujas imagens posteriores, obtidas em claro travelling paralelo à catedral de Notre Dame parisiense, percorre algumas ruas, até que o taxi, conduzindo o protagonista malandro, e vemos ele sair do carro e entrar em cabine telefônica, que não funciona, por sinal.

Se retira, compra jornal e dá rápido “vistazo” com o qual, após limpar os sapatos, joga fora, tendo, antes passado na portaria do prédio da amante, senhorita Francesquini, e furtado a chave do apartamento, procurando dinheiro dela sem encontrar em gavetas, sem deixar de afirmar que “mulheres nunca têm dinheiro”... Não é, contudo, a primeira oportunidade que o filme demonstra certa misoginia do personagem central, estilo gangsterista: ocasião da escapada pela rodovia campestre, ao ultrapassar vários veículos, Poicard (Belmondo) afirmara que “mulher não deveria conduzir”, quando tendo adiante de seu cadillac roubado, carro dirigido por uma mulher, embora logo constatasse que sua lentidão era justificada por operários na pista lenta. Igualmente, ao observar duas moças pedindo carona na beira da rodovia, comenta consigo (e com o espectador, obviamente, num diálogo modernista e godardiano) que valeria a pena trocar um beijo por km rodado.

Observe-se, contudo, que o filme de Jean-Luc Godard, Acossado, é um filme intelectual de gangster, o qual prima pela paródia e a crítica reflexiva.

As poucas moedas encontradas no bolso, verificadas em plano fechado da imagem, na palma aberta de Poicard (Belmondo), autorizam-no a pedir ovos na cafeteria; anuncia que voltará, após comprar jornal - curioso por saber se já estaria noticiada sua presepada assassina - contudo, ingressa na casa da amante que acordara há pouco, ainda de pijama, a qual retorna preguiçosa aos lençóis, e o dublê de ator indaga-lhe sobre seus empregos na TV, ao tempo em que conta vantagem sobre sua temporada na Cinecittá; Francesquini atende ligação telefônica, enquanto ao ouvir, Poicard, ante o espelho, arremeda, mais uma vez, o estilo durão, porém charmoso e sentimental, de Humphrey Bogart, esfregando seus lábios enrugados com ares de calejada indiferença, como se não estivesse a escutar o telefonema alheio. Estava, sim, e pede dinheiro à amante, alegando-se não cafajeste, porquanto a aluga apenas por meia diária; ante a oferta de quantidade menor disponível de dinheiro, Poicard recusa receber, mas enquanto a namorada, de costas, se veste, ele se apropria de todo o dinheiro de sua bolsa, furtando-a e despedindo-se com mero “arrivedecci”.

Pergunta a uma moça qualquer, em plena rua parisiense, por Patricia (Jean Seberg), a jornalista e vendedora do New York Herald Tribune, onde trabalha e a qual, a partir dessa sequência cinematográfica contracenará com Poicard (Belmondo), em momentos e circunstâncias variadas e acronológicas, dando ao filme Acossado sua temperatura e volatilidade, valendo observar que, além de se constituir em uma autogozação, no afirmar de Stam5, constrói uma “orgia de citações, torna a narrativa literária, a subtrai de sua substância diegética e força-nos a contemplar o filme como uma colcha de retalhos de pastichos literários e cinematográficos.”

Ora, Godard é mestre da auto-reflexividade cinética e literária. Em Acossado, a dupla Patrícia e Poicard (Seberg e Belmondo) almejam ser heróis de filmes, adotam o linguajar e o comportamento dos gangster dos film noir.

Portanto, não surpreende o diálogo inicial da dupla, travado em meio da calçada, enquanto vão e voltam da rua, quando ela quer saber quando ele voltou de Monte Carlo e, porquê, posto que sempre afirmou odiar Paris... ele responde que o fato de ter inimigos em Paris não significa que odeie a capital francesa e, que retornou só para vê-la e para saber se ela, ainda, o ama. Ela anuncia e oferta, em voz alta, o NY Herald Tribune. Ele pede um exemplar, o qual logo devolverá sob a alegação de não possuir horóscopo. Indaga se ela não quer saber o futuro...Caminham lado a lado, ele de chapéu da mesma cor marron do blaiser, mãos nos bolsos da calça preta, gravata xadrez curta e desleixada; ela, cabelos curtos a la garçon, blusa branca com inscrição do jornal, porta num braço um maço das edições do jornal NY Herald Tribune, na mesma mão uma bolsa “pochete” branca, todavia mais alva que a cor da blusa. Parecem se entender...

Ante a indagação feita por Patricia do motivo da permanência de Poicard, em Paris, ele afirma que carece encontrar-se com um cara que lhe deve um dinheiro, que precisa vê-la (quer dormir com ela, segundo ele, porque as duas garotas com quem dormiu após “coucher” com Patricia, pela última vez, foram um “saco”). “As duas vezes foram um saco”, afirma Poicard (Belmondo), ao que aquela quer saber que significa “um saco”, não foi bom, esclarece ao corrigi-la ter dormido cinco vezes com Patrícia e não, apenas, três vezes. Pergunta-lhe as horas, ao convidá-la para viver com ele em Roma, ela esclarece que se não frequentar a Sorbonne, seu pai não lhe fornecerá a mesada.

Pura paródia. Cabe, aqui, aclarar a posição godardiana do fazer artístico cinemático, a exemplo modernista, de Acossado. O teórico Robert Stam6 lembra que “para compreendermos o modernismo de Godard, devemos vê-lo dentro do contexto da vanguarda artística em geral.” Segundo ele, Godard deve ao Dada e ao surrealismo a incorporação do acaso à Arte, uma característica típica da fase intermediária de seu trabalho. Em Godard, o sexo não é lascivo, oferecendo-nos um contra-exemplo à prática dominante hollywoodiana. “Toda a manipulação erótica do espectador não passa de mais uma expectativa convencional que Godard se recusa a satisfazer.”

Continuemos a rever o filme de Godard, Acossado. Combinados Patrícia e Poicard de se encontraram naquela altura, daquela rua, pela noite, se afastam, ele a uma banca de jornal, ela para o trabalho, sem antes voltar a ele, beijando-o, como a demonstrar o interesse pelo re-encontro noturno, antes combinado. Poicard presencia um abalroamento na rua, um homem atingido, desfalece na calçada; se persigna, exemplar do jornal aberto sob os olhos, apressados, nas mãos, indiferente e segue, em busca do senhor Tolmatchoff, no balcão de uma companhia aérea.

Sempre de frente à câmara, em direção ao espectador, Poicard caminha rumo aos balcões da Cia. Aérea onde trabalha esse funcionário que lhe entrega um envelope com um cheque “cruzado”, enquanto caminham lado a lado, e dialogam sobre mulheres e dinheiro. Carente de dinheiro “cash”, Poicard lamenta o cheque “cruzado”; Pergunta por Berruti, outro devedor seu, parece que do mesmo naipe em matéria de matreirice e malandragem. “Sim, chegou ontem de Tunísia”, informa o funcionário a Poicard, o qual informado do número do telefone de Antonio Berruti, o liga, sem encontrá-lo. Se despede e sai, jornal no bolso do blaiser, onde já vira “estampada” sua foto, identificadas as impressões digitais do matador dos guardas de trânsito. O cerco a Poicard começa a estreitar, agora cujas imagens seguintes mostram uma dupla de investigadores policiais indagando se os funcionários recebem a correspondência a eles dirigida, ali mesmo, donde Tolmatchoff deveria denunciar o paradeiro de Poiccard, a quem encontrara cinco minutos antes, segundo denúncia de invejosa colega de trabalho.

De um lado, o protagonista entra e sai de metrô, diante do Arco do Triunfo, enquanto os investigadores policiais correm, pelas ruas centrais, para tentar encontrá-lo, debalde. Poicard, anônimo, pára ante os cartazes de filme americano, Plus dure será la chute, estrelado por Humprey Bogart7, cuja imagem dura é mostrada em plano “close”, ao tempo que o protagonista lança olhar de admiração, sonhando em imitar o ídolo de carne, não perdendo a chance de arremedar, mais uma vez, o estilo gangsterista durão, porém charmoso e sentimental, másculo de Bogart, esfregando seus lábios enrugados com ares de calejada indiferença, cheios de fumaça advinda das baforadas expelidas dos seus pulmões.

Poicard se mostra um espectador de filme americano, embora diferenciado dos espectadores “voyeristas” comuns, em função da parodização godardiana.

O longo plano de admiração(em PPP frontal de Belmondo, sem óculos) que o protagonista do Acossado lança sobre os cartazes do cinema daquela semana, não deixam dúvida da “expertise” do diretor cinematográfico Jean-Luc Godard; Ele conhece o cinema americano clássico e se volta a parodiá-lo como forma de superação, como maneira de revolução estética, de introdução de uma versão modernista na produção audiovisual.

Eis a importância do Acossado: desde a primeira cena ou sequência do filme já vemos o protagonista se voltando, diretamente, para a platéia, em contraposição a uma certa convenção do teatro e do cinema naturalista até então dominante, a qual ditava que os atores e atrizes nunca deveriam se dirigir à plateia, e isto porquanto os espectadores sentir-se-iam desconfortáveis e ameaçados, caso fossem percebidos como “voyeristas”.

Voltando ao filme. Acossado é moderno porque rompe com o padrão antes consagrado.

Um flou se fecha sobre os investigadores, desbaratados, na esquina sem rumo do perseguido assassino. A próxima cena se dá na escuridão do celuloide, sonorizada pelo diálogo da dupla heroína, a nova-iorquina Patrícia (Seberg) e o malandro Poiccard (Belmondo), se combinando um jantar, encostada em carro estacionado na rua parisiense. Poiccard coloca seu chapéu na cabeça de Patrícia e avisa que precisa passar um telefonema, que ela aguarde 30 segundos, que a desaponta, ao afirmar: “Quando um francês diz 30 segundos, representa cinco minutos.” Permanece fumando, entre dois carros estacionados, enchapelada. Enquanto espera, vê-se Poiccard entrando no WC, lava as mãos, antes de nocautear um colega de banheiro e roubar-lhe o dinheiro da carteira.

Alcançando Patrícia na rua, Poiccard continua seu diálogo inverossímil, porém cativante; Pergunta-lhe onde irão e se dormirão juntos aquela noite; - “Não sei”, contesta a garota, sorrindo. Porque não? Não foi bom, da outra vez? Poiccard comenta noticia que diz ter lido no France Soir (tem jornal numa das mãos, enquanto caminha ao lado de Patrícia): “Um motorista de ônibus roubou cinco milhões para parecer rico e impressionar uma garota, gastaram o dinheiro em três dias na Riviera”; E conclui: “Nem um pouco envergonhado, ele confessou ter roubado o dinheiro; eu não presto, mas eu te amo.”

Poiccard insiste no interessante da narração de sua historieta porquanto a garota não se teria importado com a confissão de roubo do motorista, voltaram a Paris para assaltar em Passy, ficando ela de guarda. Boa garota!, conclui Poiccard, antes de ser interrompido por transeunte, que lhe pede um isqueiro, recebendo de Poiccard pequena quantia, recomendada para compra de fósforos. Patrícia, de sopetão, se desculpa alegando que quase esquecera um compromisso para aquele horário: uma entrevista cujo companheiro de cobertura jornalística passaria a recorrê-la, de imediato. Poiccard sente-se frustrado e oferece carona a Patricia, que aceita pois já buscava um taxi. No trajeto, imagem lateral da moça com penteado a la garçon, Patrícia pergunta pelo carro anterior de Poiccard que alega encontrar-se no conserto. Ante a imagem fixa do pescoço e cabeça da garota, Poiccard afirma não poder viver sem Patricia, ao tempo que descreve ter uma “garota de belos braços, belo pescoço, belos cabelos, belo rosto... mas, quando, repentinamente, Patrícia pede para descer do carro, pois chegara na altura do compromisso, provocando Poiccard a desferir comentários desairosos: “Você não presta, não te quero mais, não te verei outra vez, etc.”

Patrícia sobe a escada rolante e, senta em mesa, com amigo americano. Ele a presenteia com livro e, espera não ocorrer com ela, o que terá ocorrido com a heroína, posto que morrera na cirurgia de retirada do bêbê, abortado. Patricia comenta não saber –se infeliz porque não livre, ou não livre por infeliz. – Desapareça, como fazem os elefantes, recomenda o editor chefe do jornal NY Herald Tribune. E tenta animá-la contando um encontro que teria tido, há dois anos, com uma garota com quem pretendera dormir: no almoço esqueceu de dizê-lo e então, mandou-lha um telegrama informando sua intenção. A garota teria respondido, registrando a coincidência de ter pensado exatamente a mesma coisa com ela em relação a ele. Patrícia, então, pergunta quando receberá novas tarefas jornalísticas do Editor, o qual informa-lhe que ela irá, amanhã, ao aeroporto de Orly, entrevistar ao romancista Parvulesco. Que ela passasse no Bureau para saber a hora exata. E saíram abraçados, escada a baixo, com o consentimento de Patrícia, e simultâneo desapontamento de Poiccard que a aguardava, fumando sempre, cigarro após cigarro, e somente poderá acompanhar, com o olhar andarilho, o casal americano entrando, em carro esporte. Vai a uma banca de jornal, mais uma vez. Com pretexto de observar melhor o casal norte-americano(Patrícia e Editor Chefe) e os vê, desapontado, a se beijar, carinhosa e ardentemente. Faz beicinho.

O carro esporte do americano percorre ruas parisienses, até cruzar o Arco do Triunfo; A próxima imagem é da Torre Eiffel, captada desde o ônibus elétrico que leva Patricia, até baixar e caminhar cruzando os passos, com aparência felizarda, e então, antes de ingressar em seu edifício residencial, se observa, sorridente, em espelho de vitrine de loja próxima. Ao chegar no seu prédio, não encontra a chave do seu apartamento, estando vazio o box de madeira. Sobe, afinal talvez tenha esquecido a chave na porta. Ao entrar, se surpreende com Poiccard deitado em sua cama, sob a alegação de que o Hotel Claridge não dispunha de quarto.

- Não faça careta, lhe diz Poiccard, descontraído. Como é fazer caretas? Ao indagar Patrícia, Poiccard faz toda uma série de “mungangos” na expressão do rosto, ora de riso, ora de raiva, ora contraindo os lábios, ora abrindo a boca, franzindo a testa, em expressivo gesto que o caracterizará, na medida da paródia godardiana.

Travam longo diálogo, sobre banalidades e tipicidades de gênero. Deitados na cama, embora vestida Patricia e Poiccard de cuecas, abaixo dos lençóis, ele tenta convencê-la de que deve dormir com ele, e que será considerada covarde, se não tiver ousadia de trasladar-se a Roma consigo; Já Patricia está indecisa, não tem certeza de coisa alguma, gosta dele, mas o acha “maluquete”, optando pela segurança do emprego e amizades parisienses. Aqui vai uma observação fundamental na interpretação da estética godardiana, na contramão do modelo hollywoodiano, o qual, no dizer de Robert Stam, “sob a forma do pornográfico explícito ou do espetacular pervertido, o cinema comercial continua fabricando novos objetos de consumo que satisfaçam à cobiça de um dos órgãos eróticos mais primários do corpo humano: o olho.” Tanto que Godard apresenta a relação sexual de Poiccard e Patrícia debaixo dos lençóis, encobertos, de modo não lascivo, portanto. O sexo, em Godard, não é lascivo, porquanto a manipulação erótica do espectador não passa de mais uma expectativa convencional que o diretor francês se recusa a satisfazer. A imagem sexy não lhe interessa, portanto.

Após demorada sequencia cinematográfica (certamente, a mais longa e demorada do filme) dos dois heróis do filme Acossado, ela tentando conhecê-lo melhor, ele tentando transar com ela, em que pese tenha-o feito durante a noite, se vestem ao meio dia, após vários telefonemas dele, cobrando dinheiro e o paradeiro de Antonio Derruti, e, partem em novo cadillac, roubado por Poiccard que conduz a jornalista ao emprego, sem antes de passar pelo NY Herald Tribune, ser reconhecido por um leitor do jornal(o próprio diretor do filme) que estampa a foto de Poiccard (o assassino dos dois guardas de trânsito), o qual o denunciará a policiais fardados, sobre os quais se fecha a imagem. Atente-se para o fato burlesco e identitário8 de que o ator que denuncia Poiccard seja o próprio Jean-Luc Godard, ´parece até como se víssemos pessoas reais como personagens de um filme de ficção; Aliás, Godard empregou dessa forma diretores outros – noutros filmes e oportunidades distintas-, como Fritz Lang (em O desprezo) e Samuel Fuller (em O demônio das 11 horas).

A entrevista com o famoso escritor Parvulesco, romancista intelectual – espécie de duplo de Godard-, inserida nos desempenhos da personagem feminina Patricia (Jean Seberg), que ajuda Poiccard a escapar da polícia, em Acossado deixa entrever reflexões críticas ao pensamento dominante nos finais da década de cinquenta do século passado. Com roteiro de François Truffaut e Godard, o filme exubera na intertextualidade, pelo teor crítico intelectualista das perguntas e respostas, integrando-se na narrativa fragmentada da película. No saguão do aeroporto, vários repórteres indagam ao famoso escritor “qual a diferença entre a vida das mulheres americanas e francesas”? Resposta: “as mulheres americanas dominam os homens...as francesas ainda não.” Quando indagado sobre “qual sua grande ambição na vida”, o romancista Parvulesco responde: “ Tornar-me imortal e depois ... morrer.” E, por fim, perguntado sobre o que seria mais ético: “a mulher que trai o homem, ou o homem que a abandona? ou, ainda, “quantas mulheres um homem pode ter na vida”? O romancista responde fazendo os mesmos gestos, (anteriormente feito por Poiccard, ante indagação de Patricia de com quantas garotas já tinha estado) de cinco dedos de mão aberta, várias vezes, e afinal, um dedo indicador a mais. Mais que dezenas, portanto. Quase encerrando a entrevista, Patrícia indaga ao romancista se ele crê que uma mulher desempenha um grande papel na sociedade moderna, ao que o romancista particulariza, galanteadoramente, a resposta: “ Sim, se ela usa óculos “gatinho” e porta um vestido “listrado”, em alusão direta à indumentária da jornalista, que sorri com o elogio indireto...

Entrevista encerrada, vemos Poiccard tentando fazer dinheiro, através da venda de seu carro roubado, do qual retira o cabo de ignição, agride o pretenso comprador que regateara o preço oferecido, roubando-lhe os trocados da carteira para pagar um taxi que toma para conduzir Patrícia ao centro da cidade, passando por vários bairros onde, não encontrando com Antoine que saíra há cinco minutos, faz “gracinhas” estúpidas ao levantar o vestido de uma transeunte do parque que atravessa, e engana o taxista sem pagar-lhe a corrida, na medida que atravessa uma galeria, a pé com Patrícia, saindo do outro lado obscuro da antiga Paris ocupada pelos alemães, da II Grande Guerra, numa demonstração de esperteza matreira e gangsterista.

Enquanto Patricia ingressa no NY Herald Tribune, Poiccard segue noutra direção da rua; sorte dele, pois, imediatamente os investigadores mostram foto do protagonista à jornalista Patrícia e ela nega que o reconheça, contudo, insegura, sai da sede do jornal para avisar a Poiccard sobre a iminente perseguição policial, ao tempo que aquele malandro apaixonado a acompanha, escondendo-se o rosto sob um jornal aberto, até que ela se esquive pela janela de um banheiro público, fugindo do investigador policial que a persegue.

Poiccard e Patricia vão, então, a uma sala de cinema de rua assistir “Westbound” até o escurecer do dia, escapando do cerco policial, no momento, em que ela supõe compreender o que pretendia dizer Poiccard com a frase: “seria o dobro ou nada”. Diegéticamente, estamos ante “um filme dentro do filme”. Ao sair do cinema, a pé, e empós, a dupla de carro, pode ler – juntamente com o espectador do Acossado o letreiro luminoso da rua com os dizeres: “ o cerco a Michel Poiccard aperta”9...

Próxima sequência do filme: No carro estão Poiccard e Patricia, cruzando ruas de Paris; ela lê o jornal com foto do namorado e confere-lhe se ele já foi casado: sim, há tempos, reponde o gangster francês, com uma maluquinha, identificada pela polícia através de uma denúncia, por ele considerada normal, pois, “é normal que denunciadores, denunciem, assassinos matem e amantes amem e se apaixonem...” termina seu comentário realista em frente às luzes da praça da concórdia, afirmando: “ C ´est belle la place de la Concorde”!

Ingressam num parking subterrâneo para trocar de carro roubado, em disfarce, diz Poiccard que ali sempre deixam as chaves na ignição, pedindo que Patricia conduza o novo carro “roubado,” porquanto ele se esconderá no banco traseiro; Ao sair na rua noturna, letreiro luminoso informa :” Michel Poiccard na iminência de ser preso”.10

Em busca de receber dinheiro devido por Antoine, percorrem o bairro de Montmartre, e um transeunte indagado, informa o paradeiro do devedor em troca de um beijo na mão de Patrícia; quando a dupla de amantes encontram, por fim, ao procurado devedor de Poiccard, vê-se extorsão via foto de beijo “falso” da acompanhante de Antoine, o qual, saldada a dívida com Poiccard, chocam-se os punhos à moda de décadas posteriores.

Poiccard e Patricia seguem de carro, embalados por trilha sonora “de jazz”, parodiado. O casal ingressa em “studio fotográfico”, por indicação de Antoine, esconderijo ignorado pela polícia. Dialogam, enquanto “modelo” em roupas sumárias, fotografa. Patricia diz a Poiccard que não aceitaria ser “modelo” para não dar para todo mundo. Está indecisa. Põe LP na radiola, Concerto de Mozart e pergunta se não incomoda. – “Não, meu pai era clarinetista”.

Às 5 hs da tarde, quando Patricia desce do balcão do segundo andar para a sala, Poiccard lhe solicita ir comprar um litro de leite e o jornal France Soir. Ela vai e aproveita para telefonar à Polícia, denunciando o paradeiro do amante. Informa a Poiccard que o denunciou para não mais se apaixonar por ele, para se livrar dele.

Diálogo: Patrícia: Se te amasse, seria complicado. Poiccard: “Agiste exatamente como todas aquelas mulheres que não dormem com quem as ama, por isso não fugirei”.

Última sequência do filme, aliás, belíssima pela leveza da filmagem: Poiccard (Belmondo), ao escutar a buzina de Antoine Derruti, sai à rua dizendo-lhe que não reagirá, recusando revólver oferecido por ele, e abandonando mala de dinheiro, corre (travelling demorado com câmara na mão, acompanha o ator/personagem captado pelas costas, em disparada corrida, até ser baleado e tombar em calçamento, onde agonizará sendo observado por curiosos e por Patricia, a qual parece não acreditar na opção pela morte de Poicard o qual, nos estertores da vida, deitado no chão, agonizando baleado, faz histriônicas “caretas” para a amante (franzindo testa e passando dedos nos lábios, em imitação humorística e parodiadora de Bogart), segundos antes de morrer, se dirige à Patricia ( Jean Seberg) dizendo-lhe: “ você é a escória – “completement déguelasse”, explodindo na tela a legenda “fim”.

Filme B de intelectuais

Concordo com o cinéfilo amigo, Bráulio Tavares11, quando afirma em relação ao trabalho de Godard como o melhor tipo de filme que existe é filme-B feito por intelectual. Seria, segundo ele, com o qual de acordo estou, “muito melhor do que filme-A feito por analfabetos. Sim, por que um filme-B é por definição um filme que não tem muitas ambições de bilheteria ou de crítica, um filme feito apenas para se pagar, sumir e dar lugar ao próximo. Não quer invadir mercados, não quer disputar espaço de centenas de salas, não feito sob uma enorme expectativa de desempenho nas bilheterias, não teve ações negociadas numa bolsa de mercados futuros. Só tem obrigações para consigo mesmo. O filme B é feito por uma turma, não por uma equipe de grandes estrelas, diz Bráulio com total acerto. Por isto é que escolhi para comentar sobre o filme de estreia de Godard, sobre o Acossado, tanto por que o reconheça as qualidades estéticas, nesses meus sessenta anos de ligação com a cinefilia francesa12, como igualmente, por causa dos elementos jurídicos encontráveis na película, a ponto de ser possível de ser o filme abordado, unicamente, sob essa ótica estreita da juridicidade atravessada pela arte, coisa que não fizemos aqui, deixando para outra oportunidade. O Direito e o Cinema Francês estão estreitamente ligados, reconheço, porquanto desde os primórdios da sétima arte, ainda em 1895, final do século XIX, os irmãos Lumière constatavam que “le cinema est une invention sans avenir”, mas mesmo assim a França tanto contribuiu, nestes dois últimos séculos, para um Direito de cunho universalista, quanto fez um cinema incontornável.

Mas, aí já deixamos para outra oportunidade, a tentativa de compreender estas relações complexas entre Direito e Cinema. Se alguém, após ler esse texto, ainda se indagar que regras do Direito tenham sido inobservadas por Jean-Luc Godard, diria que se sua transgressão não se aplica tanto às normas do Direito quanto às normas da estética cinematográfica, Godard foi o transgressor, emérito e sutil, por excelência, de sua geração denominada de “jeunes turcs”. Nisto foi mestre. Afinal, se não fora uma paródia exemplar, o Acossado teria dado outro rumo aos personagens e conteúdos do filme. Poiccard, certamente não teria morrido tão conformado; Patricia não teria optado pela denúncia do amante, para se tornar menos infeliz, amando mais quem por ela se apaixonara, e tudo faria para curtir a felicidade terrena. Recordo outro francês, Julles Deleuze, o filósofo que tanto estudou o cinema e sua história, a ponto de classificá-lo como cristais, dos perfeitos ( tipo os filmes de Max Ophuls) a imperfeitos (exemplo dos cristais rotos e fadados à imperfeição seriam os filmes de Fellini e Visconti); Deleuze estudou o cinema distinguindo-o do clássico ao moderno, a partir da imagem -movimento e da imagem-tempo, antes e depois de Godard, de certo modo, diríamos nós, dada que a transgressão godardiana se concretizou principalmente no plano estético, na linguagem cinematográfica, na concepção do olho, do espectador, da câmara, do homem13.

FELLINI : vida, poesia e sonho

Regis Frota Araújo

Uma das formas de compreender a essência da grandeza do trabalho de Federico Fellini seria situá-lo no contexto da produção cinematográfica italiana do pós-guerra.

O grande filósofo Gilles Deleuze, aliás, filosofou sobre a história do cinema dividindo-a, de certo modo, enquanto imagens-cristal, e a obra de Fellini, sobretudo o filme 8 e ½, é tomado como exemplo paradigmático da “imagem-cristal em formação,” aquela que não conhece cristal acabado; “todo cristal é, em direito, infinito, está se fazendo, e se faz com um germe que incorpora o meio e a força a cristalizar”14.

Deleuze exemplificou como Imagem-cristal perfeita ou pura toda a filmografia de Max Ophuls, em primeiro lugar; Como exemplo da imagem-cristal rachado a obra do cineasta francês Jean Renoir e, por fim, como exemplo da imagem-cristal em decomposição com os filmes do cineasta italiano Luchino Visconti (Leopardo, Obsessão da carne, Morte em Veneza, etc), é dizer, a revelação viscontiana de que algo chega tarde demais. É o “tarde demais” como dimensão do próprio tempo.

Mas, sobretudo, aqui não podemos deixar de ressaltar a certeira percepção filosófica deuleziana de que Fellini é o grande expoente da imagem-cristal em formação cuja exemplificação do filme 8 e ½, no dizer de Silvano João da Costa, é o cristal tomado em sua formação, crescimento e expansão que cristaliza tudo o que toca, tornando-o novamente espontâneo, multiplicando as entradas fellinescas. Contudo, antes de entrar em minúcias sobre a película que acabamos de ver, Oito e Meio, de Fellini, urge ponderar que tanto Federico Fellini quanto De Sicca e Visconti, todos reconheceram que o pioneiro do Neorrealismo italiano foi Roberto Rosselini cujos filmes como Roma, cittá aberta(1948), Alemanha, ano zero; Francisco, arauto de Deus; Stromboli; Europa 51; Viaggio a Italia (1954), etc., influenciaram a pegada neorrealista, incontornavelmente.

Walter da Silveira, ao descrever as noites de Federico Fellini, afirma que desde 1954, esse cineasta é uma personalidade polêmica. Nesse sentido, o filme La Strada (A Estrada da vida) que veremos, brevemente, em nosso ciclo rememorativo sobre Fellini, não ganhou apenas o segundo prêmio do Festival de Veneza: dividiu a crítica italiana, senão o cinema da Itália, em duas correntes opostas. Os partidários do neo-realismo, representado por Luchino Visconti, que concorrera com Sedução da Carne, mas não fora premiado, e os adversários da escola que, nascida da guerra, conferira ao país uma grande importância mundial, embora atingisse um esgotamento estético, do qual o estilo de Fellini valeria como uma superação, talvez uma negação.

Nomear os filmes de ROSSELINI, de VISCONTI, e de VICTORIO DE SICCA

A ambiguidade de Fellini, dotando-o de um hermetismo que não estava em suas intenções, parte mesmo desta contradição que significa a morte de um dogma cinematográfico: a palavra valer mais do que a imagem. Ou o espectador se integra no novo processo do cinema, deixa de ser um emotivo num círculo de passividade, adquire a estrutura de um lógico que reage diante do que vê e ouve, ou não penetra no mistério de filme como “A doce vita” “As noites de Cabíria” ou de Oito e Meio, ou seja, não penetra na ideologia felliniana. Ideologia, digamos assim, que se tornou ainda mais enigmática em 8 ½ na medida e porque Fellini o realizou intencionalmente equívoco, numa fascinante metáfora, com malícias oníricas. Autocrítica de suas concessões e dubiedades, fere implacavelmente quantos o rodeiam, industriais e mercadores do filme, colaboradores de criação cinematográfica, o público e a imprensa. Numa perspectiva profética, percebemos que 8 ½ esclareceu todo o drama pessoal do cineasta italiano. Não apenas o do próprio Federico Fellini. Mas, de quantos, como ele, serviram e servem a uma arte opressora, aniquilante, despótica.

Que havia em Fellini de singular, quais as suas intenções e os seus mistérios?

Fellini vinha do mais puro e autêntico neorrealismo: o de Roberto Rossellini. Argumentista de Roma, cidade aberta e “Paisá,” assistente de direção destas duas datas fundamentais do neo-realismo, fora dentro da concepção do filme-testemunho que participara também como um dos roteiristas de “Sem piedade”, de Alberto Lattuada ou “Em nome da Lei” , de Pietro Germi. Nem estaria fora do senso neo-realista quando, de novo, com Rossellini, tivera aquela visão insólita dos fioretti de São Francisco em “Francisco, arauto de Deus,” um dos mais válidos exemplo de despojamento dramático no cinema. E o neo-realismo ainda o acompanhava em Mulheres e Luzes, sua estreia na direção, numa co-autoria com Alberto Lattuada: o pequeno drama da companhia teatral adequava-se bem ao estilo cinematográfico vigente na Itália do inicio dos anos 1950.

Notas Finais

1Professor de Direito Constitucional, editor da Revista GRUA e integrante da Academia Cearense de Cinema

2Conferir de ARAUJO, Regis Frota : “Ensaios sobre o cinema moderno”, Premius Editora, Fortaleza, 2019.

3Recomendo, a propósito, a leitura do livro autobiográfico de Jean-Paul Belmondo, escrito com a colaboração de Sophie Blandinières, “Mille vies valent mieux qu´une”, da Editora Librairie Arthème Fayard, 2016, com tradução de Lavínia Fávero, pela L&PM Editores, Porto Alegre, Primavera de 2018: “Mil vidas valem mais do que uma”. O famoso ator Belmondo descreve ali, com sinceridade, acerca de sua infância e maturidade, artística e pessoal, chamando especial atenção para o traslado de sua atuação teatral na “Comédie Française” ao cinema, após desclassificação por júri professoral, de Amor e Piano, de Georges Feydeau, em 1955, cujo personagem Éduard, protagonizado por Belmondo, desclassificado porém, ovacionado pelos colegas e público presente. Narra, ademais, como iniciou a atuação no cinema:

“Uma caixa de papelão, por exemplo, pode servir de bola e dar o impulso para uma partida de futebol improvisada diante do café da Comédie-Française. um dia, graças a essa improvisação, sou abordado por um homem que me pergunta, suscitando no nosso grupo uma explosão de risos: “O senhor não gostaria de fazer cinema?” Tratava-se do cineasta Henri Aisner que convidava Belmondo para estrear com “Os companheiros de domingo”. Adiante, Belmondo afirma que “escolheu ser ator e se recusou a ser espectador”.

4Observe-se que estamos ante uma característica godardiana do cinema moderno, por ele criado e multiplicado em filmes como Vivre sa vie, le mépris, Pierrot, le fou, les carabinniers, Alphaville, Tout va bien e Week-end. Consoante percucientemente observado por Robert Stam (in O espetáculo interrompido- literatura e cinema de desmistificação, da editora Paz e Terra, tradução de José Eduardo Moretzsohn, Rio de Janeiro, 1981, pag. 57), “os personagens de Godard tendem a imaginar suas vidas através de lentes cinematográficas deformadoras. Em O acossado (A bout de souffle,1959), Michel Poicard arremeda o estilo duro, porém sentimental, de Humphrey Bogart, esfregando seus lábios enrugados com ares de calejada indiferença”.

5Op. Cit. Página citada. Resume, destarte, o teórico: “ Visto que a matéria da arte auto-reflexiva é a própria tradição – a ela se fazem alusões, com ela se brinca, se supera e se exorciza – a paródia, por conseguinte, passa a ter importância capital. E a paródia implica algumas verdades óbvias quando se refere ao processo de criação artístico. A primeira é que o artista imita, não a Natureza, e sim outros discursos artísticos. Se pinta, se escreve ou se faz filmes ( como Godard) é porque viu quadros, leu romances ou assistiu a filmes. O romancista faz uma imitação, afetuosa ou hostil, de outros romancistas que porventura tenha lido. O artista obedece a uma tradição: o médium, o gênero e o subgênero pré-existem ao artista.” Idem, ibidem.

6STAM, Robert: “O espetáculo interrompido”, cit. Pag. 90, quando adiciona que “Godard demonstra, com frequência, o afastamento de seus personagens em relação à cultura tradicional. Conversando com Michel (Belmondo) , em Acossado, Patrícia (Jean Seberg) menciona William Faulkner. Michel Poicard pergunta : “ Qui est-ce? Tu as couché avec lui?”... Como afirmado, anteriormente, Godard parodia os filmes de gangster em Acossado, parodia os musicais em Une femme est une femme, e parodia os filmes de faroeste em Vent d´Est. A paródia é o meio de que o artista dispõe para utilizar, de maneira crítica, sua própria cultura, e, ao mesmo tempo, para eliminar as formas tradicionais e antiquadas de narração. Jean-Luc Godard defende, destarte, uma revolução permanente na arte.

7En “The harder they fall, dirigée pour Mark Robson, 1956, ” Eddie Willis(Humphrey Bogart), journaliste sportif au chômage, accepte l’offre de Benko, un manager de boxe corrompu, pour monter une combine qui les rendra riches. Ils profitent de la naïveté de Toro Moreno, un boxeur lourd et pataud, pour abuser du public auquel ils le présentent comme une force de la nature. Match après match, Toro écrase ses adversaires et gagne la sympathie du public qui, comme lui, ignore que chaque rencontre est truquée. Après avoir accepté toutes les compromissions, Eddie finira par écrire un article sur le racket dans le milieu de la boxe. (Cfr.Wikipaedia, vista em 06.9.19)

8Para quem tiver interesse das idiossincrasias pessoais e profissionais desse famoso diretor de cinema, sugiro a leitura do seguinte livro: “GODARD, Biographie, de Antoine de Baecque, da editora Bernard Grasset, Paris, 2010., inclusive com caderno de fotos entre as páginas 336 e 337 e, igualmente, interessantes e raras fotografias do cineasta entre as páginas 672 e 673, antes de iniciado o capitúlo epigrafado :“Historien du XXe Siècle- 1988-2000”.

9Note-se o pioneirismo estético godardiano do uso de letreiros luminosos públicos para fazer avançar ou prosseguir a narrativa imagética e audiovisual do filme, prenhe de informações literárias e intertextuais. A propósito, Stam comenta muito bem que pouco “pode fazer um cineasta anti-ilusionista para subverter um código de perspectiva construído dentro das próprias fotografias que, uma a uma, formam o filme...” Talvez o uso de lentes que provocam perspectivas anormais, mas conclui que “por considera-las já integradas à estética naturalista, Godard evita as teleobjetivas e as grandes angulares”. Op. Cit. Pag. 161.

10Vejam que Jean-Luc Godard liderou o movimento conhecido por Nouvelle Vague, tendo feito discípulos tanto na cinematografia francesa como além mar. Lembro o exemplo de Rogério Sganzela, no Brasil, o qual imitou, à exaustão, ao mestre no filme O bandido da luz vermelha, nos anos 70, todo narrado através de letreiros luminosos.

11TAVARES, Bráulio: “ Cinco ou seis coisas que eu sei sobre Alphaville”, apud GRUA, por mim editada, em 2012, Fortaleza, pags. 28 a 35. Afirma, ainda, o articulista que “ Howard Hawks deu sua fórmula para um bom filme: “ Três cenas boas e nenhuma ruim”. É uma definição exemplar para um filme normal. Um filme B, em contrapartida, seria: “ Se tiver três cenas boas, todas as outras podem ser ruins”. O filme B não tem medo de atingir abismos, desde que confie no próprio impulso para, cinco minutos depois, atingir um pico de qualidade. O filme B feito por intelectuais (é o caso de Acossado, de Godard)é o último reduto de liberdade criativa, desde que seja assumidamente B em sua orgulhosa precariedade técnica, E que seja corajosamente intelectual ao dizer: “ É só um filme B, mas toda a memória cultural do mundo cabe dentro dele”. É assim.

12Conferir, para quem tiver interesse no tema, o ótimo livro de BAECQUE, Antoine de, Cinefilia, o qual reflete sobre toda a formação intelectual e cultural do grupo do Cahiers du Cinema, liderado por Jean-Luc Godard e Truffaut, estes dois gigantes do filme-B feito por intelectual.

13Conferir de MACHADO, Roberto: “ Deleuze, a arte e a filosofia”, Zahar editores, Rio de Janeiro, 2ª edição, 2010. Igualmente, esclarecedor mostra-se o belo livro de memórias de uma das atrizes prediletas e mulher de Godard, por algum tempo, “ Um ano depois”, de Anne Wiazemsky, com tradução de Julia da Rosa Simões, da editora Todavia.

14DELEUZE, Gilles: A imagem-tempo, tradução de Eloisa de Araújo Ribeiro, S.Paulo, Editora Brasiliense, 2007, apud Silvano Joao da Costa, in “Deleuze vai ao cinema”, pag. 49.

Referencias

BAECQUE, Antoine de : Cinefilia, invenção de um olhar, história de uma cultura, 1944-1968, Cosacnaify, São Paulo, 2010.

BAECQUE, Antoine de : GODARD, Biographie,, da editora Bernard Grasset, Paris, 2010

MACHADO, Roberto: Deleuze, a arte e a filosofia, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 2010.

STAM, Robert: “O espetáculo interrompido- literatura e cinema de desmistificação, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1981

TAVARES, Bráulio: “ Cinco ou seis coisas que eu sei sobre Alphaville”, apud GRUA, Revista Estética do Filme, Editores Alder Teixeira e Regis Frota, Fortaleza, 2012

WIAZEMSKY, Anne : Um ano depois, Editora Todavia, Tradução de Julia da Rosa Simões, 2016