AVANCA | CINEMA

Mrs. Maria makes movies

Dona Maria faz filmes

Alice Fátima Martins

UFG, CNPq, Brasil

Abstract

The presence of women as film directors remains very low, two decades after the beginning of the 20th century. In this sense, many publications have been analyzing the issue, taking into account the dynamics of large studios and the absence of women assuming relevant positions in their productions. But in low-budget productions, there are also few women taking the lead of the works. Even in the case of home movies, most of them are made by men. In this scenario, Dona Maria José Silva is an exception to the rule. Housewife, mother of a family, owner of a cheese shop, in Porto, lived a story in which she became a filmmaker with space in the media, recognized by artists of de cinema, in Portugal. In this paper, the main objective is to report aspects of his career, as well as his work. The analysis of the ways in which she produced her films can generate subsidies for adopting strategies aimed at training young women in gaining more spaces to act in key positions in film productions.

Keywords: Women, Cinema, Filmmakers, Maria José Silva, Education.

Antecedentes

Em mapeamento realizado com mais de 1.000 filmes catalogados como ficção científi ca (Martins, 2013), ou assemelhados, com data de produção situada entre 1902 e 2001, constatou-se que apenas 14 eram dirigidos por mulheres. Ou seja, represenatavam menos que 1,4% do levantamento em questão. Dentre as diretoras, havia aquelas que dirigiram mais de um dos filmes, de modo que o número de diretoras era menor que 14. Quase todos haviam seido produzidos nos Estados Unidos da América do Norte, falados em inglês. Ainda e assim, tratavam-se, todos, de trabalhos considerados menores, desimportantes, com orçamentos modestos, pouca repercussão e sem espaço nas redes internacionais de distribuição.

Dados como esse, dentre quantas outras evidências que têm sido apontadas mais recentemente, tornam imperativa a discussão sobre como as mulheres integravam o contexto das relações de produção no cinema, não apenas no ambiente das narrativas científico ficcionais, mas de um modo geral.

Seria de se supor, por exemplo, que o acesso mais restrito à atuação de mulheres como diretoras em grandes produções da indústria cinematográfica, como é o caso dos filmes classificados como de ficção científica, se desse, em parte, em razão dos orçamentos muito caros e de uma falta de confiança, por parte desse mercado milhionário, na competência feminina. No entanto, mais tarde, foi possível constatar ser essa uma hipótese equivocada.

Foi realizada uma segunda pesquisa, envolvendo quatro estados brasileiros, entre os anos de 2009 e 2016, abordando já não filmes de grandes orçamentos, mas, ao contrário, filmes realizados precariamente, sem financiamento, sem infraestrutura, cujos diretores não tenham formação na área do cinema e do audivisual, com baixa ou baixíssima escolarização. Foram mapeados agentes de cultura fora dos circuitos oficiais do cinema e daarte, atores populares que realizam seus trabalhos à revelia das condições consideradas fundamentais.

Ora, era de se esperar que, ao enveredar por narrativas fílmicas resultantes de exercícios supostamente mais livres, a questão da presença ou ausência de mulheres pudesse ganhar contornos diferentes. Contudo, no mapeamento inicial, as mulheres que tomaram parte da pesquisa assumiam tão somente papéis coadjuvantes. Quase sempre presentes, eram indispensáveis em alguns casos, mas sempre secundárias. Na melhor das hipóteses, atuavam como atrizes, assumindo o papel de coadjuvante do protagonista. Homens assinavam a direção e a produção de todos os filmes pesquisados. Uma tal constatação resultou na publicação do livro intitulado “Outros fazedores de cinema” (Martins, 2019), cuja adoção do pronome e do substantivo no masculino não resulta da regra gramatical vigente, mas da indicação efetiva do gênero dos sujeitos que pronunciam, tomam decisões e assinam as histórias contadas: homens.

Na segunda década do século XXI, ganhou força e visibilidade a mobilização de mulheres realizadoras no campo do cinema e do audiovisual. Não faltam os festivais, mostras e outros eventos que privilegiam o protagonismo feminino à frente de filmes e outros produtos correlatos. Começam a aparecer nomes femininos à frente de produções de maior peso e renome. Contudo ainda são muito escassos esses casos em estúdios de maior porte, cujas produções sejam mais, nos quais os jogos de poder e econômico recrudescem. Para ilustrar a questão, vale retomar os daos divulgados pleo Directors Guild of America (DGA), no final de 2015, segundo os quais, naquele ano, apenas 6,4% do total dos filmes produzidos em Hollywood foram dirigidos por mulheres. Desde então, o cenário não sofreu mudanças significativas.

Como uma tendência facilmente observável, as produções fílmicas assinadas por mulheres alinham-se, sobretudo, aos documentários, orientados por abordagens mais ou menos experimentais. Assim sendo, no contexto brasileiro e, mais especificamente, no Estado de Goiás, não se localizou informações de nenhuma mulher que produzisse filmes com as características demarcadas para a pesquisa: baixo orçamento, sem financiamento, sem inserção no circuito oficial do cinema, infraestrutura precária e sem formação na área.

Ainda em busca de mais referenciais para abordar a questão, durante a realização do VI Encontro da Associação de Investigadores sobre Imagem em Movimento (maio de 2016, Porto, Portugal), no Grupo de Trabalho Outros Filmes, do mesmo modo foi possível constatar que filmes outros, das mais variadas naturezas, analisados por pesquisadores de vários países, em sua maioria eram realizados por homens. Mesmo os chamados filmes domésticos, amadores, experimentais, documentos diversos, registros do quotidiano, em ambientes familiares, películas esquecidas em setores de documentação de cinematecas públicas, todos foram majoritariamente capturados por câmeras empunhadas por mãos masculinas, e orientados por esses olhares: pais, irmãos, amigos, curiosos, diletantes, cinéfilos, etc.

Diante desse quadro, não restam dúvidas quanto à necessidade de se discutir as razões pelas quais é tão reduzido o número de mulheres atuando à frente de produções cinematográficas. Do mesmo modo, é necessário explicitar que, das quantas mulheres que tenham ocupado lugares considerados chave no desenvolvimento do cinema como técnica e como linguagem, foram excluídas dos registros históricos. Contudo, avançando um pouco mais, é de se questionar: por que não há mulheres produzindo filmes de baixo orçamento, fora dos circuitos comerciais ou artísticos, movidas pelo prazer de fazer cinema?

É nesse contexto que o trabalho de cinema protagonizado por Maria José Silva, na cidade do Porto, em Portugal, ganha relevância, sinalizando algumas questões importantes de se terem em conta para tais indagações.

O cinema de Dona Maria José

Em Portugal, uma mulher, mãe de família, cuidava da casa, dos filhos. Quando mais jovem, trabalhou como empregada doméstica cuidando da casa e da família de outrem. Mas sempre encantou-se pela possibilidade de ouvir e de contar histórias. Assim, inicialmente, depois de longas jornadas de trabalho, nas noites, antes de descansar, escrevia textos que poderiam ser peças de teatro. Também escrevia poemas, e arriscava-se a compor músicas.

Nascida em 1937, na Freguesia da Junqueira, Vila do Conde, Dona Maria José Silva viveu com o esposo em Lisboa, onde nasceram seus dois filhos. Passou a viver no Porto quando a administração da Queijaria Amaral lhes foi confiada por um parente do marido. Mais tarde, tornaram-se proprietários do estabelecimento. Em diversas entrevistas, ela relatava que, para adquirir os produtos a serem disponibilizados aos fregueses, viajava pelo interior do país. Atrás do balcão, ou nas viagens, ouvia histórias, que misturava às suas próprias, em sua imaginação. Depois de concluídas todas as jornadas diárias de trabalho, nas noites, escrevia as histórias-roteiros, para transformá-las em filmes (Martins, 2018).

Suas produções contavam com recursos próprios. Para tanto, Dona Maria organizava festas e outros eventos, com que arrecadava os fundos necessários aos trabalhos. Além de assinar os roteiros e a direção dos filmes, também atuava como produtora, atriz. Respondia, também, pela direção de atores, pela direção de arte, e tudo mais quanto fosse necessário. Na formação dos elencos, contava com parentes, amigos, vizinhos, sem pagamento de cachê (Leocádio, 2016). As gravações eram feitas no ambiente doméstico, com a ajuda dos filhos que também ajudavam na edição.

Assim, Dona Maria produziu filmes durante mais de 20 anos. Ganou notoriedade junto à mídia nacional, sem ter estudado cinema, e sem ter sido frequentadora de salas de exibição de filmes. Não raro, era convidada a participar de programas de auditório televisionados, quando, com seu carisma, conquistava o público contando suas histórias, cantando suas músicas, e falando de seus filmes.

Seu trabalho tem muito de uma natureza autobiográfica, na medida em que ela levava para os seus roteiros elementos de sua própria vida, enlaçados com fragmentos das histórias recolhidas nas oitivas das pessoas com quem estabelecia interlocução. Assim, as memórias de sua juventude, as saudades de um tempo quando era jovem romântica e sonhadora, as lutas e receios com que se deparava quotidianamente podem ser observados em algumas de suas histórias.

Tendo produzido uma extensa filmografia, foi por ocasião da realização do filme “Mulheres Traídas”, em 2007, que ela foi alçada ao circuito oficial do cinema. Todo seu trabalho, na ocasião, foi acompanhado pelo cineasta português Miguel Marques. Essa parceria resultou no documentário intitulado “Mulheres Traídas [making of]” (2007), que, além de documentar o set de filmagem e a performance da cineasta em seu ofício, traz depoimentos dela e das pessoas que com ela trabalham, e imagens de arquivo de seus outros filmes, contextualizando seu percurso. Nesse sentido, busca enfatizar esse perfil múltiplo da artista, realçando sua produção, além de realizadora de fil mes, também como atriz, escritora e cantora. Interessa, ao diretor, pensar como a ficção, em sua narrativa, trata e, em alguma medida, revela os contextos social e pessoal sobre os quais se assenta.

O filme de Miguel Marques integrou, dentre outras, a programação do Festival de Cinema de Avanca, e do Festival Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, no ano de 2008, tendo, neste último sido premiado na categoria de Melhor Documentário.

A história contada no filme “Mulheres Traídas” trata da infidelidade, desde um ponto de vista feminino. Ao dar sonoridade e visibilidade á história que trata de uma situação de traição do marido à sua esposa, Dona Maria se posiciona, abre espaço à sua capacidade de indignar-se, e toma providências. De alguma forma, toma para si o sentimento que recai sobre as mulheres traídas por seus parceiros, vingando-se, em nome delas, de acordo com o protagonismo que lhe cabe. Repete, diante do quadro de traição, a frase por ela pronunciada no set de filmagem, que teria inspirado o título de uma das muitas mostras de seus filmes:

O gesto de Dona Maria lembra, resguardadas as devidas especificidades históricas e pessoais, o gesto da artista barroca Artemísia Gentileschi (Tedesco, 2016), na execução da pintura “Judite e Holofernes”, nos idos do século XVII. No quadro, chama a atenção a intensidade do gesto de Judite no ato de separar a cabeça de Holofernes do corpo. Diferentemente das outras pinturas que tratam do mesmo tema, assinadas por homens, nessa, a dramaticidade é mais intensa, as tintas são mais carregadas, dando destaque ao sangue que jorra do corte feito com determinação pela protagonista da cena. Judite parece assumir o alter ego de Artemísia, vingando-se, em nome de todas as mulheres, da situação de opressão a que são submetidas. Assumindo a mesma autoridade com que se impunha no set de filmagem, advertindo atores e demais curiosos que acompanham seu trabalho: “calem-se, que a realizadora está a falar!”.

Mas é importante notar que nenhuma dessas informações sobre a História a Arte teria chegado até Dona Maria, ou sequer influenciado seu trabalho. A comparação resulta de relações e análises estabelecidas desde um ponto de vista exterior à sua visão de mundo e ao seu modo de operar nele. Nesse sentido, também vale notar que, segundo relato da própria Dona Maria, em várias ocasiões, ela teria frequentado salas de cinema muito raramente, preferindo ver filmes no ambiente doméstico, onde podia escolher o estilo de seu agrado: histórias que mostrassem “coisas bonitas”.

Além da produção, Dona Maria José também tratava da distribuição e da exibição de seus filmes. Para tanto, ela organizava sessões em locais por ela alugados para tal finalidade. E também vendia os filmes no formato DVD em sua queijaria.

Em depoimento a Miguel Marques, no filme “Mulheres Traídas [making of]” (2007), ela ressalta o esforço necessário para que ela, na condição de mulher, possa responder por todas as exigências que recaem sobre si, sem abrir mão de seu projeto como poeta, cantora e, sobretudo, como realizadora de filmes. Ela sabe que seu desafio está em abrir espaços para assegurar o direito a esse exercício, em contextos avessos à inserção feminina.

Além do insipiente número de mulheres atuando à frente da produção de filmes na grande indústria cinematográfica já referido, é de se notar o pouco ou nenhum reconhecimento ao importante papel cumprido por algumas mulheres no decurso da história do cinema.

É de se notar que a história dominante do cinema dá conta dos marcos definidores da técnica e da linguagem cinematográfica assinados, em sua maioria, por homens. Só mais recentemente é que se iniciam a traçar algumas informações sobre o papel-chave da atuação de algumas mulheres nesse percurso. Mas elas continuam figurando em histórias paralelas, não nas histórias oficiais, nem nas dominantes. E resultam, em sua maioria, de iniciativas deflagradas por mulheres pesquisadoras da arte e do cinema. Entre estas, está, por exemplo, Ana Catarina Pereira que, em 2016, lançou o livro A mulher-cineasta: da arte pela arte a uma estética da diferenciação (Pereira, 2016). Nele, a autora traça a participação de mulheres pioneiras na história do cinema num sentido mais amplo, em diálogo com questões relativas à condição feminina e aos movimentos sociais. Posteriormente, analisa a presença da mulher no contexto português, mais especificamente. Além disso, traça um perfil geral de como os filmes dirigidos por homens apresentam a figura feminina, indagando como a mulher representaria a sua condição social.

Pereira lembra, por exemplo, que Alice Guy Blaché, entre 1896 (antes mesmo que Méliès) e 1920, dirigiu e respondeu pela produção de centenas de filmes de curtametragem, ficcionais. Foi a primeira e, pelas informações a que se têm acesso até aqui, a única mulher que dirigiu um estúdio cinematográfico nos Estados Unidos da América do Norte, de sua propriedade. Tratava-se do Solax Studio, em New Jersey. Seu pioneirismo está no fato de ter antecipado as múltiplas possibilidades artísticas e políticas do cinema, em territórios além do mero entretenimento.

A despeito de toda a sua produção no início do século XX, só mais recentemente Alice Guy Blaché veio a ter seu trabalho reconhecido como pioneiro não só como produção feminina, mas no contexto geral do desenvolvimento do cinema como linguagem e como técnica.

A seu tempo, a história de Dona Maria José pode ter sido beneficiada pelos recursos tecnológicos disponibilizados do início do século XXI, bem como por outros vetores culturais, o que resultou em avanços importantes. Aos poucos, a cineasta queijeira conquistou visibilidade e notoriedade, de modo que seus filmes passaram a ser considerados cult no cenário cultural da cidade do Porto, percepção que se estendeu a outras cidades portuguesas.

Falecida em 2015, Dona Maria José Silva deixou uma filmografia extensa, além de livros de poesia e textos de teatro publicados. Espera-se que esse legado não caia no esquecimento, e se apague dos registros históricos, do mesmo modo que quantos outros. de certa forma, este texto tem como finalidade também contribuir para divulgar seu trabalho.

As mulheres, o cinema e alguns apontamentos sobre educação

De que modo a história de Dona Maria José Silva pode contribuir para pensarmos sobre os vetores determinantes do painel que trata da insipiente presença de mulheres à frente da realização de filmes, seja nas grandes produções, seja em produções mais precárias, ou mesmo caseiras?

Ao que tudo indica, a cineasta trafegou na contramão de uma tendência muito forte, recorrente no contexto da formação de crianças e jovens, nos ambientes de educação formal (as escolas), não formal (outras instituições educativas) e informal (família e outras comunidades sociais).

Nos ambientes de educação escolar, por exemplo, já é possível notar meninos, em sua maioria, a brincar com engenhocas, robôs, entre outras traquitanas, enquanto as meninas, não raro, preferem pinturas, desenhos de nomes, ilustrações mais delicadas. Muitas até arvoram-se a participar de peças de teatro, dança, mas pouco se atrevem a operar com constuções maiores, ou até inventar equipamentos.

É certo que esse esboço de preferências, por assim dizer, beira o caricato, mas opera com dados recolhidos no decurso de muitos anos de atuação no ambiente escolar, no trabalho com ensino de arte. Se não pode ser generalizado, tampouco pode ser desconsiderado, por apontar para fortes tendências que prevalecem ainda hoje.

Se recuarmos nos processos de educação e socialização, nota-se, desde a tenra idade, as diferenças entre os tipos de estimulação propiciados às meninas e aos meninos, seja nos brinquedos que se dão a umas e a outros, seja nos repertórios de brincadeiras ensinados, seja nas expectativas quanto a assunção de determinados papéis sociais.

Em alguns depoimentos, foi reiterada a observação de que Dona Maria José Silva seria muito determinada em seus projetos de realização fílmica, deixando pouco espaço de criação para os filhos que com ela trabalhavam. Tais observações, em alguma medida, destacam um modo de conduzir os trabalhos que, em geral, não se espera de uma senhora de pequena estatura, alegre, boa gente, a vender seus queijos num estabelecimento no centro da cidade. Em outras palavras, não seriam maneiras apropriadas para uma menina.

Não teria sido nada fácil, para uma mulher como Dona Maria José Silva, rasgar espaços, entre as demandas a ela atribuídas, para contar suas próprias histórias no cinema, dedicando-se a uma produção-desvio do que lhe estivesse traçado. Mas ela não considerou a possibilidade de abrir mão do seu direito ao exercício criativo.

Ora, numa perspectiva performativa, as orientações de gênero são construídas social e culturalmente desde a infância, nos processos de socialização na família, na escola, e demais instituições sociais. Abordando a temática, Joana Plaza Pinto (2007) indaga “O que é o masculino? O que é o feminino?” A autora argumenta que as respostas possíveis e prováveis a essas perguntas constituiriam as chamadas representações de gênero. Os atos de fala, organizados normativamente, têm o poder de constituir identidade, conquanto sejam atos ritualizados de um corpo que fala. Nesse contexto, as identidades de gênero integram os processos de regulação de corpos, dos quais os aspectos linguísticos, os atos de fala, tomam parte.

Assim, quando, desde a infância, as meninas são levadas, em sua maioria, a brincar com bonecas, casinhas, cuidados com os outros, etc., por meio dos atos de fala e regulação dos corpos, têm demarcadas relações identitárias que não só constituem os referenciais de gênero, como desenham preferências, prioridades, interesses, comportamentos, permissões, etc. Por seu turno, a possibilidade assegurada principalmente aos meninos de brincar com engenhocas diversas, operar, montar e desmontar equipamentos fornece as condições segundo as quais se desdobram, desde as experimentações infantis, suas ocupações e modos de se conduzir na vida adulta. Não se trata de supostas “tendências espontâneas”, mas da reverberação dos conjuntos normativos reguladores dos corpos e comportamentos, ao longo de suas formações.

Nesses termos, talvez se possa empreender uma análise sobre a presença tímida de mulheres dispostas a brincar de fazer filmes, empunhando câmeras ou editando vídeos, ou ocupando-se de outras inutilidades que poderiam assegurar uma dimensão mais humana a suas existências.

Ao mesmo tempo, a trajetória de Dona Maria José Silva aponta para potências possíveis no sentido de se assegurar que um número maior de mulheres possam inventar e contar suas próprias histórias, colocando em pauta questões de sua vida, da vida em comum, a partir de seus pontos de vista. Talvez, para isso, seja necessário, inclusive, alterar profundamente as expectativas em relação ao comportamento do que se suponha ser feminino, em favor de uma equidade nas tomadas de decisão sobre as histórias que serão contadas, como serão contadas, e para quem.

As considerações de Alice Guy Blaché funcionam uma referência importante nessa direção, a sinalizar encaminhamentos desde há mais de um século: There is nothing connected with the staging of a motion picture that a woman cannot do as easily as a man. (Blaché, 1914). Ressalta-se, sobretudo, a necessidade de que seja desnaturalizada a atribuição de papéis sociais, bem como a identificação de potencialidades criativas e capacidades de realização. Não foi por acaso, nem terá sido por alguma espécie de dom especial, que Alice e Dona Maria tomaram para si o projeto de produzir narrativas no cinema. Cada qual, em seu contexto histórico e cultural, construíram caminhos arrevesados aos hegemônicos, para assegurar espaços possíveis de exercício de criação no âmbito do cinema. De resto, poderia ser em outros campos da arte.

À guisa de conclusão. Ou: Onde estarão as outras Donas Marias?

Há pouco tempo, num grupo de trabalho com pesquisas sobre filmes dirigidos por mulheres, um tema mobilizou a discussão, ocupando boa parte da sessão. Tratava-se de problematizar que aspectos estabeleceriam diferenciais entre as produções cinematográficas assinadas por mulheres, em relação às assinadas por homens. A questão despertou grande interesse entre os presentes. Contudo, também ficou evidente tratar-se de assunto, no mínimo, precipitado, diante da reduzida representatividade feminina entre diretores e a insipiente coleção de filmes por elas realizados para que se tenha condições de avançar nessa direção.

Ora, enquanto não se possa pensar em termos de uma equidade em termos dos processos de formação, dos acessos, dos trânsitos entre produção, financiamento, distribuição, não será possível qualquer discussão que busque analisar especificidades do modo feminino de fazer filmes.

Ambientes estimulantes, solidários nas aprendizagens e nos processos de criação deveriam ser concedidos a todas as pessoas, indiferenciadamente, desde sempre. Mas não é assim que ocorre. Por isso mesmo, não é acidental o número reduzido de mulheres à frente de produções cinematográficas nos mais distintos graus de complexidade e círculos de abrangência.

O cenário tem mostrado possibilidades de mudanças nesses termos, ainda que não muito contundentes. As tecnologias digitais para a produção e veiculação de narrativas organizadas em imagens fixas ou em movimento, sonorizadas ou não, bem como a popularização de seus aparatos, facilitaram o acesso a informações e recursos para que um número cada vez maior de pessoas possa contar suas próprias histórias. Desde o início do século XXI, observa-se a expansão de iniciativas no sentido de não só estimular bem como propiciar que um número maior de jovens mulheres possam participar ativamente na produção de cinema e audiovisual. Ainda que prevaleça a disparidade entre o grande número de mulheres em classes de formação para o cinema, em vista do reduzido número delas assumindo o posto de direção, nota-se a mobilização de comunidades diversas nesse sentido.

Este texto poderia ser concluído com uma formulação de votos para que mais mulheres se sentissem encorajadas a brincar com aparatos usados para gravar e contar histórias por meio de imagens em movimento e sonorizadas. Que as Donas Marias pudessem se multiplicar, no exercício de criação enre os afazeres vários, tomando parte da vida. Também poderia ser reiterada a esperança de que se pudessem multiplicar narrativas tramadas a partir dos imaginários femininos, tanto quanto dos masculinos.

Mas não. O objetivo deste texto terá sido alcançado na medida em que tenha contribuído, em alguma medida, para explicitar que a escassa presença feminina à frente de realizações cinematográficas, como em quantos outros segmentos das atividades humanas, resulta de dinâmicas sociais e culturais demarcatórias de permissões e proibições, por meio de atos de fala e de rituais reguladores dos corpos, no mais das vezes sutis e dissimulados, outras tantas explicitamente violentos.

Mais ainda, a expectativa é que as reflexões sobre o trabalho de Dona Maria José Silva acenem para estratégias possíveis de trabalho efetivo no âmbito da educação e das políticas públicas em geral, com vistas a abordar essas questões

Bibliografia

Blaché, Alice Guy (1914). Woman’s play in photoplay production. The Moving Picture World. Vol. XXI No 2. 11,

DGA Directors Guild of America. Disponível em <https://www.dga.org/News/PressReleases/2015/151209-DGA-Publishes-Inaugural-Feature-Film-Diversity-Report.aspx> Acesso em 20 mai. 2020.

Leocádio. Almodovar à portuguesa. Disponível em <http://bairrodooriente.blogspot.com.br/2014/03/almodovarportuguesa.html>. Acesso em 30 ago. 2016.

Martins, Alice Fátima (2013), Saudades do futuro: a ficção científica no cinema e o imaginário social sobre o devir. Brasília: Ed. UnB.

Martins, Alice Fátima (2018). O cinema de Maria. Relatório de pesquisa de pós-doutorado. Universidade de Aveiro.

Martins, Alice Fátima (2019). Outros fazedores de cinema: narrativas para uma poética da solidariedade. Porto Alegre: Ed. Zouk.

Mulheres Traídas. 2007. Direção: Maria José Silva. Digital. Cores. Portugal. Produção independente.

Mulheres Traídas [making of]. 2007, Direção: Miguel Marques. Digital. Cores. Portugal. DVD.

Pinto, Joana Plaza (2007). Conexões teóricas entre performatividade, corpo e identidades. Delta, São Paulo, v. 23, n. 1,

Simon, J. (2009). Alice Guy Blaché: cinema pioneer. New Haven: Yale University Press.

Tedesco, Cristine. (2016). Entre a vida e a obra: a trajetória de Artemísia Gentileschi na perspectiva da historiografia da arte. Visualidades, 14(1). Disponível em <https://www.revistas.ufg.br/VISUAL/article/view/35290> Acesso em 01 mai. 2020.