Abstract
This paper intends to analyze the documentary film Fevereiros (Februaries), by Marcio Debellian, and its themes - such as the relationship singer Maria Bethania has with African-Brazilian and popular catholicism religiosities, with sacred and profane festivities, and with the Estação Primeira de Mangueira samba school - using as a starting point the critical debates about documentary cinema and Brazilian musical documentary film. Taking into account the issues involving filmic materiality, the present analysis intends to apprehend the invisible thread that the variety of sounds and music interweaves, in the musical documentary genre, with images and other resources available in the cinematic language.
Keywords: Brazilian Documentary Film, Musical Documentary, Filmic Materiality, Documentary.
Introdução
O premiado1 documentário Fevereiros (2018), de Marcio Debellian tensiona uma série de críticas e categorias utilizadas para analisar o que se qualifica como documentário musical. Embora seja um filme cuja personagem prinicipal é a cantora Maria Bethânia, sucesso de público e crítica, o filme não se propõe a narrar sua trajetória emblemática, nem a trata como mito midiático. Aborda aspectos da vida privada dela, que se articulam com sua postura e escolhas profissionais, mas não pode ser considerado uma biografia. Traz na trilha sonora músicas consagradas, mas não é um filme que depende dos sucessos conhecidos, incorporados na cultura e na memória, para conquistar a atenção do público e garantir grande bilheteria. Entretanto, a música cumpre nesse documentário um papel fundamental. Não exatamente o de fio condutor, mas de fio que se entrecruza com outros fios – vários tipos de sons e de imagens - na tela, desvelando redes e tramando o tecido fílmico que trata da cultura brasileira, da religiosidade mestiça e tolerante, das festividades populares.
As especificidades da música na narrativa cinematográfica, no documentário e, mais especificamente, a música no documentário musical são temas que tem sido pautados segundo aspectos éticos e estéticos. No documentário, de forma ampla, a crítica incide sobre o uso da música extradiegética, na medida que ela seria capaz de dirigir a interpretação do espectador de forma subreptícia, levando-o a assumir uma certa visão ideológica que distorce a realidade.
No documentário musical, reivindica-se que a música seja trabalhada como materialidade, como elemento fundamental, responsável por uma narrativa inovadora e não como elemento ilustrativo ou recurso estetizante. O aspecto ético está relacionado à exigência, ou premência do som original, seja na incorporação e sustentação dos sons, ruídos, presentes no momento da captura, seja nas filmagens das performances do músico, do cantor, num show ao vivo, por exemplo. Prevalece nessa valorização, a dimensão indicial, de registro, incorporação direta de aspectos do real. Se a preocupação ética no documentário é pertinente e relevante, a discussão sobre o uso da música no documentário varia ao longo da história e, discutir a questão, problematiza debates infrutíferos e aponta para uma série de possibilidades do fazer cinema documentário, no Brasil e no mundo.
Nossa hipótese é que a música no documentário Fevereiros revela outros aspectos de indicialidade que não aqueles dos sons diegéticos. Experimenta composições e interrelações entre sons diegéticos e música não diegética para compor a narrativa fílmica e apresentar um registro poético do que podemos chamar de aspectos da brasilidade. Além de, ao mostrar a festa sagrada e a festa profana, evidenciar o caráter agregador e movente da música, seu potencial como elemento mediador que permite partilha e pertencimento.
No nosso percurso analítico, consideraremos autores que tratam da especificidade do documentário brasileiro em articulação com os debates mundiais, como Consuelo Lins e Claudia Mesquita; pesquisadores do documentário musical, como Guilherme Maia, Luciano Ramos e Sandra Coelho. Levamos em conta, ainda, a pesquisa de Cristiane Lima e Renan Chaves que tratam especificamente das questões da música no documentário musical. Nossa apreciação da escritura fílmica de Fevereiros é um resumo dos achados mais relevantes a partir da decupagem do filme feita a partir das discussões aqui levantadas.
Palavra (En)Cantada, Fé e Festa: no cinema, na avenida
Ao ler a sinopse ou mesmo depois de assistir Fevereiros teremos certo grau de dificuldade para apontar qual o tema do filme. A explicação de que o documentário é sobre o desfile de 2016, da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, cujo enredo é uma homenagem que enfatiza a religiosidade sincrética da cantora Maria Bethânia é correta, mas diz pouco. A complexidade articulatória entre os personagens, os temas, os acontecimentos e as decisões artísticas em jogo, tanto na elaboração do desfile, quanto no registro e confecção do documentário não cabem na avara objetividade dos dados informativos.
Há uma série de aspectos imbricados e em destaque no documentário: há Maria Bethânia artista consagrada e reverenciada pela Mangueira e, também, na intimidade da sua fé; há o Carnaval carioca da Sapucaí; há festa popular religiosa sincrética – procissão católica, ritos de Candomblé -; há Santo Amaro como cidade natal da cantora e berço do samba de roda.
Marcio Debellian, em entrevista2, diz que a homenagem da Mangueira à Maria Bethânia no ano em que se comemoraria oficialmente os cem anos do gênero musical samba, no Brasil, se mostrara como acontecimento digno de registro. Ele se dedica, portanto, à empreitada se expondo ao risco do real, como propõe Comolli (2008), já que filma, desde 2015, as várias etapas da elaboração do desfile da Mangueira, a participação, em 2016, de Maria Bethânia nas festividades religiosas que acontecem em fevereiro, na cidade de Santo Amaro da Purificação e em seguida, no mesmo mês, o desfile, no Sambódromo, na Avenida Marquês Sapucaí. Tudo isso, sem ter qualquer garantia da conquista do campeonato pela “Verde e Rosa”3, naquele ano.
Como Fevereiros, vencedor do prêmio do júri especializado no 10º. Festival Internacional de Documentário Musical, tece música e imagem na escritura fílmica abarcando essa multiplicidade de temas e personagens? De que forma a música é tratada nesse documentário?
Para compreender esses aspectos centrais de Fevereiros nos parece importante considerar, por um lado, o percurso profissional de Debellian no universo da produção audiovisual e musical e, por outro, os debates em torno da produção de documentários e, mais especificamente, de documentários musicais brasileiros.
Debellian tem experiência com produção e direção de shows musicais, além de ter dirigido três documentários, todos sobre o universo cultural. Fevereiros (2018), nosso objeto de análise, é o mais recente. Em 2009, dirigiu, junto com Helena Solberg, o documentário Palavra (En)cantada, que trata da relação entre poesia e música, da figura do trovador, e das origens do cancioneiro brasileiro. Em 2014, dirigiu o documentário O vento lá fora, com a importante estudiosa da poesia de Fernando Pessoa, Cleonice Berardinelli e a cantora Maria Bethânia, as duas lendo e comentando as poesias de Pessoa e seus heterônimos. Esse interesse de Debellian pela canção e pela palavra poética parecem aspectos importantes na consideração dos modos como a música será tratada em Fevereiros.
Documentários musicais, materialidades, escritura fílmica
A produção documental em torno da música brasileira ganhou impulso com a “retomada do cinema nacional”, a partir da década de 1990, e transita pelos diversos gêneros musicais, do samba ao rock, passando pelo gênero brega e pelo baião; dá visibilidade a personagens injustiçados na história da música nacional e também lança luz sobre aspectos pouco conhecidos de grandes expoentes da cena musical de todos os tempos. Há cada vez mais produções que se dedicam aos representantes das matrizes da música popular brasileira como, por exemplo, os sambistas das velhas guardas das escolas de samba e, também, obras que tratam de movimentos marcantes na história da música nacional, como a Bossa Nova e o Tropicalismo. A produção de documentários musicais no Brasil, mas não apenas, tem sido expressiva em termos de lançamentos4, prêmios e sucesso de público, nas últimas duas décadas. O documentário musical conta com mostras especializadas e até com uma edição brasileira do Festival Internacional do Documentário Musical, o In-Edit ~ Brasil, que está na 12ª. Edição5.
Sandra Coelho (2017, p.191-192) observa que dentre a centena de documentários musicais produzidos desde 2000, a maior percentagem deles assume uma visada biográfica. Algumas críticas serão feitas a obras dessa tendência, pois os críticos observam que essas produções tendem a abordar personagens e movimentos musicais já consagrados e contemplados pela indústria cultural e fonográfica, apresentando-os em seus momentos de glória, reforçando o status quo midiático e mercadológico e, em consequência disso, pegando carona no público de fãs e conquistando grande bilheteria. A crítica estaria ligada a um endosso à lógica mercadológica e certo oportunismo. Ana Rieper, diretora do premiado Vou rifar meu coração (2012), por exemplo, reivindica que o documentário deveria lançar luz sobre a diversidade da produção cultural e musical brasileira, sem preconceito, nem romantismos. Segundo ela:
Em relação a esse movimento da produção de documentários musicais, acho que se deveria apostar mais nas músicas que sobrevivem à margem do mainstream, porque a gente vê que a maioria desses documentários aborda os festivais da Record, a Bossa Nova, o universo da MPB, entendendo a MPB como uma música mais elitizada e aceita no meio da crítica musical e presente na história oficial. Eu acho que a existência desses filmes reflete a possibilidade de um novo olhar, uma nova perspectiva do que é cultura popular. Porque se a gente observa o Cinema Novo e os documentários que eram feitos naquela época, quando se pensava em representação de cultura popular, pensava-se logo em uma manifestação produzida no meio rural, ligada à tradição, sem influência dos meios de comunicação ou da cultura de massa. Hoje não dá mais pra se pensar dessa forma. A cultura popular não é só Mestre Vitalino, a cultura popular também é o funk carioca, também é a música brega, que é a expressão artística que traduz e carrega uma forma de identificação de um número muito grande de pessoas, de um determinado universo social. (Sarmiento e Ravazzano, 2017, pag. 386)
Essa crítica não desabona a qualidade do que vem sendo produzido em termos de documentário musical, nem a importância dessa produção do ponto de vista cultural e comunicacional. São muitos títulos que além de sucesso de público são contemplados com premiações em festivais nacionais e internacionais, tais como Simonal, ninguém sabe o duro que dei (Claúdio Manoel, Calvito Leal, Micael Langer, 2009); Raul Seixas: o início, o fim e o meio (Walter Carvalho, 2012); Cartola: música para os olhos (Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, 2007); O Homem que Engarrafava Nuvens (Lírio Ferreira, 2009), Canções (Eduardo Coutinho, 2011) e contribuem com inovações no modo de fazer documentários.
Outras críticas dizem respeito ao modo como os recursos disponíveis na produção documental: material de arquivo, entrevistas e, principalmente, a música são tratadas no documentário musical. A crítica incide no fato de, ao invés de ocupar um papel estrutural na materialidade fílmica, a música fica relegada a um plano acessório, restrita ao nível temático, segundo a perspectiva de Maia (2012), professor da UFBA6, que pesquisa o filme musical na América Latina.
A música como materialidade fílmica no cinema, pode estar ligada ao modo como a música afeta o ambiente onde ela está sendo performada, o modo como afeta os corpos em cena, produzindo, segundo Cristiane Lima, um tipo especial de escuta por parte do espectador:
Nosso recorte privilegia escrituras que têm a música em cena – e não apenas manejada como recurso de montagem (isto é, como trilha musical extradiegética, chamada música de cena ou fosso). Ao serem confrontados com a materialidade sensível do fenômeno musical que reverbera – de diferentes modos – nos corpos e situações filmadas, esses filmes tornam a música como efetivo componente de sua escritura, fazendo-a soar de forma pronunciada aos ouvidos do espectador. (2015, pag. 18)
Essa apreciação de algum modo retoma a questão da indicialidade do som no documentário. No caso, valorizando a música e a presença da mesma na própria cena, explicitando quando e como a música marca, altera o seu entorno. E como isso afeta, em consequência, a audiência de um modo diferente daquele da música usada como pano de fundo, trilha sonora. É claro que a valorização desse aspecto não desqualifica a música extradiegética como enganadora, apenas enfatiza a potência mobilizadora da música em cena.
A produção de cinema documental contemporânea toma como referência e eixo problematizador, tanto do ponto de vista da crítica, quanto da produção, os debates e os esforços dos documentaristas dos anos de 1960, momento importante do que ficou conhecido como produção documental moderna do cinema brasileiro, que assumia, segundo Jean Claude Bernardet, em seu livro Cineastas e Imagens do Povo (1985) de modelo “sociológico”, e os questionamentos e experimentos empreendidos na década de 1970 por diretores e pensadores do cinema que apostavam em perspectivas e estéticas não clássicas e esforços experimentais.
Várias questões do que diz respeito ao debate em torno no documentário musical se articulam com discussões sobre a especificidade do documentário como produção cinematográfica, seus aspectos éticos e estéticos.
Segundo Lins & Mesquita (2008) o documentário moderno no Brasil é referência a um conjunto de filmes de curta e média metragem, produzidos em 16mm e 35 mm, realizados principalmente por documentaristas ligados ao Cinema Novo, cujas principais características são obras de cunho social, crítico e independente, que tratam de problemas das classes populares, rurais e urbanas, marginalizadas sob variados enfoques e abordagens.
Embora esse conjunto de obras se preocupe em dar voz ao povo, ao outro de classe, essa voz ainda não se apresenta como elemento central. Entrevistas são recurso para obtenção de informações que servem de estruturação de argumentos sobre a situação, cujas teses baseadas em teorias sociais totalizantes, muitas vezes já definidas antes da realização do filme.
Se os críticos e documentaristas dos anos 1960 se questionam sobre as possibilidades dos atores sociais serem, eles mesmos, autores da suas próprias histórias, produtores dos seus próprios registros, pegando nas câmeras para isso, o uso da música no documentário vai passar por alguns questionamentos e cerceamentos. Essa exigência, típica do cinema direto norte americano de viés fenomenológico, desqualificava tudo o que não fosse capturado em simultaneidade com a imagem. Chaves (2018) problematiza essa exigência que reaparece, de quando em quando, nos debates sobre música e cinema. Ele defende que essa questão não pode ser tomada como essencial ao documentário. Historicamente, os anos 1930 e 1940, os cineastas já assumiam a música como recurso narrativo capaz de desvelar aspectos implícitos ou encobertos da realidade, no documentário. Renan Chaves argumenta que na própria origem do documentário estava a necessidade de ultrapassar o nível factual do cinejornalismo. Sem desconsiderar a questão ética, Chaves ressalta que a música no documentário pode guardar relações implícitas e necessárias com o tema ou personagem abordado, para além da presença do som diegético, como uma trilha composta especialmente para a obra, como o uso de músicas que fazem parte do contexto histórico e lugar do personagem ou tema tratado na obra, por exemplo.
Tenho preferido pensar que a música no documentário se estabelece como presença e como recurso do cumprimento de papéis ligados à dimensão espaço-temporal da (encen)ação, num extremo, e como recurso que tende a estabelecer e organizar a unidade narrativa e o arco macroestrutural narrativo, no outro extremo. No primeiro caso, a relação entre equipe realizadora e objeto fílmico tende a se enfraquecer em favor da valorização da autonomia do espaço-tempo da ação, no segundo, é o caso em que a equipe realizadora se expressa, intencionalmente ou não, em relação aos objetos fílmicos, sejam eles abstratos ou concretos. Ambos os casos, contudo, não se pode perder de vista, estão sob decisões da equipe realizadora e da presença do microfone. Assim como outros fatores do aparato articulatório cinematográfico, a música se faz presente no documentário numa intenção fílmica com fim no espectador. (Chaves, 2019, pag. 157-8)
Diante dessas ponderações feitas por Renan Chaves vale ressaltar que o documentário não é apenas uma reunião de dados sobre um assunto, mas um exercício reflexivo e um esforço de comunicação. Os recursos utilizados pelo diretor e sua equipe e o modo de utilizá-los estão em tensão com o objetivo de se aproximar, de friccionar o real e apresentá-lo com as materialidades disponíveis.
As críticas mais radicais às premissas do documentário brasileiro da década de 1960 virão do manifesto e da produção cinematográfica experimental de Arthur Omar: Antidocumentário, provisoriamente (1978) e Congo (1972), respectivamente; e do documentário-ensaio de Glauber Rocha, Di/Glauber. Nesse artigo-manifesto, Arthur Omar afirma a importância de escapar de dois modelos vigentes na época, o filme comercial de ficção, roteirizado, com narrativa fechada, que trazem a estética do espetáculo, e o documentário que apresenta “teses” a respeito de manifestações culturais e personagens sociais brasileiros. Sua proposta é que se pense o documentário como uma obra, uma produção cultural que dialogue de forma contundente com as dificuldades, especificidades e questões da produção cultural no Brasil e mereça ser reconhecida como tal, ou seja, produção cultural, obra, por sua vez. A ideia de Omar é confrontar os saberes constituídos sobre as manifestações culturais, mostrar o quanto nos aproximamos das mesmas, numa relação autoritária, de imposição de sentido, ao mesmo tempo em que é impossível não assumir esses saberes dados como constitutivos do olhar que lançamos sobre a cultura. Ele assume esses impasses, mas indicando que essa relação é problemática.
Ele demonstra tanto no filme Congo, quanto no manifesto Anitdocumentário, como o reconhecimento, ampliação e a experimentação dos recursos disponíveis, utilizáveis e utilizados na escritura fílmica importam no tipo de documentário que se produz, influenciam no modo como uma obra pode problematizar produtos, práticas, concepções de cultura.
Tomaremos o documentário sobre assuntos culturais que corresponde a um movimento de preservação e defesa (do folclore, das tradições, em releituras necessárias e permanentemente renovadas), como um módulo estratégico, ele pode influir nos rumos dessa cultura, porque geralmente se constitui na forma de apreensão única desse passado, e, dessa forma [...] Assim, a questão preliminar é ir determinando sempre a função do cinema dentro do real. O que nós queremos que o cinema seja e exerça. (Omar, 1978, pag. 417-418)
A produção documental sobre a música e a cultura brasileira contemporânea tem sido cuidadosa em relação às críticas de outrora. Há um impulso experimental, um esforço de evitar visões totalizantes, tanto quanto de escapar de narrativas que privilegiem o aspecto espetáculo. Comolli (2008) enfatiza a necessidade de escapar da roteirização tão presente nas narrativas televisivas e da produção de cinema ficcional comercial. A possibilidade de trabalhar na fricção com o mundo, como o acaso na filmagem dos documentários, da possibilidade de tratar do que fica de fora da roteirização, do que está na tensão entre o visível e o invisível é o que há de fundamental no documentário e nas possibilidades do cinema contemporâneo. (Lins & Mesquita, 2008)
Impressões sobre escritura fílmica de Fevereiros
O trabalho de decupagem privilegiou a identificação de tipos de imagem e sons e os modos como foram utilizados, sua potência documental e narrativa. Embora a análise busque identificar detalhes relevantes para se pensar o papel que a música exerce na escritura do documentário musical, em geral, e de Fevereiros, em particular, não se trata de trabalho exaustivo.
Da constelação de referências com as quais Leandro Vieira elabora o carnaval da Mangueira, se destaca a religiosidade da intérprete brasileira, que assume e acolhe, tanto no seu repertório musical quanto na vida, elementos da religião afro-brasileira e da fé popular católica. Fé, devoção, sincretismo religioso e relação com o sagrado, portanto, farão parte tanto do enredo/fio-condutor do Carnaval mangueirense de Leandro, quanto do documentário Fevereiros, de Marcio Debellian, que estreou dia 31 de janeiro de 2019 nos cinemas.
Diante do ponto de partida declarado por Debellian, poderíamos supor dois tipos já consagrados de documentários do subgênero musical: o making off do desfile da Mangueira e/ou a cinebiografia da cantora. Mas o que chama a atenção é justamente a particularidade com que o filme escapa dos padrões e das expectativas, principalmente, no tocante ao que se entende por documentário musical.
O documentário Fevereiros articula entrevistas com personagens próximos à Maria Bethânia, como os irmãos Caetano e Mabel, amigos como Chico Buarque, além do carnavalesco da Mangueira Leandro Vieira, o historiador que se dedica a pensar a cultura popular brasileira, Luiz Antonio Simas, personalidades de terreiros de Candomblé em Santo Amaro e com a própria Maria Bethânia7. Essas entrevistas não funcionam como material que viesse defender alguma tese sobre a cantora, ou qualquer aspecto da cultura ou religiosidade brasileira. São, antes, um mosaico de observações sobre a questão da religiosidade e da fé de Bethânia e seu entorno cultural e afetivo, detalhes saborosos sobre sua aproximação, ainda menina, com o universo sagrado.
Há imagens produzidas para o próprio documentário, em pleno exercício do risco do real, como Bethânia e família em meio à multidão, nas festividades de Nossa Senhora da Purificação. Nas imagens de Bethânia no pleno exercício da devoção e da prece, há uma distância respeitosa, tomadas que valorizam privacidade, intimidade, o murmúrio da reza, o silêncio. Há, também, imagens de arquivo, cuidadosamente selecionadas, inéditas, em relação aos outros três filmes documentários8 que tem Maria Bethânia como personagem de destaque. Há imagens de drone apresentando visão panorâmica da cidade de Santo Amaro, há imagens feitas, no chão da Avenida Marquês de Sapucaí no desfile oficial e no desfile das campeãs. Há também o pé no chão da procissão e a panorâmica do desfile da Mangueira.
Há som direto das ruas durante a procissão, há breve cantarolar para comentar uma música no meio de uma fala, durante as entrevistas, há músicas de fundo, na voz de Bethânia, na voz de Caetano. O som de batuque de Candomblé se faz presente, assim como a música clássica na celebração da Santa, dentro da Igreja. Há interessantes recursos de mixagem passando do som diegético das festividades, do povo na rua para alguma canção que ressoa, que guarda graus de indicialidade, de contágio, com aquelas situações, com aquelas referências culturais, da materialidade das cidadaes, seus hábitos, seus ruídos, suas gentes.
A música se relaciona com a imagem de forma a mostrar, também ressonâncias entre as canções interpretadas por Bethânia e elementos da sua vivência na cidade natal, entre o samba de roda do Recôncavo e o batuque da Verde e Rosa. Mas a música, na fricção com a imagem, para além de uma aparente redundância do que uma oferece à outra, acaba por preencher lacunas, dar rosto, tornar plenas palavras que compreendíamos apenas no nível do código da língua, criar camadas de sentido, de experiências sinestésicas reciprocamente iluminadoras. Só quando nos deparamos com imagens que traduzem a movimentação da cidade com a festa, com gestos e expressão de devoção, meditação e fé de Bethânia se desvelam alguns porquês da sua performance no palco, da sua escolha de repertório, da sua deferência com uma série de personagens e rituais do universo da religião, do sagrado, da ritualidade, num pulsar, sem palavras, de um cristal que se fractaliza e volta a se recompor, para se estilhaçar em seguida, dando brilho e sentido, aqui e alí, de forma aleatória, como quando a luz bate na ondulação das águas.
As entrevistas em Fevereiros não confirmam teses. Contam, sim, histórias saborosas, apresenta memórias sobre a vida de Bethânia, intervalos de história do ambiente cultural baiano, da vida privada da família Veloso se misturando com vida público-privada da cidade, o tipo de detalhes que só vem à tona quando alcançamos intimidade ou amizade com o povo local: vamos, aos poucos, nos tornando próximos. Imagens do pátio interno da casa são recorrentes, seja com os habitantes da casa, membros da família, com amigos, com os frequentadores do terreiro que tradicionalmente tem a casa da família Veloso aberta para os rituais que antecedem a lavagem do pátio da igreja onde ocorrem o início e o fim da procissão à Nossa Senhora da Purificação. A atmosfera do filme é a dos encontros, do tempo largo das conversas sem hora, da boa música, festa intima da qual nos tornamos convidados e da qual, de alguma forma, já fazemos parte. Algumas histórias contadas já nos foram apresentados pela mídia jornalística, mas o filme acrescenta detalhes que reconfiguram toda a trama. Nessas mesmas entrevistas, lembranças fugidias dão a ver situações e personagens que inspiraram canções há muito familiares ao público. Nesses casos, ora a música antecede a anedota saborosa, ora se lhe sucede, uma e outra ganhando, assim, novas camadas de sentidos e possibilidades de fruição.
Considerações Finais
Se Fevereiros pode ser pensado como documentário musical, o é por um lado, pela complexidade de elementos que articula do universo da música, por outro, porque a música se relaciona com as imagens de modo a revelar que a trilha pode ser tratada como trama, e envolver os outros elementos disponíveis de forma a produzir efeitos emocionais e de sentido inantecipáveis e complexos em relação à narrativa fílmica e à própria escritura fílmica. Se a música não diegética pode fazer questão no documentário em geral, no documentário musical, o que se apresenta são as múltiplas possibilidades de articulação entre essas duas formas de materialidade sonoro-musical. Procuramos identificar no filme Fevereiros os diversos tipos e graus de indicialidade ou de consonâncias e ressonâncias nas escolhas do material musical em relação ao tema do documentário. Essas experiências criativas que a materialidade sonora e de sons e imagens que o documentário musical apresenta são rico material de pesquisa que se torna disponível como linguagem cinematográfica.
Do ponto de vista temático e musical, Fevereiros, ao mesmo tempo em que apresenta a fé e aspectos do repertório de Maria Bethânia, permite passeios que visitam a formação da música popular brasileira e as conexões profundas do canto ritual com o samba e com o Carnaval, as transitividades entre fé e festa.
Fevereiros com sua narrativa densa e fluida nos mostra como nossa cultura está marcada pelas temporalidades estruturantes e circulares dos rituais e festas sagradas e profanas permitindo à Maria Bethânia e a nós fevereiros constantes e diversos, no espaço e no tempo. O tempo cíclico das festas populares permite a renovação da fé e da esperança, dos desejos e dos planos, como nos explica Maria Laura Cavalcanti (2015). O tempo cíclico está em constante tensão com o tempo cronológico da produção, do trabalho, do envelhecimento. E a música tem papel agregador fundamental nesses rituais e festas.
Micael Heschmann (2012) chama a atenção para a importância de pensar a música da perspectiva da comunicação, como força movente, na medida em que a música constrói espaço-tempo de fruição e sensibilidade compartilhada, de vivências e modos específicos de ocupação dos territórios. A música é capaz de significar e ressignificar as cidades. Essa perspectiva permite problematizar as críticas feitas ao documentário musical de sucesso, ou o biográfico, que não considera as experiências de partilha, num contexto de indústria cultural, onde os produtos culturais têm ampla circulação, mas consumo diversificado, apropriações e construções de sentido não homogêneas, por um lado. E, por outro, há também, a possibilidade de reconhecimento do comum, de referências em comum.
O documentário musical com seus recursos e materialidades e, em especial, Fevereiros, por conta, inclusive, do que o cinema como experiência de imersão, por um lado, e como potência difusora, por outro, nos permite a co-moção, ou seja, vivenciar o que nos move como coletividade, o que nos move em sintonia. Fevereiros como documentário musical adensa, acrescenta mais fios, na trama da experiência de partilha do comum de práticas culturais, rituais e musicais tão próprias de uma certa vivência da brasilidade9, a brasilidade generosa, criativa, alegre e mestiça, como definiu o carnavalesco Leandro Vieira.
Notas
1O documentário recebeu mais de vinte prêmios em festivais nacionais e internacionais.
2Entrevista concedida à Murilo Ribeiro, no canal Chega Junto, no Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=4VKNV6_HsS4
3A escola de samba Estação Primeira de Mangueira é tratada pelas cores da sua bandeira. Cada agremiação tem nas escolhidas cores oficiais, forte elemento identidade e identificação.
4Segundo Sandra Coelho (2017), pesquisadora do LAF POSCOM – Laboratório de Análise Fílmica da UFBA, enquanto entre 1960 e 1990 há registro de pouco mais de 20 documentário que merecem a etiqueta de “musical”, no século XXI contabiliza-se mais de cem.
5Fevereiros, de Marcio Debellian recebeu o prêmio do júri como melhor documentário musical de 2018.
6Guilherme Maia é pesquisador da LAF POSCOM – Laboratório de Análise Fílmica da UFBA e organizador, junto com Lauro Zavala do livro O Cinema Musical na América Latina: aproximações contemporâneas. Salvador: UFBA, 2018.
7A única entrevista feita com Bethânia aconteceu em Santo Amaro, em 2017, e foi a última etapa do documentário, segundo Debellian na entrevistaconcedida à Murilo Ribeiro, no canal Chega Junto, no Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=4VKNV6_HsS4, por ocasião do lançamento do filme nas salas de cinema, em 2019.
8São eles: Pedrinha de Aruanda; Maria Bethânia do Brasil e Música é Perfume.
9Esse conceito é bastante complexo e não é intenção nossa aqui nesse trabalho discutir os impasses dessa noção. Tomamos aqui como uma referência abrangente e algo idealizada, em constante disputa, do que constitui nossa vivência e produção cultural.
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Pedrinha de Aruanda. 2006. De Andrucha Waddington.
Raul Seixas: o início, o fim e o meio. 2012. De Walter Carvalho.
Simonal, ninguém sabe o duro que dei. 2009. De Claúdio Manoel, C. Leal, M. Langer.
Vou rifar meu coração. 2012. De Ana Rieper.