Framing the Rural – Finding narratives in the making of a documentary about Amiais, Portugal

Enquadrando o Rural – A busca de narrativas na construção de um documentário sobre o lugar dos Amiais, Portugal

Rodolfo Gomes Pereira

Universidade de Aveiro, Portugal

Lídia Oliveira

Universidade de Aveiro, Portugal

Ana Carla Amaro

Universidade de Aveiro, Portugal

Abstract

This paper covers the making of a documentary film about LOCUS - Playful Connected Rural Territories, a project developed by the University of Aveiro, and the projects relations with the land of Amiais, a small village in central Portugal where 20 people, mainly seniors, live. LOCUS’ objective is to develop a way to use the internet of things as means to promote intergenerational interaction while exploring and learning about rural territories’ cultural heritage.
In a first moment, we make a short reflection over the portraits of rural Portugal in documentary films and after we focus on the process of conception and production of a short documentary film about rural Portugal.
We found out that there are several ways to frame the rural. A series of preconceived ideas dominate what we perceive as the countryside and the people that live in it. Those social representations are often marked by an idea of immutability, like the rural is the same as it always was, a place that is frozen in time when, in truth, the rural has been going through several changes in its landscape, changes that are provoking a sort of identity crisis.

Keywords: Documentary Film, Rural Films, Scientific dissemination, Social Representation, Film studies.

Introdução

Existem diversos enquadramentos do rural no audiovisual, sejam eles na TV, nomeadamente, em novelas, séries e reality shows, ou em filmes de ficção e documentários. Esses retratos são diversos, existem os que são bem-humorados e evocam os personagens rurais como uma forma de escape, outros ainda são fatalistas e retratam o rural como um espaço que deixa de ser o que é, com o avanço da urbanização e tecnologia.

Essas são algumas das muitas narrativas que existem sobre o campo e as pessoas que nele moram.

Este artigo debate algumas dessas narrativas sobre o rural, especialmente o rural português, em um processo de pesquisa que possibilitou a feitura de um documentário em curta metragem sobre os Amiais, uma pequena povoação no limite do distrito de Aveiro, da região centro de Portugal. O filme foi realizado no âmbito do Projecto LOCUS1, acrónimo para “Playful Connected Rural Territories: The Internet of Things in the intergenerational creative production of cultural georeferenced contents”, projeto sediado no Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro-Portugal (https://locusproject.pt).

Imagem 1 – Eira comunitária de Amiais e pictogramas do LOCUS

LOCUS é um projeto multidisciplinar que propõe o co-desenho, desenvolvimento e avaliação de um sistema IoT (Internet of Things) e a compreensão do seu potencial para suportar o envolvimento intergeracional em atividades lúdicas de criação e exploração de conteúdos culturais e de aprendizagem da Herança Cultural dos territórios rurais (Amaro and Oliveira 2019b) da Região Centro de Portugal, nomeadamente, da Aldeia dos Amiais, em Sever do Vouga. A preservação e promoção da Herança Cultural e da criatividade são cruciais para a identidade e construção de sociedades coesas, inclusivas e pluralistas. Os significados e valores da Herança Cultural emergem das cadeias de conetividade que ligam seres humanos, artefactos, lugares e práticas e a IoT oferece potencial de materialização dessas conexões. O LOCUS pretende contribuir, numa abordagem lúdica e imersiva ao Turismo Cultural, para promover o desenvolvimento socioeconómico de Amiais e a comunicação intergeracional, como meio de evitar o isolamento e contribuir para um envelhecimento ativo e saudável.

LOCUS irá desenvolver um sistema IoT, que proporcionará experiências imersivas gamificadas, aprendizagens colaborativas sobre a Herança Cultural e a produção e partilha de conteúdos multimédia georreferenciados. Através de etiquetas RFID e QR Codes, serão marcados pontos de interesse e objetos, de acordo com cenários e narrativas lúdicas sobre a Herança Cultural da aldeia. Os visitantes poderão interagir com os objetos usando os telemóveis e um bracelete com leitor RFID e sensores, que irá identificar os objetos e a forma como são manipulados. O sistema responderá tocando sons, mostrando realidade aumentada, solicitando o envio ou partilha de conteúdo multimédia, a busca de um novo objeto, etc.

O projeto irá desenvolver e testar uma estratégia para integrar as metodologias de Desenho Participativo e Desenvolvimento Ágil, e através da qual envolver moradores, visitantes e instituições no processo de co-desenho, desenvolvimento e avaliação de um sistema IoT. Estudos de caso em larga-escala com diferentes grupos de utilizadores irão fornecer uma plataforma para a avaliação do sistema em contexto real e com utilizadores reais. O LOCUS pretende ainda desenvolver estratégias para a sustentabilidade do sistema IoT e um modelo para a promoção de territórios rurais numa abordagem imersiva e lúdica, permitindo migrar a estratégia de intervenção do LOCUS e o sistema IoT para outros territórios similares (Amaro and Oliveira 2019a).

Neste sentido, o LOCUS tem um lugar de trabalho bem definido, os Amiais. Pequena aldeia no conselho de Server do Vouga onde vivem certa de 20 pessoas, em sua maioria idosos, que vivem de suas aposentadorias e da agricultura. Amiais localiza-se à beira do Rio Vouga, no qual foi realizada uma barragem hidroelétrica que alterou a paisagem da aldeia, proporcionando um extenso lençol de água. O qual alterou a dinâmica de uso do solo agrícola que ficou submerso, mas que por outro lado deu um novo encanto ao lugar, o que faz com que a população tenha um sentimento ambivalente face a esta nova paisagem, de perda e de encanto.

Imagem 2 – Vista geral do lençol de água que dá uma nova imagem a Amiais

A dinâmica de investigação do LOCUS em Amiais faz-se num diálogo de proximidade com os habitantes, que narram as suas histórias de vida e a significação atribuída aos elementos do seu quotidiano e da paisagem. O rural é para eles algo presente e transparente que tece o sentido das suas existências. A metodologia do projeto LOCUS prevê a escuta permanente e a participação ativa dos habitante de Amiais numa estratégia de co-design, conceito definido por Sanders e Stappers (2008) como “atos de criatividade coletiva” onde pessoas com conhecimento técnico se juntam com pessoas sem esses conhecimentos específicos em prol de desenvolverem juntas soluções criativas.

O filme documentário debruça-se especialmente sobre essas primeiras sessões de design participativo onde os pesquisadores se reuniram com os moradores dos Amiais, os quais compartilharam histórias e vivências.

Porém, antes de relatarmos a realização do filme em si, se faz necessário um pequeno panorama sobre os quadros audiovisuais que são pintados sobre o rural, numa breve exploração sobre o que se narra desse ambiente.

Quadros do Rural

O cinema é muito relacionado ao urbano, eles parecem ser companheiros naturais, já que o cinema é uma arte muito pautada pelo progresso científico, mas quando as lentes se voltam para o campo surge um cinema rural definido por Fowler e Helfield (2006, 2) como um cinema mais preocupado com as pessoas e suas tradições. Segundo os autores, as características fundamentais do cinema rural são a preocupação com a terra, a conexão com o passado e a forma como ele age como um conector ideológico que trava uma conversa entre identidade e espaço.

Essas representações do rural podem ser também negativas já que “far from a harmonious relationship with nature, the rural inhabitants may be subjugated to its whims, may be oppressed by it, and may be enslaved and exploited by the land they so carefully tend due to their lowly socioeconomic status.” (Fowler and Helfield 2006, 6).

Uma das primeiras imagens que podem ser invocadas do imaginário popular sobre o campo e que traz essa dimensão da importância da terra é a do espaço rural como paraíso idílico, imutável, pacífico e estagnado. Lugar onde as tradições imperam. De certa forma, esse modo de ver o rural pode ser relacionado ao arcadismo e fugere urben, um de seus lemas. Diversas são as obras audiovisuais que retratam essa fuga da cidade e busca pelo autêntico no campo. Esse contraste entre o urbano e o rural tem exemplos variados na tela.

O filme “Na Natureza Selvagem” (Penn 2007), mostra um protagonista que, literalmente, foge da urbanidade em busca de autenticidade no campo. O personagem principal, um jovem de vinte e poucos anos, decide abandonar tudo para viver a grande aventura do autodescobrimento ao se isolar cada vez mais na natureza. É curioso perceber que o protagonista é sempre glorificado em sua busca, retratado como autêntico e idealista, enquanto seus pais são mostrados como hipócritas (Korteweg and Oakley 2014, 135).

Não é preciso ir longe para encontrar outros exemplos dessa narrativa que mostra o rural idealizado. Na novela “Bem-Vindos a Beirais” um homem de Lisboa sofre um trauma grande e decide abandonar a vida da cidade e ir viver uma vida idílica na aldeia de Beirais.

Ou mesmo outro produto televisivo, o reality show “Quem Quer Casar com o Agricultor?”, formato originado no Reino Unido que consiste em colocar mulheres acostumadas com o ambiente urbano para serem confrontadas com as dificuldades do trabalho do campo.

O rural nas obras desse estilo é retratado como o original, o masculino e autêntico enquanto o urbano é danoso, hipócrita, feminizado (Bell 2009, 548).

“Bem-Vindos a Beirais” ainda se enquadra na categoria de novela rural, especialmente no subgênero das comédias rurais, que tem muitos exemplos inclusive no Brasil sendo comuns a elas a glorificação do tradicional e da terra (Baltazar 1996).

No Brasil, o nome maior dessas comédias que representam o rural é Amácio Mazzaropi, comediante, ator, diretor e roteirista com uma extensa e bem-sucedida carreira, participando de 32 filmes ao todo, entre os anos de 1952 e 1982, chegando a gravar uma coprodução entre Brasil e Portugal chamada “Portugal... Minha Saudade”. Nesse filme de 1973, escrito, dirigido e estrelado por ele, dois irmãos gêmeos (interpretados pelo próprio) se reencontram depois de muitos anos. Os irmãos são muito diferentes, um deles viveu no Brasil a vida toda, é um homem simples e do campo, que ganha a vida vendendo frutas na rua e é sempre humilhado pela esposa de seu filho, enquanto o outro é um homem de negócios de sucesso em Lisboa. No filme o conflito reside na forma em que, mesmo com todo o conforto e prosperidade que seu irmão bem-sucedido oferece, o personagem de Mazzaropi ainda prefere a simplicidade da sua vida no Brasil.

Esse conflito do rural com o urbano é muito presente nos filmes do diretor. Existe sempre um conflito entre o citadino e o caipira, o homem rústico do interior, muito esperto e bem-intencionado. Alguns filmes dele exploram especialmente esse momento em que a urbanização é expandida e as pessoas do campo precisam emigrar pra a cidade, retratando o rural como algo puro, mas em conflito com poderes maiores (Carniello and Santos 2010).

Esse conflito entre o urbano e o rural no contexto Português é retratado em dois importantes filmes documentários que comentaremos a seguir.

Rural Português

O rural em Portugal passa por um período de transição, o que lhe atribui nova importância. Anteriormente as suas funções comumente vistas como primordiais, como a agricultura, dão agora lugar a outras formas de exploração: “O rural que daqui emerge é sobretudo um rural entendido como pós-produtivo, que estando já depois da agricultura ainda não ultrapassou a longa identificação com aquela atividade. Por isso mesmo, enfrenta uma crise de identidade” (Figueiredo 2012, 2)

Em Portugal é curioso ver também a perceção do público sobre esse espaço. Falando sobre o rural português, Figueiredo (2018), a partir de pesquisa realizada com pessoas da população portuguesa, identifica 5 agrupamentos principais de ideias sobre o rural português, são eles: os ‘anti-idílicos’ que veem o rural como uma área ocupada; os ‘derrotistas’ que veem o rural como uma área desfavorecida; ‘os confiantes’ que pensam o rural como uma área de desenvolvimento; ‘os idealistas’ que pensam no rural como áreas idílicas, e os ‘amantes da natureza’, que dão foco às paisagens e recursos naturais.

Dois documentários se colocam nesse espaço de representar o rural de forma a valorizar a terra, se preocupam com o passado e a tradição e também buscam uma ideia de identidade nacional, são eles “O Movimento das Coisas” (Serra 1986) e “Volta à Terra” (Plácido 2014).

Em “O Movimento das Coisas”, filme de Manuela Serra, é muito forte a ideia de captura de um momento da história e da identidade nacional portuguesa que estava acabando. A obra começa a ser esboçada em 1976, é gravada em duas sessões entre os anos 1979 e 1980, e só finalizada em 1985, num processo que dura quase 10 anos. O filme concentra seu olhar no quotidiano, nas pequenezas da vida do campo, ao mesmo tempo em que discute de forma emergente as mudanças sofridas na sociedade após a revolução de 74. Sem nunca identificar o lugar onde é gravado, tenta fazer daquele retrato algo global do que o país passava.

Para Manuela Serra, em entrevista concedida para Ilda Teresa De Castro (Castro 2012), o filme é uma forma de forçar as pessoas a pararem e olharem para trás, testemunhando uma forma de vida que, para ela, acabou. Para a realizadora o filme é um retrato de uma mudança na dinâmica da vida no rural, uma mudança que trouxe perda de qualidade de vida.

Assim, “O Movimento das Coisas” se encaixa no costume do cinema rural de capturar a tradição cultural de um povo. Com diversas cenas longas em que são retratados quase à exaustão os modos de trabalho, as dinâmicas familiares, os convívios e as festas de uma vila não especificada no norte de Portugal.

“Volta à Terra”, documentário de João Pedro Plácido, também compartilha desses motivos, mas aqui focando-se na figura de um pastor, um dos últimos jovens a optarem pela profissão. Neste filme, o sentimento de pessimismo ao retratar a história desse personagem e seus conflitos com o estrangeiro é clara.

Passado em Uz, uma aldeia localizada nas montanhas do Minho, onde as casas são de pedra e as pessoas sobrevivem das atividades agrícolas e pastorícias. Em Uz, vivem 49 pessoas, todas as outras emigraram para outras localidades. O filme busca retratar através de um ano, e das quatro estações que o compõe, a vida nesse pequeno lugar.

Em Uz encontramos dois personagens principais, António, homem que já foi emigrante, mas que agora voltou para sua aldeia de origem, e Daniel, o mais jovem pastor daquele lugar, um rapaz que sonha em encontrar o amor.

Desde sua origem, “Volta à Terra” busca ativamente retratar um rural que ainda resiste e se encontra distante da velocidade das coisas modernas. Mesmo que esse rural ainda só exista como conceito, como ficção. Uz é o mais próximo disso e mesmo lá existem influências da cidade, o campo se transforma, mesmo que aqui esse registo seja feito com um lamento. Aqui, se lamenta pelo passado com todas as letras, a figura do pastor, profissão quase extinta, é exaltada ao mesmo tempo em que o futuro se mostra incerto. Uz vai acabar assim como o rural idílico, puro, vai acabar também.

Se tentarmos ver o filme através do prisma ideológico, do cinema rural como ferramenta de manutenção de uma identidade nacional, “Volta à Terra” aparece como um defensor quase derrotado, mostrando seus personagens principais em conflito com estrangeiros quase sempre de forma ressentida. Chama especial atenção uma cena em que o pastor Daniel conversa com uma criança de sua família. O menino só fala francês, não pára um segundo, enquanto Daniel tenta interagir, repetindo que só sabe falar Português.

Esses dois documentários expõem de certa forma essa tradição de retratar o rural como um espaço originário, puro, em constante conflito com o urbano, sujo e opressor. Esse conflito é visto de forma muito mais ressentido e resignado do que necessariamente enraivado. A mudança é vista como natural e, apesar de ser jogado sobre esses temas um olhar de pesar, eles são retratados só como o movimento natural das coisas.

O Filme sobre LOCUS em Amiais

Estes dois filmes - “O Movimento das Coisas” (Serra 1986) e “Volta à Terra” (Plácido 2014) - além das referências teóricas aqui citadas, foram fundamentais para que o Rodolfo Pereira, membro da equipa com responsabilidade de conceção e produção do filme, brasileiro que vivia em Portugal há pouco mais de um ano na altura em que o filme foi realizado, tivesse pelo menos um ponto de partida para entender, mesmo que de forma rasa, como funciona o rural português e quais são as narrativas contadas sobre ele.

Diversas referências de cinema rural foram levantadas, chamando especial atenção aquelas que tinham também como objetivo a divulgação científica. Foi observada uma tendência das curtas relacionadas a projetos científicos, especialmente os que têm como objetivo o desenvolvimento de um produto, de carregarem uma carga muito institucional com obras que se assemelham mais do cinema publicitário.

Para o filme sobre os Amiais foi decidido nesse primeiro momento seguir um caminho diferente, menos focado no projeto em si, mas sim na interação dele com os moradores dos Amiais. A metodologia de co-design seguida no Projeto LOCUS coloca dos habitantes locais como elementos centrais do desenvolvimento do projeto, e sendo assim é fundamental ouvi-los a contar as suas próprias histórias, pessoais e coletivas.

Além desses, outra referência importante para o processo de conceituação e elaboração dos documentos de pré-produção do filme foi “Harvest: A Rural Spain Anthology” (Vivanco 2018), série de filmes sobre as tradições rurais e sobre os produtos produzidos nesses espaços em diversas partes da Espanha. Os filmes têm um clima comum de contemplação do trabalho, com planos longos e geralmente parados. Os sons da produção são sobrepostos com o som não diegético de entrevistas que falam não só sobre o trabalho em si, mas sobre a vida dos trabalhadores.

Outra referência que vale ser mencionada é “O Fim e o Princípio” (Coutinho 2006), documentário de Eduardo Coutinho lançado em 2006. Nesse filme, o cineasta junto de sua equipe viaja até uma comunidade no interior do nordeste brasileiro, região semiárida, conhecida pela dificuldade e precariedade da vida. Sem uma pesquisa prévia muito desenvolvida e sem personagens pré escolhidos, Coutinho acaba focando o filme em Araçás pequena comunidade pertencente à também pequena vila de São João do Rio do Peixe, no estado da Paraíba. O cineasta permite-se conversar com diversas figuras das 86 famílias que vivem por lá, dando especial atenção às histórias que os mais velhos contam.

Não necessariamente de propósito, o filme acaba se tornando um retrato sobre a velhice. Coutinho, também idoso na época da feitura da pelicula, se posiciona próximo aos seus entrevistados, mostra-os de frente, ouve as suas histórias sem a intenção de montar um panorama sobre a vida nessas pequenas sertanias, mas sim, sobre as pessoas que encontrou (Mesquita and Lins 2014, 55).

Assim, enquanto “Harvest” ajudou na forma do filme, em pensar em como ele poderia ser estruturado, “O Fim e o Princípio” nos atentou à necessidade de ouvir as pessoas de forma aberta, de ouvir o que elas querem falar, o que legitima esse processo de encontrar no filme o discurso não oficial, na aproximação com as pessoas.

Após esse mergulho nas narrativas que são contadas sobre o rural e, especialmente, nas narrativas do rural português e como ele é retratado no audiovisual, foi amadurecendo a compreensão sobre a forma como o filme retrataria os seus personagens.

Os objetivos principais a serem atingidos eram: retratar Amiais e as pessoas que lá vivem e também mostrar a relação dos habitantes com os investigadores do projeto LOCUS, no ato de colaboração ativa de construção de conhecimento.

O filme foi gravado em 3 idas aos Amiais:

A primeira, no dia 28 de setembro de 2019, teve como objetivo o registro de um dia de festa, uma desfolhada. Nesse dia foram também realizadas entrevistas com duas moradoras da região que falaram de forma livre sobre as suas impressões sobre o lugar. De forma rápida, o clima dos depoimentos foi invadido por uma nostalgia. As duas falavam do passado com saudade, ao mesmo tempo que ressentiam o presente. A falta de interesse dos mais jovens pelo trabalho no campo foi ressaltada, “ninguém mais tem amor à terra”, ao mesmo tempo em que as duas senhoras assumiam o quão difícil é esse serviço. Além disso, é muito marcado no discurso delas a migração dos mais jovens para as cidades maiores, como Lisboa e Porto, ou até mesmo para outros países.

Conversando com outras pessoas de lá, durante a festa, era curioso como a história de um garoto que cresceu lá, brincando naquelas pedras, e que agora era engenheiro em um país do norte da Europa era contada com orgulho, ao mesmo tempo que não demorava muito tempo de conversa para aparecer esse ressentimento com os mais jovens que querem emigrar.

Era claro também o orgulho daquele espaço de terra, especialmente porque as entrevistas foram conduzidas por dois brasileiros, fato que poderia causar algum bloqueio, mas acabou por servir de facilitador de conexões. O orgulho por ver “pessoas de fora” interessadas por aquelas histórias foi verbalizado pelas entrevistadas.

A segunda e terceira idas aconteceram em 25 de novembro e 7 de dezembro de 2019. Nesses dias foram realizadas as duas primeiras sessões de co-design e o seu registro audiovisual.

Foram gravadas as interações entre os pesquisadores e os moradores dos Amiais em um contexto muito mais íntimo ao invés de uma festa grande, com muitas pessoas externas àquela comunidade como na primeira ida.

De forma natural, os pesquisadores do LOCUS conversavam com os moradores em busca das histórias e tradições, fazendo com que os registros dessas sessões fossem mais guiados. Nesses encontros também foram gravadas as imagens de cobertura e alguns registros dos sons dos ambientes dos Amiais.

Além dos sons e imagens que foram gravados nessas três oportunidades, o filme também contou com entrevistas em áudio previamente realizadas com o presidente da junta de freguesia de Couto de Esteves e com alguns moradores, além de imagens dos Amiais e de outras festas que lá aconteceram.

O filme começa com uma sequência de imagens quase estáticas do cenário que ronda os Amiais, sem pessoas. As ruas de terra cobertas de folhas caídas, as pedras das edificações cobertas de lodo, o rio e seu ruído, presença constante ali.

Figura 3 – Vista aérea de Amiais

No áudio, uma das entrevistas realizadas no primeiro dia dialoga com a entrevista realizada com o presidente da junta de freguesia, fazendo assim um encontro do discurso oficial com os relatos das histórias contadas por aquelas pessoas. A vontade de focar o discurso do filme nos moradores esbarrou em um problema, já que nas entrevistas com os moradores não tínhamos material suficientemente bom, devido a ruídos e sons sobrepostos, que não permitiu o seu uso para a introdução dos Amiais para o espectador. Face a isso optou-se por inserir uma fala de um representante de um órgão oficial como é o presidente da junta de freguesia, para facilitar a narração lógica do filme. Ainda assim deve-se sublinhar que ele é também alguém que nasceu e cresceu naquele território, conhecedor das pessoas, das tradições e das dinâmicas do lugar.

A seguir, somos levados às imagens da desfolhada, começamos a ver os indivíduos daquele lugar, os ruídos das pessoas se tornam mais presentes e continuam pelo resto do documentário.

A seguir, imagens das reuniões de co-design. No som, os pesquisadores do LOCUS explicam o projeto para os moradores e ouvem seus relatos.

Assim, no ritmo do filme somos apresentados primeiro aos Amiais, o lugar em si, logo em seguida às pessoas que lá habitam e em um terceiro momento, a partir do segundo terço do filme, ao LOCUS e aos objetivos do projeto.

Todos os registros que estão em tela são naturais e capturados sem muita intervenção pensada para o filme, mantendo um clima mais de registro de um momento do que uma tentativa de ser generalista.

Foi impossível fugir de alguns dos temas do cinema rural explorados no início deste texto. Era muito presente nas falas dos participantes o amor à terra, o conflito com as mudanças impostas pela urbanização e a reverência às tradições.

Foi especialmente curioso perceber que esse discurso do trabalho bom da terra, da realização através do sacrifício, é também contestado pelas próprias pessoas que lá estão, sendo curiosa a forma como, principalmente as primeiras entrevistadas, parecem expressar duas opiniões contrárias ao mesmo tempo: queriam que as pessoas não fossem embora e valorizassem o que temos aqui, ao mesmo tempo que têm orgulho dos que foram embora.

Conclusão

É interessante perceber que as narrativas sobre o rural, mesmo com suas particularidades, têm em si, de certa forma, características que se repetem e são comuns mesmo nos lugares mais diversos. O discurso sobre a dificuldade do trabalho, a valorização da terra e o lamento sobre as transformações causadas no rural pelo processo de urbanização é comum tanto nas obras que retratam Portugal e Espanha como nas Brasileiras.

Ao realizar esse pequeno filme documental sobre esse lugar dos Amiais, foi possível uma aproximação com os discursos sobre os processos que o rural passa. Ouvir o que as pessoas daquele lugar contam sobre a trajetória do lugar e das suas vivências.

O produto final acabou se fechando na ideia de um registro de um período específico desse encontro entre os investigadores do Projeto LOCUS e os moradores dos Amiais. O filme captura esse momento de um projeto longo que possibilitará com que mais pessoas tenham acesso às histórias e costumes daquelas pessoas. O importante é sublinhar que as pessoas de Amiais são consideradas membros da equipa do Projeto LOCUS, dado que elas são o elemento crucial do processo de co-design que é o elemento metodológico estrutural. Quer no filme quer em todas as atividades a ideia é dar a voz e valorizar essas pessoas que têm em si a riqueza primordial da herança cultural imaterial daquele lugar.

Existe a possibilidade de que esses registros continuem. A ideia é que esse trabalho possa ser ainda mais desenvolvido com a criação de uma série de podcasts documentais, focados em entrevistas com os moradores de Amiais, conduzidas através do método de histórias de vida.

Esses podcasts têm como objetivo criar um panorama sonoro da vida nos Amiais, os ruídos característicos, as falas e trejeitos das pessoas que lá estão, complementando o filme na forma que aumentaria o escopo dos que são ouvidos.

Notas Finais

1 LOCUS - Playful Connected Rural Territories: The Internet of Things in the intergenerational creative production of cultural georeferenced contents, é um Projeto da Universidade de Aveiro, em parceria com o Instituto de Telecomunicação e do Instituto Politécnico do Porto. O projeto, com a referência POCI-01-0145-FEDER-029228, tem o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia/MCTES, através de fundos nacionais e, quando aplicável, cofinanciado pelo FEDER, no âmbito do novo acordo de parceria PT2020.

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