Abstract
This article purposes an observation of the sensations caused by watching the movie “Alma no Olho” (Brazil, 1974) from the writer, director, producer and actor Zózimo Bulbul. He started his career doing theater productions at the UNE (National Students Union) cultural center, was the first black man to play a lead role in the Brazilian television, having acted in more than thirty movies and directing six, including Alma no Olho, which will be discussed in this article. Through a research, done in person, we will analyse the perceptions the movie brings, whether they’re about historical, individual or social relations. It will also discuss a little about the definition of what is classic and a small biography from the master of the Brazilian black cinema, Zózimo Bubul.
Keywords: Black Cinema, Zózimo Bulbul, Reception, Cinema, Alma no Olho.
Introdução
A gente é criada para ser assim, mas temos que mudar.
Precisamos ser criadas para a liberdade.
O mundo é grande demais para não sermos quem a gente é.
Elza Soares - Cantora
Pai do cinema negro brasileiro, Zózimo Bulbul (21 de setembro de 1937 - 24 de janeiro de 2013) foi pioneiro ao cunhar a necessidade de se construir um cinema negro brasileiro, um cinema produzido e protagonizado por negros e negras. Em seu primeiro filme como diretor, “Alma no Olho” (Brasil, 1974), se vale de restos dos negativos da película ‘Compasso de Espera’ (1969) de Antunes Filho, e cria uma obra de arte que viria a se tornar o primeiro clássico do cinema negro brasileiro.
Neste sentido, pensar como clássico o curta-metragem “Alma no Olho”, produção, roteiro, direção e atuação do próprio Zózimo, passa pelo entendimento da definição da palavra e de como o filme se tornou uma marca cultural na história do Cinema Negro Brasileiro, convertendo-se em referência permanente para as gerações de cineastas negros e negras que vieram depois de Zózimo. Clássicos são os filmes relembrados ativamente de forma coletiva ou individual, independentemente de sua idade, críticas e bilheteria, valendo-se da condição de atemporais e memoráveis.
Ao nos apropriarmos do termo “Cânone” para demarcar a originalidade do curta, trilhamos um caminho que vai ao encontro de sua origem epistêmica, a como a Igreja Católica define a seleção feita dos textos que devem ser preservados e relembrados como parte oficial do acervo sacrossanto. Desse modo, utilizamos como base o artigo “Canon and Archive, (Cânone e Arquivo), no qual Aleida Assmann (2010) disserta sobre como o ato de lembrar de uma obra de arte a torna viva na memória coletiva de um povo. A autora cita duas formas de memória cultural, a passiva e a ativa. A memória cultural passiva seria aquela que preserva o passado mas o deixa como algo que foi, enquanto a ativa relembra o passado como algo presente em nossa vida (ASSMANN, 2010).
A condição de cânone, quando atribuída a obras de arte, as distingue como clássicos. “É apenas um pequeno segmento da vasta história das artes que tem o privilégio da apresentação repetida e da recepção que assegura a sua aura e dá suporte a seu status canônico” (ASSMANN, 2010). Nesta perspectiva, demarcamos o lugar do filme “Alma no Olho” como Clássico do Cinema Negro Brasileiro e o apresentamos a um grupo de seis pessoas. Para preservar o anonimato, escolhemos diretores e diretoras do cinema mundial, sem o crivo de qualquer critério acadêmico científico que se possa pensar, ressalte-se. Simplesmente, listamos alguns nomes de nossa predileção cinematográfica, obedecendo tão somente aos critérios de gênero e raça ao vinculá-los às quatro mulheres do grupo – três negras e uma branca –, e aos homens branco e negro. Nosso objetivo foi entender de que forma essas pessoas acessam a linguagem fílmica do curta e que sensações o filme ativa em suas memórias.
Se nas artes, tudo que está no cânone é constantemente reprisado, revisitado e desperta atenção generalizada, de forma contínua com o passar do tempo, esse também é o lugar dos clássicos de cinema. Alma no Olho tem a duração de onze minutos e cinco segundos, “é uma homenagem ao jazzista John Coltrane3 além de ser musicada pelo mesmo” (Moraes, 2016). Com o fundo totalmente branco, sem fala e com um único ator – no caso, o próprio diretor – o filme é uma metáfora sobre o processo de escravização e a busca de liberdade através da transformação interna do ser. O destaque é para o corpo negro, portador em si da ancestralidade, corporeidade e das marcas da história afrodiaspórica.
À medida que o curta se desenvolve, o espectador recebe, compactos, alguns episódios da história do negro, “da África até o movimento Black Power” (MORAES, 2016). O trabalho transita por muitos mundos, de modo análogo, demarca em sua corporeidade questionamentos sociais e políticos da colonização, mas sobretudo abaliza as histórias de memórias, afetos e intimidade. É nessa perspectiva, que o artigo Percepções do clássico Alma no Olho e o cinema negro de Zózimo Bulbul se propõe a apresentar o curta como um clássico do cinema brasileiro. Adotamos como estratégia metodológica apresentar a pesquisa de recepção para dialogar com as narrativas das pessoas que convidamos para assistirem ao filme.
A escolha do tema é fruto de um ensaio escrito na disciplina Etnologia Visual da Imagem do Negro no Cinema (ETNOVIS), cursada no primeiro semestre de 2019, na Universidade de Brasília (UnB). Naquele semestre, a proposta lançada pela professora foi de trabalhar com o tema Tempo e Memória. A ideia do artigo ocorreu durante a leitura de uma entrevista com a cineasta e roteirista Yasmin Thayná para o Jornal Nexo4, na qual a diretora afirma: “Para mim “Alma no olho” é uma bússola para o nosso fazer cinematográfico que deve ser olhado e revisitado diversas vezes, principalmente pelos futuros e presentes cineastas negros”. Essa entrevista foi a conexão motivadora para pensar a memória e a importância desse clássico como um dos principais legados do Cinema Negro Brasileiro.
Em plena ditadura militar, o filme foi inspirado no livro Alma no Exílio, do ativista estadunidense Eldridge Cleaver. Quando concluiu o filme, Bulbul passou a ser perseguido pela censura e partiu para Nova Iorque, onde tem a oportunidade de exibir o curta-metragem. Depois dos Estados Unidos, Bulbul vai para a Europa e fica um tempo em Lisboa e depois em Paris, onde convive com exilados brasileiros. No final de 1977, voltou ao Brasil.
A partir dos elementos que elencamos acima, nosso objetivo é buscar categorizar a memória como uma das possibilidades de análise fílmica, pois como afirma o crítico Francis Vanoye, “Analisar um filme é prática comum a qualquer espectador” (1994).
Zózimo Bulbul - O pai do cinema negro
Zózimo Bulbul nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no Bairro de Botafogo, com o nome de Jorge da Silva. Como toda criança negra, os primeiros anos escolares foram marcados pelo racismo e pela discriminação racial, resultando em sucessivas expulsões da escola, até ser internado no Serviço de Assistência ao Menor (SAM), instituição majoritariamente ocupada por negros, atual Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA), espaço que Zózimo só deixaria ao completar 18 anos, e logo em seguida alistar-se para o serviço militar obrigatório no exército, também com o intuito de preparar-se para a profissionalização.
Quando saiu do exército, Bulbul foi estudar contabilidade e começou a trabalhar para ajudar sua mãe nas despesas de casa. Porém, influenciado por leituras em quadrinhos, decide iniciar os estudos de arte na Escola de Belas Artes. Em depoimento ao sociólogo e documentarista Noel de Carvalho, Bulbul relembra:
Depois do curso de contabilidade minha mãe esperava que fosse contador. No colégio eu gostava muito de pintar e desenhar, sob influência das histórias em quadrinho. Comecei copiando por cima e depois sozinho, já desenhava bem, pintava. Quando terminei o curso de contabilidade, já estava no Iate Clube. No início como pintor de barco, depois como auxiliar de escritório. Paralelo a isso eu entrei para as Belas-Artes porque eu queria estudar arte mesmo (CARVALHO, 2005, p. 170).
No final da década de 1950, Zózimo Bulbul entrou para a escola de Belas Artes, onde começou a ter contato com a questão racial e políticas estudantis. É neste momento, também, que inicia a sua carreira como ator, em peças do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE; aumentando seus interesses e conhecimentos nas áreas de pintura, teatro e cinema.
Zózimo transitava à vontade pelo mundo branco, ele foi o primeiro modelo negro brasileiro, o primeiro protagonista negro em uma novela fazendo um casal romântico. Mas ele não quis esse lugar, ao invés dos privilégios, escolheu a consciência negra (Gloria Rolando).
Nesse período, entra em contato com a história e a cultura negra, inicia sua aproximação com o Continente Africano, momento em que adota seu nome artístico. Zózimo, porque seus amigos mais próximos já o chamavam assim; e Bulbul, por ser uma palavra de origem africana. No início dos anos 1960, Bulbul desponta sua carreira de ator no cinema, paralelamente a suas atividades no teatro ele é convidado para atuar em filmes como “Ganga Zumba” de Cacá Diegues (1963) e Terra em Transe” de Glauber Rocha (1967). Sobre Zózimo, o cineasta Joel Zito Araújo escreve:
Zózimo foi pioneiro no cinema assim como Abdias Nascimento foi no teatro. Ambos foram contestadores e visionários para sua época. É possível ver uma continuidade entre a obra cinematográfica e a ação artística e militante de Zózimo Bulbul com a herança deixada pelo também falecido senador Abdias do Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos de 1940. Foram metas comuns aos dois denunciar o falso mito da democracia racial, combater a discriminação contra o negro e promover sua autoestima. É o que podemos ver tanto na obra dramatúrgica e plástica de Abdias Nascimento quanto nos filmes de Zózimo Bulbul. Destacamos os seus clássicos: Alma no Olho, um curta experimental e vanguardista sobre a identidade do negro, realizado em 1974, e depois o histórico documentário Abolição, de 1988, que refletiu sobre os 100 anos de abolição e registrou para a posteridade as imagens e o pensamento dos mais importantes personagens do movimento negro brasileiro na segunda metade dos anos de 1980 (ARAUJO, 2016).
Segundo Carvalho (2005), junto com Waldir Onofre e Antônio Pitanga, Zózimo Bulbul compõe o quadro de cineastas negros do Cinema Novo. Entretanto, por mais que esse movimento cinematográfico tratasse o negro como temática central, a grande maioria dos filmes foi roteirizada, dirigida e produzida por pessoas brancas. E mesmo os filmes que deram mais espaço para trabalhos de atores negros como Milton Gonçalves e Antônio Pitanga, destinaram-lhes, em sua maioria, papéis folclorizados e/ou romantizados. Atento ao preconceito e aos estereótipos Zózimo, recusou inúmeros trabalhos, entre eles “o papel principal de Quilombo por considerá-lo folclórico demais”. Essa visão crítica permeou toda sua trajetória de ator e diretor, ao longo da qual repudiou todas as formas de servidão a que as pessoas negras são submetidas, principalmente no inconsciente, dizia ele. Sobre o assunto Carvalho escreveu:
Os filmes de Bulbul podem ser vistos na linha de luta dos negros por visibilidade. Nesse período eles fazem parte das reflexões feitas por ativistas e artistas negros do Teatro Experimental (TEN), por exemplo, que desde os anos 1950 vinham construindo uma dramaturgia e uma visão sobre as artes e o papel do negro na história brasileira. Seus poucos filmes são fundamentais em demarcar um olhar cinematográfico identificado com as posições do movimento negro”. (CARVALHO, 2012, p 20)
No final da década de 1960, Zózimo inicia sua vida de cineasta, como coprodutor dos filmes “República da traição” (1969), do fotógrafo e diretor Carlos Alberto Ebert, e “Compasso de Espera” (1973) do diretor Antunes Filho. Nesse período, a TV Globo, convida Zózimo para compor o elenco da novela a Cabana de Pai Tomás, protagonizada por um ator branco pintado e estereotipado de preto. No entanto, apesar da tentadora oferta salarial, recusa o papel. A atitude de Zózimo pereniza sua consciência e percepção em relação ao blackface usado costumeiramente na produção audiovisual da época.
Ele fez história. Rompeu paradigmas em uma época em que a figura do negro na TV e no cinema era ainda mais estereotipada. Com a força de um guerreiro, usou a sétima arte como ferramenta de luta social e abriu caminho para que as futuras gerações de realizadores negros pudessem trilhar a estrada aberta por ele e discutir, de forma real, as problemáticas raciais e a experiência dos negros no Brasil (Zulu Araújo, 2016).
A célebre frase do cineasta estadunidense Spike Lee “Estamos por nossa própria conta” demarca o princípio do curta-metragem “Alma no Olho”. Zózimo se lança como diretor e produz o filme com sobras de negativos do longa “Compasso de Espera”. O filme foi um divisor de águas na carreira de Zózimo. Como roteirista, produtor e diretor, ele reúne um conjunto de habilidades da cinematografia para construir um filme que representa a luta dos ancestrais africanos sequestrados para o Brasil, e toda a cultura, costumes e tradições que traziam. Um filme que consiste na consciência de que a escravização permanece na contemporaneidade, pelo contumaz desrespeito aos direitos da pessoa negra.
É incrível a sagacidade de Zózimo, fazer um trabalho com nesse nível de crítica em plena época da ditadura militar no Brasil. Caramba, ele fez um filme com restos de uma outra película, tratando a questão do negro desde a saída do negro no continente Africano, até os dias atuais, ele fala da nossa história, ele fala sobre nós (Gloria Rolando).
De volta do exílio, Zózimo atuou no cinema e no teatro e passa a investir ainda mais na sua carreira como cineasta; dirige “Dia de Alforria” (1981), sobre a vida do sambista Aniceto do Império, fundador da escola de samba Império Serrano, e em 1988, lança o longa-metragem “Abolição”, filme premiado internacionalmente, e pouco reconhecido no Brasil, o documentário apresenta aspectos da vida social, histórica e cultural, reunindo depoimentos de pessoas negras ilustres, como da deputada federal Benedita da Silva, do ator Grande Otelo, do senador e dramaturgo Abdias do Nascimento, do cantor Agnaldo Timóteo, entre outros.
Em 1997, foi convidado para participar do Festival Pan-Africano de Cinema Ouagadougou (FESPACO), em Burkina Faso, e é lá, que ele se reconecta a sua ancestralidade e se encanta com a participação do povo no festival. Diferentemente do que ocorre em outros festivais de cinema, onde só a elite participa. Segundo Maíra Zenun Oliveira (2016), o FESPACO é o espaço onde o cinema africano e afrodiaspórico resplandece:
o cinema, reverbera no FESPACO – evento-ritual voltado exclusivamente para a produção interna e afrodiaspórica. Demonstrando, afinal, o papel do cinema na luta africana por autorrepresentação. Fato é que, desde a sua inauguração, o FESPACO proclama ser um festival pan-africanista de cinema, na função de servir de palco para as diferentes filmografias produzidas no continente, cada qual sendo tratada como uma economia política endógena distinta. Mesmo que estejam todas elas reunidas sob o signo aglutinador de um cinema continental, negro, africano (OLIVEIRA, 2016).
Em 2007, após voltar de um encontro de cinema na França, Zózimo põe em prática a ideia de criar um espaço para exibir filmes de pretos e pretas do Brasil e da África, e daí surgiu o Centro Afro-Carioca de Cinema (CACC), no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro. No mesmo local, em 2007, cria o I Encontro de Cinema Brasil África5 com objetivo de recuperar a memória da presença do negro e suas temáticas no cinema negro nacional e internacional.(CACC, 2020).
Sua genialidade, produção artística e atuação política dentro e fora do audiovisual fazem do diretor Zózimo Bulbul e ator “o inventor do cinema negro brasileiro6”. Não por acaso, ele é justamente consagrado como o Pai do Cinema Negro Brasileiro.
Alma no Olho - instrumento de memória do cinema negro brasileiro
Quando pensamos no papel da memória no contexto do curta-metragem “Alma no Olho”, destacamos o grande empenho do diretor Zózimo Bulbul para que o cinema negro fosse reconhecido como fonte legítima do cinema brasileiro. Preocupado em preservar a memória do negro no cinema, Zózimo foi responsável por coletar grande parte de um patrimônio do cinema brasileiro ameaçado de cair no esquecimento, organizando a coletânea “Obras Raras – o cinema negro na década de 70”, bem como, pela criação do Centro Afro Carioca de Cinema com objetivo de promover e valorizar a produção cinematográfica brasileira, africana e caribenha como um ato social de transmissão de sabedoria, formação técnica e artística, profissionalização e inclusão no mercado de trabalho (CAAC, 2020).
O minucioso trabalho de pesquisa de Noel Santos Carvalho (2005) “Cinema e representação racial: o cinema negro de Zózimo Bulbul”, bem como, a exposição e catálogo: “Zózimo Bulbul – Uma Alma Carioca” constitui-se em preciosos acervos da história e da memória do artista. Tendo esses dois trabalhos como base, nos apropriamos do conceito de memória trazida pelo sociólogo Thomas Luckmann: “Memória é a faculdade que nos capacita a formar uma consciência da identidade, tanto no nível pessoal, como no coletivo” (LUCKMANN, 1983). Desse modo, é a consciência do lugar representado pelo negro no cinema que vai permitir que Zózimo confronte em seu trabalho uma memória de identidade, uma memória coletiva da população negra, que de modo geral, correspondem às reivindicações históricas e à efetivação de nossas representações nos meios de comunicação.
Ao construir um cinema como instrumento de combate aos estereótipos, Zózimo Bulbul compartilha um conjunto de valores e transmite a possibilidade de identidade cultural, pois como afirma Robert Stam, “os estereótipos possuem a clara função de controle social; indiretamente, eles racionalizam e justificam as vantagens dos detentores do poder social” (STAM, 2008, p. 456). Sua consciência política foi o traço determinante de sua trajetória de vida:
Ao participar ativamente de organizações que lutavam pelas questões dos negros, Zózimo entendia que a sua principal causa política tinha uma ampliação quando produzia filmes. Dessa forma, para ele, o cinema só teria sentido pela via política da denúncia contra o racismo. Porém, o mais interessante nesse processo de criação é que o desenvolvimento dessa perspectiva se dava de modo em que se relacionavam passado e presente, possibilidades de liberdade e memória da opressão. Tais questões em sua cinematografia não se dão, portanto, nas polaridades (Rosa e Fresquet, 2017).
Zózimo edificou o cinema negro brasileiro como um cinema de identidade, pertencimento e memória, entendendo que esses três elementos são constructo das memórias sociais afrodiaspóricas com destaque para as práticas cotidianas, coletivas, históricas e orais da comunidade negra.
Vendo o filme vou percebendo o quanto a comunidade negra não está presente no meio da mídia. É um filme impactante e um filme que chama as pessoas para debater sobre o meio negro, e deixa em destaque o final, quando quebra a corrente de que o espaço tem que ser ocupado, o filme traz a reflexão da busca do negro. A parte cênica do filme construída unicamente por meio do corpo negro (Clint Eastwood).
Recorremos a Assmann (2008), quando ele descreve que o termo “memória não é uma metáfora, mas uma metonímia baseada no contato material entre uma mente que lembra e um objeto que faz lembrar” (ASSMANN. 2008 p. 119), confirmando a memória como fonte legítima do conhecimento histórico, tendo em vista que “para evocar o próprio passado, em geral, a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade” (HALBWACHS, 2006, p. 72).
O cinema de Zózimo apresenta uma nova epistemologia que, ao colocar o negro em todas as suas potencialidades de visibilidade pela lente da câmera, ela já conduz para conhecimentos questionados pelas teorias entre currículo e interculturalidade. Acreditamos que, por parte de Zózimo, o resgate da ancestralidade por meio das corporeidades na constituição das sociedades negras em sua cinematografia já nos direciona para novos conhecimentos. As corporeidades não são apenas a estrutura orgânica, mas são formas de resistências que as populações negras encontraram para perpetuar tanto sua memória quanto sua oralidade e sua religiosidade. (Rosa e Fresquet, 2017).
De modo geral as pessoas que colaboraram com esse artigo conectam imagens do filme a lembranças de suas próprias histórias, imagens, sentimentos e objetos. Neste sentido, mesmo com a consciência de que as coisas não possuem memórias elas são determinantes para reavivar lembranças. O que se conclui é que, em Alma no olho, “o corpo negro não é um corpo único, individual, mas sim um corpo participativo, humanitário” (...). Um corpo conectado com outras extensões da consciência que vai além do cérebro, pois “a consciência é uma operação que se realiza em toda parte do corpo. A consciência é corpórea” (Sodré, 2002, p. 21).
A consciência desse corpo coletivo orientou o fazer fílmico de Zózimo, de modo que “Alma no Olho” se estabelece como patrimônio inaugural do cinema negro brasileiro e apresenta aspectos fundantes de um cinema comprometido com a preservação da memória do povo negro. Um cinema que nos permite compreender a linguagem cinematográfica para além de planos, fotografias e sons. Neste contexto, podemos afirmar que o cinema de Zózimo se constitui como memória corpórea, em que gestos, ritmos, cores e formas estão conectados com os mundos interior/exterior, real/espiritual. Um cinema que se expressa como possibilidade concreta de organização social, um cinema que se diferencia e define o papel da população negra dentro da sociedade. Essa estrutura, presente no curta-metragem, ressignificou o fazer cinema no Brasil e se firma como um marco inaugural do cinema negro brasileiro.
Sobre o filme Zózimo declarou:
Peguei a sobra do negativo preto e branco, do filme Compasso de Espera, e usei para fazer o “Alma no Olho”. Para fazer o ‘Alma no olho’. Naquela época tinha um preto e branco especial. O filme colorido estava chegando ao Brasil, todo mundo fazia preto e branco e os diretores de fotografia tinham o domínio do preto e branco. E esse negativo era da Kodak, se chamava Plus X e 4 X, o filme saía do preto para o branco e não passava pelo cinza, e é o que se vê no ‘Compasso de Espera’. Tem muito pouco cinza, como no filme ‘Alma no olho’. O que é preto é preto! O que é branco é branco! É o Plus X, e esse filme de repente sumiu. Eu e o diretor de fotografia, eu e ele, só com uma câmera que um amigo meu me emprestou, o Norberto, no estúdio dele em Botafogo, num sábado à tarde, aí ficamos até meia noite, por aí, fazendo ‘Alma no olho’ (DE e VIANNA, 2014, s/p).
E Zózimo aduziu que “Quando eu vi montado, com aquela música, John Coltrane, prontinho, e que eu fiz sem ninguém me dizer nada, com um livrinho aqui de cinema, outro ali, já sabia montar (...) acabei meu último corte, fiquei tão contente, isso é meu, eu fiz sozinho” (DE e VIANNA, 2014, s/p).
A Linguagem cinematográfica do clássico Alma no Olho
Ao assistir o curta-metragem, tive a sensação de reconhecimento: me senti contemplada pela narrativa, eu, mulher negra, periférica, ciente de minha negritude, vi a história dos meus ancestrais sendo contada pelos olhos de um homem negro, também ciente de sua negritude e consciente do poder de transformação da linguagem cinematográfica. Naquele momento, imagens poderosas, carregadas de força cênica e representatividade tomaram meu ser, me colocaram em pé e me mostraram que era possível construir narrativas que tinham como objetivo recusar e romper um discurso pronto, racista, produzido pela hegemonia branca que nunca nos representou. (Campos, 2019)
A análise de Elaine Aparecida Rodrigues Campos parte da compreensão de que os efeitos e sentidos da linguagem cinematográfica de “Alma no Olho” se desenvolvem de forma poética e dramática. Poética, porque o diretor opta por uma comunicação singela e nobre com os espectadores, apresenta o legado da história e da cultura africana como sentimentos mais profundos de empoderamento e cosmovisão. A função poética do filme também se caracteriza pela emissão de mensagens elaboradas de forma inovadora. E dramática, pois além da representação cênica (linguagem gestual e sonoplastia), a “ação” do filme se constitui a partir de um acontecimento histórico e real representado de forma intensa e emocional.
O filme é composto por escolhas de planos e movimentos de câmera que permitem uma comunicação audiovisual, integrada por diferentes linguagens – sonora e visual. O cenário, construído com paredes brancas define os conflitos existenciais e desconexos da colonização. Desse modo, as primeiras imagens apresentadas são formadas por planos-detalhes que ocupam toda a tela, como representações de uma África mítica, composta de memórias e lembranças de uma cosmovisão determinante do contínuo civilizatório recriado na diáspora.
Nossa análise do filme parte da estrutura proposta por Noel de Carvalho (2005) e do diálogo com as pessoas que convidamos para assistir ao filme. Em sua maioria, essas pessoas trabalham com audiovisual. Cinco já haviam assistido ao filme mais de uma vez – Agnès Varda, Ava DuVernay, Barry Jenkins, Gloria Rolando e Safi Faye –, e para apenas uma, Clint Eastwood, o filme era inédito. Como já registramos acima, buscamos saber de que forma essas pessoas acessaram a linguagem fílmica do clássico e que lembranças o curta ativou em suas memórias: “O filme de Zózimo tem origem no movimento Black Power nos Estados Unidos, pensando a década de 1970 como referência, a luta negra ainda precisa de muitas vitórias” (Safi Faye).
Olhar pela influência americana da luta do movimento Black Power no filme, e o modelo como o diretor muda os gestos do momento dele em África e depois do momento dele no Ocidente, faz a gente pensar em superação dessa situação, por meio do corpo olhando de formas alegre e positiva (Barry Jenkins).
A primeira parte do filme, que Carvalho (2005) vai classificar como Bloco 1, é composta por dezesseis planos com imagens detalhes do corpo de um homem negro. Em vários planos, parte do rosto expõe os olhos, o nariz e a boca. Os movimentos dos olhos parecem buscar o que se quer olhar e enxergar, enquanto o sorriso demarca um estágio de satisfação e alegria. Aos poucos, lentamente, esse corpo determina mudança na narrativa. A câmera, que antes estava imóvel, passa a explorar outros espaços do corpo, mudando o ponto de vista.
Figura 1 – Frames do filme
Os próximos doze planos são compostos pelas nádegas, peitoral, orelhas, axilas, mãos, para dar a impressão de que a câmera abandona temporariamente a posição de espectadora e busca o melhor lugar para nos contar uma história. A câmera recorre a determinado ângulo, com o propósito de exibir detalhes de um corpo que transpira, “o corpo como fio condutor” (Nietzche, apud Sodré, 2002, p. 21). Quatro planos chamam atenção, três desses dos quais mostram o corpo transpirando: no primeiro plano, vê-se o tronco do protagonista, que é mostrado de perfil com os braços levantados, com as axilas escorrendo suor. “Toda a superfície da tela é tomada pela pele e o corpo deixa de ser o objeto para ser o próprio suporte da representação” (Carvalho, 2005. p. 219). Uma das diretoras que participou da exibição e da roda de conversa declarou:
Filme que marca muito na luta contra o racismo, e fica muito marcada pela imagem dos planos dos corpos de Zózimo, como se fosse uma mercadoria, e todo o olhar antropológico, e percebe uma transcrição tão bem feita durante todo o filme, de um corpo negro tão social, e por o filme ter sido feito de retalhos, e levar o trabalho da poética do corpo, eu achei impressionante como consegue fazer tantos detalhes em um filme com o fundo todo branco, com uma riqueza de elementos muito grande, e o filme de Zózimo também o leva para o minimalista. (Agnès Varda)
Figura 2 – Frames do filme
Na mesma linha, outro entrevistado afirma: “O corpo é o principal elemento desse filme, é preciso pensar como o corpo foi segmento de análises científicas, para subjugar o corpo negro” (Barry Jenkins).
Após essas cenas, aparece um plano frontal próximo ao rosto, tipo de plano que seguiu recorrente por todo o filme, demarcando a representação do corpo negro. O fundo branco realça a estratégia do corpo como suporte. O olhar sempre fixo para o espectador é destacado por dois elementos: o corpo negro como representação e o fundo branco que realça a estratégia de ressignificar o corpo negro. “Quer dizer, o corpo é um coletivo dirigente e não um monarca que governa sozinho, a exemplo da consciência” (Sodré, 2002, p. 21). O olhar que fixamente parte para observar o espectador.
Figura 3 – Frame do filme
No Bloco 2, o personagem parece imitar o ato de correr, momento em que pela primeira vez revela-se o corpo por completo. Planos são intercalados com partes do corpo negro, parecidos com o bloco 1, dando-se a entender passagens de tempo: primeiro, o corpo completamente nu; em seguida, intercalam-se três planos, um próximo ao rosto sorrindo com olhar fixo para a câmera, um rosto em perfil em harmonia com a imagem do personagem correndo, e a parte posterior da cabeça e parte do ombro. Aqui tomamos emprestado as palavras de Carrasco (2003), pois a descrição sobre planos fechados casa perfeitamente para observar “Alma no Olho”:
fechar o plano em um olhar, um sorriso, uma expressão, algo que jamais havia acontecido em qualquer forma dramática. A possibilidade de selecionar a imagem – do todo ao particular e deste ao mínimo detalhe –, somada à capacidade de combinação dessas imagens por meio da montagem, foi algo inédito, tornando-se o grande recurso da linguagem do cinema. (Carrasco, 2003, p. 72)
Em seguida vemos o protagonista com um adorno no pescoço. São metáforas para indicar a passagem de tempo entre um plano e outro. “Embora interpretados pelo mesmo ator, o personagem que corre na primeira imagem não é o mesmo da segunda, havendo entre eles um salto no tempo: o segundo está no futuro em relação ao primeiro». (Carvalho, 2005. p. 219). Aqui o diretor recorre à sétima arte como suporte para auxiliar a construção da narrativa, ou como diria a professora Dione Moura Oliveira:
O fato de o cinema reproduzir a complexidade da vida cotidiana e dos dilemas vivenciados pelas pessoas em diferentes esferas da vida em sociedade lhe confere a possibilidade de contribuir para a construção, reconstrução e sedimentação de conhecimentos, atitudes e valores. (Oliveira, 2007, p. 33).
O Bloco 3 aprofunda as temporalidades a partir da montagem. As imagens são resultado de um trabalho consciente de seleção e organização de enquadramentos no sentido de dirigir o olhar daqueles que assistem ao filme. Desse modo, por meio da montagem, o filme cria uma narrativa que possibilita uma continuidade do cenário. São oito planos do personagem com uma túnica “africana”.
Já assisti esse filme várias vezes, e acho ele extremamente incrível, pois toda vez que assistimos, olhamos e enxergamos um detalhe novo. Ele [o filme] possui momentos muito ricos, e percebi que a maior parte do tempo ele fala sobre o negro ainda em África” (Barry Jenkins).
O personagem que corre nu para de repente, dando a impressão de que percebe algum ruído e parece estar “encantado” pelo som que estabelece “o desenvolvimento temporal da história contada, da narrativa impõe, que se leve em consideração a passagem permanente do campo para fora de campo, portanto, sua comunicação imediata” (Aumont et. al., 1995, p. 25).
Na próxima imagem, o ator nu acaricia seu corpo, seguido por um rápido flash frontal, olhando para a câmera em primeiro plano. A imagem volta para o protagonista que segura uma fruta, cheira-a e em seguida a come. Essa etapa se organiza como outro recurso da narrativa, funciona como uma espécie de comentarista que mais uma vez, se dirige diretamente ao espectador.
Figura 4 – Frames do filme
As imagens seguintes intercalam cenas do personagem dançando vestindo uma capulana7 na cintura e um pente-garfo na cabeça. O pedaço de tecido colorido, assim como o pente-garfo, remete à ancestralidade e registra o empoderamento das realezas africanas. Objetos carregados de histórias e simbologias que marcam elementos das sociedades africanas, usados para indicar status, identidade, região geográfica, estado civil, classe social e tantos outros. A cena gera encanto e curiosidade. “Zózimo ressignificou todo o corpo negro” (Gloria Rolando). Os adornos na cabeça e no pescoço simbolizam o poder das realezas africanas que novamente encara a câmera.
Esse “paralelismo” construído pela montagem intercala plano geral e plano detalhe. Ao contrário da linguagem clássica do cinema, que procura “aprisionar” o sentido a partir da montagem (mecanismo para estabelecer continuidade de movimento, espaço, etc.), no caso do curta, a montagem acelerada e descontínua realiza uma articulação espaço-temporal cujo efeito é um constante deslizamento do sentido. Os enquadramentos, os ângulos de filmagem e os movimentos de câmera seguem outra organização.
Uma das hipóteses possíveis para análise fílmica é a de pensar que os primeiros planos estão fora do espaço-tempo demarcado também pela dança. Mais uma vez, é preciso observar o movimento do corpo como símbolo e função da organização da comunidade. A dança africana demarca momentos de convívio e comemorações coletivas com a comunidade.
Seu uso recorrente parece querer criar um canal de identificação e cumplicidade entre o espectador e a narrativa a partir de um ponto fora da narrativa. Recurso comum no teatro de Bertolt Brecht, ele funciona como uma espécie de comentarista que se dirige diretamente ao espectador, interpelando-o. (Carvalho, 2005. p. 221)
No final do bloco a dança é encerrada, e seis planos produzem um novo embaralhamento do sentido. O olhar dirigido para a câmera se identifica com o olhar do personagem dançando. Atônito, o olhar para fora do quadro anuncia os planos seguintes: o aprisionamento e a escravização. A dança está presente em muitos momentos do filme. Vai das saudações à ancestralidade, à tradução de sentimentos de sofrimentos e nostalgias. Dança-se pela vida e pela morte, pelas alegrias e pelas tristezas que essencialmente se traduzem em existência.
gosto bastante do filme, ele consegue apresentar uma tese do movimento negro em um filme, acho que o Zózimo mostra o conteúdo histórico mas também uma perspectiva sobre o que é a libertação para o negro, se é a música ocidental, o cinema… porém ele vai em linha de pensamento em direção à África, e o negro só irá ter a sua liberdade quando ele encontrar a sua ancestralidade, enquanto muitos negros ainda lutam pelo espaço de ter lugar na sociedade, um filme tão curto conseguiu levar toda essa história, mas toda vez que assistimos ainda nos leva a muitas reflexões. (Ava DuVernay)
O Bloco 4 inicia-se com um plano médio do personagem sentado e acorrentado com a cabeça entre os joelhos. A vestimenta, bem como a pantomima, é uma iconologia conhecida referente aos escravizados sequestrados para a América. O espaço, portanto, não é mais o continente africano. O aprisionamento, pode se referir ao transporte genocida dos navios negreiros. Na continuação do bloco, as cenas vão se alternando com o personagem acorrentado, encolhido e sem movimentos. A alegria, o riso e o prazer associados à liberdade contrastam agora com o sofrimento e a dor do aprisionamento. “Sempre olho para esse filme por um lado positivo, mas o corpo negro, a estrutura da sociedade continua racista, com a imagem do negro como criminoso. Se não mudarmos essa barreira, a luta do negro ainda continuará por muito tempo (Barry Jenkins). “É preciso entender que a ciência possui um viés racista, e em certa medida o filme denuncia isso também” (Agnès Varda).
O último plano desse bloco funciona como um emblema dessa nova condição. Trata-se de um plano médio como o personagem deitado e atado com uma corrente branca, com os joelhos encolhidos até́ o peito e as mãos sobre a cabeça dobrada. A posição fetal ressalta, de certa forma, as dores e os sofrimentos do colonialismo.
Figura 5 – Frames do filme
O Bloco 5 é composto por 25 planos. Os primeiros cinco planos demonstram a condição do negro como escravizado na América e a violência do mais perverso e cruel regime. Nas imagens, a representação do trabalho no garimpo e na agricultura mostra o trabalho escravo como essência de todo e qualquer valor produzido, ou seja, o Brasil é fruto dos corpos e do trabalho dos povos escravizados.
Na sequência, um plano mostra o personagem encostado comendo. E logo depois, o vemos dormindo e acordando. Olha para os dois lados e para a corrente nos pulsos e vê̂ que ainda está́ aprisionado. O sono poderia indicar a passagem da Monarquia para a República e da condição escrava para a de homem livre que, segundo o filme, nada mudou. A explicação está fundada nas imagens seguintes que mostram o ator interpretando profissões características do negro no pós-Abolição (Carvalho, 2005).
Figura 6 – Frames do Filme
Acho um filme de difícil compreensão, ele traz elementos novos cada vez que assisto ao filme, e sempre que termino de assistir, não consigo me sentir feliz, mas não pela forma que Zózimo fez o filme, mas pelo processo como a história do negro é contada, a diferença entre uma pessoa que não é branca passa na sociedade, e é uma forma dos pretos contarem as suas histórias. (Safi Faye).
Formado por quatorze planos que mostram, por meio da pantomima, profissões e condições sociais do negro no Brasil e em grande parte da diáspora. Assim temos, em ordem de apresentação, o sambista, o jogador de futebol, o lutador de boxe, o ladrão, o mendigo, o preso, o intelectual. A representação dos estereótipos caracteriza os negros “pós-abolição”. A metáfora da corrente branca prendendo o pulso em todos esses tipos indica a permanência da escravidão. Nos seis planos finais o autor se apresenta com vestimenta ainda branca. Apesar das correntes que continuam a prendê-lo, o personagem vai intercalando algumas cenas em que aparece vestido com roupa africana (como no bloco dois). E com esta vestimenta caminha em direção à câmera. Rompe as correntes, a mensagem é óbvia, a de que a liberdade do povo negro só irá acontecer com a tomada de consciência da negritude e de sua africanidade.
Figura 7 – Frames do filme
Conclusão
O conhecimento é como um jardim: se não for cultivado, não pode ser colhido.
Provérbio africano
Na construção deste trabalho, encontramos diversas matérias de jornais e revistas referendando o curta-metragem “Alma no Olho” como um clássico do cinema brasileiro. Desse modo, concluímos esse artigo com a certeza de que este é um dos caminhos que justificam o reconhecimento da paternidade, ainda em vida, de Zózimo Bulbul.
Além do legado de “Alma no Olho” que o torna o cânone do cinema negro brasileiro, Bulbul dirigiu: Renascimento Africano (2010), Referências (2006), Zona Carioca do Porto (2006), República Tiradentes (2005), Pequena África (2002), Samba no Trem (2001), Abolição (1988) e Aniceto Dia De Alforria (1981). Toda sua filmografia é marcada pela memória e pela consciência que cabe a nós negros e negras contarmos nossas próprias histórias.
Nessa linha, a cineasta Viviane Ferreira reafirma que cinema negro é aquele concebido e realizado por pessoas negras:
Não tenho nenhum desconforto em dizer que não cabe uma pessoa branca fazer cinema negro. É conflitante, porque estamos falando de uma experiência que nenhum corpo branco vai conseguir traduzir, porque não lhe pertence. Todo mundo sabe que um personagem que não é construído sem a sua devida complexidade não é um bom personagem.
Nessa mesma perspectiva, a diretora Camila de Moraes declara: “Sou cineasta negra e quero falar do racismo no audiovisual brasileiro”. As afirmações das duas cineastas ecoam nos diversos trabalhos realizados por diretores(as) negros(as) que arquitetam um cinema de pertencimento. A herança deixada por Zózimo se traduz em incontáveis produções que, de norte a sul do país, se consolidam em memórias e existências negras como ingredientes básicos do cinema negro brasileiro.
Ao criar os Encontros de Cinema Negro, Zózimo apostou na coletividade como fortalecimento de nossas ações, o desejo de juntar os realizadores negros e negras do continente africano e de todas as suas diásporas para exibir filmes e debater questões que passam desde a autoestima a visões políticas e sociais do fazer cinema negro no mundo, somados a outros movimentos que surgiram antes, como o Teatro Experimental do Negro (TEN), o Movimento Negro Unificado (MNU), o Movimento Dogma Feijoada, o Movimento do Recife, o Encontros de Cinema Negro, bem como o Centro Afro-Carioca de Cinema, que representam marcos inaugurais da história do Cinema Negro. Ações que, na contemporaneidade, consolidam-se na Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (APAN) e em incontáveis projetos e produções de realizadores e realizadoras negras.
No diálogo com Agnès Varda, Ava DuVernay, Barry Jenkins, Clint Eastwood, Gloria Rolando e Safi Faye pudemos ratificar a importância de Zózimo para o cinema brasileiro e de como seu legado ecoa nos trabalhos atuais de cineastas negros(as). Na memória das pessoas do grupo, muitos nomes e produções do cinema negro foram levantados como exemplos de identidade, afeto e ancestralidade. Entretanto, optamos por exibir unicamente as diretoras Sabrina Rosa, Carmem Luz, Mariana Campos, Glenda Nicácio, Camila de Moraes e Viviane Ferreira, por serem realizadoras que concluíram, a partir de 2010, os primeiros longas-metragens após o silenciamento do cinema negro no feminino que durou 26 anos desde que a precursora Adélia Sampaio realizou o longa-metragem “Amor Maldito”.
O reconhecimento da ancestralidade de Zózimo foi o ponto unificador do grupo no relato de sensações que variaram desde o incômodo pela opressão do racismo, ainda presente e ativa nos dias de hoje, até a constatação do êxito de políticas públicas que ensejaram o fortalecimento de um cinema que rompe a padronização eurocentrista e branca para consolidar um cinema de identidade, pertencimento e afeto: “Ser negro nos dias de hoje é uma resistência, assim como os quilombos e as comunidades de terreiro foram e ainda são resistências nesse país” (Ava DuVernay); “nós trabalhadores e trabalhadoras do audiovisual não existiríamos sem o trabalho de Zózimo Bulbul” (Barry Jenkins); “o trabalho de Zózimo é como um marco de combate ao racismo e aos estereótipos no cinema” (Safi Faye). Selecionamos essas afirmações para finalizar este artigo, pois na conversa com o grupo que conosco assistiu ao clássico “Alma no Olho” um ponto em comum de suas memórias, algumas vezes reiterado, foi afirmar que toda a vida de Zózimo Bulbul se funde com sua carreira. Na irreverência, na alegria de viver e produzir, sua contundente e reiterada denúncia dos estereótipos e do papel subalterno dos negros nas mídias, magnificamente expressa em “Alma no Olho”, faz desse curta-metragem um clássico inconteste do cinema brasileiro.
Pedimos licença para parafrasear o provérbio africano que dá passagem a essas considerações finais: o cinema negro é como um jardim amorosamente cultivado por Zózimo Bulbul, que arou a terra e plantou as sementes. Agora, cabe aos cineastas negros e negras cultivar e manter a terra úmida e fértil para que jamais nos faltem frutos.
Notas finais
1Estudante de graduação em geofísica pela Universidade de Brasília, fotógrafo e amante de cinema.
2Professora, documentarista, doutora em educação pela Universidade de Brasília (UnB, 2013), mestre em educação e contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB, 2005), graduada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES, 1994). Desde 2006 desenvolve pesquisas na área de cinema, com ênfase no Cinema Negro.
3John William Coltrane (23 de setembro de 1926 - 17 de julho de 1967), saxofonista e compositor de jazz, considerado o maior sax tenor do jazz e um dos mais importantes jazzistas e compositores deste gênero de todos os tempos. Sua influência no mundo da música ultrapassa os limites do jazz, indo desde o rock até a música erudita.
4O Nexo publica textos jornalísticos multidisciplinares sobre política, economia, acontecimentos internacionais, cultura, ciência e saúde, tecnologia, arte e outros temas, em perspectiva de contextualização.
5Atualmente o evento tem o nome de: “Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas”.
6Frase retirada do artigo acadêmico escrito por Noel dos Santos Carvalho: “O produtor e cineasta Zózimo Bulbul - o inventor do cinema negro brasileiro”.
7Capulana é o nome que se dá, em Moçambique, a pedaços de pano estampados, tradicionalmente usado pelas mulheres para cobrir e enfeitar o corpo e a cabeça. As capulanas também são usadas pelas mulheres para carregar crianças pequenas e objetos nas costas.
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