Advertising film and the audiovisualities of diversity and inclusion in organizational communication strategies

O filme publicitário e as audiovisualidades da diversidade e da inclusão nas estratégias de comunicação organizacional

José Antonio Martinuzzo

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil

Rosane Vasconcelos Zanotti

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Brasil

Abstract

Advertising narratives constitute a decisive discursive set to the functioning of contemporary sociability, founded on consumerism and dynamized by mediatized audiovisual experiences. In this context, in the field of communication of organizations, it is clear that marketing advertising discourse, which historically is not linked to social and political-cultural causes, has been investing in inclusive campaigns, anchored in the diversity agenda. Advertising films are a recurring resource in these initiatives, dialoguing with the expressive audiovisuality in contemporary times. It may seem unusual to link commercial advertising to sociopolitical causes, just as the discursive mismatch between the market and the growing planetary movement of conservatism and disruptions in liberal democracy in the political-institutional realm can be suggested. With a theoretical-conceptual review and case study of two advertising films made by the company Mercado Livre, one of the giants of online commerce in Brazil and present in 18 countries, on the occasion of the International LGBTI Pride Day (28/06), we present a critical reflection on the strategies and motivations of advertising campaigns focused on narratives of diversity and inclusion, precisely in a political-institutional environment increasingly inhospitable to human and civil rights of minorities and marginalized populations.

Keywords: Advertising film, Diversity, Inclusion, Communication, Audio-visual.

Introdução

A publicidade integra de forma inelutável o composto ferramental da comunicação organizacional na atualidade, constituinte que é daquele conjunto discursivo central ao funcionamento das sociabilidades contemporâneas, fundadas no consumismo e nas trocas midiatizadas, com destaque às audiovisualidades, ou seja, à experiência audiovisual1.

Nesse cenário, a comunicação organizacional, ou

A comunicação (intercâmbio de informações para produção de um sentido comum) feita no âmbito das organizações (interna e externamente) com seus diversos públicos-alvo, visando-se à produção de um significado (imagem/reputação organizacional) (MARTINUZZO, 2013, p. 15),

investe em filmes publicitários cada vez mais elaborados.

Aqui entende-se filme, a partir da linguagem e recursos da cinematografia, como uma sequência de imagens registradas, em suportes analógicos ou digitais, para sua exibição em movimento, com vistas a contar uma história de modo peculiar, como uma ação dramática, ou seja, como uma narrativa dinamizada pela ação e pelo conflito, sem interferência do narrador e/ou do espectador, este a ser afetado por emoções as mais diversas.

No contexto da gestão da imagem institucional, ou da reputação organizacional, e utilizando-se de filmes publicitários cada vez mais elaborados, contemporaneamente, nota-se que o discurso publicitário mercadológico, que, comumente, não se atrela a causas sociais e político-culturais, vem investindo em campanhas inclusivas, ancoradas na diversidade.

Entende-se diversidade como a pluralidade de modos de pensar, perceber e experimentar a condição humana, por questões de natureza genética, por escolha e/ou contingência socioeconômica e político-cultural. Na atualidade, o debate e as lutas em torno da diversidade estão especialmente pautados por questões relativas a origem geográfica, social e econômica, orientação sexual, gênero, raça, cor.

A inclusão focada na diversidade visa a garantir representatividade e visibilidade, como preceitos de humanidade, a grupos marginalizados, estando estes ou não em desvantagem numérica no contexto populacional das comunidades, tendo em vista que preconceitos e violências conectam-se mais a hegemonias culturais e de mando e menos a contingentes de quantidade de indivíduos.

Pode parecer inusitado vincular publicidade comercial a causas sociopolíticas, assim como se pode aventar mesmo a ocorrência de um desencontro discursivo entre o mercado e o crescente movimento de alcance planetário de conservadorismo e de rupturas na democracia liberal no âmbito político-institucional.

Conforme Castells (2018, p. 07), “sopram ventos malignos no planeta azul”, atravessado por um “turbilhão de múltiplas crises”: instabilidade econômica, terrorismo, violações aos direitos e à vida, etc. Vive-se, fundamentalmente, “a crise da democracia liberal” e seus valores iluministas, gerando uma onda conservadora, pondo em marcha um “subdesenvolvimento político e ético”.

Nesse ambiente de ruptura de valores liberal-democráticos, e numa realidade em que os discursos publicitários, na visão de Quessada (2003, p. 16), rivalizam-se com o “discurso político como único discurso apto a dar conta do coletivo”, observa-se um incremento de campanhas publicitárias em defesa de uma realidade mais diversa e inclusiva, dialogando com os fundamentos da cidadania (PINSKY, 2016; COMPARATO, 2006).

A análise crítica2 dessa narrativa é o objetivo, confrontando-se um discurso tradicionalmente devotado ao consumismo (BAUMAN, 2008) com questões acerca de seus objetivos, estratégias e táticas. Estudam-se dois filmes publicitários da comunicação feita pela empresa Mercado Livre, uma das gigantes do comércio on-line no Brasil, por ocasião do Dia Internacional do Orgulho LGBTI (28/06) em 2019.

A metodologia da pesquisa que resultou neste artigo contempla, ainda, revisão de literatura específica, alcançando as áreas de comunicação social, publicidade e propaganda, marketing, política, sociologia, filosofia e psicanálise.

Dessa sorte, este artigo objetiva constituir uma reflexão, amparada em revisão teórico-conceitual e estudos de caso, acerca das estratégias, dos discursos e motivações de campanhas publicitárias focadas em narrativas de diversidade e inclusão, justamente em ambiente político-institucional crescentemente inóspito a direitos humanos e civis de minorias e populações marginalizadas.

A publicidade como discurso afetivo-político

Pelo menos a partir das duas últimas décadas do século XX, percebe-se que, com um paradigma de sociabilidade bem articulado discursivamente e dispondo de tecnologias que viabilizam a execução dos seus ditames e estratégias, o capitalismo neoliberal vem investindo na indústria cultural como seu preposto ideológico.

Atualmente, essa potente e midiatizada indústria cultural em rede, que inclui as diversas mídias on e off-line, vai além para convencer e promover adesões ao paradigma capitalístico. Mixa entretenimento e cultura à produção e oferta de bens e serviços impregnados de conceitos plasmadores de referências cognitivas.

Sob orientação discursiva clara, e de modo inaudito, opera-se a aproximação dos pressupostos do capital com os elementos e as práticas da cultura. Na era do que podemos chamar de consumismo existencial, ou seja, aquele que provê razão de viver, a impregnação de conceitos e valores culturais em produtos de uso ordinário, como roupas e utensílios domésticos etc., é também uma estratégia econômica de potencial extraordinário.

O mundo inteiro é a fonte de pesquisa e obtenção de exotismos a serem adaptados e reificados, numa contingência de existências ávidas por novidades. Por intermédio de pesquisas mercadológicas e ações de comunicação e marketing, os bens e serviços são imbuídos de significados, tornando-se mercadorias a serem acessadas na economia em rede. Os “marqueteiros”, como antes o foram escolas, igrejas, instituições e organizações civis, são hoje agentes centrais na formulação e propagação de conceitos para se interpretar, reproduzir e criar expressões culturais, modos de viver.

Com a produção cultural alcançada pela economia, os bens se tornam, cada vez mais, suportes em torno dos quais significados culturais elaborados são representados. A importância material é reduzida diante do simbolismo que os artefatos carregam. Há um processo de “reificação” de ideias, ideais e projetos de vida saídos da indústria da mídia e do marketing capitalista.

Segundo Jameson (2000), é o espanto do atual capitalismo cultural, a mais pura forma de capital que jamais existiu, atingindo áreas até então fora do mercado. Na sua trajetória ascendente, diz, o capital alcança e coloniza, por exemplo, o imaginário, via expansão e centralidade do negócio das mídias e da indústria da propaganda.

Quessada (2003) afirma que a publicidade direta ou de patrocínio quer levar o consumo e as marcas a todos os instantes da vida cotidiana, oferecendo um vasto quadro de papéis e personagens possíveis a quem compra e usa. E um consumismo de padrão global, mesmo que com acentos e sotaques locais.

A publicidade, que nem chega a conformar um processo de comunicação em seu sentido estrito, pois não é discussão, troca de ideias ou confronto de pontos de vista, trabalha para estabelecer territórios – de marcas –, organizando grupos sociais em torno da prática do consumo, registra Quessada.

Estabelece-se uma comunicação para a comunhão e identificação por intermédio do consumo. Através da publicidade, a sociedade se comunica, apesar de não promover o diálogo na intensidade desejável. De acordo com o autor, na substituição da política e da cidadania pelo individualismo e pelo consumismo, a publicidade é um dos principais agentes do mercado.

Anunciando, a propaganda estabelece relações de uma espécie de “coletividade vinculada”. A publicidade “vem rivalizar com o discurso político como o único discurso apto a dar conta do coletivo. Sob os enunciados comerciais, há uma aposta política – supondo-se, aliás, que seja verdadeiramente possível diferenciar os dois”, registra Quessada (p. 16).

Para o autor, estamos na era em que o indivíduo é a base da sociabilidade, apresentando-se como “pacotes de indivíduos colados juntos temporariamente por um princípio de ‘identidades revogáveis’ orquestrado pela ação adesiva, mas indefinidamente reposicionável, das marcas” (p. 17).

A publicidade está no palco central da produção indução de afetos na contemporaneidade. E isso não é pouca coisa, tendo em vista, como assinala Safatle (2016, p. 15), que “sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuitos de afetos”. Para o pensador, “enquanto sistema de reprodução material de formas hegemônicas de vida, sociedades dotam tais formas de força de adesão ao produzir continuamente afetos que nos fazem assumir certas possibilidades de vida a despeito de outras”.

Em Ética a Nicômaco, Aristóteles (2009, p. 46) nomeia 11 “afecções” – desejo, ira, medo, audácia, inveja, alegria, amizade, ódio, saudade, ciúme e compaixão. Em Retórica, Aristóteles (2012) mantém o mesmo número de afetos, ainda que com diferenças no elenco, mas sempre dentro do espectro de sensação de prazer e desprazer – emoção, ira, calma, amizade/inimizade, temor/confiança, vergonha/desvergonha, amabilidade, piedade, indignação, inveja e emulação.

Aristóteles afirma que afetos, em geral, são afetações acompanhadas por “prazer ou sofrimento”. As emoções ou paixões [afetos] “são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer” (2016, p. 85).

Sodré (2006, p. 55), apontando que, desde os inícios do século XX, o capitalismo dispensa uma atenção central à alma e aos sentidos, reporta que vivemos na sociedade de controle, substituta da sociedade disciplinar, “onde a trama de poder ocupa o psiquismo e o corpo dos indivíduos, por meio do desejo”.

Ao salientar que vivemos numa sociedade pós-fordista e que migra das estratégias de estandartização (padrão para massas) para as de codificação (customizações dentro de um mesmo estilo), Sodré relata que experimentamos um tipo de

‘nova economia’, em que dimensão imaterial da mercadoria prevalece sobre sua materialidade, tornando o valor social ou estético maior do que o valor de uso e o valor de troca. Valores simbólicos e afetos ganham o primeiro plano tanto na economia quanto na cultura codificada (p. 56).

Essa nova economia de afetos sustenta o grande alvo do poder contemporâneo, que é a produção de subjetividades, com foco na alma, no espírito, alvos preferenciais de domínio, contrariamente ao paradigma anterior, de disciplina de corpos, argumenta Sodré (mais acerca dessa discussão, nos tópicos a seguir).

E, conforme salientamos no início, um dos mecanismos centrais nesse processo de produção/atualização de subjetividades pelo capitalismo atual está publicidade e suas estratégias e táticas afetivas.

Nesse sentido, segundo Sodré, para ser efetiva, a estratégia “tem de calcular os aspectos de começo e de fim da ação e não se confinar no detalhamento da manobra a que se dispõe. Essa última cabe à tática, responsável pela contingência do agir e confinada ao tempo presente” (p. 10). De acordo com o autor, “estratégia e tática podem ser referidas a jogos de guerra, de comércio, de política, de entretenimento ou de comunicação” (p. 10).

É em busca do desvelamento de estratégias e táticas da publicação devotada a temáticas da diversidade e da inclusão que aqui nos colocamos e seguimos, especialmente num momento em que as democracias liberais entram em confronto com projetos conservadores e mitigadores de direitos humanos e civis, como se analisa a seguir.

A democracia liberal em crise

Estados Unidos, França, Inglaterra, Brasil, Filipinas, Itália, Turquia, Rússia, Venezuela... A democracia liberal e o valor da política como ingrediente da construção civilizatória estão em plena vertigem mundo afora, liquefazendo conquistas humanitárias alcançadas ao custo de muito exercício político, batalhas ideológicas e guerras fratricidas. Nosso planeta faz arder todo um processo civilizatório urdido há pelo menos dois milênios, desenhado nos detalhes sob as Luzes que vieram na esteira do Renascimento.

“Não me representa!” Esse mantra ecoa nos quatro cantos do planeta, sonorizando e evidenciando a crise por que passa, em ambientes democráticos, o sistema político-partidário e institucional na atualidade. Ele reverbera, já há tempos, uma rejeição epidêmica e o grave descrédito a um modo de representação e de governança que parece anacrônico, caro e ineficiente a maiorias cada vez mais significativas.

Segundo Castells (2018, p. 7), em meio a múltiplas crises que envenenam a atualidade, há uma “mais profunda” e com consequências “devastadoras”: “a ruptura da relação entre governantes e governados”. Para ele, “a desconfiança nas instituições, em quase todo mundo, deslegitima a representação política e, portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse comum”.

Conforme o pesquisador (p. 20):

Na raiz da crise de legitimidade política está a crise financeira, transformada em crise econômica e do emprego, que explodiu nos Estados Unidos e na Europa no outono de 2008. Foi, na realidade, a crise de um modelo de capitalismo, o capitalismo financeiro global.

Como diz o próprio Castells, essa crise política é global, com esse importante traço comum, mas ela também tem suas colorações nacionais. A brasileira, por exemplo, tem, sim, esse ingrediente planetário, mas se agravou assustadoramente por uma série de equívocos na gestão de políticas econômicas, em ambiente atravessado por práticas de corrupção endêmicas.

Juntamente com a crise da democracia liberal, entram em crise valores e conquistas pagos com “sangue, suor e lágrimas”, alcançados ao longo dos últimos séculos. Ainda que atravessados por problemas e desvios, esses patrimônios fundamentaram “instituições à quais possamos delegar o poder soberano que, teoricamente, nós cidadãos detemos, aspirando a algo mais”, atesta Castells (p. 11), enumerando tais evoluções:

Respeito aos direitos básicos das pessoas e aos direitos políticos dos cidadãos, incluídas as liberdades de associação, reunião e expressão, mediante o império da lei protegida pelos tribunais; separação dos poderes entre o Executivo, Legislativo e Judiciário; eleição livre, periódica e contrastada dos que ocupam os cargos decisórios em cada um dos poderes; submissão do Estado, e de todos os seus aparelhos, àqueles que receberam a delegação de poder dos cidadãos; possibilidade de rever e atualizar a Constituição na qual se plasmam os princípios das instituições democráticas. E, claro, exclusão dos poderes econômicos ou ideológicos na condução dos assuntos públicos mediante sua influência oculta sobre o sistema político.

Castells fala da instalação de um verdadeiro caos na contemporaneidade. “De fato, a ruptura da relação institucional entre governantes e governados cria uma situação caótica que é particularmente problemática no contexto da evolução mais ampla de nossa existência como espécie no planeta azul” (p. 145), observa o pensador da sociedade-rede. E por que o caos é assustadoramente potente? Porque, explica Castells, a democracia liberal está deixando de existir “no único lugar em pode perdurar: a mente dos cidadãos” (p. 144).

A reinvenção da ação política e de nossas institucionalidades face a essa nova contingência histórica de crise é abordada por Cardoso (2018). A propósito, ele diz:

Movimentos de cidadãos têm hoje uma potencia inédita, mas mudanças duradouras nos modos de organizar a vida em sociedade requerem institucionalização de novas práticas e valores. O desafio está justamente em encontrar – ou inventar – as formas mais propícias à reconexão entre ‘o mundo da vida e da sociedade’ e o ‘mundo das instituições e do Estado’ (p. 13).

Cardoso afirma que, “para renovar, precisamos de líderes que sejam portadores de nova mensagem, que se distingam do passado, a começar pela forma como se comunicam com a população” (p. 17). Além dos desafios das mensagens e dos meios, o sociólogo aponta “os inimigos da mudança, os adversários da contemporaneidade: de um lado o estatal-corporativismo, de outro o fundamentalismo do mercado. Ambos incompatíveis com o mundo contemporâneo”.

Este autor assevera que “o espírito de liberdade, a busca de mais igualdade e a ênfase na dignidade são valores que devem ser dirigidos às pessoas em situações concretas” (p. 17), assim como aos coletivos, de forma a dar um sentido maior à vida atual. É preciso sublinhar que o fazer político deve ser visto como uma ação em prol interesse comum. Isso porque é a política, em ambiente democrático, que justamente viabiliza a preponderância do interesse comum, nos mais variados âmbitos e aspectos, nos estritos limites da vida civilizada, que prevê a produção de maiorias em ambiente de divergências sem que se comprometam as garantias da cidadania e dos direitos humanos e civis nos marcos da diversidade.

Nesse mundo de transições turbulentas, é preciso ter claro que se, por um lado, instituições e práticas colocadas em xeque por crises econômicas e corrupção endêmicas, ou mesmo tornadas obsoletas por avanços das técnicas e das ideias, precisam se atualizar diante de um novo modo de existir e de se relacionar, por outro lado não se pode desprezar a importância das institucionalidades e muito menos a imperiosidade dos valores civilizatórios.

Dessa forma, a democracia não deve ser vista como um instrumento, mas como um valor a sustentar e orientar o imprescindível fazer político. A dignidade humana não pode jamais ser relativizada. Direitos humanos e civis são a base do humanismo que deve nortear todo e qualquer esforço, individual e/ou coletivo, de fazer a história andar. O primado da razão e das ciências não pode ser abandonado em função de dogmas e carismas, dentre outros atributos que, perigosamente, nos afugentam da arena pública do interesse comum e nos arrastam insidiosamente para o universo de questões da vida privada, como as crenças de cada um, por exemplo.

Nesse caminho, Steven Pinker (2018) ainda considera:

Apesar de todas as deficiências na natureza humana, ela contém as sementes do seu próprio aperfeiçoamento, contanto que proponha normas e instituições que canalizem interesses particulares para benefícios universais. Entre essas normas estão a liberdade de expressão, a não violência, a cooperação, o cosmopolitismo, os direitos humanos e o reconhecimento da falibilidade humana; entre as instituições estão a ciência, a educação, os meios de comunicação, o governo democrático, as organizações internacionais e os mercados (p. 49).

Se restam claros o momento crítico por que passam as democracias liberais, a partir dos rompimentos de diálogos entre institucionalidades e cidadãos; a emergência de governos extremistas mundo afora, eleitos na onda de abalos de confiança nos mecanismos tradicionais de representação político-institucional e de seus métodos de enfrentamentos das crises da atual globalização; a radicalização do combate às ideias iluministas e humanistas de igualdade, fraternidade e liberdade nos marcos da diversidade, em tempos de medos epidêmicos e políticas de medo, também é preciso salientar que a arena de debate e mesmo revigoramento ou renascimento da ação política emancipatória passa pelos circuitos comunicacionais da sociedade midiatizada (SODRÉ, 2002), aquela em que as conexões socioeconômicas e político-culturais são articuladas por meio de plataformas e mídias on e off-line, e ao mesmo tempo dinamizadas pelos conteúdos e emissões efetivadas numa colossal rede de mídias, basicamente operantes em tempo real.

Nas palavras de Castells (2018):

A luta pelo poder nas sociedades democráticas atuais passa pela política midiática, pela política do escândalo e pela autonomia comunicativa dos cidadãos. [...] A digitalização de toda a informação e a interconexão modal das mensagens criaram um universo midiático no qual estamos permanentemente imersos. Nossa construção de realidade e, por conseguinte, nosso comportamento e nossas decisões dependem dos sinais que recebemos e trocamos nesse universo. A política não é uma exceção a essa regra básica da vida na sociedade-rede na qual entramos em cheio. Na prática, só existe a política que se manifesta no mundo midiático multimodal que se configurou nas últimas décadas (p. 26.)

Nessa sociedade midiatizada, conforme vimos no início, a publicidade exerce um papel de agente político de conformação de subjetividades e coletividades articuladas em torno de discursos afetivos, operando novas formas de existir arraigadamente articuladas à vida do consumismo.

Barber (2009, p. 190) afirma que, na era do consumismo, o negócio “desempenha um papel de forjar identidades que levem a comprar e vender”. Para ele, a identidade transformou-se em um “reflexo de ‘estilos de vida’ intimamente associados a marcas comerciais e aos produtos que elas rotulam, bem como atitudes e comportamentos ligados a onde compramos, como compramos e o que comemos, vestimos e consumimos”.

De acordo com Bauman, chegamos à economia consumista, em que as próprias pessoas são transformadas em mercadorias, numa realidade de promessa de felicidade aqui e agora de um capitalismo que a tudo pode oferecer respostas. “Entrar na web para escolher/comprar um parceiro segue a mesma tendência mais ampla das compras pela internet” (BAUMAN, 2008, p. 27).

“Para oferecer novos mecanismos de motivação, orientação e monitoramento da conduta humana”, baseia-se no excesso, no desperdício, no descartar, na remoção, no substituir, numa lógica ajustada à capacidade do capital de produzir novidades sem parar. “A maior atração de uma vida de compras é a oferta abundante de novos começos e ressurreições” (BAUMAN, 2008, p. 66).

O autor sugere “completar a versão popular e revista do cogito de Descartes, ‘Compro, logo sou...’”, com o acréscimo de “‘um sujeito’” (BAUMAN, 2008, p. 26). Também nessa direção, proporíamos um ajuste na inversão psicanalítica do cogito – “sou onde não penso” –, lançada em função do estabelecimento do sujeito do inconsciente, para: “sou a consumir”.

Dessa forma, a ampliada e amplificada indústria cultural atual, segundo Moraes (2013), exerce uma dupla função na contemporaneidade: além de ser agente operacional e discursivo do capital, produzindo consciências ajustadas aos seus interesses, é uma das usinas mais vigorosas da produção capitalista.

Como se pesquisa aqui, o discurso da publicidade, devotado à máquina do consumismo, traz para a sua agenda temas da vida política, como inclusão e diversidade, justamente num momento árido para a democracia liberal e o humanismo em todos os quadrantes do planeta.

Quais estratégias e táticas operam nessa escolha narrativa? Em busca dessa resposta, analisa-se, a seguir, o quadro atual dos direitos humanos e civis na contingência atual. Logo depois, apresentam-se cases de publicidade engajada na temática política, com as averiguações que pudemos efetivar.

Direitos humanos e civis na pauta e berlinda

Ataques discursivos, iniciativas de cunho legal, pressões políticas, medidas normativas, entre outros recursos político-institucionais, têm sido mobilizados contra garantias, reconhecimentos e direitos, conquistados nos últimos anos, acerca da dignidade humana de populações marginalizadas e minoritárias em países os mais diversos, do Norte e do Sul, do Leste e do Oeste do planeta, dos enriquecidos e dos empobrecidos constituídos pelo paradigma produtivo hegemônico.

Essas e outras recorrências antidiversidade e anti-inclusão pautam a agenda de governos conservadores e de extrema direita mundo afora. Com todo o risco de qualquer generalização, mas, diga-se, como o mínimo risco de erro interpretativo, pode-se afirmar que, juntamente com a ruína crescente da democracia liberal tem se aprofundado um retrocesso amplo no já minguado rol de direitos, conquistas e visibilidades de marginalizados e minorias, dentre os quais, destacam-se mulheres; população LGBTI; população negra; minorias étnicas; migrantes; populações em situação de risco pessoal e social, especialmente crianças, adolescentes e idosos.

Por inusitado que possa parecer, neste vácuo de amparo e de iniciativas político-institucionais e governamentais promotoras e garantidoras da cidadania a todas e todos, é que tem-se registrado a opção publicitária por levantar bandeiras pouco comuns às suas causas mercadológicas, bandeiras devotadas a questões de inclusão e diversidade, como se apresentará nos casos em estudo, logo a seguir.

Historicamente, as conquistas da cidadania se deram pari passu com a constituição das democracias liberais, advindas com as revoluções liberais do século XVIII, e turbinadas, ainda que colateralmente, pelos efeitos e requisitos da revolução industrial e suas sucessivas etapas rumo à globalização contemporânea.

Conforme salienta Comparato (2006, p. 622), entre os objetivos fundamentais do regime democrático-republicano, está “a equalização das condições básicas de vida para todos”, e uma de suas instituições essenciais é “o respeito integral aos direitos humanos”. O autor resume:

Os direitos humanos em sua totalidade – não só os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais; não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida hoje como o novo sujeito de direitos no plano mundial – representam a cristalização do supremo princípio da dignidade humana (p. 623).

Acerca da cidadania, sua significação e trajetória, Pinsky (2016) salienta que não se trata de um conceito estanque, mas de uma definição histórica, ou seja, que varia não só no tempo como também nas territorialidades diversas. De toda sorte, argumenta que se pode delinear “um processo de evolução que marcha da ausência de direitos para a sua ampliação ao longo da história” (p. 10).

Nesse sentido,

A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na Independência dos Estados Unidos da América do Norte e na Revolução Francesa. Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade que vigia até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão. Desse momento em diante todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais, étnicas, sexuais e etárias. Nesse sentido pode-se afirmar que, na sua acepção mais ampla é a expressão concreta do exercício da democracia (p. 10).

Não é à toa que, em tempos de crise da democracia, entram em crise os sistemas geradores e garantidores da cidadania, como temos testemunhado ao redor do mundo, e aqui se discute.

Pinsky define o que é ser cidadã e cidadão, em termos gerais e depois de séculos de história tocada pelos ideais do Iluminismo, com avanços e retrocessos comuns à dinâmica histórica de produção de sociabilidades:

Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais (p. 09).

A imposição da supremacia de direitos e vontades da maioria em conta do massacre e aniquilamento de direitos e acolhimentos/reconhecimentos de minorias e marginalizados, via ataques discursivo-simbólicos que refreiam e obstaculizam avanços e também por meio de desmontes de conquistas legais que garantem a diversidade e a inclusão, como se vem crescentemente verificando mundo afora à medida que ganham espaço governos conservadores e autocracias chanceladas por recursos da democracia, mas que em quase nada lembram regimes verdadeiramente democráticos, põe em rota de retrocesso o caminhar civilizatório.

A garantia da cidadania plena a todas e todos na letra das leis, seja para cristalizar conquistas já efetivadas, seja para permitir que novos passos se deem rumo ao incremento humanístico, é algo decisivo. A subsunção das garantias da cidadania a atos discricionários de ocupantes contingenciais de poder, ainda mais em tempos de extremismos e radicalismos maniqueístas e supremacistas, fere o coração da vida política, da existência cidadã.

Conforme Aristóteles (2011, p. 125) alertou há milênios, supondo a ideal da vida política e ao “questionar se é mais vantajoso ser submetido à autoridade de um homem perfeito ou à das leis perfeitas”, resta que: “a lei é inflexível [ainda que passível de ser corrigida pelos cidadãos]; a alma humana, ao contrário, está forçosamente sujeita às paixões”.

Comparato (2006) assim resume o pensamento de Aristóteles: “o governo das leis é preferível ao governo dos homens, porque estes são sujeitos a paixões, ao passo que a lei é a sabedoria isenta de desejos” (p. 663).

Se ter claro e em evidência a importância dos arranjos (legislações, órgãos, instituições etc.) democrático-republicanos como garantidores dos direitos e da promoção da ampliação da cidadania sempre foi crucial no caminhar da humanidade, neste tempo de recrudescimento do conservadorismo hostil aos valores e garantias humanísticos, tais procedimentos tornam-se algo essencial, ingredientes decisivos da pauta civilizatória em si.

Dessa sorte é que se pode ver como bem-vindas as iniciativas das publicidades empresariais pautadas pelas questões da inclusão e da diversidade. Ainda que seus objetivos possam estar mais no escopo de ampliar o consumo do que promover a cidadania; ou mesmo de fazer prevalecer a equivalência entre cidadania e consumo, ou cidadão e consumidor; ou até de evidenciar a obsolescência do Estado e da política e seus mecanismos e organismos nesta era de capital global e onipotente, inclusive no tocante a questões da cidadania.

Afinal, como alertam Hardt e Negri (2001, p. 13):

Na pós-modernização da economia global, a produção de riqueza tende cada vez mais ao que chamaremos de produção biopolítica, a produção da própria vida social, na qual o econômico, o político e o cultural cada vez mais se sobrepõem e se completam um ao outro”, num momento em que “a soberania do Estado-nação [e seus aparelhos e estratégias], apesar de ainda eficaz, tem gradualmente diminuído (p. 11).

Resta notar que os nacionalismos e o recrudescimento das fronteiras nacionais estão entre as pautas prioritárias do conservadorismo em voga.

A apontar o aprofundamento da transição da “sociedade de disciplinar” – conceito de Michel Foucault para referenciar-se às sociabilidades engendradas pela revolução capitalista, desde o século XVIII até fins do século XX, conformadas à produção de corpos dóceis ajustados à rotina fabril, num tempo em que a padronização e a estabilidade de processos produtivos e relações sociais coadunavam com as técnicas e propósitos e limitações do capital de então – para a “sociedade de controle” – segundo teorização de Gilles Deleuze, a sociabilidade ajustada ao capitalismo global, informacionalizado, mutável, mutante e flexível, em suas técnicas e processos, necessitando, portanto, de uma outra subjetividade, igualmente ajustada e devotada e desejosa de mudanças intermitentes e atualizações periódicas, em um modus vivendi no qual cabem tudo e todos, em que não há fora, excluídos, desde que se prestem a alvo e referência de marketing –3, Hardt e Negri indicam a hegemonia caminhando a passos largos rumo ao plano da imanência.

No governo e no poder inerentes ao capitalismo global, que os autores denominam de “Império”, há uma a crescente indistinção do dentro e do fora, o derretimento da rigidez das fronteiras, constituindo-se um “imperativo triplo do Império” (inclusão, diferenciação e gestão de subjetividades e intersubjetividades), acentuando-se que “não existe o lado de fora”. Isso vale tanto para os macroprocessos de poder, quanto para as comezinhas relações intersubjetivas, conforme bem descreve essa assertiva: “todos são bem-vindos dentro de suas fronteiras, independente de raça, credo, cor, gênero, orientação sexual e assim por diante” (p. 217).

No sentido da política imperial da imanência, destacam Hardt e Negri:

A produção imanente de subjetividade na sociedade de controle corresponde à lógica axiomática do capital, e sua semelhança indica uma nova e mais completa compatibilidade entre soberania e capital. A produção de subjetividade na sociedade civil e na sociedade disciplinar promoveu em determinado período o governo e facilitou a expansão do capital. As modernas instituições sociais produzem identidades sociais muito mais móveis e flexíveis do que figuras subjetivas anteriores. As subjetividades produzidas nas instituições modernas eram como as peças de máquina padronizadas produzidas nas fábricas [...] Cada parte desempenhava um papel específico na máquina montada, mas era padronizada, produzida em massa, e portanto substituível por qualquer parte do seu tipo. A certa altura, entretanto, a fixidez dessas partes padronizadas, das identidades produzidas pelas instituições acabou representando um obstáculo para a progressão rumo à mobilidade e à flexibilidade. A transição para a sociedade de controle envolve uma produção de subjetividade que não está fixada em identidade, mas é híbrida e modulada. À medida que as paredes que definiam e isolavam os efeitos das instituições modernas progressivamente caem, as subjetividades tendem a ser produzidas simultaneamente por numerosas instituições em diferentes combinações e doses (p. 353).

Não nos parece irrelevante, pois, que o conservadorismo em progresso galopante mire o que chamam de “globalismo” e suas estratégias de controle – fenômenos que, ainda que como efeito colateral, possam incrementar padrões da cidadania, como a inclusão e a diversidade –, clamando pelo retorno a um idílico tempo disciplinar, de “estabilidades”, “limites” e lógicas excludentes balizadoras do “normal” e do “anormal”, do “nós” frente a/contra “eles”, ou das maiorias e das hegemonias frente a/contra minorias e marginalizados.

Não que o capital seja agente precípuo de cidadania – nessa condição, nunca foi, nem dá mostrar que será –, mas pode parecer, ao menos no catálogo publicitário hodierno, que a pauta cidadã da diversidade e da inclusão encontre, na lógica do poder de controle, garantidora do capital global, uma parceria inusitada, ainda mais em tempos de retrocessos civilizatórios pautados pelo conservadorismo recrudescente planeta afora. Extremismos à direita que miram, entre outros, na globalização e seus efeitos, inclusive os colaterais, como o auxílio indireto e involuntário ao incremento da diversidade e da inclusão, por via de estratégias mercadológicas e de controle de subjetividades e coletividades.

Filmes publicitários, inclusão e diversidade

De acordo com informações institucionais do Mercado Livre4, a empresa, fundada em 1999, “é a companhia líder em tecnologia para e-commerce e serviços financeiros na América Latina e oferece soluções para que pessoas e empresas possam comprar, vender, pagar, anunciar e enviar produtos e serviços por meio da internet”.

São informados “300 milhões de usuários e mais de 19 milhões de vendedores, incluindo grandes marcas. A cada segundo, 10 vendas são realizadas na plataforma. Ao todo, são mais de 200 milhões de ofertas em tempo real, distribuídas em 1.460 categorias e subcategorias de produtos”.

Conforme registrado anteriormente, em 2019, a gigante do e-commerce latino-americano, alcançando 18 países, fez uma campanha publicitária on-line por ocasião do Dia Internacional do Orgulho LGBTI (28/06).

Dois filmes desta campanha são aqui analisados, a partir do objetivo que norteia esta investigação: efetivar uma reflexão acerca das estratégias, dos discursos e motivações de campanhas publicitárias focadas em narrativas de diversidade e inclusão, justamente em ambiente político-institucional crescentemente inóspito a direitos humanos e civis de minorias e populações marginalizadas.

De acordo com a Anistia Internacional5, 28 de junho é o Dia do Orgulho LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas intersex), data celebrada mundialmente a partir de um episódio de repressão policial ocorrido em Nova Iorque, em 1969. “Naquele dia, as pessoas que frequentavam o bar Stonewall Inn, até hoje um local de frequência de gays, lésbicas e trans, reagiram a uma série de batidas policiais que eram realizadas ali com frequência”.

Informa a Anistia Internacional que

O levante contra a perseguição da polícia às pessoas LGBTI durou mais duas noites e, no ano seguinte, resultou na organização na 1° parada do orgulho LGBT, realizada no dia 1° de julho de 1970, para lembrar o episódio. Hoje, as Paradas do Orgulho LGBT acontecem em quase todos os países do mundo e em muitas cidades do Brasil ao longo do ano.

Segundo Bragança & Maria (2020, p. 46),

Atualmente a luta LGBT+ está inserida no contexto dos Direitos Humanos na maioria dos países do mundo. Essa luta é, basicamente, calcada na promoção da igualdade de direitos civis para essa população. Desde 2008, tanto a Organização das Nações Unidas (ONU) quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) têm aprovado declarações e resoluções afirmando que a orientação sexual e a identidade de gênero também devem ser consideradas como direitos humanos. [...] Entre 2009 e 2019, cresceu ainda o número de países que tipificaram crimes de ódio contra LGBT+, de 17 para 42, além de haver mais países que consideram ilegal incitar o ódio LGBTfóbico, grupo que aumentou de 17 para 39. Discriminar LGBT+ no trabalho também já é ilegal em 73 países, número bem maior que os 48 que eram contabilizados em 2009. [...] Porém, nem tudo são flores: se em 54 países os homossexuais e bissexuais já podem ter suas relações reconhecidas legalmente, em 68 ter relacionamentos homoafetivos ainda é considerado crime. Apesar desse número ter caído em relação a 2009, quando 80 países criminalizavam pessoas que se relacionassem com o mesmo sexo, a lista inclui nações que preveem pena de morte e prisão perpétua para homossexuais, como Sudão, Arábia Saudita, Irã e Paquistão.

Mercado Livre e o orgulho LGBTI

Vamos destacar dois filmes publicitários do Mercado Livre6, por ocasião da Parada do Orgulho LGBTI, em 23 de junho de 2019, evento cuja transmissão ao vivo YouTube foi patrocinada pela empresa. Analisam-se o filme inaugural da campanha do portal de e-commerce, lançado em 18 de junho de 2019, assim como o último filme divulgado pela empresa sobre a parada, publicado em 02 de julho de 2019.

O filme de lançamento da campanha tem 16 segundos e é nomeado como “O tempo de dar as mãos está chegando”7. O seu roteiro traz o seguinte texto: “O tempo de ser livre, celebrar cada conquista, e dar as mãos tá chegando”.

Esse texto cobre imagens, em close, de mãos sendo dadas, para em seguida, abrir-se a câmera, revelando os personagens do filme, de mãos dadas, caminhando na Avenida Paulista, no centro financeiro da cidade de São Paulo, que é o epicentro da parada.

O filme, todo em câmera lenta, apresenta, a seguir, em lettering o título do vídeo. Após, encerra-se com a assinatura da empresa, sua logo (um aperto de mãos) e o slogan (“O melhor está chegando”). O Mercado Livre Brasil Oficial faz o seguinte comentário na página do filme no YouTube: “#Pride #ParadadoOrgulhoGay #Pride2019 #Omelhortáchegando”.

Segundo o portal Acontecendo Aqui, especializado em comunicação e marketing8, “a ideia do vídeo, estrelado pelos influencers Edu e Filipe (Diva Depressão), Lorelay Fox (Para Tudo), Louie Ponto e Mandy Candy), é chamar a população LGBTQIA+ e todas as pessoas que apoiam a diversidade para darem as mãos como sinal de respeito e amor”.

Em entrevista ao portal, a então gerente de Marketing do Mercado Livre no Brasil, Danielle Crahim, afirmou:

Fizemos questão de, ao selecionar o time de influenciadores, garantir a representatividade das várias minorias que compõem o movimento e de tê-los conosco no processo de decisão e de criação das ações. Pudemos saber mais sobre suas experiências e sobre como a audiência de cada um nas redes sociais se manifesta em relação ao movimento.

O filme que fecha a campanha tem 30 segundos9. Começa com imagens aéreas da Avenida Paulista, com o seguinte lettering: “3 milhões de pessoas celebrando a liberdade”.

Em seguida, tem-se o cantor Lulu Santos, um dos astros da música brasileira, com longeva carreira de mais de quatro décadas, do alto de um gigantesco palco, ilhado pela multidão, cantando um trecho de uma de suas músicas mais populares, que serve de trilha sonora para todo o filme: “Eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia, que insiste em nos rodear. Hoje o tempo voa, amor. Escorre pelas mãos. Mesmo sem se sentir...”

Depois de alternar imagens em close e tomadas aéreas da multidão com a performance de Lulu, encerra-se com o lettering “Nós vemos a vida melhor no futuro”, e a assinatura da empresa, sua logo (um aperto de mãos) e o slogan (“O melhor está chegando”).

O Mercado Livre Brasil Oficial faz o seguinte comentário na página do filme no YouTube: “Nós vemos a vida melhor no futuro. A gente crê no amor numa boa e pra qualquer pessoa. Por isso, celebramos a diversidade #DeMãosDadas com Lulu Santos e mais de 3 milhões de pessoas no dia 23 de junho em São Paulo. Acreditamos que o direito de ser livre é pra todos. #OMelhorTáChegando”.

Nos roteiros, letterings e assinaturas dos filmes, e também nos comentários oficiais da página do Mercado Livre no YouTube referentes aos filmes publicitários em estudo, a palavra “melhor” é uma constante, fazendo direta referência ao slogan da companhia – “O melhor está chegando”.

Tal frase publicitária pode ser lida tanto como uma alusão ao futuro da vida, quanto à chegada das encomendas feitas on-line no marketplace da organização. De toda sorte, o melhor da vida passa pelo consumo no Mercado Livre, que assegura o melhor futuro, seja aquele próximo por demais, ao sabor da chegada das compras, seja aquele do horizonte socioeconômico e político-cultural.

O aperto de mãos, que figura na logomarca da companhia desde a sua fundação, é outra conexão buscada entre o Mercado Livre e o universo LBGTI, explorada pelas imagens nos dois filmes, sendo mesmo o foco central do filme inaugural da campanha relativa ao orgulho LGBTI em 2019.

Vale dizer que o dar as mãos também pode ser relacionado aos cartões digitais e memes (ilustrações, com textos simples e portadores de mensagens políticas, religiosas, humorísticas etc., que viralizam nas redes sociais) que circularam no Brasil por ocasião da eleição do atual brasileiro presidente, Jair Bolsonaro, no final de 2018, assim como de seus primeiros tempos de mandato, em 2019, com a frase “ninguém larga a mão de ninguém”, especialmente compartilhados entre a população LGBTI, afetada pelo discurso LGBTfóbico do novo poder instalado no Executivo do Brasil, e com forte eco e espaço no Parlamento nacional.

Também é possível observar a recorrência das palavras “livre” e “liberdade”, associadas a termos como conquistas e direitos. De toda sorte, apesar de assinar embaixo, e em todos os cantos da tela, da causa LGBTI, o Mercado Livre não exibe imagens de beijos ou outras demonstrações de afeto mais explícitas entre pessoas LGBTI, restringindo-se a cenas de diversão e de poucos carinhos, mais fraternos que amorosos entre os retratados.

À exceção do filme inaugural, em que se apresentam, caminhando de mãos dadas, pessoas reunidas para garantir “a representatividade das várias minorias”, nas palavras já citadas da gerente de Marketing da companhia, não há imagens que identifiquem o universo homoafetivo encarnado em sujeitos históricos, com um modo próprio de amar, se vestir, enfim, de existir. A única referência ao campo simbólico é a exibição das cores e da bandeira do arco-íris.

Se por um lado esse comedimento acaba por não reforçar estereótipos do mundo LGBTI, por outro apaga da cena as marcas do jeito de ser subjetivo e intersubjetivo desse contingente da população.

Conclusão

O Mercado Livre, pode-se dizer, levanta a bandeira do movimento LGBTI, mas não veste a camisa arco-íris. Ou seja, pelo que se observa neste estudo, não faz incursões mais densas ao universo LGBTI, dando um suporte mais efetivo ao movimento e suas demandas de afirmação de direitos humanos e civis.

Aderindo à superfície da causa, talvez busque criar pontos de contato com esse nicho de mercado e também aos simpatizantes da inclusão e da diversidade, mas o faz sem levantar polêmicas comportamentais que potencialmente poderiam afastar outros segmentos.

Parece mais vocacionado a materializar a máxima capitalística de que tudo se deve digerir em função da ampliação do consumo e menos apto a fazer ação política cidadã. Evidencia que busca mais clientes felizes por sua experiência consumista do que reconhecidos por sua existência histórica, absolutamente atravessada por desafios político-culturais e socioeconômicos.

Mas é de se perguntar se se poderia mesmo esperar mais da comunicação mercadológica do que simplesmente tangenciar causas em voga na sociedade de consumo, relacionando-as a seus slogans, para além da busca da diversidade de consumo.

Pelo que se apurou, não se pode. A inclusão defendida no caso em tela passa especialmente pela congruência entre o “melhor” do consumo e o “melhor” da vida, hoje e no futuro.

Ou seja, a diversidade almejada em primeiro plano é mesmo a do comprar e vender, antes que o do ser – ainda que em tempos de capitalismo cognitivo, todos os afetos sejam mobilizados para fazer valer a atualização da máxima cartesiana – de “penso, logo existo” para “consumo, logo existo”.

De toda sorte, não se pode menosprezar a iniciativa de dialogar com universos marginalizados da vida contemporânea, ainda mais em tempos tão sombrios relativamente aos direitos humanos e às populações historicamente colocadas à margem das hegemonias que desenham os padrões da vida.

Enfim, ainda que e ambiente turvo, o Mercado Livre parece seguir exatamente a fórmula de “sucesso” capitalístico atual, diagnosticada ao longo do artigo. Mobilizando afetos, ativando referenciais cognitivos e pautando valores circulantes, por meio do mesmerizante discurso publicitário, acaba por plasmar identidades e significações subjetivas e intersubjetivas orientadas/coladas àquela que seria a razão máxima da existência hodierna: consumir.

Nesta lógica econômica e produtiva, cabem todos e todas, cuidando-se para que todas e todos sejam incluídos, e respeitados e respeitadas, sem que se produzam insatisfação ou exclusão, numa seara de ampla satisfação/inclusão por consumo. E, consumindo, todas e todos são livres. E, consumindo, todos e todas serão felizes. Sempre na experiência e na expectativa do melhor viver-consumir-viver.

Notas finais

1 Segundo Montoro (2009, p. 42), “audiovisuais são sistemas, meios, veículos ou processos que se expressam numa linguagem que reúne imagem, som e eventualmente escrita, num envolvimento global de todas as linguagens”.

2 Aqui seguimos a visão de Gonzaga Motta (2013, p. 12), para quem, “a narrativa não é uma expressão ingênua, nem é uma obra fechada sobre si mesma, mas um sentido em construção. Por um lado, a narrativa é um dispositivo argumentativo que visa seduzir e envolver o interlocutor, desvelando intecionalidades que lhe são implícitas. Por outro, ela é uma composição mais heterogênea que homogênea, revelando no processo de sua configuração correlações de poder e disputas pela cocriação e interpretação do sentido público dos eventos. A narrativa torna-se um objeto menos acabado e finalizado que antes parecia, apresentando-se como um objeto linguístico em constante elaboração e reelaboração pelos coatores ou coautores envolvidos”.

3 Sobre os conceitos de “sociedade disciplinar” e “sociedade de controle”, confira, respectivamente, Foucault (1979) e Deleuze (2013).

4 <https://ideias.mercadolivre.com.br/sobre-mercado-livre/mercado-livre-cresce-368-em-vendas-e-atinge-us-76-bilhoes-em-volume-de-pagamentos-com-mercado-pago-no-3o-tri/> Acesso 09 abril 2020.

5 <https://anistia.org.br/28-de-junho-dia-orgulho-lgbti/> Acesso 09 abril 2020.

6 <https://www.youtube.com/user/mercadolivreoficial/videos> Acesso 09 abril 2020.

7 <https://www.youtube.com/watch?v=HNsff4oA2Is> Acesso 09 abril 2020.

8 <https://acontecendoaqui.com.br/propaganda/mercado-livre-celebra-diversidade-com-acoes-nas-redes-sociais-e-presenca-na-parada-lgbt> Acesso 09 abril 2020.

9 <https://www.youtube.com/watch?v=9RA528tosPs> Acesso 09 abril 2020.

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