Westerns: Myth and propaganda

O Western: Mito e propaganda

Pedro Miguel Jorge Réquio

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal

Abstract

This work aims to analyze Western cinema and the potential it has as a vehicle for political discourses and historical conceptions. The political booklet present in Westerns is articulated with historical dynamics circumscribed to a specific chronological and geographic space, making this genre stylize historical phenomena and historical memory itself. The purpose of this study is not so much to characterize the political ideologies that inflate, or can inflate, the cinematographic works in question but the potentialities existing in the genre that make it able to transform itself into a platform of the most varied, and sometimes opposed, political-ideological ideas. The aim is therefore to identify Western (the era to which it reports, with all its historical and political implications) as the commonplace of essentially antagonistic discourses.

Keywords: Westerns, History, Historical memory, American History, Politics.

Introdução

O período histórico abordado por este ensaio é compreendido entre 1865 (o fim da Guerra Civil Americana) e a primeira fase da revolução mexicana (1910-1913). Em termos geográficos, os filmes analisados reportam para a fronteira do oeste americano e a parte norte do México, zona de Chihuahua. Os três tipos de Western eleitos (clássico, revisionista e spaghetti), bem como os filmes em si, caracterizam-se por seleccionar períodos, locais ou contextos que se revelem ideais para a transmissão de determinadas concepções político- ideológicas.

O primeiro capítulo do ensaio é dedicado ao tratamento da história da conquista do Oeste e aos estereótipos do Western clássico americano. Articulando estes elementos com a história americana e a apresentando o género enquanto elemento folclórico. O segundo e o terceiro capítulo são dedicados aos novos olhares sobre o velho Oeste encetados pelos realizadores, americanos e italianos, dos Westerns revisionistas. A ideologia contracultural plasmada nestes novos Westerns propõe uma reconceptualização dos estereótipos e dos eventos históricos presentes nos clássicos. O quarto e último capítulo procura contrapor os dois tipos de Western e identificar as suas semelhanças e diferenças. Este segmento visa igualmente analisar a utilização da memória histórica enquanto ferramenta ideológica.

Este género foi usado como uma forma de discurso que procurou servir ideias políticas concretas e remete para o conceito de uso público da história de Jürgen Habermas. Neste caso, não será da história em exacto, mas de uma mistificação desta. As inclusões, exclusões ou revisões de determinados episódios históricos subjazem assim aos pressupostos ideológicos presentes em cada tipo de Western.

O Western Clássico e as suas origens

As origens do Western

O intervalo cronológico onde se insere a maioria dos Westerns clássicos americanos compreende-se entre o final da Guerra Civil americana (1860-1865) e a última década do século XIX, quando a ligação entre o Este e o Oeste já estava estabelecida. A edificação das linhas do telégrafo e dos caminhos-de-ferro, a segmentação de todo o território Americano em Estados autónomos, a crescente distribuição populacional e a circunscrição dos povos indígenas em áreas reservadas sintomatizam a efectivação da “conquista do Oeste”.

As últimas décadas do século XIX foram cruciais para o desenvolvimento económico dos Estados Unidos e para dotar o país de uma mitologia própria. Durante a sangrenta Guerra Civil, que opôs os estados do Norte (unionistas) aos estados do Sul (confederados), e de onde os do Norte saíram vitoriosos, a expansão para o Oeste ficou estagnada. Após o fim do conflito, a marcha para o Oeste continua. A ampliação das fronteiras americanas é impulsionada por motivos tradicionais, tais como a procura de terras para cultivo e a prospecção de riquezas minerais. Para além das vontades individuais que moviam os pioneiros, existiram também incentivos institucionais. Em 1862, a administração de Abraham Lincoln, através do decreto Homstead Act, prometeu oferecer 65 hectares de terras do Oeste a quem estivesse disposto a instalar-se nelas. As movimentações populacionais, já de si intensas, foram aceleradas pela chegada dos caminhos-de-ferro. Durante este período estabeleceram-se inúmeros ranchos pelos territórios do Oeste, em particular no Texas e no Arizona, fazendo com que os senhores do gado estabelecessem um controlo autocrático sob os territórios e aniquilassem ou dominassem os criadores de gado mais humildes. Os ranchos de criação de gado “representavam os grandes interesses comerciais, com enormes investimentos de capitalistas europeus, em especial, britânicos” (Jenkins, 2012:151–153).

Este período histórico foi aproveitado como fonte de inspiração para as temáticas representadas nos Westerns.

Tomando os conflitos de fronteira, e as sucessivas disputas com os povos autóctones como pontos de partida, o Western clássico americano procede a uma estilização destes eventos históricos com o propósito de criar um passado mistificado, um folclore nacional que se apresenta no grande ecrã e se impõem como uma forma de entretenimento de massas.

Antes do sucesso nacional e internacional do género cinematográfico Western, a representação da conquista do Oeste já havia sido difundida através de outros meios artísticos, como a pintura e a literatura. De facto, ainda no final do século XIX surgiram publicações periódicas onde constavam inúmeras ilustrações de eventos passados na fronteira. A revista Harper’s Monthly por exemplo, publicou as ilustrações de Frederick Remington. Remington representava nas suas telas episódios alusivos às aventuras de fronteira. Tais como confrontos no deserto, garimpeiros em busca de ouro, conflitos com os índios, protagonistas em situações de risco e vaqueiros em rodeos. De ter em conta que a revista Harper’s Montly era dedicada a um público urbano e procedia a uma espectacularização da vida no oeste americano. No campo literário importa mencionar The Virgininan de Owen Wister que apresentará todas as codificações do género que se encontrarão em futuros romances e, de igual modo, no cinema: um herói rude e cavaleiresco, uma jovem mulher do Este apaixonada pelo protagonista, o Sheriff e os bandidos de cavalos e gado e, por fim, o desfecho da trama resolvido através de um duelo (showdown). Graças a Wister, e ao sucesso de The Virginian, o Western transformou-se num género avidamente consumido pelo público da época (Jacquin, 2002: 217- 220).

Stagecoach

Stagecoach (1939) é um filme paradigmático do Western clássico na medida em que apresenta todos os elementos já presentes nas histórias do género até à data. Funcionando como antologia dos motivos presentes nos filmes anteriores: estereotipação do herói, dos vilões e das personagens secundárias, romance entre o herói e uma mulher, apresentação dos povos indígenas como um mero obstáculo natural à jornada dos heróis e a apresentação da cidade da fronteira como o local onde se resolvem os conflitos e onde a vontade individual do herói, inerentemente benéfica, logra contra todas as adversidades. Pictoricamente o filme é também demonstrativo dos cenários e símbolos comuns do género: cactos, paisagens desérticas, casas solitárias no meio da planície, o saloon, cavalos e carruagens, a cavalaria, índios, uivos de coiotes, sinais de fumo e armas de fogo. Em simultâneo, Stagecoach destaca-se dos restantes Westerns produzidos até à data por ser uma grande produção (um filme de série A), filmada em cenários exteriores (Monument Valley no Arizona) e que, ao invés de se focar somente em peripécias, dedica boa parte do seu tempo a explorar as personagens as suas dinâmicas sociais. Stagecoach introduz no género características melodramáticas sérias, representado um convenção a ser seguida futuramente no Western (Martynuska, 2009:3).

O personagem principal do filme Ringo Kid, interpretado por John Wayne, possui todos os elementos característicos do herói clássico do Oeste. É solitário, é dotado de uma considerável destreza física, maneja armas de fogo habilmente e, apesar de no inicio do filme não ser explícito, é uma pessoa movida por propósitos nobres e altruístas. O Western clássico apresenta um mundo em que o herói caucasiano se apresenta capaz de se ajustar a qualquer situação e de superar as adversidades impostas pelos vilões. O protagonista enfrenta todas as formas de oposição e conflito enquanto se move entre a civilização e os territórios selvagens. De facto, a dialéctica estabelecida entre a civilização e o “selvagem” traduz a principal dinâmica do Western. O herói é alguém que se consegue mover confortavelmente entre estes dois mundos, ao contrário de todos os outros personagens que só podem pertencer, inelutavelmente, a um deles. Ringo Kid, de John Wayne, encontra-se assim dotado das características padrão do herói clássico do Oeste ao ter um “balanço entre civilidade e selvajaria” (Cook, 2012). Ou seja, é temerário e fisicamente capaz de derrotar os vilões e, ao mesmo tempo, de aceitar as regras sociais e contribuir para a manutenção da civilização.

Ringo Kid é movido por propósitos individuais. O de vingar a morte do seu pai e irmão. É este elemento introduzido por Ford que renova a identidade do personagem principal do Western. Se até então o protagonista da aventura de fronteira era somente mobilizado por propósitos altruístas ou legais, Ringo Kid age, sobretudo, por motivos individuais de vingança. A temática revanchista viria a tornar-se, após Stagecoach, num dos principais traços identitários do herói do género.

Stagecoach é igualmente ilustrativo da representação fortemente estereotipada dos nativos americanos que foi veiculada pelo cinema clássico de Hollywood. A tribo Apache, em Stagecoach, é retratada a fazer apenas duas coisas, a dedicar-se aos seus rituais pré- combate: colocação das pinturas de guerra e dos chapéus de penas, comunicação através de sinais de fumo, dança guerreira a volta do Totem, ou, invariavelmente, a atacar os colonos ou tripulantes da diligência que dá nome ao filme. Os Apaches revelam-se então como mais uma das adversidades com que os personagens do filme se têm de deparar e eventualmente superar. De notar que o retrato dos nativos como personagens intrinsecamente malévolas e opostas ao progresso haveria de ter continuidade em boa parte dos Westerns subsequentes que John Ford fez com John Wayne.

Tanto o conjunto de estereótipos presentes no Western clássico como no Manifest Destiny1 dá corpo à ideia de que “é uma prerrogativa humana que os representantes do Deus cristão controlem todo o mundo não-branco, pois “nós” somos mais humanos do que “eles”. Estas noções reflectiram-se também nas relações de propriedade porque a “Doutrina da Descoberta dava a qualquer europeu, ou descendente de europeus, o direito a deter terras”. De acordo com Jacquelyn Kilpatrick, a propriedade é uma das “noções fundamentais sobre a qual a ideia de liberdade Americana se alicerça” e é por isso que o colono é sempre visto como um “proprietário natural da terra” e os indígenas como obstáculos ao processo civilizador apregoado pela predestinação do Manifest Destiny (Cook, 2012:14–15; Greenwald, 2006).

Após o sucesso de Stagecoach, o género, foi aceite unanimemente pelos estúdios de Hollywood e por realizadores consagrados como um tipo de cinema no qual seria útil e lucrativo apostar (Cousins, 2005: 173). Entre 1945 e 1960, estes filmes dominaram o cinema americano.

30% da produção dos grandes estúdios pertencia a este género e cerca de 50 filmes eram lançados anualmente (Foley, 2013: 1). È neste contexto, que é produzida a Trilogia da Cavalaria2 e também um outro filme de John Ford. My Darling Clementine, de 1946.

My Darling Clementine

Mais do que Stagecoach, My Darling Clementine procurou criar uma visão mítica da construção da civilização no Wild West.

Em My Darling Clementine encontra-se mais uma vez o pressuposto de que o individualismo funciona como catalisador da manutenção da ordem social. Ao seguir o seu instinto de vingança, Wyatt Earp, está também a prestar um serviço à comunidade e à cidade de Tombstone, pois torna-se Sheriff e aniquila a criminosa família dos Clanton. Os vilões do Western clássico, quando não são índios nem mexicanos, apresentam-se como um versão nefasta, ou até mesmo como uma extensão malévola, do próprio herói. Ambos são compostos pela mesma fibra. O vilão, no entanto, age como uma força disruptiva, que viola todas as regras com o propósito da gratificação pessoal. A violência quando praticada pelo vilão, é utilizada sempre como uma forma de auto-afirmação. Quando o herói demonstra agressividade, fá-lo incondicionalmente em auto- defesa ou com propósitos nobres ou altruístas (Cook, 2012: 17). Tanto o vilão como o herói detêm o monopólio da violência. O papel de cada um define-se através da forma como exibem a sua força.

Este filme de John Ford procede a uma adulteração da realidade, pois os motivos que levaram ao tiroteio no OK Corral não estiveram relacionados com querelas pessoais. Este incidente, foi na verdade, provocado por uma luta entre os empresários do Partido Republicano de Tombstone que contrataram os serviços do irmãos Earp, e os criadores de gado ligados ao Partido Democrata ,os Clanton. No filme, Doc Holliday morre durante o tiroteio. Na vida real só viria a morrer seis anos depois (Jacquin, 2002: 219; Jenkins, 2012:153).

Na verdade, My Darling Clementine, toma como ponto de partida um dos mais famosos tiroteios do Wild West com o propósito de criar uma fábula sobre a construção de uma cidade na fronteira e da própria nação americana. É a moralidade americana, materializada nos valores burgueses, no sentido de justiça, e na cartilha do Manifest Destiny que dá ânimo à visão pastorícia do filme.

A cidade Tombstone reflecte o binómio entre civilização e natureza selvagem que caracteriza o Western. Os eventos passados na cidade são contrastados com ocorrências nas áridas paisagens do Monument Valley, por sinal as mais intensas. De igual modo, a herança americana dos valores religiosos e culturais europeus não são alheios ao olho clínico de John Ford. Wyatt Earp descobre que foram os Clanton a matar o seu irmão, pois soube que o terço que pertencia a James foi mais tarde oferecido por um dos Clanton à prostituta que namora com o seu amigo Doc Holliday. A Igreja em construção de Tombstone é frequentemente enquadrada nas filmagens e é concluída no final do filme. Em My Darling Clementine surge também uma companhia de teatro que representa Hamlet de William Shakespeare. Quando um dos actores é ridicularizado por um membro do bando Clanton, Wyatt e Doc Holliday intervêm para que a peça possa ter continuidade, não só pondo termo ao assédio como revelando conhecer Hamlet, ao acompanharem as deixas do actor.

O Western Revisionista

Do Western Clássico ao Western Revisionista Americano

Com a chegada da década de 1960, os Westerns clássicos começaram a perder a sua popularidade. Se em 1950 representavam um terço da produção cinematográfica americana, em 1960 constituíam apenas nove por cento, baixando de 150 filmes anuais para apenas 15. O tradicionalismo e os excessos patrióticos espelhados pelo género não encontraram grande interesse por parte das audiências da década de 1960 (Cousins, 2005: 287). Para sobreviver teve de se reinventar e adaptar à América, e ao mundo. Com a popularidade que lograra, o género transformou-se ao longo dos tempos num amplificador dos discursos, sentimentos e comportamentos da nação americana. Alguns académicos interpretaram-no como sendo demonstrativo das inspirações políticas que caracterizavam a época e o contexto em que foram criados. Ou seja, o Western foca uma visão memorialista do passado americano enquanto se encontra profundamente ancorado no presente (Foley, 2013:1–2).

O Western, nos primeiros anos do cinema, começou por ser um simples prolongamento dos mitos propagados pela tradição oral, visual e dos romances de folhetim (dime novels). E por isso constituía um género expurgado de implicações políticas maduras. Com a chegada de John Ford, e em particular após a Segunda-Guerra Mundial, estes filmes converteram-se numa visão mítica da vida quotidiana e dos eventos sucedidos no contexto da fronteira americana durante a segunda metade do século XIX. O resgate, e subsequente tratamento de personagens históricas e de temas que reportam para a vida na fronteira, surgem com o propósito de guarnecer o jovem Estado Americano de uma mitologia própria, como forma de compor a identidade nacional. De acordo com Benedict Anderson e Eric Hobsbawm as visões lendárias do passado representam um dos mais importantes elementos constitutivos das identidades nacionais (Anderson, 2017; Hobsbawmn, 2004).

Além do mais, os Westerns do pós-Segunda Guerra surgem como afirmação dos Estados Unidos enquanto potência mundial e líder do “mundo livre”, no contexto da Guerra Fria. A visão fabulosa do passado americano procura servir de sustentáculo ao optismo e ao patriotismo exacerbado das décadas de 1940 e 1950.

A partir de meados da década de 1950 o Movimento dos Direitos Civis reivindicava os direitos dos grupos étnicos subalternos (em particular dos afro-descendentes) e, durante a década de 1960, o envio regular de tropas para o Vietname despoletou uma onda de protestos por todo o país, cavando um fosso na sociedade americana (Jenkins, 2012: 210). O descontentamento das novas gerações com as políticas externas e internas do governo dos Estados Unidos dissipou o optismo e conformismo do período do pós-guerra e substitui-os por uma contestação do establishment e por um inconformismo latente. O Western não ficou indiferente a estas transformações. Dentro dos Westerns revisionistas, as temáticas mais recorrentes são as seguintes: A denúncia da segregação racial dos nativos e recuperação da figura indígena – Hombre (1967) de Martin Ritt, Little Big Man (1970) de Arthur Penn e The Outlaw Josey Wales (1976) de Clint Eastwood; A difusão de um espírito anti-autoridade que apresenta os bandidos enquanto figuras cativantes – Butch Cassidy and The Sundance Kid (1969) de George Roy Hill, The Wild Bunch (1969) e Patt Garret and Billy The Kid (1973), ambos de Sam Peckinpah; Analogias ao conflito no Vietname e denúncia da guerra e do militarismo – Little Big Man (1970) de Arthur Penn, Bad Company (1972) de Robert Benton e Ulzana’s Ride (1972) de Robert Aldrich.

Little Big Man

Um dos filmes mais representativos do Western revisionista é Little Big Man (1970) de Arthur Penn.

Little Big Man exibe elementos simultaneamente cómicos e trágicos, utilizando-os como forma de expor e denunciar as mistificações e encobrimentos propagados pela memória americana oficial e pelos Westerns clássicos. De facto, o filme pode ser percepcionado como um produto da contracultura das décadas de 1960 e 1970. Lançado durante o auge da Guerra do Vietname, quando o país declinava do optimismo da era Eisenhower para o cinismo da época Nixon. Little Big Man funciona como uma acusação da intervenção militar dos Estados Unidos da América na Indochina. Os cowboys e militares que matam os índios simbolizam os conflitos entre os soldados americanos e os Viet Cong. Penn, utiliza o Western como uma arena de protesto contra o expansionismo militar americano dos séculos XIX e XX (Martynuska, 2009: 63).

Os nativos americanos do filme já não são as criaturas selvagens e sanguinárias do passado mas sim seres que exibem um comportamento nobre, pacífico e civilizado. Estando sujeitos a um extermínio sistémico da parte dos representantes do governo dos Estados Unidos. O general George Armstrong Custer, que fora bajulado em Westerns clássicos, como They Died With Their Boots On (1941) de Raoul Walsh, é agora um racista louco e sádico.

Little Big Man representa uma inversão dos motivos e arquétipos presentes nos filmes clássicos de Hollywood.

Os paralelismos com as políticas Americanas no Vietname são expostos de uma forma quase explícita. A analogia mais patente encontra-se na dramatização do combate/massacre3 de Washita River onde a cavalaria de Custer trucida uma aldeia índia inteira, incluindo as mulheres e as crianças. A crueldade desta cena evoca a fase mais intensa da Guerra do Vietname – em particular o massacre de My Lai4. Comparando a chacina dos índios com o conflito no Vietname, o filme procura desmontar os mitos da memória histórica americana oficial e denunciar o imperialismo e o militarismo americanos contemporâneos. Arthur Penn foca-se na alienação social e psicológica dos grupos indígenas, os “outros”, caracterizando-os sempre de forma essencialmente positiva. A violência a que recorrem é motivada apenas pela vontade de resistir aos ataques das forças que representam o Estado americano. Os massacres injustificados de povoações, a crueldade e imoralidade dos soldados brancos, o desespero dos índios são os temas centrais do filme. Os caucasianos são também apontados como sendo obcecados com a sua versão de civilização e tentam impô-la de forma violenta, nem que para isso tenham de destruir por completo a cultura dos nativos. Little Big Man deita por terra os mitos do velho Oeste e retrata os Estados Unidos da América como um país que atravessa uma crise de valores.

Se Westerns revisionistas como Little Big Man e McCabe and Mrs. Miller rebatem alguns dos mitos do Oeste outros recuperam essas lendas mas introduzem-lhe pressupostos e perspectivas renovadas.

Sam Peckinpah

Enquanto os filmes de John Ford apresentavam histórias de aventuras de fronteira ou sobre a edificação da nação americana nos finais do século XIX, os filmes de Sam Peckinpah aludem ao encerramento desse ciclo histórico e consubstanciam-se na década final do século XIX ou nos primórdios do século procedente. A construção da nação já está praticamente concluída, e, os pistoleiros que foram necessários para pacificar o território perderam a sua utilidade. O seu modo de vida revela-se anacrónico. Este período de transição é expresso pelo avanço tecnológico que traz consigo o automóvel e metralhadora, objectos que substituirão o revólver, a espingarda e o cavalo (Noh, 2003: 4).

Em The Wild Bunch (1969), a quadrilha que dá título à obra entra numa cidade já inteiramente construída, onde uma Liga Puritana se manifesta contra o consumo de bebidas alcoólicas. Esta cena, que dá principio, ao filme é justaposta por uma outra em que crianças atiram um escorpião para o meio de formigas carnívoras enquanto observam a quadrilha a entrar na cidade. A montagem figura o anacronismo do grupo de bandidos, que serão excluídos pela nova era. Em The Wild Bunch, Peckinpah revela o seu niilismo através das crianças, que são ao mesmo tempo cruéis e inocentes. As crianças queimam o escorpião e as formigas enquanto se riem. A sua crueldade não é produto da sua depravação, estando antes ligada à sua inocência. A violência é algo que não podem evitar, nem no passado nem no futuro (Bliss, 1993). Outro elemento pessimista é a ausência de personagens femininas importantes. Ao contrário de todos os outros Westerns, em que o herói tem sempre um interesse amoroso, os membros da quadrilha só se envolvem com prostitutas. De ter em conta que no Western clássico a mulher representa a sedentarização e a construção da civilização. A exclusão das figuras femininas do cenário, em conjunto com a violência excessiva do filme, sintomatizam o fim do período do Wild West e a transformação do próprio género.

The Wild Bunch principia com a quadrilha a entrar na cidade, disfarçada do exército, com o propósito de assaltar o banco de uma companhia ferroviária. O assalto é frustrado e termina num tiroteio entre o bando e os mercenários contratados pela companhia. O conflito dá-se numa rua da cidade, durante a marcha da Liga Puritana, e torna-se numa chacina. Após a fuga do grupo, o Mayor da cidade culpa Harrigan (representante da companhia) pelo massacre. Mas Harrigan, em vez de pedir desculpa pelo sucedido afirma: “We represent the law!” De seguida, a companhia contrata uma série de mercenários para perseguirem a quadrilha. As palavras de Harrigan indicam a relação entre a lei e o capital. A lei serve o capital ao invés da comunidade (Noh, 2003: 5). Como a fronteira e o território selvagem já tinham desaparecido o grupo de bandidos decide atravessar o Rio Grande e entrar no México, que então se encontrava em período revolucionário. Lá, o bando trava conhecimento com o general Mapache, representante do Governo Federal do México. Um dos membros da quadrilha é mexicano (Angel) e tem simpatias pela causa revolucionária de Pancho Villa. Apesar disto, Mapache consegue convence-los a assaltar um comboio de armas no Texas, prometendo-lhes uma grande maquia. Após o assalto, Angel desvia, com o consentimento dos seus colegas, um caixa de armas para dar aos apoiantes de Villa. Tomando conhecimento do sucedido, Mapache acaba por torturar Angel e degolá-lo à frente do resto dos seus companheiros. Desiludidos pelo fim da fronteira e por se considerarem ultrapassados pelos tempos, os bandidos decidem bater-se pelo companheiro caído e morrer num tiroteio catártico.

O nível de violência de The Wild Bunch tornou-o num dos filmes mais polémicos da época. Ao ser um dos primeiros a mostrar os ferimentos provocados pelas balas e a recorrer a filmagens de câmara lenta que mostram corpos a definhar no momento em que são atingidos. A guerra do Vietname atingia o seu auge durante a época e Peckinpah queria reflectir todo o seu horror e brutalidade. Brutalidade esta que não estava presente na violência domesticada dos noticiários televisivos (Bliss, 1993,77). A nível de alegoria política, Sam Peckinpah procurou espelhar o absurdo da intervenção militar americana. Após o tiroteio que opôs as forças de Mapache ao grupo de bandidos e deixou todas os intervenientes mortos ou gravemente feridos, os mercenários da Companhia pilham os cadáveres enquanto se riem. O lucro aparece como algo inútil e obsceno.

Em 1973, Peckinpah realiza um outro filme, parcialmente baseado em factos verídicos que revisita a lenda de Billy The Kid. Em Patt Garret and Billy The Kid o realizador narra a saga de dois antigos companheiros que se tornam inimigos. Outrora membro do bando liderado por Billy The Kid, Patt Garret torna-se um agente da autoridade, contratado por políticos e empresários, para perseguir o seu antigo colega. O Estado e o poder económico querem-no morto, pois as suas acções continuam a desestabilizar o território e a impedir a consolidação dos trusts agrários, ao cometerem roubos frequentes ou ao prestarem auxilio aos fazendeiros humildes. Chisum, um dos maiores agrários e homens de negócios da época é um dos contratantes de Patt Garret. Este filme volta a recuperar a temática do fim do velho oeste e a desdenhar as figuras da autoridade. Os bandidos são retratados de modo romântico enquanto o comportamento dos políticos e das forças da autoridade se norteia somente de acordo com interesses económicos. Antes de perseguir Billy, Patt tenta convence-lo a vender-se às autoridades, tal como fez, afirmando que os tempos mudaram. Billy responde: “Times maybe. But not me!”, acabando por fugir para o México onde virá a ser morto pelo ex-companheiro, à traição.

Sam Peckinpah fez alguns dos mais singulares Westerns. Que conseguem ser simultaneamente anti-establishment e reaccionários. Por um lado desprezam a articulação entre o Estado e seus aparelhos de repressão com o progresso económico e tecnológico, materializada na consolidação do capitalismo agrário e industrial. Por outro, ao idealizarem a figura do bandido da fronteira e a sua organização em grupo, servem como uma apologia ao banditismo.

Sam Peckinpah ditou a morte dos mitos do Western com os seus filmes, tanto a nível histórico quanto figurativo. Do outro lado do atlântico, em Itália mais concretamente, outros realizadores tomaram o género e submeteram-no a um processo de re-significação e re- simbolização, criando uma série de filmes sui generis, os Spaghetti Westerns.

O Spaghetti Western

Com a chegada da década de 1960 o género entrou em decadência. Todavia o realizador italiano Sergio Leone, deu-lhe nova vida na Europa. Alterou-lhe subtilmente o visual, por exemplo; o seu edifício típico passava a ser uma torre de igreja da missão hispânica em vez de uma casa de rancho. Foi uma das formas através das quais Leone adaptou o Western ao contexto europeu. A partir do enorme sucesso de bilheteira que foi Per un pugno di dollari (1964), nasceu o ciclo dos Spaghetti Western. Um novo género de filme do Oeste que circulou pelas salas de cinema europeias e mundiais (Cousins, 2005: 287).

O Spaghetti Western, aproveita o cenário legado pelo seu semelhante de Hollywood mas priva-o da bravura patriótica das lendas associadas à construção da nação americana. Substituindo este elemento por um cenário estritamente violento e amoral que se formaliza numa denúncia do capitalismo avançado. Noutras ocasiões podemos encontrar uma reabilitação das figuras subalternizadas pelos estereótipos raciais do cinema clássico americano. Nem todos os filmes italianos do género são assim, a maior parte reduziu-se a uma pantomina estéril e rotineira da fórmula criada por Sergio Leone na sua Trilogia dos Dólares (1964-1966), em que as histórias redundam em aventuras protagonizadas por caçadores de recompensas (Bounty Hunters). As principais temáticas abordadas pelo Spaghetti Western são: Aventuras de caçadores de recompensas ou mercenários – Trilogia dos Dólares de Sergio Leone e Django (1966) de Sergio Corbucci; Histórias sobre a subordinação e subsequente revolta de grupos étnicos inferiorizados pelo Estado e pela sociedade americana – Navajo Joe (1966) de Sergio Corbucci, La Resa Dei Conti (1966) de Sergio Sollima e Requiescant (1967) de Carlo Lizzani. E ainda os Zapata Westerns, que são ambientados na revolução mexicana de 1910 – Il Mercenario (1968) e Vamos a Matar, Compañeros (1970), ambos de Sergio Corbucci, Tepepa (1969) de Giulio Petroni, Quien Sabe? (1967) de Damiano Damiani e ainda Giu la Testa (1971) de Sergio Leone. Os filmes de Sergio Leone são talvez os mais expressivos desta categoria, pois, para além de terem sido os primeiros e de demonstrarem uma qualidade técnica superior, determinaram a fórmula que seria seguida por grande parte dos Spaghetti Westerns.

Sergio Leone e a Trilogia dos Dólares

Na Trilogia dos Dólares é retratado um Oeste oposto à paisagem mítica e aos personagens movidos por propósitos nobres dos filmes de John Ford. Os cenários são compostos por terras baldias e inóspitas ou cidades de fronteira estagnadas que não parecem evoluir para o estágio superior de avanço tecnológico e civilizacional. Os personagens são mercenários movidos pela ganância e pela gratificação pessoal e a linha que separa os heróis dos vilões é ténue. Considere-se o segundo episódio da saga, Per qualche dollaro in piu (1965), que relata a história de dois caçadores de recompensas, Monco (Clint Eastwood) e Douglas Mortimer (Lee Van Cleef), que se deslocam até El Paso com o propósito de capturar, ou matar, o bandido Indio (Gian Maria Volonte) e o seu bando.

O filme apresenta um mundo multicultural em que as fronteiras étnicas não estão demarcadas, ao contrário dos Westerns clássicos. O bando de Indio, após assaltar um banco em El Paso, Texas, refugia-se numa igreja católica do outro lado da fronteira. Local que funciona como inversão das igrejas protestantes dos filmes americanos. O multiculturalismo e o hibridismo cultural são igualmente revelados através do grupo de Indio, que é matizado por caucasianos e latinos. Monco, enverga um poncho em vez dos fatos de cowboy ostentados nas obras de Ford ou Anthony Mann. Estas alegorias, que metaforizam a heterogeneidade da sociedade americana, o chamado melting pot, apresentam-se como um contraponto às demarcações étnicas dos filmes clássicos americanos.

No filme de Sergio Leone, as povoações podem assumir duas formas – cidade caucasiana ou comunidade latina agrária. A cidade caucasiana consiste numa estação de comboios, hotel, Saloon e banco, enquanto a comunidade latina tem como único tipo de edifício casas brancas e terrenos agrícolas. A ausência da paisagem mítica de Ford evidencia o desligamento dos personagens principais à terra. Os caçadores de recompensas deambulam pelo Oeste em busca dos seus prémios. São predadores nómadas. Se no Western clássico existe uma demarcação entre os terrenos selvagens e a cidade civilizada, o Spaghetti Western derruba essa fronteira. Por todos os locais pulula a violência, a ferramenta que providencia o lucro. O velho Oeste é identificado como um cenário hobbsiano, em que todos estão contra todos. O eixo do conflito já não entre é o civilizado e o selvagem, mas entre civis, bounty hunters e criminosos. Os personagens não mostram qualquer gesto de empatia ou compreensão e são indiferentes, sádicos e calculistas. Sergio Leone desconstrói os mitos do Western e da criação dos Estados Unidos da América e procede a uma estilização própria da imagética do Wild West com o propósito de conceber um comentário ao processo violento de construção da nação americana e ao conflito cultural que lhe é adjacente.

Zapata Westerns

Se o militantismo de Leone se baseou na denúncia da ambição sem escrúpulos, outros realizadores italianos tentaram transcender o seu legado de crítica ao capitalismo, entroncando a denúncia do mesmo com parábolas apologéticas das revoluções terceiro- mundistas (Cox, 2012). O Spaghetti Western foi o pai de um outro sub-género de filme do Oeste, o Zapata Western.

Inspirando-se nos acontecimentos revolucionários do México no principio do século XX e de igual modo nas revoltas africanas e latino-americanas das décadas de 1950 e 1960, estas obras revestiram o género de um carácter explicitamente panfletário. É verdade que alguns filmes do género, feitos nos Estados Unidos, já haviam lidado com o tema da revolução mexicana. Viva Zapata! (1952) de Elia Kazan apresentava um biografia ficcionada do revolucionário mexicano, mas funcionava mais como um melodrama do que como um Western. Também The Wild Bunch de Sam Peckinpah, que surgiu pouco tempo depois dos primeiros Zapata Westerns, lidou colateralmente com esta revolução. No entanto, nenhum destes filmes assumia uma faceta politicamente comprometida e muito menos um alinhamento com tendências explicitamente esquerdistas.

Obras como Tepepa, Quien Sabe?, ou Vamos a matar Compañeros! parecem preferir assumir uma posição claramente progressista e pró-insurrecional do que seguir a linha pessimista e ambígua deixada por Leone. Estes filmes estavam intensamente engajados com as questões da utilização da violência enquanto forma legítima de combater a opressão estatal e económica. Repercutindo as discussões que animavam o movimento estudantil italiano da década de 1960 e também as futuras atitudes das Brigadas Vermelhas. O Zapata Western expressava a sua agenda política não só através das narrativas que exibia mas também a partir do seu estilo visual, que, de acordo com Fisher “força o espectador a identificar-se com a violência representada”. Tornando-a num recurso legítimo de combate à opressão (Fisher, 2011: 2). Ao mesmo tempo, estes filmes, procuram demonstrar um processo de paulatina consciencialização de classe por parte dos protagonistas. Tome-se o exemplo de Quien Sabe? de Damiano Damiani.

Chuncho é líder de um bando de traficantes de armas que trabalha para as tropas revolucionárias. No entanto, o seu interesse não consiste em ajudar a revolução a triunfar mas sim em amealhar dinheiro e bens. Um americano, Bill, de intenções dúbias aproxima-se do seu grupo e acaba mesmo por integrá-lo, a pedido de Chuncho, que simpatiza com ele. Chuncho vai mais tarde descobrir que o propósito de Bill era infiltrar-se no grupo para conseguir matar um general Villista. Através de uma série de peripécias Chuncho vai descobrir que a revolução social é mais importante do que o dinheiro.

Um outro Zapata Western, Vamos a Matar Compañeros! de Sergio Corbucci narra uma história em que os personagens também passam por uma politização gradual. Um bandido mexicano (Vasco, que usa uma boina basca) e um mercenário sueco (Yodlaf) atravessam a fronteira para os Estados Unidos com o propósito de resgatar da prisão de El Paso, Santos, um professor e líder revolucionário. O professor é o único que sabe o código para abrir um cofre onde supostamente se encontra “a maior riqueza do México”. Santos encontra-se preso, pois recusou-se a fazer uma concessão petrolífera ao governo Americano. Vasco e Yodlaf resgatam Santos da prisão e trazem-no de volta para o México. Ao abrirem o cofre deparam- se com um tesouro simbólico, uma espiga de milho e uma foice, que o professor Santos apresenta como sendo a verdadeira riqueza do México, o produto dos camponeses humildes. Ao inicio desiludidos, Vasco e Yodlaf vão depois converter-se à causa revolucionária.

Quien Sabe? e Vamos a Matar Compañeros! têm dois elementos comuns que são gerais a quase todos os filmes deste sub-género. Apresentam uma jornada proselitista que tem o poder de transformar os mais ávidos bandidos em revolucionários convictos e, ao mesmo tempo, tecer um libelo à política externa americana. Fazendo paralelo com as interferências do governo dos Estados Unidos nos assuntos internos dos países da América Latina. Simultaneamente, o Zapata Western, herda uma característica do seu congénere clássico americano. A legitimação da violência. Se no Western clássico a violência é justificada como um recurso necessário para a construção nacional, no Western revolucionário italiano ela é percepcionada como a única forma válida de resistência.

Os autores destes filmes instrumentalizaram a linguagem dos Westerns clássicos com o propósito de servir as suas próprias ideias. Se os cenários adversos e bravios dos primeiros filmes do Oeste personificavam a dureza da construção nacional, no seu semelhante revolucionário italiano, eles simbolizam a politização gradual do indivíduo e a urgência da revolução social. De igual modo, o individualismo é destronado pelos pressupostos colectivistas. Os conteúdos dos filmes do Oeste clássicos são esvaziados e substituídos por novos códigos e narrativas. Neste sentido, existe uma coincidência entre a raison d’etre dos Zapata Westerns e o conceito de hegemonia de Antonio Gramsci. De acordo com Gramsci, a ideologia do “grupo social fundamental” (burguesia) manifesta-se sobre a ideologia dos “grupos subordinados” (classe trabalhadora), numa combinação de coerção e consentimento que se efectua através do diálogo entre os interlocutores. Será portanto necessário a afirmação de uma cultura revolucionária para quebrar com a hegemonia do grupo social fundamental (Gramsci, 1974: 330). Os Zapata Westerns procuram definir-se como parte dessa afirmação cultural contra-hegemónica dentro do género.

Os Westerns: Narrativas, perspectivas e contradições

Desde a sua irrupção, o género esteve sujeito a uma série de transformações constantes. Começou nas aventuras de romances em folhetim e gravuras épicas de Frederick Remington, passando depois pelos filmes de série b da recém-criada indústria cinematográfica americana para vir finalmente a atingir o seu apogeu durante a Idade de Ouro de Hollywood. Afirmando-se como um dos mais significantes e populares géneros de Hollywood, o Western alcançou um lugar de destaque na cultura de massas e constituiu parte considerável das preferências cinematográficas mundiais, contribuindo para a difusão de um passado mítico e de concepções idealizadas sobre fenómenos históricos e grupos sociais particulares. As leituras e narrativas do passado histórico americano, propaladas por estes filmes, não foram elementos estáticos, e estiveram intimamente ligadas com a época em que cada uma destas obras foi produzida. O género caracteriza-se mais pela dialéctica estabelecida entre o passado e o presente do que por uma visão monolítica toldada por uma memória estacionada. De acordo com Enzo Traverso: “A memória conjuga-se sempre no presente, que determina as suas modalidades: a sucessão de acontecimentos que se devem guardar recordações (e de testemunhas a escutar), a sua interpretação, as suas lições. (Traverso, 2012: 18)” Ou seja, o contexto ingere directamente sobre os processos de memorialização, contribuindo para uma revisão e re-simbolização da construção do passado.

O Western clássico procedeu a uma mistificação e truncamento do passado com o propósito dotar os Estados Unidos da América de um corpo lendário próprio. Criando uma mitologia que efectua uma efabulação e aproveitamento dos factos históricos, fazendo-os subjazer ao ideário americano do Manifest Destiny, e, consequentemente, à legitimação do expansionismo. A ligação entre a cultura clássica europeia e a visão epopeica do apoderamento do Oeste servem como forma de atestar o direito da conquista e da superioridade civilizacional do Estado Americano. O Western serviu de igual modo como veículo de mobilização patriótica no contexto do pós Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria, ao edificar um passado mítico e heróico.

O legado deixado pelo filme do Oeste clássico foi retomado por novos autores que, reanimaram um género que se estava a tornar moribundo e reorganizaram os componentes e as perspectivas memorialistas que ele havia estabelecido. As transformações sociais, o descontentamento político e os movimentos contraculturais da década de 1960 foram responsáveis pela primeira grande modificação do Western. A visão idílica de um passado dominado pelo progresso e por uma sociedade que rumava para a harmonia foi estilhaçada.

Little Big Man constitui um exemplo útil de contestação à memória oficial estabelecida pela moral americana dominante e pelos filmes clássicos. A intervenção militar de Novembro de 1868 no acampamento Cheyenne, em Washita, foi anunciada como uma batalha pelos comunicados governamentais e pelos jornais regionais da época. No entanto, durante a comemoração do centésimo aniversário da efeméride, onde se encenou a ocorrência, um índio ficou chocado pelo facto de a versão Cheyenne dos acontecimentos não ser valorizada. Durante um século, através do testemunho oral, a comunidade nativa preservou a versão dos seus antepassados sobre o que tinha acontecido em Washita. A apresentação da intervenção militar como um massacre fez surgir um debate na opinião pública, e actualmente, os historiadores estão inclinados para que a visão dos Cheyenne esteja mais próxima do ocorrido. A comunidade nativa teve de esperar algumas décadas até a sua versão da história ser considerada, quando em 1998 foi erigido um monumento em homenagem às vítimas da operação militar (Hurt, 2010). O filme de Arthur Penn, porém, aceitou de imediato a versão Cheyenne e antecipou-se à consensualização do episódio como um massacre. Little Big Man, para além de estabelecer paralelos entre o ocorrido em Washita e a guerra do Vietname, funciona como elemento de resgate da memória histórica e de contestação à versão dominante dos factos. Aqui, o Western perde o seu emblema de mito patriótico e transforma-se numa ferramenta difusora das chamadas “memórias subterrâneas (Pollak, 1989)”.

Se Westerns revisionistas, como Little Big Man, se debruçaram sobre uma revisão e desconstrução das concepções e dos arquétipos rácicos do passado, outros perseveram a perspectiva nostálgica sobre as vivências na fronteira do Oeste, como é o caso dos filmes de Sam Peckinpah. As obras de Peckinpah, ao contrário das de John Ford, não apresentam o postulado teleológico de que a construção do Oeste culminará numa forma superior de civilização. O Estado, o poder económico e a autoridade em geral são moralmente inferiores aos próprios bandidos. A humanidade é intrinsecamente maligna e as estruturas do poder potenciam essa característica. Com a conclusão da conquista do Oeste, os homens que a fizeram perderam a sua razão de ser. Sam Peckinpah coloca um prego no caixão do Western ao assumir que as figuras lendárias adquiriram consciência do seu próprio fim.

Já os primeiros Spaghetti Westerns, ao se basearem em histórias de caçadores de recompensas, retomam os pressupostos individualistas presentes nos Westerns clássicos mas viram-nos do avesso e substituem o seu optismo por um cinismo latente. O individualismo já não é o motor da sociedade mas sim um empecilho. O lucro importa mais do que a vida humana. Por sua vez, os Zapata Westerns, ao introduzirem sub-textos marxistas no género contribuem igualmente para um influxo dos seus propósitos inicias. Os filmes deixam de ser uma celebração do espírito individualista e capitalista americano para se transformarem numa diatribe ao mesmo.

O espaço histórico e simbólico do Western esteve sujeito a uma revisão constante da época para que reporta. Estando inscrito na memória colectiva e fazendo parte do passado, está sujeito a “reinterpretações, segundo as sensibilidades culturais, as interrogações éticas e as conveniências políticas do presente (Traverso, 2012: 10)”. Neste caso, o espírito contracultural apoderou-se do género e retirou-lhe os seus pressupostos inicias, reocupando-o depois com preocupações particulares. A influência pictórica persiste, todavia, adquiriu significados e simbologias diferentes. Os estereótipos e eventos propagados foram reconsiderados e perspectivados de uma outra forma. As narrativas insufladas nos Westerns revisionistas divergem drasticamente das inicias, e passaram a servir propósitos políticos diametralmente opostos. Ontologicamente, o Western esgotou-se e tornou-se em algo distinto. Negou-se a si próprio.

Se o filme do Oeste clássico se alicerçava na lenda (My Darling Clementine), o Western revisionista aniquilou essa lenda, ao regressar ao passado, ao recompor os eventos e ao rememorá-los (Little Big Man), ou ao mentalizar-se que a época da construção da nação Americana teve um fim, e que, ao invés de contribuir para a edificação de uma forma superior de civilização, fez justamente o contrário (as obras de Sam Peckinpah). Por sua vez, os diversos Spaghetti Westerns, serviram de comentário à situação contemporânea americana (Trilogia dos Doláres) ou metamorfosearam-se em panfletos pró-revolucionários. Os fundamentos do Western clássico foram derrubados. O género morreu. É verdade que desde o declínio completo do Western, a partir da segunda metade da década de 1970, continuaram a surgir outros filmes do tipo, esporadicamente. Como é o caso de The Ballad Of Buster Scrugs (2018), de Joel e Ethan Coen. No entanto, alimentam-se mais da nostalgia e da consagração dos Westerns clássicos do que propriamente do período da conquista do Oeste selvagem. Após tantas mortes e reanimações será que o cadáver do Western se continuará a mexer por muito mais tempo?

Notas finais

1 O conceito de Manifest Destiny declarava que os colonos estavam destinados a expandirem-se por todo o território da América do norte. E assentava em três pressupostos: a superior virtude do povo americano e das suas instituições; a missão dos Estados Unidos de refazer e aperfeiçoar a herança da cultura europeia, e aproveitar todas as potencialidades na nova terra para redimir o velho mundo e criar um céu na terra. O conceito de Manifest Destiny foi fortemente influenciado por algumas das doutrinas protestantes. Pelo Calvinismo e pelo Metodismo em particular (Jenkins, 2012).

2 Uma trilogia composta pelos filmes: Fort Apache (1948), She Wore a Yellow Ribbon (1949) e Rio Grande (1950).

3 Os historiadores ainda hoje debatem se a ocorrência em Washita foi um massacre ou uma batalha, estando no entanto mais inclinados para a primeira hipótese. Apesar de severa contestação por parte das comunidades índias e de outros grupos, o exército continua reconhecer o sucedido como sendo uma batalha. Houve contudo alguma aceitação institucional da versão Cheyenne da ocorrência. Em 1998 foi erigido um monumento em homenagem às vítimas (Hurt, 2010).

4 Em Março de 1968, o exército americano matou cerca de 300 civis vietnamitas desarmados. Entre as vítimas estavam mulheres e crianças.

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