Abstract
This article presents an analysis of Portuguese horror works, focusing mainly on the use of special effects for narrative strengthening while discussing the potential of digital special effects in the production of audio-visual content. The analysis, supported by the construction of a theoretical corpus based on an extensive literature review of work done by Portuguese and foreign authors, touches base with current practices and is complemented with the analysis of some recent works in the area of audio-visual production linked with the horror genre. The results of the work done allow us to consider that the progressive simplification of the access to technical tools and the functional literacy needed for audio-visual content production, including digital special effects, has created a more extensive space for exploring these solutions for storytelling and enhancing the creativity of those who want to tell engaging stories.
Keywords: Digital Special Effects, Horror Genre, Portuguese Cinema, Digital Technical Literacy, Short Movies.
Introdução
O cinema, por si só, já se constitui em um efeito especial: uma ilusão que transforma 24 fotos por segundo em uma imagem em movimento com aspecto realista (Suetu 2010). Ilusão essa que antecede os primórdios do que se entende por cinema: entre o surgimento do fenacistoscópio1, em 1829, e a aquela que se considera a primeira projeção cinematográfica, feita pelos irmãos Lumière em 1895, diversos outros meios de projeção de imagens e efeitos captaram a atenção do público. Entre eles pode-se citar o taumatrópio2, o cineografo3, a Lanterna Mágica4 e uma de suas adaptações mais próximas de um dos temas hoje recorrentes no cinema de terror: a ilusão conhecida como Phantasmagoria, que consistia na projeção de imagens de pessoas já falecidas ou de personalidades históricas em um local cheio de fumaça, maneira como o mágico Robertson (1763-1837) dava a impressão de trazer os mortos do além (Pires 2013; Suetu 2010).
Historicamente registra-se que um dos primeiros “truques” do cinema é creditado aos irmãos Lumière no curta “Demolição de um Muro” (1896), em que a filmagem é rodada ao contrário e dá a impressão que o muro é reconstruído a cada golpe de marreta. Outro marco importante é o trabalho de Georges Méliès, pioneiro dos efeitos especiais por criar, na experimentação prática, efeitos que hoje são replicados com técnicas digitais avançadas. (Pires 2013).
A partir destes trabalhos, o avanço no uso de efeitos especiais para tornar possível a realização de cenas tal como foram idealizadas tornou-se mais e mais popular, num movimento que acompanhou a evolução das tecnologias de captação, exibição e também de manipulação de imagens, de forma que hoje programas como o After Effects e outros do gênero são indissociáveis da realização de filmes (Pires 2013; Suetu 2010).
No extremo oposto dessa linha do tempo, a da atualidade, situam-se os objetos de análise deste artigo. Para investigar o potencial dos efeitos especiais digitais na produção do conteúdo audiovisual buscou-se delimitar o campo de análise e, assim, chegou-se aos curtas portugueses vencedores da competição MotelX5 entre os anos de 2013 e 2018: “O Coveiro” (2012), “Pela Boca Morre o Peixe” (2014), “Miami” (2014), “Post-Mortem” (2016), “Thursday Night” (2017) e “A Estranha Casa na Bruma” (2018).
A partir destes exemplos, este breve estudo propõe-se a:
- entender o que caracteriza o gênero Terror e sua relação com os efeitos especiais;
- delinear o conceito do tema Efeitos Especiais;
- a contextualizar os principais efeitos especiais utilizados pelos realizadores nas suas obras e analisar sua função na narrativa.
Para tanto, o trabalho busca referência em autores que já empreenderam esforços na investigação de temas correlatos tais como Pisco (2015), Suetu (2010), Pires (2013) e outros, além de outras fontes como artigos de jornais e sítios web especializados na área em questão. A forma indissociável com que os efeitos especiais digitais, também designados por efeitos visuais, se inserem na produção audiovisual atual, e se popularizam à medida em que os meios para produzi-los se tornam mais difundidos e acessíveis, até mesmo ao produtor mais iniciante, reforça a relevância deste estudo. A escolha por curtas-metragens, e mais, por curtas de terror, explica-se pela própria origem dos efeitos especiais citada anteriormente, e como esta gênese foi marcada pela apropriação do universo da mágica, do mistério e do fantástico, elementos profusamente encontrados em filmes desse gênero. Por fim, para além da técnica, valorizar o que se faz em cinema, em Portugal, mostra-se necessário. É sabido que a produção de curtas-metragens é a porta de entrada para inúmeros realizadores do cinema atual. E que não basta a formação de profissionais de excelência, é preciso que a eles seja aberto um mercado vivo e crescente. Para tanto, o estudo do que se faz aqui pretende, além de teorizar e analisar os casos selecionados, lançar alguma luz sobre o mercado de curtas e realizadores portugueses a partir da ótica dos efeitos especiais.
Desenvolvimento
O corpo deste trabalho se constitui de uma breve retomada metodológica, em que se apresenta a natureza do estudo realizado; da revisão teórica; da apresentação do festival MotelX e das curtas premiadas, bem como da análise dos aspectos relativos aos efeitos especiais e da sua influência no storytelling.
Metodologia
Numa investigação científica, o processo exploratório é necessário para obter informações capazes de responder à problematização de investigação, e essas informações podem ser obtidas em leituras, entrevistas e outros métodos complementares capazes de “assegurar a qualidade da problematização, ao passo que as entrevistas e métodos complementares ajudam essencialmente o investigador a ter um contacto com a realidade vivida pelos atores” (Quivy and Van Campenhoudt 2005, 49).
No caso deste estudo, a pesquisa foi realizada principalmente online em busca de fontes bibliográficas e outras referências teóricas credíveis a respeito das curtas selecionadas, do mercado audiovisual português e dos próprios filmes para análise. A escolha pelo estudo de caso como procedimento metodológico deve-se, em grande parte, à sua característica de ser “um estudo empírico que investiga um fenômeno atual dentro do seu contexto de realidade (...) no qual são utilizadas várias fontes de evidência” e que “pode ser utilizado tanto em pesquisas exploratórias quanto em descritivas e explicativas” (Gil 2008, 58).
Compreende-se que esta modalidade de pesquisa tem suas limitações, uma das quais a dificuldade de generalização, visto que a análise de um único caso não fornece uma base ampla e confiável para tanto. No entanto, Gil considera que “os propósitos do estudo de caso não são os de proporcionar o conhecimento preciso (...) mas sim o de expandir ou generalizar proposições teóricas.”(Gil 2008, 58).
A partir dessa visão, a pesquisa bibliográfica, “desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos” (Gil 2008, 50) foi o fundamento para a análise dos dados observáveis neste caso, pois trata-se de um estudo em que a própria pesquisa é desenvolvida “a partir da técnica de análise de conteúdo”. (Gil 2008, 50).
É importante que se esclareçam os fatores que levaram à seleção da amostra para este estudo, que não foram definidos apenas de acordo com a conveniência dos investigadores. Os filmes foram selecionados a partir de dois critérios principais: todos foram vencedores da categoria Melhor Curta de Terror Portuguesa do festival MotelX, um dos mais importantes festivais de filmes de terror de Portugal, o que evidencia o reconhecimento dos trabalhos pelo meio. O segundo critério foi a disponibilidade de acesso: todos os filmes analisados estão disponíveis online, o que permitiu a visualização e análise das obras.
Os critérios de análise dos filmes, por sua vez, foram fundamentados a partir da revisão teórica realizada e buscam evidenciar: a) o que os caracteriza em seu gênero; b) quais os efeitos especiais utilizados (ou potencialmente utilizados) para a realização das cenas; e c) a sua influência no storytelling da curta de terror.
Enquadramento teórico
Assim, neste estudo, a pesquisa bibliográfica avança sobre autores que buscaram no campo do terror cinematográfico e dos efeitos especiais os objetos de suas investigações. Destaca-se no rol de autores o trabalho de Cinara Santos Paralta Pisco (2015), de Denver Pires (2013) e de Marcelo Leite (2015), respectivamente “O Mistério das Origens”, “A criação de efeitos especiais digitais para conteúdo audiovisual” e “Efeitos especiais digitais na imagem técnica : a desocultação da arte”, que foram complementados por outros autores de trabalhos científicos e artigos para sites de tecnologia e cinema.
O terror
Segundo Pisco, as definições existentes para o que é o terror são múltiplas e variadas. Diz a autora que “foram muitos, e continuam a ser, os que se debruçam sobre o tema na esperança de alcançar uma definição que separe o terror dos restantes géneros, seus vizinhos. Esta é uma tarefa ingrata e algo impossível de ser concretizada, uma vez que podem ser encontrados no Terror determinados atributos pertencentes a outros gêneros e o mesmo acontece se se inverter o processo” (Pisco 2015, 30). Ainda assim, aponta quatro conceitos a partir dos quais se pode caracterizar os filmes de terror: a iconografia, os cenários, os personagens e a narrativa. Estes conceitos são descritos em seguida com maior detalhe.
A iconografia diz respeito a objetos, sons e comportamentos que mais provavelmente se pode encontrar em filmes de terror, tendo-se em conta os seus significados que, num filme do gênero, expandem-se. “Por exemplo, um crucifixo tem uma conotação religiosa por ser associado à Igreja mas num filme de terror ele ganha uma outra dimensão, ao se tornar uma possível arma de defesa da alma contra o diabo. ” (Pisco 2015, 31).
O cenário que, no terror, pode não ser comum a todos os filmes. Este elemento, que nos princípios do gênero “predominavam as figuras góticas em mansões horripilantes e assustadoras” (Pisco 2015, 31), desenvolvem-se agora numa variedade de locais como “os subúrbios de uma pequena cidade, uma casa abandonada, um centro comercial, um casamento (...)”. De facto, hoje, o cenário do terror pode ser qualquer local desde que sirva de forma competente à narrativa.
O terceiro fator, as personagens, têm suas raízes mais fortemente ligadas ao gênero, e podem ser agrupadas em dois grupos opostos: “vítima vs. monstro e/ou, para que não haja espaço para outras questões, sobreviventes vs. não sobreviventes” (Pisco 2015, 31). Este recurso ao termo monstro alude, obviamente, a personagens cujo perfil e comportamento estão repletos de características que traduzem características de peso negativo (ex: violência, agressividade, sadismo, etc).
A narrativa, por fim, é o elemento que combina “a iconografia, as personagens e os cenários consoante o objectivo final a ser alcançado” (...) e que “permite às audiências apanharem os sinais e interpretá-los de forma a fazerem sentido”. Uma narrativa convencional acaba após se completar o circuito de equilíbrio, interrupção do equilíbrio e a posterior superação da ruptura. O conjunto de elementos da narrativa é o que costuma apontar para um gênero específico.
Assim, ao nível da narrativa, o terror procede a uma ruptura com o cotidiano do Homem e expõem os medos implícitos como o medo da dor, do sofrimento e da violência, do enigma da morte e da imprevisibilidade da vida, entre outros.
Pisco aprofunda a investigação do tema a partir de Prohászkova (2012) que divide o campo em suas categorias e subgéneros, como “Rural Horror, Comic Horror, Apocalyptic Horror, Crime Horror, Erotic Horror, Occult Horror, Psychological Horror, Surreal Horror e Visceral Horror” (Pisco 2015, 29). Entre a definição de todos estes subgéneros é importante para este trabalho destacar o que a autora considera ser o Psychological Horror, que “baseia-se nos medos do protagonista, nos seus sentimentos de culpa, na sua fé e no seu estado emocional instável. À medida que avança o enredo, é dado reforço à tensão e ao Terror. ” (Pisco 2015, 30).
Entretanto, nem todo filme em que se trabalha o medo e a tensão pode ser classificado como Terror. O que colabora para que se entenda mais claramente a diferenciação entre o terror e outras estórias com monstros, suspense e mesmo mortes é a atitude das personagens ao encontrarem seu(s) monstro(s). Neste gênero, as personagens enxergam os monstros como anormais (ou a ruptura do equilíbrio), ao contrário do que acontece nos contos de fadas, por exemplo. E a intenção por trás da narrativa é a de gerar certo efeito na audiência, como diz Carroll (1990) citada por Pisco (2015): “Indeed, the genres of suspense, mystery and horror derive their very names from the affects they are intended to promote - a sense of suspense, mystery, and a sense of horror.”(Pisco 2015, 40).
Mais recentemente ao escrever a respeito do lançamento do filme “Ao cair da noite” (2017), Steve Rosen, crítico especializado do jornal The Guardian, cunhou o termo “pós-terror” buscando acomodar nesse rótulo uma nova leva de filmes do gênero que buscam subverter de certa forma os conhecidos jump scares e os previsíveis roteiros com final aberto (Rosen 2017). O termo gerou discussão entre fãs, cineastas e mesmo entre os críticos que o consideram uma forma reducionista de entender o terror (Barber 2018).
Ainda assim, o rótulo tem se propagado e obras recentes como “Hereditário”6 (2018), “Um lugar silencioso”7 (2018), “A bruxa”8 (2015) e “Corra”9 (2017), entre outros filmes merecedores de prêmios e boas críticas estão sendo enquadrados no “novo subgênero”. Embora o uso do termo siga sendo discutível, é importante para este estudo atentar para o fato de que o terror se renova e se recria com narrativas, cenários e realizadores que buscam questionar e ultrapassar os conhecidos recursos do gênero. Esta renovação, independentemente de como seja chamada, é hoje um dos fatores responsáveis por fazer do terror um dos gêneros mais rentáveis da indústria cinematográfica com seus filmes produzidos com orçamento baixo, de forma quase independente (Salem 2017; Rodrigues 2018; Barber 2018).
Efeitos Especiais
A história inicial dos efeitos especiais está intimamente ligada à história do cinema e de sua busca por inovação, tanto para aperfeiçoar e expandir as possibilidades narrativas quanto para superar problemas técnicos.
Os primeiros efeitos visuais “foram produzidos dentro da própria câmara (in-camera effects), como simples jump-cuts ou sobreposições (superimpositions), ou então criados usando miniaturas, projeção traseira, ou pinturas matte. Os efeitos ópticos surgiram mais tarde utilizando película, luz, sombra, lentes e/ou processos químicos para produzir os efeitos especiais. Atualmente utilizam-se técnicas modernas como a animação de células, modelos à escala, animação com modelos em barro (claymation), composição digital, animatronics, maquilhagem prostética, morphing e imagens geradas por computador (CGI) para a criação de efeitos especiais ou visuais. ”(Pires 2013, 08).
Aliadas a soluções como a aplicações de próteses e maquiagens aos atores, alterar perspectivas de câmera, usar maquetes, bonecos, robôs e até mesmo explosões controladas, os efeitos especiais comportam um ampla multitude de técnicas e truques , aprimorados ao longo de décadas, e cujo objetivo foi sempre o de deixar o espectador imerso numa história esquecendo, ainda que por momentos, a sua própria história.
Marcelo Leite aponta que “mesmo sendo um truque, o VFx (visual effects) dos anos 20 até os anos 70 imprimia um estatuto de verdade, pois havia um rastro físico, um pedaço de realidade, mesmo que em forma de truque, mas sempre uma realidade impressa sob o substrato do filme cinematográfico. (...) pois “os truques ópticos, filmados separadamente ou não, eram sempre uma representação óptico-física no momento da produção.” (Leite 2015, 02).
Com o advento e a popularização das CGIs (computer generated images), o processo sofre alterações a vários níveis. As ferramentas usadas para essa composição passam, por exemplo, para os estúdios de pós-produção e distanciam-se dos sets de filmagem. Nesses estúdios, o poder de “hibridização da imagem” (o ato de misturar, interagir e miscigenar técnicas e artifícios para que se componha determinada imagem) é quase ilimitado, pois a utilização de softwares de computação gráfica cada vez mais avançados permite uma gama infinita de possibilidade, rompendo com a materialidade existente nos VFx. A simulação de espaços virtuais em 3D e os movimentos das câmeras através desses espaços criados digitalmente amplia as possibilidades de seleção e composição de cenas e até, a facilidade de repetir uma cena.
A passagem dos VFx para os DFx e a consequente evolução dos efeitos digitais é marcada por produções tão diversas quanto Star Wars Episode IV - A new hope (introduz a filmagem controlada por computador, em 1977), Star Wars Episode VI - Return of the Jedi (uso do rotoscoping para inserir imagens animadas entre a ação principal e o fundo, em 1983), e, nos anos 90, por filmes como Jurassic Park e Terminator 2, em que a preocupação era com o naturalismo dos efeitos gerados por computador. Muitas vezes, porém, eles podem ocultar-se para que a narrativa ocupe o primeiro plano, como mostram os efeitos criados em Forrest Gump (1994). Nesta obra, a inserção digital da personagem em momentos históricos (feita com o cuidado de se ocultar a produção dos efeitos ao máximo) funciona a favor da narrativa e acaba por tornar a história mais crível.
Inexoravelmente, o uso de efeitos tornou-se cada vez mais distante da “simplicidade aparente” de seus anos iniciais e aproximou-se das ferramentas digitais que possibilitaram a criação de efeitos como o bullet time (Matrix (1999)) o motion capture (destaque em Lord of the Rings (2001)) e outros que fizeram com que as técnicas anteriores passassem a parecer até mesmo inocentes e de qualidade um pouco imperfeita. Nas palavras de Leite “quando as imagens reais (live-action) foram digitalizadas e passadas ao mesmo ambiente dos computadores, houve uma crescente explosão da capacidade de produzir imagens simuladas com um realismo cada vez mais intenso, proporcionando uma ampliação das visualidades para as culturas contemporâneas” (Leite 2015. 74).
Efeitos especiais e o terror
Vale a pena recordar o quanto o efeitos especiais e os filmes do gênero Terror são íntimos: um dos primeiros filmes a fazer uso planejado de efeitos especiais, “The execution of Mary, Queen of Scots” (1895), usa de cortes e de um boneco para mostrar a decapitação da rainha. Sua relação com o terror é evidente: uma cabeça sendo decapitada é o cerne da curta história.
Antes do cinema, a Lanterna Mágica do mágico Robertson já encantava e assustava as platéias ao usar a fumaça para criar não apenas uma tela para a projeção, mas também uma atmosfera propícia para os sustos, o que já apontava o caminho para os filmes do gênero.
Ser marcado pelo uso de maquiagens, animatronics, próteses e outros efeitos bastante práticos é uma característica do terror comprovada em filmes como em “Alien” (1979), “A coisa” (1982), “A mosca” (1987), “A hora do pesadelo” (1987) e “O brinquedo assassino” (1988). Estes exemplos se destacam não apenas pelo uso de efeitos, mas também por seu sucesso comercial junto ao público numa fase em que houve grande popularização do gênero, que passou a alcançar platéias cada vez maiores e fãs, gerando sequências lucrativas que impactaram a indústria e a produção dos filmes de terror.
Mais recentemente, as novas produções parecem apostar em efeitos digitais cada vez mais subtis (do ponto de vista do espectador), utilizados para sublinhar a narrativa e intensificar as emoções que se procura despertar. O sangue jorrando parece estar cedendo lugar aos detalhes como o som, o cenário e até mesmo à ausência da representação do “monstro”, e os efeitos despertam outros sentidos em quem busca no cinema de terror seu entretenimento. Por meios digitais, a inserção de elementos em cena, a caracterização de personagens, a mistura de imagens e outras técnicas propiciam aos realizadores um controle mais preciso de sua obra (e, em muitos casos, de seus orçamentos (Kennedy 2020)).
Ao olhar para o percurso do gênero, conclui-se que o terror não depende de efeitos especiais digitais, mas aos poucos passou a incorporá-los de maneira irreversível. A modalidade mistura efeitos de natureza analógica e digital muito mais frequentemente do que pode parecer. Muitas vezes, para um gênero que não costuma desfrutar de grandes orçamentos, essa abordagem mostra-se eficaz e acessível.
Isso é especialmente verdade para o cinema independente de terror, e ainda mais para os curtas independentes do gênero. Longe dos investimentos dos grandes estúdios, é por meio dessas soluções que produções mais modestas costumam encontram o caminho para criar a atmosfera necessária para transmitir o medo e o susto, sem que isso signifique uma quebra na qualidade estética ou narrativa dos filmes.
Casos em estudo
A revisão teórica aponta caminhos para a análise dos casos em questão: as curtas-metragens de terror vencedoras do Prêmio Melhor Curta de Terror Portuguesa no MotelX - Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa, nos anos de 2013 a 2018.
As curtas foram escolhidas para estudo por serem representantes premiadas num dos mais importantes festivais de filmes de terror de Portugal . O fato de serem produções recentes as quais os pesquisadores puderam ter acesso online contribuíram para essa decisão.
O festival MotelX
Em 2019, o MotelX - Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa completou 13 edições. Criado para promover o melhor terror produzido a nível internacional e estimular o gênero em Portugal, em 2019 o Festival somou 19 mil espectadores, 46 longas e 55 curtas do gênero em exibição, mantendo sua relevància entre os festivais do gênero e reafirmando-se como um importante evento cultural em Lisboa.
É realizado por uma associação cultural sem fins lucrativos chamada CTLX. E é o único festival português acreditado pela Federação Internacional de Associações de Produtores Cinematográficos (FIAPF). Também faz parte da Federação Europeia de Festivais de Cinema Fantástico (EFFFF) e da Europe for Festivals, Festivals for Europe (EFFE).
Curtas em análise – 2013 a 2018
As curtas metragens premiadas serão analisadas buscando evidenciar os efeitos especiais utilizados e sua influência no storytelling, ou seja, como contribuem tanto para que a narrativa seja indentificada como uma história de terror quanto para criar ou intensificar as sensações que fazem com que ela seja reconhecida como tal. Para tanto, busca-se apontar em cada uma os elementos que as caracterizam como terror de acordo com Pisco (2015): a iconografia, o cenário, as personagens e a narrativa. Os efeitos especiais observáveis e que se destacam são apresentados e analisados para que se perceba sua contribuição para as histórias das curtas “O Coveiro” (2012), “Pela Boca Morre o Peixe” (2014), “Miami” (2014), “Post-Mortem” (2016), “Thursday Night” (2017) e “A Estranha Casa na Bruma” (2018).
2013 – O coveiro
“O coveiro” (2013) é uma curta de animação de 14 minutos lançada em 2012 pelo realizador André Gil Mata. Em entrevista ao site Cinemaville.com, o realizador declara que “É uma espécie de conto de cordel e interessava-me uma série de cruzamentos de linguagens. Foi uma fase em que acho estava muito vidrado nos filmes de terror Universal, no expressionismo alemão, no Edgar Allan Poe, no Gorey, e por isso acho o filme muito referencial.” (Miranda 2013).
O filme apropria-se da iconografia clássica dos filmes de terror: o preto e branco, a textura granulada da película, o cemitério e as cruzes, a maquiagem ressaltando olheiras escuras e cabelos desgrenhados, o céu negro em que nota-se o recorte da lua e dos raios, as campas do cemitério. A estética apropria-se do visual popularizado pelo cinema mudo (notadamente nos letreiros de abertura e nos créditos) e pelo expressionismo alemão, com o contraste entre figuras e fundos, ângulos que deformam os corpos, sombras marcadas. Tudo remete às mais clássicas iconografias do princípio do cinema de terror.
A história fragmenta-se em três cenários distintos e acontece sempre à noite. O primeiro é o cemitério, onde desenrola-se a narrativa principal. Neste cenário a bruma é uma constante, assim como as cruzes, a terra nua, os jazigos, a lua recortada no céu muito negro. O segundo são as ruelas da cidade, onde a história desenrola-se em torno de um anão assassino. Aqui a linguagem de animação stop-motion torna-se mais evidente e destaca a narrativa que ocorre em vielas estreitas e pontes medievais sob a luz de lampiões. O terceiro cenário é o quarto da virgem que dormiu por toda a vida até morrer. Este trecho também recorre ao stop-motion.
A curta apresenta um personagem principal e dois secundários, além dos extras. O monstro, que torna-se o coveiro da cidade, feio e manco, é condenado desde o nascimento que causa a morte de sua mãe. Os secundários, em suas breves histórias paralelas, são o anão e a virgem. O anão é um assassino que mata involuntariamente aqueles de quem se aproxima cortando-lhes a cabeça com uma tesoura. A virgem sofre de uma doença que faz com que ela durma desde a infância, até morrer. E os três encontram-se no cemitério.
Na trama, o monstro, que é também o personagem principal, nasce com deformidades e por isso causa a morte da mãe. Como consequência, é isolado da sociedade pelo pai, condenado a viver dentro do cemitério e a exercer a profissão de coveiro. O tom fantástico presente em grande parte das narrativas de terror é o cerne do storytelling (o monstro nasce sobre uma campa, lágrimas transformam-se em um ribeiro, um cavalo de ferro com corpo de homem traz ao cemitério o corpo do anão (que esperneia), cabeças podem trocar de corpo, mortos podem se movimentar e expressar sentimentos). A redenção do personagem surge após sua morte, quando a virgem – também morta – encontra no monstro sem cabeça seu grande amor e os dois encerram-se juntos na mesma campa para toda a eternidade.
De todo os efeitos utilizados no filme destacam-se a bruma, o stop-motion e os efeitos sonoros. A bruma está presente todos os momentos e cumpre diversos papés: ressalta o tom soturno das imagens, funciona como elemento de transição entre cenas, impede que se veja com clareza o cenário e os personagens ressaltando a incerteza sobre suas ações e contornos, cria o ambiente típico dos cenários de terror. É o elemento do fantástico, da fantasia, a metáfora dos mistérios que cercam a narrativa e da magia sobrenatural. O stop-motion é, ao mesmo tempo, um elemento que unifica e faz com que se alternem as ações que transcorrem nos três diferentes cenários da curta. Permite acelerar a narrativa e, como recurso estético, emula o visual dos filmes clássicos, acrescentando a eles certo humor e fantasia que fazem com que esta narrativa encontre um tom contemporâneo. Os efeitos sonoros, por sua vez, são talvez o maior destaque do filme. Desde o primeiro segundo o conjunto de trilha sonora, o foley e a voz performática do narrador criam uma camada sonora que completa o universo referencial do filme. A história narrada como um poema (claramente inspirado por Poe), a inserção de sonoplastia de choro, uivos, trovões e rangidos de correntes de metal (entre outros) pontuam a curta do início ao fim, constituindo uma narrativa própria que ordena, dá sentido e acrescenta sensações ao que se vê na tela.
2014 – Pela boca morre o peixe
A sinopse da curta realizada por João Nunes diz que “anos de pesca ilícita fizeram-no famoso no seio de um grupo restrito que partilha a paixão por tudo aquilo que é grotesco e ilegal. Até ao dia em que tudo se inverte e Miguel passa de caçador a presa, numa espiral descendente onde seus pesadelos ganham forma. Uma metamorfose negra que encontra no surrealismo a consequência mais perversa que alguém poderia imaginar.” (Nunes 2017).
Nesta curta a iconografia distancia-se do que convencionou-se como a iconografia clássica dos filmes de terror. Aparentemente, o filme passa-se na época atual, a fotografia e os elementos de cena não são propriamente característicos do terror. Ainda assim, é possível perceber na escolha dos ângulos de câmera, na coloração e na ação de algumas cenas, como a cena de abertura em que um peixe de aparência pouco comum é estripado, um toque do gore e do grotesco, levemente sobrenatural.
A história passa-se numa casa regular, com mobiliário não muito atual que evidencia uma época recentemente passada, e pode-se perfeitamente imaginar a casa dos avós. A cena do jantar acontece em uma sala em que predominam os tons escuros e quentes, com os comensais em torno de uma mesa circular. A escolha por um ângulo de câmera baixo, à altura do tampo da mesa, reafirma a dominância das personagens sobre oo cenário. As cenas do dia seguinte são entremeadas à do jantar e acontecem em outros ambientes da casa: numa sala mais ampla e no banheiro, e o tom destas cenas é mais frio. Nelas a personagem principal está só e confronta-se com sua mente, sua consciência e com as consequências de seus atos.
A personagem principal é a mais desenvolvida e mais detalhes contribuem para que se possa perceber sua personalidade e sua reincidència no crime. A partir do ferimento causado por sua última presa, Miguel passa a sofrer consequências físicas e mentais: sua mão e seu corpo apresentam manchas escuras, guelras nascem atrás de suas orelhas. O mergulho no fantástico se dá a partir deste ponto em que não é mais possível discriminar o que é delírio e o que é realidade sob o ponto de vista da personagem principal. As demais, embora caracterizadas de forma a demonstrar vilania em suas figuras, palavras e maneirismos, não são personagens que se destaquem.
A história inicia no dia seguinte ao banquete servido por Miguel e tem sua linha temporal interrompida várias vezes para retornar à cena da mesa em que os comensais ouvem como o peixe foi capturado e como ele “mordeu” enquanto era preparado. No ir e vir percebe-se aos poucos a consequência do crime de Miguel que, mordido pelo peixe, começa a transformar-se em um: sente a necessidade de contato com a água, sua pele cobre-se de manchas, nascem-lhe guelras. Mergulhado na banheira, ele é confrontado pela própria mente e a partir desse momento não é mais possível saber o que é real e o que é delírio. O fato é que Miguel morde um anzol, é estripado e seus amigos disputam pedaços de si como disputaram pedaços do peixe servido por ele num desfecho que sugere o canibalismo.
A atmosfera de terror psicológico e fantástico desse filme é resultado de efeitos subtis. Deles, além da cor, a maquiagem e os efeitos sonoros são os mais evidentes. A cor contribui para a separação visual dos dois momentos do filme, o do jantar e o da transformação, de forma que claramente se percebe a transição do passado para o presente/futuro. A maquiagem, por sua vez, sinaliza a transformação ao demonstrar a deterioração do corpo da personagem e também permite simular as guelras que surgem na personagem e a mordida no anzol que fica atravessado na boca do ator tal como ficaria de um peixe. De todos os efeitos, o mais presente é o som, que desde o primeiro minuto contribui para uma atmosfera de suspense e mistério ao pontuar toda a narrativa (o barulho das louças, da torneira aberta, da operação que sofre a personagem) e evidenciar momentos importantes como o jantar e a transformação definitiva do caçador em caça por meio de um trilha fantástica e evocativa que gera desconforto auditivo e evoca sensações de estranheza e expectativa permanentes.
2015 – Miami
A curta “Miami” (Miami 2014) foi realizada por Simão Cayatte e narra a história de uma adolescente que deseja ser famosa a todo custo. A propósito do filme, o realizador declarou que “Aqui a ameaça não vem do exterior mas sim da cabeça da protagonista. (...) A ideia de que nós criamos o nosso próprio terror assusta-me ainda mais do que a ideia de uma ameaça vinda de fora” (Santos 2015).
Esta curta de terror psicológico centra-se na personagem principal e sua obsessão pela fama. Há poucas pistas iconográficas que apontem para o gênero, com exceção da parede do quarto repleta de fotos de pessoas famosas, reflexo da personalidade obsessiva da protagonista.
A história passa-se no apartamento da família, na escola, num playground e outros locais quotidianos para uma adolescente. Não há nos diversos cenários muitas pistas que pontem para o terror. O foco das imagens é sempre a protagonista e sua expressão. Mesmo quando contracena com outras personagens é sempre na protagonista e em suas microexpressões que o realizador concentra o olhar do público, e é por meio das transformações subtis no olhar e na atitude da adolescente que se percebe o impacto que palavras, ideias, ações externas e acontecimentos têm sobre ela.
Ao longo da narrativa percebe-se que a protagonista busca incansavelmente a fama mesmo com a oposição da mãe. Após mais uma tentativa frustrada de obter um papel qualquer, numa conversa com as amigas, Raquel percebe que matar alguém pode ser o caminho mais rápido para seu objetivo. Da ideia à execução do plano premeditado, e com isso a obtenção da tão desejada fama, o percurso da personagem é rápido.
O grande trunfo dessa curta é a subtileza. A atriz principal é o motor do filme, e suas expressões demonstram a evolução da história e o aprofundamento da loucura na personagem. Nele não é possível evidenciar o uso de efeitos especiais que não estejam totalmente inseridos no storytelling. A naturalidade com que as cenas são tratadas, o clima cotidiano dos cenários e de toda ação torna a narrativa ainda mais interessante pois evidencia a banalidade do mal que se insere nas decisões do dia-a-dia. Alguns poucos reforços de áudio marcam momentos marcantes do filme, e efeitos de sirenes, luzes e flashes fotográficos nos momentos finais da história são as raras evidências de efeitos usados para intensificar o desfecho.
2016 – Post-Mortem
Esta curta de Belmiro Ribeiro (Post-Mortem 2016) conta a história de Edgar, um fotógrafo desapaixonado por seu trabalho e por sua noiva. Uma noite, Edgar testemunha um homicídio e fica fascinado pela expressão de terror da vítima.
Há poucos momentos em que a iconografia do filme demonstra sua proposta de ser uma curta de terror. Um dos objetos mais marcantes (pela repetição no uso) é a caixinha de música que pontua a inocência da noiva e sua personalidade doce, e a tesoura, que metaforicamente corta um pedaço de filme logo no início da trama. É aos poucos que a atmosfera de terror torna-se mais densa e o sangue, corpos, estacas, cruzes, cemitérios e outros icones mais macabros surgem em cena demonstrando o aprofundamento da loucura da personagem.
A história passa-se principalmente no estúdio fotográfico do protagonista, em uma antiga casa. Os equipamentos e ferramentas de trabalho, as roupas das personagens e tudo mais lembram uma estética antiga, reforçada pela escolha da fotograia em preto e branco. O cenário principal não dá pistas do terror passará a abrigar. Em dois momentos as cenas fogem desse local: o assassinato que Edgar testemunha ocorre na rua (o ponto em que a personagem se transforma), e ele desenterra um cadáver em um cemitério (ponto em que a loucura se adensa).
Duas personagens principais contracenam e opoem-se ao longo da história: Edgar, um fotógrafo autocentrado, exigente e irrascível, e sua noiva dócil, calada e doce. A transformação de Edgar ao longo da história aparece em suas atitudes mais confiantes sobre o próprio trabalho e condescendentes com a noiva. A noiva também ensaia uma mudança de atitude, tornando-se mais independente e enfrentando o mau gênio do noivo, postura que só se concretiza na cena final.
Fascinado pela expressão no rosto da primeira mulher que vê morrer, Edgar traz o cadáver ao seu estúdio e o fotografa para um trabalho encomendado. As fotografias fazem sucesso, e ele passa a desenterrar cadáveres para manter seu fascínio vivo. Feliz com a repercussão positiva de seus atos, Edgar decide assassinar a própria noiva, que desejava ser fotografada por ele. No momento do clique, com a noiva morta, seu cadáver se move e posa para Edgard, que ri e entrega-se de vez à loucura.
Nessa curta os efeitos são delicados, e parecem ser mais práticos que digitais. É evidente o trabalho de correção de cor e outros detalhes, como o acurado trabalho de sound effect, porém o sangue, por exemplo, não parece ter sido acrescentado em pós-produção. O que marca o aprofundamento da loucura do personagem é o progressivo adensamento da fotografia: quanto mais Edgar cede à loucura e ao fascínio da morte, mais escuro se torna o ambiente que o cerca, mais dramático o contraste entre luz e sombra e mais frequente o uso de planos fechados, de close-ups e detalhes, especialmente dos olhos e mãos da personagem principal.
2017 – Thursday Night
Realizado por Gonçalo Almeida, a curta de 7 minutos (Thursday Night 2017) é uma história de fantasmas em que os protagonistas são dois cães. Sobre a história da curta, o realizador comenta que “O cão de família é um elemento no grupo que é amado por toda a gente e ele sabe disso. Faz parte da família. Quando se encontra nesta situação acha estranho que, de um momento para o outro, o seu estatuto tenha mudado.” (Santos 2017).
Nesta história a iconografia do terror é muito pouco evidente. Exceção feita para casa antiga em que ocorre a história, com seus corredores e escadas, para o uso da iluminação crepitante da lareira e do contraste de temperaturas de cor nas imagens que dá pistas subtis para se decifrar a história.
No interior da casa, a cadela Bimbo recebe a visita de uma cadela branca desconhecida. O ambiente um pouco deteriorado e com estilo antigo traz um ar irreal e fantasmagórico às imagens, reforçado pela iluminação e pelos efeitos sonoros e visuais.
A protagonista, Bimbo, é uma cadela rafeira. Sua antagonista é uma grande cadela branca. No filme também aparece o casal e a criança da família, embora nenhum dos três interaja diretamente com os animais. Percebe-se na montagem a personalidade amigável e dócil de Bimbo, e o mistério solene da visitante.
O filme abre com uma cena em câmera lenta e tons frios em que Bimbo late para si mesma envolta de uma luz prata azulada. Num corte, vemos a cadela deitada em frente a lareira, numa atmosfera quente e acolhedora. Ela é acordada por um uivo e percebe a grande cadela branca no umbral da porta. Late, sem que ela reaja. A cadela branca passeia pela casa e Bimbo a segue. Primeiro até o quarto do casal, a quem não consegue acordar. Depois, tenta interagir com a criança, também sem sucesso. Por fim, volta para a sala, onde vê-se ainda deitada em frente à lareira. Nesse momento, Bimbo olha para a cadela branca que guarda a porta no fim do corredor. Ela vira-se e adentra o umbral sob uma luz azulada, e Bimbo a segue, mergulhando no escuro.
O jogo de luzes, as câmeras lentas, a sobreposição de imagens na edição e os efeitos sonoros ajudam a criar o tom fantástico e fantasmagórico da narrativa em que, aos poucos, a cadela Bimbo percebe-se morta e aceita sua condição. As cenas em câmera lenta e os momentos em que a imagem da cadela são sobrepostas gerando composições em que ela vê a si mesma são muito bem realizadas e mostram grande cuidado com a iluminação e a composição. São cenas cruciais para a compreensão da história e, com o auxílio da iluminação diferente para assinalar os momentos em que o animal hesita entre ficar e partir contribuem para o entendimento da história.
2018 – A Estranha Casa na Bruma
A curta realizada por Guilherme Daniel (A Estranha Casa Na Bruma 2018) foi inspirada num conto de H. P. Lovecraft (um dos grandes nomes da literatura de terror) (Maltez 2018) e narra a jornada de um peregrino que encontra uma misteriosa casa erguida à beira de um abismo.
Subtilmente, o autor insere ao longo da narrativa elementos do fantástico e do terror mesclados com gestos da liturgia religiosa.
A história se passa no exterior, da travessia pela floresta queimada até o alto do penhasco envolto em neblina, e no interior da casa, em que o ambiente modesto e seu habitante misterioso trazem símbolos plenos de significados como o livro, as velas, a tranca da porta. As cores apagadas e a luz fria remetem sempre a uma atmosfera lúgubre e irreal.
O peregrino e o homem que sorri são os dois personagens principais da trama. O peregrino, com seu cajado e pés descalços, caminha até encontrar a casa e nela entrar a convite do homem que sorri. Este, por sua vez, veste apenas uma calça surrada e vive só, cercado por seus objetos, numa casa cuja porta dá para o desconhecido. A intenção de seus atos permanece misteriosa, e até o final não se sabe se pretende ajudar ou sacrificar o peregrino que convidou para entrar. Há gestos do habitante da casa bastante ligados à liturgia católica.
Após uma longa jornada, o peregrino encontra uma casa envolta pela bruma no alto de um penhasco, em frente ao mar, e percebe que é habitada. O morador o convida a entrar pela janela, pois a porta dá para o abismo. Ao entrar, o homem partilha o pão com o peregrino, lava seus pés. O ritual é interrompido por batidas à porta. O dono da casa impõe silêncio, e tranca a porta que, por suas frinchas, começa a verter sangue. A escuridão parece se adensar sobre a casa, e o morador acende velas. O perigo parece desaparecer, e o homem retira a tranca da porta e beija o peregrino na face. Nesse momento, o peregrino vê-se novamente fora da morada. A ela retorna e de novo entra no local. Ao ouvir o ruído à porta, decide abri-la, quando é envolvido pos uma fantasmagórica luz azul que reflete em seus olhos. O peregrino segue a luz e atravessa a porta. No momento seguinte, um grupo de pescadores encontra seu corpo morto, sem os olhos, à beira do mar.
Na ficha técnica da curta dois efeitos são creditados: a bruma e o sangue na porta. Os dois são bastante perceptíveis e simbólicos dentro da narrativa, e marcam momentos decisivos: aquele em que o peregrino decide atravessar o nevoeiro e investigar o desconhecido e o momento em que, já dentro da morada, percebe o perigo de ir além e abrir a porta. Nos dois casos os efeitos reforçam o mistério e o clima de terror psicológico. Além desses, é possível entender o efeito da maquiagem sangrenta no final da história em que a face do protagonista aparece com seus olhos claramente arrancados e, ao longo de toda a trama, os efeitos sonoros que pontuam a ação e contribuem para a atmosfera de solidão e desolamento com o ruído constante do vento servindo como plano de fundo para os longos silêncios em que se pode absorver o mistério e a sensação de isolamento.
Conclusão
As curtas vencedoras do prêmio MotelX nos anos de 2013 a 2018 podem ser enquadradas dentro de diferentes gêneros do terror e nelas é possível perceber efeitos especiais de diferentes naturezas com maior ou menor influência sobre a narrativa.
Nas curtas de 2013 e 2016, caracterizadas por um gênero de terror mais clássico em que muito do cenário, da iconografia, dos personagens e da narrativa se utiliza de elementos reconhecidos do gênero e percebem-se efeitos que reforçam a proximidade das curtas contemporâneas com as obras clássicas do terror. Cenas nos cemitérios com a profanação de túmulos, corpos mortos que voltam à vida, personagens representando os arquétipos do monstro ou da virgem, o protagonista tomado por sua maldição ou pela loucura, alternando entre Jekyl e Hyde ou cumprindo a sina do monstro de Fankenstein são facilmente reconhecidos e rapidamente inserem as tramas no gênero de terror. Os dois curtas ainda são realizados em preto e branco, com o uso clássico do contraste e das cenas capturadas em ângulos que reforçam a vilania dos maus e a pureza dos bons, o adensamento do mal e da tensão, as sombras recortadas ou o close nos olhos e detalhes nas cenas de maior violência. Nelas, o uso de efeitos práticos é evidente e parte não só da narrativa como do que se espera no próprio gênero. É difícil ao observador inferir a presença de efeitos especiais digitais, exceto pelos efeitos sonoros. O foley bem cuidado que pontua com atenção as cenas e ajuda a conduzir cada história ao seu clímax merece destaque nas duas curtas.
Os anos de 2014 e 2015 trazem histórias distintas de terror psicológico. Em 2014 a trama mistura alguns momentos de gore e do fantástico a medida em que a personagem principal transforma-se em sua própria presa, confrontado com os próprios pecados e com as consequências de seus atos. A fantasia também está presente na mutação do corpo do personagem, e a sugestão de canibalismo da cena da cena final amarra definitivamente a curta ao gênero do terror. Nesta obra é possível perceber claramente os efeitos obtidos por meio da maquiagem e do uso do som para intensificar o drama e conduzir as emoções da platéia. Efeitos digitais são menos evidentes. Já na curta de 2015 a história é muito menos fantástica e mais focada no estudo da personagem que aos poucos mergulha em sua psicopatia. A naturalidade com que as imagens se apresentam, sempre próximas de uma fotografia da realidade, torna a narrativa ainda mais crível. Neste terror psicológico todos os efeitos são usados com economia, dos sonoros aos visuais. As cenas finais, entretanto, ganham intensidade com as luzes das sirenes, o barulho dos carros de polícia, os flashes fotográficos: tudo acelera a sensação de sucesso que a protagonista expressa. A escolha da trilha final pontua com ironia a história e a amarra definitivamente à realidade, o que torna toda a trama ainda mais assustadora.
A curta de 2017 merece destaque por dispensar atores e contar uma clássica história de fantasmas protagonizada por cães. Aqui o que fica mais evidente são os fatores pré-produção pois apenas o rigoroso planejamento das cenas explica o resultado narrativo que o realizador foi capaz de obter (Santos 2017; Maltez 2017). Na poética e fantástica história da cadela que aceita sua morte abundam as câmeras lentas, a alternância da temperatura de cor e o uso da iluminação e dos efeitos de sobreposição para obter momentos-chave para a narrativa em que, aos poucos, a cadela percebe a natureza do chamado que recebe e o aceita, vendo a si mesma morta na sala e, docilmente, cruzando a porta para a escuridão atrás do grande cão branco que a guia na travessia. Sem os efeitos utilizados a riqueza da narrativa seria claramente comprometida pois nessa curta os efeitos sonoros não contam a história, mas pontuam o ambiente e sublinham a ação, destacando o que, graças a isso, se pode perceber como as emoções dos cães.
Já a última curta em análise, vencedora do ano de 2018, poderia inserir-se no terror psicológico ou no cosmic horror de acordo com Pisco (2015), mas seu realizador a considera como parte do que se está convencionando chamar de pós-terror. A trama altamente simbólica, psicológica e fantástica também é muito aberta ao ponto de vista do espectador. Os efeitos destacados na ficha técnica do filme são muito mais os efeitos práticos porém é fácil perceber que a pós-produção, especialmente em termos de efeitos sonoros, tem grande importância na ambientação, no clima de mistério, suspense e perigo que permeia a história e mesmo na sua resolução com a morte do protagonista. Ao assistir a curta não é possível distinguir claramente a natureza e a quantidade de efeitos especiais presentes ou não na produção. A exceção é um pequeno trecho em que se vê sangue a escorrer por uma porta, elemento que evidentemente é inserido na cena, e a ausência dos olhos na personagem principal que acontece ao final. A realização destes efeitos concorda com o que Leite (2015) chama de hibridização da imagem: a mistura de elementos, artifícios e técnicas visando criar a imagem ideal para a realização, partindo de uma porção de realidade devido às técnicas empregadas.
Após a análise dessa amostra de curtas portuguesas em busca do que as caracteriza em seu gênero cinematográfico e nelas observar o papel dos efeitos especiais como parte do storytelling pode-se concluir que os realizadores portugueses e as obras analisadas têm em comum um profundo respeito pela história que desejam contar nas telas. Não se vê, em nenhuma das curtas, o uso do efeito pelo efeito, apenas como virtuosismo técnico, pelo contrário: percebe-se grande delicadeza no uso de processos de pós-produção e imenso planejamento de pré-produção, o que resulta em histórias mais fortes justamente por resistirem à tentação de ceder aos excessos técnicos. Em todas, percebe-se que os efeitos servem a narrativa, e não ao contrário. São usados para adensar a atmosfera, pontuar a interpretação dos atores, lançar luz para pormenores da ação que mais adiante serão decisivos, traçar paralelos que reforçam a trajetória das personagens. Desta forma, mais que um cinema de horror erigido a partir das possibilidades praticamente infinitas oferecidas pelos efeitos especiais percebe-se, nesta amostra, um universo de histórias curtas que compreende, domina e utiliza-se dos recursos técnicos a seu dispor, e que de forma alguma se deixa ser condicionado ou determinado por eles.
Notas finais
1Um disco com animação simplificada que podia ser observada por meio de fendas ou a olho nu.
2Uma chapa metálica presa pelas extremidades com um desenho de um lado, como por exemplo uma ave, e de outro uma gaiola. Ao girar a placa, os desenhos misturavam-se formando um terceiro.
3Também conhecido como flip book, em que o desenho feito de forma ligeiramente diferente em cada folha de um bloco, com a rápida passagem destas, faz surgir a ilusão de movimento pela rápida sobreposição das imagens.
4Dispositivo que projetava na parede imagens desenhadas em um vidro e colocadas em frente de uma lanterna. Nesse tipo de espetáculo, fragmentos estáticos ajudavam a compor a narrativa, intercalando-se com textos que descreviam os acontecimentos da história.
5Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa. Acreditado pela Federação Internacional de Associações de Produtores Cinematográficos (FIAPF), membro da Méliès International Festivals Federation (EFFFF) e da Europe for Festivals, Festivals for Europe (EFFE).
6Filme de 2018 com roteiro e direção de Ari Aster. Link para o IMDB: imdb.com/title/tt7784604/
7Filme de 2018 dirigido e estrelado por John Kasinsky. Link para o IMDB: imdb.com/title/tt6644200/
8Filme de 2015 escrito e dirigido por Robert Eggers. Link para o IMDB: imdb.com/title/tt4263482/
9Filme de 2017 com roteiro e direção de Jordan Peele. Link para o IMDB: imdb.com/title/tt5052448/
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