Abstract
Fatec Paradiso is a university extension project that intends to show alternative films, national and international, to students of Fatec Cotia - public institution of technological higher education in the State of São Paulo, and to the community in general, free of charge, in public spaces in the municipality of Cotia, or on the premises of that institution. The exhibitions aim to contribute to the formation of audiences for cinema, to raise awareness about the right to use public spaces and to contribute to a more comprehensive formation, not only focused on performance in the labor market. With this initiative, it is intended to provide a region in need of cinemas, a film program that allows aesthetic appreciation, and the discussion of themes related to the contemporary world or recent history. Since its inception in 2016, exhibitions have been held in different squares in the municipality, open to the entire population of the country. In the exhibitions, testimonies were collected from viewers - students and non-students, about the construction of relationships between the themes of the films and their life experiences and about the importance of carrying out activities of this type in public spaces. Fatec Paradiso’s assessment was based on the principle that activities involving art, as a way of transforming a given reality, enable the creation of new cultural policies. In this communication, we will discuss what the project represents for a peripheral region of greater São Paulo and the use of cinema as an educational experience.
Keywords: Cinema, Tecnological Higher Eduation, Public Spaces, Communication.
“Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios.”
(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS)
Em seu inciso 1 do artigo 27, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas, garante especificamente o direito, detido por todo indivíduo, de fruição das artes.
No Brasil, a carta maior que rege a atuação de indivíduos e de instituições, a Constituição da República Federativa Brasileira, que tem em 1988 sua versão mais recente, o direito à manifestação e à fruição artística aparece de modo mais difuso. No inciso IX, do artigo 5, do Capítulo I, que trata dos direitos e garantias fundamentais, há menção à garantia de manifestação artística sem censura, mas não se prevê como se dará o acesso a tais manifestações.
“IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”
Em complementação, no capítulo III, ao tratar educação, cultura e esporte, a carta magna faz referências mais detalhadas acerca da obrigação nacional de garantir a oferta e o acesso às produções artístico-culturais:
Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...]
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; [...]
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...]
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; [...]
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. [...]
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. [...]
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...]
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
Partindo-se de tais bases legais, é possível afirmar que no Brasil, ao menos sob o ponto de vista jurídico, está posta e, ao menos em termos gerais, solucionada a questão relativa à produção e ao acesso às manifestações artísticas. Todavia, é preciso suscitar outra questão que diz respeito à percepção daquele a que se destina toda essa construção: o cidadão. Será que o cidadão ao se deparar com tal garantia constitucional, considera que ela está espelhando a sua realidade?
Tendo em vista tal inquietação, discentes e docentes de uma instituição de ensino superior tecnológico localizada na grande São Paulo, Cotia, encamparam o projeto de uma das docentes da instituição, em que se propunha a realização de exibições de filmes nacionais em espaços abertos do município. A ação, denominada Fatec Paradiso, foi realizada mais de uma vez como projeto de extensão universitária, considerando, além da percepção de discentes e docentes, os anseios de uma comunidade/região em que o acesso aos cinemas se dá somente por meio das salas disponíveis em shoppings centers. Na sequência, apresentam-se considerações acerca das razões pelas quais foi escolhido o cinema como materialização artística a ser desenvolvido ao longo da ação.
O cinema, que nasce com a cultura da modernidade, ao mesmo tempo a ajuda desenvolver seus traços característicos, e constitui-se numa forma de arte que pressupõe a ideia de uma produção cultural. Trata-se de uma tecnologia que podia ser apreciada como um produto comercial para massas, que não forneceu somente uma nova mídia, um novo meio no qual “os elementos da modernidade podiam se acotovelar”, como lembram Charney e Schwartz (2001, p. 31). É bem o contrário, expõem os autores, foi um produto e parte componente da constelação de variáveis que se interconectavam e começavam a traçar os caminhos da vida cultural moderna, via a estimulação visual e cognitiva, representando a realidade em movimento. Ou seja, enquanto produto cultural, a arte do cinema permitiu desde seu início a incorporação de experiências outras dos indivíduos, trazendo reflexões e abordagens as mais diversas sobre a vida em sociedade e a própria condição humana.
Bazin (1991) na Ontologia da imagem fotográfica coloca a reprodução imagética (no caso a fotografia) como responsável por satisfazer nosso “afã de ilusão por uma reprodução mecânica da qual o homem se achava excluído” (BAZIN, 1991, p. 21-22). Adiante, ao relacionar o cinema e a fotografia ao tempo e ao movimento, afirma que “o cinema vem a ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica” e que vem para “’desrecalcar’ no fundo do nosso inconsciente, esta necessidade de substituir o objeto por algo melhor que um decalque aproximado: o próprio objeto, porém liberado das contingências temporais” (p. 24). O autor está aqui inserindo a arte cinematográfica como recurso capaz de sanar o desejo humano de representar a sua realidade, de eternizar, de algum modo sua realidade. Inserir o elemento “tempo” significa que, diferentemente da fotografia, o cinema permite que o instante representado tenha a mesma duração, e até a mesma sensação do instante fictício, representado.
Produto cultural amplamente acessado, o cinema atrai grandes quantidades de indivíduos. Muitas vezes espelhando as realidades dos indivíduos. Segundo Chauí (1097), o cinema é:
[...] forma contemporânea da arte: a da imagem sonora em movimento. Nele, a câmera capta uma sociedade complexa, múltipla e diferenciada, combinando de maneira totalmente nova, música, dança, literatura, escultura, pintura, arquitetura, história e, pelos efeitos especiais, criando realidades novas, insólitas, numa imaginação plástica infinita que só tem correspondente no sonho. (CHAUÍ, 1997, p.333)
Conforme a autora, a complexidade e a multiplicidade das sociedades atuais podem ser captadas pelas câmeras envolvidas no trabalho de produção de uma obra cinematográfica que deva ser exposta ao público geral. Mais ainda, complexidade e multiplicidade podem ser recombinadas, reconstituídas por meio do cinema, dando margem a modelos de raciocínio inéditos.
Neste sentido da experiência cinematográfica que proporciona o acesso a novas realidades e a novas experiências, Berti e Carvalho (2013, p. 185) argumentam que a exposição a tal produto cultural possibilita aos indivíduos:
[...] flanar por espaços e temporalidades desconhecidos, convidando a sermos múltiplos, outros e tantos outros. O outro não é apenas “o estrangeiro”, “o negro”, “o índio”, “a criança”, “o velho”, com o qual preciso conviver. O outro é tudo aquilo que sou e não sou. É a própria diferença encarnada que desterritorializa, territoriais e reterritorializa (BERTI; CARVALHO, 2013, p. 185).
Por meio do uso da arte cinematográfica, ao se aproximar e até mesmo vivenciar a experiência do outro, do “sujeito que eu sou e não sou”, aproximam-se também os sujeitos em si. Assim, de acordo com Berti e Carvalho (2013, p. 185) “a experiência com o que nos acontece potencializa ações educativas pela diversidade de situações que são oferecidas e criadas para favorecer esse encontro, visto que produz o sujeito da diferença e da multiplicidade”. As autoras complementam a argumentação ao afirmar que quando se referem ao que nos acontece, estão explicitamente referindo-se à potencialidade que tem o cinema para possibilitar aos indivíduos a condição, ou a experiência de se ver ou de se colocar como outros sujeitos. Condição ou experiência esta que permite compreender o mundo a partir de um ponto de vista diferente e que, ademais, contribui para o alargamento de experiências, por ofertar o conhecimento de situações (e de condições) distintas daquelas que são próprias do indivíduo, já que se abre a possibilidade de “ser outro, viver em outro lugar, pertencer à outra cultura” (BERTI; CARVALHO, 2013, p.185). Deste modo, por proporcionar esse movimento, que é possível até mesmo chamar de empático, o cinema constitui-se como ferramenta importante a ser utilizada com um sentido educativo, visto que este alargamento da experiência conduz à compreensão da diferença e da multiplicidade e por isso é tão importante que seja inserido nos processos educativos.
Bergala (2008, p. 29), ao discorrer sobre esta relação entre cinema e educação, nomeia a experiência de “compartilhar a experiência do outro, de ver pelos olhos do outro” de alteridade. Assim, ao referir-se ao uso do cinema nas escolas francesas, considerando aqui o cinema como criação artística, afirma que “A grande hipótese de Jack Lang, político francês, sobre a questão da arte na escola foi a do encontro com a alteridade”. Adiante, o autor questiona a capacidade de a escola lidar com tal função (a de proporcionar encontro com a alteridade por meio da arte): “será que uma instituição como a Educação Nacional pode acolher a arte (e o cinema) como um bloco de alteridade? [...] Esse trabalho, cabe à escola? Tem ela condições de fazê-lo?” (BERGALA, 2008, p. 32).
Tentando responder a tais questões postas por si mesmo, o autor arrazoa que os moldes nos quais a escola funciona, não propiciam as condições ideais para a realização de tal trabalho. No entanto, logo na sequência, responde categoricamente a seus questionamentos ao argumentar que “ela [a escola] representa hoje, para a maioria das crianças, o único lugar onde este encontro com a arte pode se dar” (BERGALA, 2008, p. 32). Assim, conclui que a escola deve sim desempenhar tal função, apesar de conhecer suas dificuldades e limitações para tal. Por meio desta exposição, o autor está defendendo a utilização da arte, materializada no cinema, como instrumento para que os indivíduos possam colocar-se no lugar do outro, alargando sua percepção de mundo, na escola.
Esta lógica da arte, via cinema, capaz de gerar em seus espectadores reflexão, ao se verem representados, seja via a própria experiência, seja conduzindo ao compartilhamento de experiências que “sem ele, permaneceriam estranhas” (BERGALA, 2008, p. 38), conduz a uma concepção de obra de arte, como impulsionadora de transformações, já que de acordo com o autor, a arte “deve ocupar o lugar da exceção” (BERGALA, 2008, p. 30), pois constitui-se naquilo que não se conforma, já que insere-se no terreno da ressalva, do desvio, pois a exceção “é a arte” (BERGALA, 2008, p.29) e assim deve constitui-se como “fermento de anarquia, de escândalo, de desordem” (BERGALA, 2008, p. 30).
Para que seja possível a utilização deste “fermento”, há por certo a necessidade de tornar tais construções artísticas amplamente acessíveis, e não relega-las à condição de elemento com acesso circunscrito a pequenos e restritos círculos. Neste sentido, Walter Benjamin ao tratar da obra de arte e de sua reprodutibilidade técnica, argumenta que a arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original (1975). O autor está aqui discorrendo sobre a destituição da aura de raridade da obra de arte, que faz com que aquele elemento que fora produzido de certo modo envolto por uma “magia”, passe a servir a uma função mais politizadora. Há uma passagem do “valor de culto” para o “valor de exibição” da obra de arte (1975, p. 17-18).
Comentando do texto de Benjamim, Klammer et al (2006, p. 4), argumentam que a “reprodutibilidade da obra de arte pode vir a ser justamente um elemento de politização já que esta passa a ser então de livre acesso a todos”. Quanto mais se expuser, quanto mais for acessível, alcançável, mais a arte atingirá seu propósito de criação do novo, de inconformismo, de ruptura. Trata-se do cinema, enquanto obra de arte enfaticamente tratado por Benjamin neste texto, servindo a propósitos libertadores, servindo à possibilidade de politização dos indivíduos por meio do acesso à arte, à cultura e ao entretenimento também, proporcionados pelo cinema.
A este respeito (arte e entretenimento), Benjamin (1975) argumenta que especialmente no caso do cinema, apreciação artística e entretenimento podem andar juntos já que
[...] As técnicas de reprodução aplicadas à obra de arte modificam a atitude da massa com relação à arte. Muito retrógrada face a um Picasso, essa massa torna-se bastante progressista diante de um Chaplin, por exemplo [...] Na medida em que diminui a significação social de uma arte, assiste-se, no público, a um divórcio crescente entre o espírito crítico e o sentimento de fruição[...] No cinema, o público não separa a crítica da fruição [...] (BENJAMIN, 1975, p. 27).
Aproximando arte, entretenimento e educação, Bergala (2008) argumenta que a escola é um dos únicos locais capazes de proporcionar a muitos dos indivíduos que nela estão o encontro com a arte, visto que “tudo o que a sociedade civil propõe à maioria das crianças são mercadorias culturais rapidamente consumidas, rapidamente perecíveis e socialmente ‘obrigatórias’” (BERGALA, 2008, p. 32). Dessa maneira, no sentido em que propõem Klammer et al (2006) é preciso encarar a reprodutibilidade de modo que se reflita sobre as obras artísticas, já que enquanto elementos de politização, as obras, aqui o cinema, vem geralmente carregadas de ideologias, ideologias estas que precisam “ser filtradas antes de incorporadas simplesmente”. (KLAMMER et al., 2006, p.4). Adicionalmente, Klammer et al (2006), defendem que enquanto elemento amplamente difundido na vida dos cidadãos, mais especificamente dos jovens, o cinema não pode ser apartado do sistema educativo, até porque tem potencial para consolidar-se como elemento politizador.
A respeito das ideologias que precisam ser filtradas antes de incorporadas, Azevedo e Teixeira (2010), afirmam que:
Associada à expansão e consolidação das sociedades capitalistas, a própria arte inseriu-se na lógica do mercado e da acumulação capitalista, foi apropriada pela dinâmica mercantil e do consumismo. A indústria cultural, a mídia hegemônica, exerce seu poder nos processos de formação do gosto, dos estilos, dos padrões estéticos e culturais, produzindo subjetividades e comportamentos (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2010, p. 19).
Kellner (2001) tratando da ideologia que permeia produtos culturais, apresenta uma reflexão sobre a utilização do cinema (e de outros produtos midiáticos) enquanto capazes de alcançar os indivíduos e incutir determinadas percepções e comportamentos:
Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam a sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e outros produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia e raça, de sexualidade, de “nós” e “eles”. (KELLNER, 2001, p.9)
Desta maneira, a necessidade de filtragem proposta por Benjamin, pressupõe que para que a arte, aqui via cinema, seja politizadora e transformadora, deve escapar da ideologia e das construções midiáticas criticadas por Kellner (2001), nas quais se faz uso do cinema, no seu sentido canônico “como vetor de sentido e de ideologia (reiteração do já dito e do já conhecido)” (BERGALA, 2008, p.34) e não no seu sentido artístico como “criação do novo” (BERGALA, 2008, p.34). Constitui-se aqui como função especial do cinema, enquanto instrumento educativo, proporcionar condições para que se torne possível escapar a esta lógica.
Pensando no uso do cinema como instrumento educativo, Xavier (2008), em entrevista concedida à revista Educação e Realidade, afirma que “um cinema que ‘educa’ é um cinema que (nos) faz pensar” (XAVIER, 2008, p. 13). Na entrevista, que tem como título o excerto acima transcrito, o autor ressalta a “dimensão formadora do cinema como arte e entretenimento” (2008, p. 15), dimensão que não deve calcar-se em utilizações estereotipadas das imagens cinematográficas. O autor relembra que desde o cinema mudo manifesta-se o interesse pela análise da dimensão educativa do cinema. Entretanto, pondera que é imperioso que não se faça um uso simplificado das imagens, como capazes de incitar a simples imitação e assimilação de modelos, já que qualquer análise dos efeitos gerados pelas imagens é complexa e requer ampla e detalhada reflexão – reflexão que trate da relação entre a estruturação das imagens e das narrativas e seus processos de recepção (sociais, psicológicos, culturais, muito ancorados nas circunstâncias). Xavier (2008) esclarece ainda que a dimensão educativa do cinema, entendida no sentido formação (valores, visão de mundo, conhecimento, ampliação de repertório) “permeia toda a experiência do cinema” (XAVIER, 2008, p. 15). O autor manifesta-se nesse sentido dizendo que:
Para mim o cinema que “educa” é o cinema que faz pensar, não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco. Ou seja, a questão não é “passar conteúdos”, mas provocar a reflexão, questionar o que, sendo um constructo que tem história, é tomado como natureza, dado inquestionável. (XAVIER, 2008, p.15)
Por meio de tal reflexão, Xavier (2008), retrata a relevância da arte cinematográfica para o campo educacional e contrapõe-se a visões estereotipadas e simplificadoras do uso do cinema, como imagem a ser simplesmente mimetizada, e defende que a reflexão, o questionamento, não só do cinema, ou do audiovisual que se estaria exibindo, mas também de outras questões postas em foco por meio da exibição, são essenciais e próprias do fazer cinematográfico.
Historicamente no Brasil, conforme Nascimento (2008), o cinema foi defendido como recurso didático por indivíduos como Anísio Teixeira e Edgard Roquete Pinto. Neste sentido, Duarte e Alegria (2005), tecendo considerações sobre a origem das relações entre cinema e educação no Brasil, descrevem projetos idealizados e executados na década de 20 em que instituições como o Liceu de Artes e Ofícios e a Obra Social Católica, ambas de Salvador, inauguraram salas de cinema com o propósito de ampliar a instrução oferecida às classes trabalhadoras. Narra-se que após a década de 30, os dirigentes do Estado brasileiro buscaram aproximar-se da produção cinematográfica nacional, de maneira a incorporar tal política a um projeto político, fato ilustrado pelos autores por meio da menção a um pronunciamento feito por Getúlio Vargas em que o então presidente classificou o cinema como um dos mais úteis fatores de instrução do Estado Moderno, visto ter ele o poder de influir diretamente sobre o raciocínio e a imaginação dos espectadores de qualquer classe social (VARGAS apud ALEGRIA; DUARTE, 2015).
Ao colocar-se esse componente da criação do novo, da transgressão, da arte e do cinema como fermento para o novo (Bergala), do cinema com função politizadora (Benjamin), que faz pensar (Xavier) problematiza-se a utilização que, de modo geral, é feita do cinema como recurso educativo, já que se opta na maioria das vezes por um uso superficial do cinema, como ilustração, que sirva à exemplificação de conteúdo, ou como puro entretenimento.
Pensando no cinema na contemporaneidade e versando sobre as concepções estereotipadas sobre o uso do material cinematográfico, em que se faz este tipo de uso da obra cinematográfica como entretenimento ou como ilustração, Motta e Fusaro (2014), apresentam o cinema como importante veículo de formação educativa e filosófica frente a todos os oferecimentos tecnológicos do século XXI, afirmando que:
Em tempos de grandes produções cinematográficas hollywoodianas em 3D e de uma sociedade cada vez mais imersa no uso das redes sociais, dos livros digitais e de todo o aparato tecnológico disponível neste século XXI, parece-nos pertinente o apontamento de algumas reflexões sobre o cinema como poderoso instrumento educativo [...] O primeiro tópico importante a destacar é a necessidade do uso do filme em sala de aula não como mero entretenimento, mas sobretudo como instrumento de educação sensória, óptica e sonora portadoras de um libertador levar a pensar. Arte que faz pensar. (p.41-42)
As autoras afirmam ainda, sobre a utilização do cinema, que o uso dos dispositivos não verbais de um filme, pode ser libertador para o aluno, por conseguinte para os indivíduos, já que se configura como “exercício de sensibilização sensória, óptica e auditiva que ele poderá estender à própria vida, tornando-se mais sensível aos fatos da percepção e de sua própria interação neste processo” (MOTTA; FUSARO, 2014, p. 40).
Neste mesmo sentido, ao tratar das possibilidades abertas pelo uso do cinema no campo educacional, Freitas e Coutinho (2013), introduzem seu texto com uma tentativa de responder à questão O que pode o cinema?, na qual de imediato afirmam que, de maneira geral, é feito um uso - ao qual os autores se opõem - que é superficial, utilitarista e clichê do cinema, que se emprega como ferramenta pedagógica que serve para “memorizar, repetir, explicitar, explicar, tornar claro, enfatizar [...] indo até um uso predominantemente disciplinador e normalizador” (FREITAS; COUTINHO, 2013, p. 478). Os autores, demonstrando o histórico da utilização do cinema no campo educacional, remetem ao Barroco a gênese da utilização da imagem visual para instruir, fazer recordar, ensinar. Os autores passam pela concepção da imagem que vale mais do que mil palavras, pelo livro didático que traz em si a imagem que não só complementa o texto, mas que se torna protagonista enquanto representante do mundo, e chegam, de acordo com suas próprias palavras, a “quase quatrocentos anos depois”, na atualidade, em que permanece o uso da imagem como normalizadora de condutas e/ou adestradora. (FREITAS; COTINHO, 2013, p. 483-484).
À tal concepção do cinema utilizado em sala de aula opõe-se um uso do cinema como “problematizador da vida contemporânea” (FREITAS; COUTINHO, 2013, p. 489), no qual é conferido ao cinema o poder de “presentificar e exibir as formas e os modos de ser e de viver contemporâneos, o que, por se encontrarem identificados à própria existência dos sujeitos viventes, passam despercebidos ou são imperceptíveis” (FREITAS; COUTINHO, 2013, p. 489).
Assim, o cinema surge como alternativa, inserida no campo educacional, para cumprir o papel de suscitador de questionamentos e não somente de ilustrador de situações. Mais detalhadamente, os autores, Freitas e Coutinho, 2013, baseados em autores como Deleuze, Guattari e Artaud, propõem três usos para o cinema, que fogem da utilização estereotipada, generalizada e generalizante, a saber: uso transgressor do cinema, para fazer “bem” pensar; uso visionário do cinema, que faz devir o pensamento; e uso do cinema como problematizador da vida contemporânea. Trata-se, segundo Almeida (2015, p. 126) de um uso do cinema “como meio de estar no mundo e pensar sobre ele”.
Na direção de explanar e defender o estabelecimento de uma conexão entre cinema e formação, ou cinema e educação, Duarte (2002), comparando a relevância do cinema, enquanto obra de arte, a materiais que geralmente se acessa com mais frequência no processo educacional, arrazoa: “Ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais” (2002, p. 17). No entanto, em que pese a relevância do cinema como instrumento pedagógico, a autora explana que o cinema ainda é visto apenas como recurso secundário, complemento de atividades que são tidas como “verdadeiramente educativas, como a leitura de textos” (p. 20), pois “enquanto os livros são assumidos por autoridades e educadores como bens fundamentais para a educação das pessoas, os filmes ainda aparecem como coadjuvantes nas propostas de política educacional” (p. 20). Está aqui reforçada a problematização da posição que se relega ao cinema no processo educativo atual, inclusive questionando o acesso ao cinema e defendendo que este acesso seja mais democrático:
Defendemos o direito de acesso amplo e universal ao conhecimento, mas não defendemos o direito de acesso ao cinema – o Brasil é um dos países em que o ingresso de cinema está entre os mais caros do mundo. Até quando ignoraremos o fato de que cinema é conhecimento? (DUARTE, 2002, p. 20).
Ainda cotejando a linguagem audiovisual e a linguagem escrita, numa tentativa de desfazer a espécie de distanciamento ou contraposição que se criou entre estes instrumentos pedagógicos ou linguagens, Duarte questiona:
Afinal, educação não tem mesmo nada a ver com cinema? Atividades pedagógicas e imagens fílmicas são necessariamente incompatíveis? Por que se resiste tanto em reconhecer nos filmes de ficção a dignidade e a legitimidade culturais concedidas, há séculos, a ficção literária? (DUARTE, 2002, p. 20).
Com o intuito de buscar respostas a tais questionamentos, Duarte afirma que existe uma crença “mais ou menos comum” (p. 20), que vê como negativa a relação dos indivíduos com produtos audiovisuais, como a televisão e o cinema. Negativa, pois acaba por contribuir para o desinteresse pelas atividades pedagógicas calcadas em linguagem escrita. Isto é, reforça-se uma espécie de contraposição entre audiovisual e escrita. Esclarecendo que na verdade as duas linguagens na verdade devem ser utilizadas de modo complementar, Duarte novamente questiona: “Mas, depois de mais de um século da criação do cinema, como podemos acreditar que existam fronteiras intransponíveis entre linguagem escrita e linguagem audiovisual?” (2002, p. 21-22).
Há dois fatores possíveis de se relacionar a esta noção de contraposição entre linguagem escrita e linguagem audiovisual: a ampla difusão do cinema de entretenimento e também o preparo dos docentes para lidar com os recursos audiovisuais, especificamente o cinema, preparação esta que passa também pela seleção do material a ser utilizado com finalidade educacional.
Neste sentido, Escorel (2019) faz uma aproximação entre o cinema e a literatura, utilizando-se de trechos de um teórico literário brasileiro: Antônio Cândido, que tratou do Direito à Literatura. Escorel (2019) destaca trechos da obra de Cândido, os quais correlaciona com a arte cinematográfica:
[...] da mesma forma que a literatura, o cinema ‘corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade. Em segundo lugar, a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos. (ESCOREL, 2019, itálicos no original)
Sobre o preparo oferecido aos docentes para o trato com a arte cinematográfica, retoma-se aqui a fala de Duarte que manifesta inquietações quanto à educação ofertada:
Seria bom se todas as universidades e escolas tivessem espaços e equipamentos adequados para a exibição regular de filmes [...] Seria bom que os professores tivessem noções básicas de cinema e audiovisual em sua formação [...] Mas se queremos uma educação de qualidade para todos, em todos os níveis, não podemos nos contentar com o mínimo. (DUARTE, 2002, p. 95-96)
A argumentação da autora além de elucidar certa crítica com relação à formação oferecida no país, seja aos discentes, seja aos docentes, que não obtém orientação sobre o audiovisual ao longo de sua formação, elucida também o fato de que a formação mais abrangente, que articule diferentes linguagens, a exemplo da escrita e da audiovisual, deve se dar em todos os níveis de ensino, já que há expressa referência a todos os níveis, além de haver a explícita menção às universidades, que oferecem a formação superior, e às escolas, que dão conta dos níveis que vão do infantil ao médio.
Ao discorrer sobre sua prática docente, buscando enfatizar a relevância da experiência cultural como intrínseca à formação profissional, Freire (2015) explana a relevância da utilização de material cinematográfico, especificamente nas salas de aula destes cursos, de modo a proporcionar aos indivíduos uma formação aderente às diretrizes curriculares mais recentes e que, além disso, proporcione a percepção e a reflexão sobre as imbricações entre a tecnologia, a cultura e sociedade:
Parte-se do princípio que as expressões artísticas, mais especificamente centradas na produção imagética do cinema, são formas legítimas para se pensar e agir no mundo e que, por via da percepção e da sensação, contribuem efetivamente para a formação tanto pessoal quanto profissional dos alunos (FREIRE, 2015, p. 31).
Neste sentido de utilizar obras cinematográficas para proporcionar formação mais abrangente, Freire (2015) propõe a utilização de tais materiais de um modo que, conforme exposto por Duarte fuja do “uso dos filmes apenas como recurso didático de segunda ordem, ou seja, para “ilustrar”, de forma lúdica e atraente, o saber que acreditamos estar contido em fontes mais confiáveis” (2002, p. 87). Assim, deve-se ultrapassar as fronteiras do já habitual, do uso utilitário, clichê do cinema, para que deste modo seja possível alcançar a formação que propicie, conforme diz o próprio autor adiante “sensibilidade para questões humanísticas, sociais e ambientais” (FREIRE, 2015, p. 31), pois,
Trata-se de fazer um exercício de percepção audiovisual para além do já dado, para além das interpretações temáticas pré-concebidas e habituais dadas em sinopses, buscando desenvolver habilidades que vão além das técnicas necessárias aprendidas durante o curso, habilidades estas que não deveriam ser encaradas simplesmente como complementares, subalternas no conjunto da formação tecnológica, como se vem observando nos últimos anos (p. 30).
O autor esclarece que é a exposição a obras artísticas, como o cinema, que impulsiona uma formação que ultrapassa as fronteiras do oferecimento de cursos eminentemente técnicos, sobre os quais há uma concepção superficial, generalizada e que vai contra as diretrizes curriculares nacionais, que vê como facultativas ou dispensáveis aos indivíduos habilidades a como a intuição, a percepção e a sensibilidade.
Neste sentido, refletindo sobre a relação entre o cinema e a educação, ou uso educativo do cinema, Rezende (2012), afirma que se trata de uma relação que faz pensar sob diversos ângulos a realidade cotidiana, assim deve ser pensada uma “educação que é maior do que aquilo que acontece na sala de aula e um cinema maior do que o que se passa na tela” (p. 61).
Desta maneira, considerando-se o despertar da sensibilidade para questões humanísticas, sociais e ambientais (FREIRE, 2015), o despertar para a transformação da realidade (CHAUÍ, 1997), e uma concepção de educação que transcende a sala de aula (REZENDE, 2012), é imperioso pensar em ações que envolvam tais âmbitos. Quando aproximados, estes pontos podem conduzir a realização de projetos ou ações, como as de extensão, que se constituem como um modo de a instituição de ensino aproximar-se e colocar-se no lugar da comunidade em que se insere. Neste sentido, abre-se a possibilidade de realização de ações, por parte de instituições educativas, utilizando-se o cinema, em comunidades em que o acesso aos bens culturais seja restrito.
Seguindo esta lógica, apresentam-se na sequência as considerações de participantes/expectadores do Fatec Paradiso sobre sua participação na ação.