Collective screenplay: the idea of neorealistic cinema

Roteiro coletivo: a ideia do cinema neorrealista

Ana Luiza Cavalcanti Fatorelli Carneiro

Luiz Roberto Pinto Nazario

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Abstract

Fascism had brought hunger and destruction to Italy. Italian film makers gathered to reconstruct cinema pursuing another ideal. Neorealist films had as their main aspect the fact of being social, not only in the theme but also in their way of production. The movement, according to André Bazin, followed formal and aesthetic criteria, features that had been accomplished by film makers since the creation of Cinecittà by Mussolini. However, even during this regime, some artists already resisted the fascist view, a fact that can be observed in films like Ossessione, by Luchino Visconti; I bambini ci guardano, by Vittorio De Sica and Quattro passi tra le nuvole, by Alessandro Blasetti. Inspired by the studies in Centro Sperimentale di Cinematografia, by Umberto Barbaro’s translation of Pudovkin, by foreign literature, besides the collaboration of the French Poetic Realism film directors, a creative dynamic was produced centered in the collective writing of scripts which played an important role in the resistance to fascism in Italian cinema. This study, in particular, analyzes Luchino Visconti’s Ossessione.1

Keywords: Film Script, Italian Cinema, Luchino Visconti, Neorrealism.

Introdução

A coletividade está em vários âmbitos da realização cinematográfica, seja na criação, já que filmes são normalmente produzidos em equipe, seja na exibição, um ato que acontece, muitas vezes, em conjunto nas salas de cinema. Também é uma arte de múltiplos conhecimentos, em que se fundem diversos saberes.

“O próprio cinema do ponto de vista tecnológico é o resultado de uma série de convergências entre as artes (teatro de vaudeville, romances populares, mímica, pintura) as ciências como a ótica (câmera obscura), a química (fotossensibilidade), a mecânica (sistema de obturação) e a acústica (gramofone, gravadores e amplificadores de ondas sonoras).” (Müller e Scamparini 2013, 21)

Assim, as misturas das artes, dos saberes, das ciências se convergem na construção da arte cinematográfica por meio de pessoas que se unem para realizar um filme.

E o filme começa com uma ideia. Esse é o ponto que nos interessa especificamente neste trabalho, ou seja, algo que pode parecer subjetivo, mas é sobre como surgem e se desenvolvem as ideias dos filmes, invenções que são capazes de difundir ideais de mundo. Pois, quando roteiristas se unem na construção do cinema de seu país, ganham uma força e uma potência capazes de fundar movimentos cinematográficos transformadores da sétima arte para sempre.

Desenvolvimento

Os anos de silêncio forçado durante o período fascista na Itália não calaram por completo todos os artistas da época. No cinema não seria diferente, é possível encontrar alguns filmes que mesmo realizados dentro do sistema de produção de Mussolini, conseguiram imprimir nas telas características narrativas e estéticas de resistência às imposições do regime. O fascismo, assim como o nazismo, se apropriou da arte cinematográfica realizando filmes que pudessem difundir seus ideais. Em 1937, mesmo ano da inauguração dos estúdios da Cinecittà, foi exposta na cerimônia de fundação da nova sede do Istituto Luce, L’Unione Cinematografica Educativa, empresa de propaganda do regime fascista criada em 1924, uma gigantografia que reproduz o ditador Mussolini olhando através do visor de uma câmera e, logo abaixo, a emblemática frase “La cinematografia è l’arma più forte!” (A cinematografia é a arma mais forte!). As palavras do Duce explicitam como o cinema foi usado naquele período, isto é, como uma verdadeira arma para difundir os ideais do regime autoritário.

Durante o fascismo, as produções cinematográficas italianas eram propagandas do governo muitas vezes baseadas no cinema alemão desse período, formadas por filmes históricos com caráter patriótico-militar, mas também havia os filmes do chamado telefoni bianchi (telefones brancos), compostos de comédias leves e tramas superficiais próprias para o público esquecer o horror do cotidiano pobre e desesperançoso. O gênero cinematográfico telefoni bianchi esteve em voga na Itália entre os anos 1930 e 1940. O nome provém dos telefones de cor branca utilizados em cenas dos filmes do período, objeto que simbolizava um elevado status social que trazia uma impressão de bem-estar e progresso ao contrário dos telefones na cor preta que eram populares e baratos, embora mais próximos à realidade da época. Os filmes do estilo são comédias sentimentais adocicadas com temas que ressaltam a boa moral imposta pelo regime, destacando valores como a família, o patriarcalismo e o amor à nação. A maior parte das produções era ausente de críticas sociais, os argumentos tinham características das narrativas de estúdio, com começo, meio e fim bem delimitados, histórias leves com finais felizes, assim como os filmes clássicos da era de ouro do cinema hollywoodiano.

Entretanto, mesmo dentro desse sistema consolidado de produção cinematográfica voltado ao regime mussoliniano, alguns cineastas conseguiram buscar outras inspirações e realizaram filmes resistentes e críticos à realidade do período. Luchino Visconti foi assistente de direção de Jean Renoir, Antonioni e Rossellini foram assistentes de Marcel Carné durante o intitulado Realismo Poético Francês. Esse movimento na França se caracterizou por filmes de crítica à realidade socioeconômica traduzidos em forma de melodramas trágicos e pessimistas que, de alguma forma, já anteviam o assolamento da população com o fim da Segunda Guerra Mundial. Um aspecto a ser ressaltado é o fato de que essas produções valorizavam a função do roteirista, mesmo que de forma ainda não profissionalizada. Pois com o advento do cinema sonoro, os enredos ficaram cada vez mais sofisticados ganhando um potencial narrativo que precisava de inspiração na literatura e na poesia, bem como no uso de técnicas de desenvolvimento de roteirização cinematográficas cada vez mais complexas.

Em 1935, foi inaugurado o Centro Sperimentale di Cinematografia sendo a escola mais antiga da Itália no ensino teórico e prático em diversas áreas da arte cinematográfica. Nos anos do fascismo, o Centro foi lugar de desenvolvimento de uma consciência crítica antagônica ao regime. Com diversas publicações, o Centro possuía muitas revistas de cinema que tinham grande relevância, pois mantinham um nível internacional capaz de aliar o perfil científico à grande popularidade contribuindo, assim, para formação de um público cada vez mais exigente. Um dos maiores colaboradores do Centro e das revistas de cinema foi Umberto Barbaro, um importante crítico, teórico, roteirista, diretor, escritor e autor teatral, nascido em 1902, em Acireale, e falecido em Roma, em 1959. Barbaro

“foi uma figura de grande importância não apenas por sua atividade como popularizador e tradutor de teóricos russos, mas também pela importância de seu projeto de renovação do cinema italiano que, na década de 1930, o viu se opor aos ditames ideológicos do regime e que, materializando-se no desenvolvimento de uma estética cinematográfica contribuiu para a afirmação do neorrealismo (tanto que o historiador Georges Sadoul atribui a Barbaro a denominação do movimento) e do cinema de autor.”2 (BRUNO 2020, 1).

Autor fundamental, tendo publicado assiduamente numa das revistas mais importantes, a Bianco e Nero, Barbaro traduziu obras célebres dos realizadores russos, em destaque as teorias sobre roteiro desenvolvidas por Vsevolod Illarionovich Pudovkin. O livro do diretor, roteirista e ator Pudovkin, Argumento e realização, de 1926, ganhou sua edição traduzida por Barbaro para o italiano em 1932. O tomo obteve significativa pertinência para a produção cinematográfica desse país, pois foi por meio de sua versão que os realizadores tiveram acesso às ideias pontuadas pelo teórico acerca dos passos para a realização de um roteiro de cinema e, principalmente, sobre o conceito pudovkiano de filme como uma criação coletiva. O processo de realização coletiva é associado aos pensamentos de Pudovkin em três instâncias, como aponta a pesquisadora Giuliana Muscio:

“A influência dessa reflexão, mediada por Barbaro, no cinema neorrealista é identificada com as “três características fundamentais” atribuídas por Pudovkin ao cinema: “É uma arte de colaboração; precisa de uma tese através da qual as várias personalidades dos que colaboram obedeçam a uma linha comum; tem a edição como elemento específico de sua linguagem”. O estudo desses três elementos nos filmes do pós-guerra evidencia uma forte continuidade entre o pensamento de Barbaro e a prática neorrealista. “A maneira pela qual os filmes neorrealistas são preparados e produzidos, como proposto pelos soviéticos, é um processo coletivo de discussão e colaboração, que se concentra em um tema, elegendo o diretor como mestre.”(Muscio 2006, 113).3

Pudovkin estabelece que são necessárias três etapas para a realização do argumento, assim descritas: “1) O tema; 2) O assunto – tratamento do tema; 3) O tratamento cinematográfico do assunto” (Pudovkin 1961, 41). O autor pontua que o processo criativo pode acontecer por outros caminhos, a princípio, como cenas aleatórias imaginadas para a composição do filme. Entretanto, ele destaca que o processo de criação do argumento compreende essas três fases exatamente nessa ordem. Questão que ressalta a importância da definição do tema do filme para sua realização, isto é, Pudovkin diz que não se deve começar o roteiro pela história ou pelos personagens e pelas cenas, como acontece no cinema industrial, mas deve-se iniciar pela ideia. Entretanto, não seria uma ideia abstrata, mas um ideal a ser pensado juntamente à história e aos personagens. Sobre esse processo de produção, Barbaro (1965) sugere que o tema é um elemento indispensável para o trabalho em colaboração e que as individualidades e os ânimos diversos devem seguir um eixo ético. Assim,

“uma comunhão de aspirações comuns, um amálgama cuja composição é certamente favorecida por acordos prévios sobre a finalidade do trabalho comum entre os diversos colaboradores. (...) O tema deve ser não apenas aceito, sentido e profundamente refletido, mas, de certo modo, preexistir nos colaboradores como concepção do mundo.” (Barbaro 1965, 94-95).

Os conceitos de Pudovkin foram essenciais para semear uma visão coletiva de como se deve iniciar o argumento pensando no tema a ser tratado. Desta forma, a reunião de artistas que se propuseram discutir ideias foi extremamente frutífera no desenvolvimento dos roteiros, pois, segundo o método elaborado por Pudovkin, a criação coletiva era essencialmente o primeiro passo na elaboração fílmica. Após anos de silenciamento, os artistas, os escritores, os diretores e os roteiristas se uniram para pensar juntos como construíram sua arte. E se reuniram muitas vezes nas casas dos amigos e nos cafés para conversar e criar. Há vários cafés em Roma que se tornaram famosos por terem recebido encontros dos artistas da sétima arte. Por exemplo, o Caffè Rosati, inaugurado em 1922, foi palco de encontro da comunidade intelectual e cultural mais intensamente nos anos que se seguiram após a Segunda Guerra. Mas ainda durante o período fascista, e mais fortemente nos anos após a Guerra, a união de forças para a reconstrução do país numa efervescência cultural e laboriosa colaborou para um processo de renascimento que encontrou no neorrealismo cinematográfico sua maior expressão.

O neorrealismo cinematográfico não foi um milagre do pós-guerra, mas um movimento plural nascido da conjuntura histórica, social, econômica, cultural e artística. “O cinema neorrealista não brotou ‘como um cogumelo, depois da chuva benéfica da libertação” (Fabris 1996, 53), afirmou Umberto Barbaro. Diversas técnicas e tendências confluem e culminam nesse movimento da primeira metade do século XX caracterizado, também, por uma adesão às críticas da atualidade. Utilizando a paisagem italiana natural, o emprego dos dialetos, as questões documentais com atores nem sempre profissionais para retratar a crônica do dia a dia, e o sentimento dos humildes, o neorrealismo pretende, antes de qualquer objetivo, contar a história das pessoas de seu país, sob vários olhares, numa ruptura estética com o cinema de Mussolini, criticando o passado de guerra e o fascismo.

A pesquisadora Giuliana Muscio, no capítulo Le ceneri di Balzac. Sceneggiatura e sceneggiatori nel neorealismo, afirma que a principal característica do movimento neorrealista italiano foi o empenho coletivo na construção dos roteiros. (Muscio 2006). A coletividade na elaboração dos roteiros culminou no que Cesare Zavattini denominou de ammucchiata, que traduzo livremente como amontoado, referindo-se ao trabalho dos autores em equipe naquele período. O processo serviu para que existisse não propriamente uma organização estabelecida, mas uma consciência neorrealista. Desta forma, os roteiros, assim como as definições teóricas, têm ampliadas suas relevâncias como potências de realização artística, política e social. Os roteiristas começaram a se juntar em grupos para desenvolver filmes que trouxessem em sua essência a realidade social do período. Elementos fundamentais ao movimento neorrealista são passíveis de serem utilizados porque foram pensados, desde o início, ainda na confecção dos roteiros, criados num processo detalhista e inovador. Características do neorrealismo foram discutidas e construídas em reuniões de roteiristas e diretores. Por exemplo, são filmes que cedem espaço à improvisação e à utilização de não atores, mas conseguem tal êxito por manterem roteiros detalhados e inovadores com grande atenção a todo processo criativo desde a pré-produção fílmica. André Bazin afirma que o que definiu esse cinema, aliado ao seu conteúdo social, foi a necessidade de critérios formais e estéticos de muita profundidade e refinamento logrados a partir da roteirização, pois a extrema naturalidade percebida nos filmes é fruto de elementos estéticos invisíveis elaborados durante a realização dos roteiros. (Bazin 2014). Como reitera Bandirali e Terrone (2009), a historiografia mais apurada atesta a extrema relevância dos roteiros no movimento neorrealista, ao contrario do que afirma o senso comum, de que a roteirização era desnecessária nesse momento. Observação que atesta o equívoco de quem afirma que o ofício do roteirista não é valorizado em filmes neorrealistas, pois, como exemplificado, os grupos de roteiristas contribuíram significativamente para o êxito das obras-primas italianas que influenciaram e modificaram para sempre o cinema mundial.

É possível notar nos créditos uma lista enorme de roteiristas que participavam de cada produção. Quatro eram o mínimo nesse período e muitos filmes contavam com oito e até quinze escritores. O ideal de ver o país nas telas era compartilhado por todos, dispostos a construir uma nova cinematografia que pretendia registrar na memória do povo a destruição dos anos da guerra. Há diversos relatos dos roteiristas que exemplificam a forma de trabalho colaborativa e como a questão do pensamento coletivo foi importante para definir o cerne fílmico. Os roteiristas colhiam depoimentos dos transeuntes para construir diálogos, buscavam personagens dentro de suas convivências, refaziam as falas dos atores nos sets de filmagem, construíam novos finais a partir de improvisos e muitos participavam também da montagem. Suso Cecchi D’Amico, grande roteirista italiana que trabalhou com os mais relevantes diretores, sugere que o início desta época foi coletivo, isto é, todas as pessoas trabalhavam juntas e estavam sempre em grupo. Assim, a roteirista acredita que a grande questão do período neorrealista era o fato da coletividade. (D’Amico 2018). E acrescentou:

“Eu também fiz roteiros sozinha e digo com honra. Mas as lembranças dessas obras não me são tão caras quanto a das longas reuniões coletivas, com confidências, cumplicidade, troca de leituras, perder-se e encontrar-se e divisão dos momentos mais pesados. (...) Durante os encontros de roteiristas, nasce também uma curiosa relação com os familiares dos colegas, que aprendemos a conhecer intimamente nas conversas entre nós, e nos vemos participando dos tristes e alegres acontecimentos de suas vidas com uma paixão que não se encontra em qualquer relação.” (D’Amico 2019, 1).4

Zavattini foi um dos mais importantes roteiristas do neorrealismo, tendo publicado o manifesto e teses sobre o movimento, também trabalhou de forma coletiva como afirma o pesquisador Steven Price, em A History of the Screenplay:

“na maior parte do tempo, Zavattini trabalhou em uma estrutura colaborativa de larga escala que caracterizava a escrita de roteiros cinematográficos na Itália, de modo que faz sentido falar em autoria nesse contexto em que ele pode ser visto não somente como um roteirista mas também como um dramaturgo, trabalhando no formato e na estética da história, em vez de ser um autor solitário escrevendo roteiros concluídos. Zavattini parece profusamente em conflito: como um teórico de filmes perspicaz e independente trabalhando em um contexto de produção que priorizava a colaboração, como um roteirista trabalhado em um contexto ideológico e estético que questionava a função do roteiro, e como um criador de histórias bem-estruturadas que recusava a ficção narrativa como uma distração da necessidade de se engajar com a realidade. Os roteiros neorrealistas foram, em geral, produzidos colaborativamente por diversos autores e deixaram um espaço significativo para modificações durante a filmagem. A forma do roteiro parece facilitar o improviso, e é importante notar que o episódio acima foi deletado de um filme cujo final causou muitos comentários sobre a natureza da narração.” (Price 2013, 165).5

Todos que trabalham no cinema são cineastas, afirmou Louis Delluc em 1921. Todos podem ser roteiristas. É preciso somente imaginar, ouvir e ver para escrever um filme. Giuliana Muscio aponta que os roteiristas fizeram uma contribuição crucial para o restabelecimento do cinema italiano, inovando a estrutura da história, introduzindo temas e personagens que traziam a realidade social e, sobretudo, suscitando um amplo debate dentro de um compromisso coletivo; o que também se deve à necessidade de reunião e discussão após anos de silêncio forçado durante o fascismo. “Foi um trabalho coletivo, que hoje dificulta identificar a contribuição única”6 (Muscio 2006, 118)

Análise fílmica de Ossessione

Embora o marco de inauguração do neorrealismo cinematográfico seja o ano de 1945, com a estreia de Roma, Città Aperta, de Roberto Rossellini, ano também que a Segunda Guerra Mundial teve fim, ainda no período fascista começaram a existir alguns filmes que se distanciaram dos ideais desse período. Mariarosaria Fabris (1996) cita três produções do período fascista que se distanciam do estilo fílmico do período para acercar-se de forma mais contundente à crítica da realidade: Quattro passi fra le nuvole (1942), de Alessandro Blasetti, Ossessione (1942), de Luchino Visconti e I bambini ci guardano (1944), de Vittorio De Sica. Neste trabalho foi desenvolvida a análise de Ossessione de 1942, primeiro longa-metragem do diretor Luchino Visconti. A razão da escolha se deve ao fato de que o filme de Visconti é considerado por alguns críticos como o marco do neorrealismo, ainda que tenha sido realizado durante o período fascista. O montador Mario Serandrei escreveu a Visconti que não teria outra forma de denominar a obra como “neorrealística”. (Valentinetti 2006, 32). E, na perspectiva da coletividade, esta é também uma marca do filme, uma vez que a realização em colaboração é uma característica relevante na construção do roteiro de Ossessione:

“O roteiro é assinado por Visconti, Alicata, De Santis, Puccini, mas na elaboração deste primeiro filme “antifascista” são muitas pessoas que colaboram: de Antonio Pietrangeli a Sergio Grieco, de Ingrao a Massimo Mida, de Aldo Scagnetti a Libero Solaroli. E talvez até Alberto Moravia, Giorgio Bassani e Rosario Assunto.” (Valentinetti 2006, 27).

Adaptação da clássica novela noir americana O destino bate à sua porta, do escritor mestre em romances policiais James M. Cain, o filme conta a história de uma traição amorosa passada no humilde Vale do Pó. Giovanna Bragana é interpretada por Clara Calamai, embora a primeira opção de Visconti para o papel tenha sido Anna Magnani, que não pode interpretar a personagem, pois estava grávida e teria o bebê durante as filmagens. O filme conta a história de Giovanna, uma frustrada dona de uma pensão que planeja com o amante Gino (Massimo Girotti) o assassinato do marido, Giuseppe Bragana (Juan de Landa). Visconti conheceu o livro por indicação de Renoir que lhe deu uma tradução francesa datilografada. O longa-metragem foi uma obra de rompimento com o cinema italiano realizado no período fascista, momento em que os filmes, em sua maioria, tinham um tom ameno e feliz em contraposição à obscuridade que assolava o país. Ossessione crítica a família e os costumes trazendo temas como a traição, o crime e a prostituição numa atmosfera trágica e ambígua, assim como mais realista. A princípio, Visconti queria produzir a adaptação de alguma novela de Giovanni Verga, mas apresentou alguns projetos que acabaram sendo reprovados pelo Ministério da Cultura Popular (Minculpop). Assim, decidiu transpor a novela americana de Cain, submetendo também o argumento ao Ministério, que recebeu o visto de censura com parecer favorável. O mesmo livro de Cain tinha sido adaptado pelo diretor francês Pierre Chenal para o filme de 1939 intitulado Le dernier tournant, produção que também já apresentava algumas características noir. Provavelmente Visconti o assistiu. Depois de pronto, o filme viscontiano teve vida difícil pois sua exibição acabou sendo proibida e, depois de cortada algumas partes, foi exibida em poucas salas. Ao assisti-lo, Mussolini afirmou: “Esta não é a Itália”, e ordenou que fosse retirado de exibição. Visconti era de família nobre e, durante o fascismo, ajudou pessoas a se esconderem. Além disso, o diretor usou o roteiro como forma de proteger os amigos. Schifano aponta que

“Ao encomendar aos amigos traduções, roteiros ou relatórios sobre obras diversas, Visconti lhes assegurava, num período difícil, confortáveis rendimentos; além disso, desde a prisão, em 1939, de alguns dirigentes comunistas, Mario Alicata e Pietro Ingrao haviam tomado a frente do partido romano clandestino e, segundo Ingrao, “escrever roteiros era, com relação à polícia, uma cobertura extraordinária para nos encontrarmos com a finalidade de um trabalho político.” (Schifano 1990, 179).

Ossessione é um filme que tem muitas características do estilo film noir. Tal estilo tem origens diversas e indeterminadas, mas pode-se verificar influências das obras literárias de ficção policial escritas por autores norte-americanos, como Raymond Chandler, Dashiell Hammett, do próprio James M. Cain e até de Ernest Hemingway. O film noir também se influenciou pelo expressionismo alemão no cinema, principalmente no que se refere à iluminação chiaroscuro, com luzes e sombras, as distorções dos planos e a estética simbólica. Muitos diretores europeus do expressionismo alemão, como Robert Siodmak, Otto Preminger, Billy Wilder, Fritz Lang, Max Ophüls, dentre outros, emigraram para os Estados Unidos nesse período e levaram consigo características do movimento. O primeiro filme considerado efetivamente noir é Relíquia Macabra (The Maltese Falcon) de 1941. Dirigido por John Huston, o filme é uma adaptação da obra homônima de Dashiell Hammett e é considerado por muitos críticos como o marco oficial do período clássico do film noir. De forma geral, a arte (literatura, artes visuais, cinema, teatro, etc.) dos anos 1930 e 1940 foi influenciada por um sentimento existencialista marcado pela realidade sombria e fatalista, características refletidas também nos filmes do estilo noir.

O filme de Visconti, Ossessione, inicia-se com uma câmera subjetiva num plano de dentro do carro em alta velocidade percorrendo uma estrada cheia de curvas às margens de um largo rio. Pontuados por uma música tensa, enquanto os créditos aparecem na tela, o espectador já experimenta a instabilidade, o desequilíbrio e a tensão como as primeiras sensações que serão intensificadas ao longo do filme. Um forasteiro que estava de carona na carroceria de um caminhão chega à trattoria na beira da estrada. Um plano geral apresenta o lugar, onde o homem com pés descalços e meia rasgada entra pedindo de forma arrogante um prato de comida. Gino, como se chama o estranho personagem, invade a cozinha e se depara com a mulher do dono do estabelecimento, Giovanna. Através de uma das principais ferramentas utilizadas por Visconti, o zoom in, o público conhece o dúbio galã e mau-caráter, personagem por quem Giovanna se apaixonará. Ao longo da narrativa, paixão, traição, sordidez e mesquinharia se entrelaçam no trio amoroso. Até que Giovanna propõe o assassinato do marido para que ambos fiquem com o restaurante vivendo seu amor proibido. Na execução do crime perfeito, o marido morre em um acidente de carro planejado pelo casal apaixonado. Logo depois, Gino descobre que o falecido marido deixara um seguro de vida que a mulher queria buscar. Por isso, não acredita no amor de Giovanna pensando que ela só almejava o dinheiro. Assim, Gino tenta sair do relacionamento buscando uma prostituta. Nesse momento, um plano diurno marcado por sombras das clássicas persianas ao estilo noir mostra o momento de frieza e desespero do assassino. Entretanto, o galã sedutor acaba se rendendo ao amor idealizado e volta para a amante. Ambos tentam fugir, mas outro trágico acidente de carro, agora, vitimiza a mulher. Gino é pego em flagrante e não consegue mais escapar da condenação. A história é uma mescla de violência, morte e desesperança retratadas com uma aura dramática e ângulos peculiares que reforçam o fracasso e o insólito pessimismo transpostos da novela de Cain do período da depressão norte-americana para os anos de guerra da pobre Itália dos anos 1940.

O filme de Visconti se afasta de modelos sociais idealizados pelo fascismo ao criticar instituições como a família patriarcal, o amor à bandeira e o nacionalismo. No filme, Gino tem um amigo, o spagnollo, um pobre artista viajante que se contrapõe a um estilo burguês italiano ao ressaltar a felicidade e a liberdade a qualquer preço como valores fundamentais de sua vida. O estrangeiro queria que Gino continuasse sua jornada libertária junto dele, fato que de alguma maneira denota uma hipótese de amor no relacionamento entre os dois. A personagem de Giovanna evidencia características feministas em seu comportamento, como o fato de ser uma mulher forte e determinada ao acreditar em seu amor e rechaçar as atitudes machistas do marido. Uma femme fatale feminista em busca de sua felicidade fora do modelo estabelecido pela sociedade italiana daquele período. Portanto, existem muitos elementos políticos e sociais que prenunciam o movimento neorrealista. Ossessione representa uma histórica revolução na sétima arte, um filme que funda uma nova era no cinema mundial.

O próprio fato de o filme ser uma adaptação literária pressupõe que o roteiro foi construído também de forma coletiva ao levar em conta aspectos como hibridação dos meios, intermidialidade, fusões e convergência entre as artes, num processo em que pelo menos duas pessoas estão envolvidas na criação da história. Hutcheon afirma que “as complexidades das novas mídias mostram que a adaptação, nesse caso, é também um processo coletivo.” (Hutcheon 2011, 118). No neorrealismo cinematográfico muitos filmes foram construídos a partir de obras literárias e pode-se afirmar que, praticamente, todos os filmes do diretor Luchino Visconti são adaptações da literatura, a maioria advinda de obras estrangeiras. Com a colaboração de importantes roteiristas, principalmente de Suso Cecchi D’Amico, o diretor milanês transpõe magistralmente outras realidades para a realidade de seu país fazendo uma tradução dos questionamentos do mundo exterior à própria crítica da sociedade italiana.

Conclusão

Desta forma, foi em torno de outro ideal que os cineastas italianos se uniram para resistir e reconstruir o cinema culminando no movimento neorrealista que, segundo André Bazin, seguia critérios formais e estéticos, características logradas pelos realizadores desde o período de Mussolini. Pois, como exemplificado, mesmo durante o regime, alguns artistas já resistiam à visão fascista. Por meio de conhecimentos híbridos inspirados nos estudos no Centro Sperimentale di Cinematografia, nas traduções dos teóricos russos realizadas por Umberto Barbaro, em ensaios e críticas nas revistas de arte, na literatura estrangeira, além da colaboração de diretores no cinema do Realismo Poético Francês, foi criada uma dinâmica criativa centralizada na escritura coletiva dos roteiros que desempenhou importante papel na resistência ao fascismo dentro do cinema italiano.

Na publicação sobre o roteiro no cinema italiano, Sulla Carta: Storia e storie della sceneggiatura in Italia, a organizadora Mariapia Comand aponta que o roteiro é “um campo aberto de tensão, de trocas, de experiências, mas isso não quer dizer que seja terra de ninguém.”7 (Comand 2006, p. 19). E podemos acrescentar que o roteiro é, sobretudo, uma terra de todos em que o trabalho coletivo é algo generoso e essencial em anos obscuros.

Notas finais

1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2“Fu figura di grande rilievo non solo per la sua attività di divulgatore e traduttore dei teorici russi, ma anche per l’importanza del suo progetto di rinnovamento del cinema italiano che negli anni Trenta lo vide opporsi ai dettami ideologici del regime e che, concretizzandosi nell’elaborazione di un’estetica cinematografica, contribuì all’affermazione del Neorealismo (tanto che lo storico Georges Sadoul gliene attribuì la denominazione) e del cinema d’autore.” (Bruno 2020, 1) (Tradução minha).

3“L’influenza di questa riflessione, mediata da Barbaro, sul cinema neorealista si identifica con le «tre caratteristiche fondamentali» attribuite da Pudovkin al cinema: «È un’arte di collaborazione; necessita di una tesi, mediante la quale le varie personalità collaboratrici obbediscono a una linea comune; ha come elemento specifico del suo linguaggio il montaggio» . Lo studio di questi tre elementi nei film del dopo-guerra evidenzia forti continuità tra il pensiero di Barbaro e la pratica neorealista. Il modo in cui si preparano e realizzano i film neorealisti, come proposto dai sovietici, è un processo collettivo di discussione e collaborazione, che si focalizza intorno a un tema, eleggendo il regista a maieuta.” (Muscio 2006, 113) (Tradução minha)

4“Ho fatto anche delle sceneggiature da sola, e direi con onore. Ma il ricordo di quei lavori non mi è caro come quello delle lunghe sedute con i colleghi, con le confidenze, le complicità, lo scambio di letture, il perdersi e il ritrovarsi, il momento del ‘dividemose i pezzi’, che è quello in cui - esaurite le discussioni sul soggetto e messa faticosamente a punto la scaletta - si passa alla stesura di un trattamento, cui è affidato il compito di affascinare produttore e attori, ma che va scritto in modo da fornire tutti gli elementi necessari al direttore di produzione per fare, al centesimo, il preventivo dei costi. Nasce, durante le riunioni di sceneggiatura, anche un curioso rapporto con i familiari dei colleghi, che impariamo a conoscere intimamente nei discorsi fra noi, per cui ci troviamo a partecipare alle vicende tristi e liete delle loro vite con una passione che non trova poi riscontro nel rapporto diretto” (D’amico 2019, 1) (Tradução minha).

5“For the most part, Zavattini worked within the large-scale collaborative framework that characterised film writing in Italy, and to the extent that it makes sense to speak of authorship in this context he can be seen as not so much a screenwriter but a dramaturg, working on story shape and aesthetics, rather than as a lone author writing completed screenplays. Zavattini appears multiply conflicted: as a strong-minded and independent film theorist who was working in a production context that prioritised collaboration, as a screenwriter working in an ideological and aesthetic context that questioned the function of the screenplay, and as a creator of well-structured stories who dismissed narrative fiction as a distraction from the need to engage with reality. Neo-realist scripts were usually collaboratively produced by several contributors and left significant room for modification during shooting.The form of the script appears to facilitate improvisation, and it is certainly noteworthy that the episode above was deleted from a film whose ending has occasioned so much comment about the nature of storytelling.” (Price 2013, 165) (Tradução minha).

6“È un lavoro collettivo che rende difficile oggi identificare il singolo apporto...” (Comand 2006, 118) (Tradução minha).

7“è un campo aperto di tensioni, di scambi, di esperienze; questo non vuol dire però che sia una terra di nessuno”. (Comand 2006, 19) (Tradução minha).

Referências Bibliográficas

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D’Amico, Suso Cecchi. Entrevista disponível em: http://zakka.dk/euroscreenwriters/screenwriters/suso_cecchi_damico.htm - acessado em 20 de fevereiro de 2018.

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Müller, Adalberto e Scamparini, Júlia (Orgs.). 2013. Muito além da adaptação: Literatura, cinema e outras artes. Rio de Janeiro: 7Letras.

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Schifano, Laurence. 1990. Luchino Visconti: o fogo da paixão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Valentinetti, Claudio M. 2006. Luchino Visconti: Um diretor de outro mundo. Brasília: M. Farani Editora.

Filmografia

I bambini ci guardano. 1944. De Vittorio De Sica. Itália: Continental Home Video. DVD

Ossessione. 1942. De Luchino Visconti. Itália: Versátil. DVD

Le dernier tournant. 1939. De Pierre Chenal. França: Robur Video. DVD

Quattro passi fra le nuvole. 1942. De Alessandro Blasetti. Itália: Terminal. DVD

The Maltese Falcon. 1941. De John Huston. Estados Unidos: Warner. DVD

Roma, Città Aperta. 1945. De Roberto Rossellini. Itália: Versátil. DVD