Abstract
Although taboo has become an ever-increasing widespread linguistic resource within audiovisual contexts (Sapolsky et al. 2010; Bednarek 2019), and despite the importance sociolinguistic profiles hold in cinematic products, little research has been carried out on the topic.
Thus, this study aims at examining the role taboo language plays in the movies. In order to do so, the presentation will combine a theoretical approach - geared towards the cinematic tradition of how taboo is used in the movies, the stereotyping of fictional characters through taboo and the relationship established between the use of taboo and the multimodal and ephemeral nature of cinematic products, with an applied approach – which presents the frequency of taboo words in six North-American movies as well as their functions. Based on the findings, this study suggests that taboo in cinema discourse can be disclosed in two different layers of functions: an intratextual function, concerning the role taboo plays within the narrative; and an extratextual function, related to the role taboo plays beyond the story, i.e. between the movie and the receivers. Further, more detailed, analysis showed that taboo is used intratextually, with an expletive, offensive, social or stylistic function, and, extratextually, with a mimetic, comic or ideological function; the frequency of each will help us characterize taboo in this audiovisual corpus.
Keywords: Taboo language; Tradition of taboo in the cinema; Characterization; Functions of taboo.
Introdução1
A linguagem tabu é, nos dias de hoje, um recurso frequente no contexto audiovisual (e.g. Sapolsky et al. 2010; Bednarek 2019). De The Wolf of Wall Street, de Scorcese, que contabiliza uns impressionantes 569 fucks, até aos filmes de Tarantino, cujo discurso das personagens reconhecidamente recai no tabu, a história da linguagem tabu no cinema evoluiu, desde a censura cega até ao uso vulgar reconhecível hoje em dia.2
Em 1994, Slotkin (1994, 220) sugeria já que a presença de palavras tabu nos média testemunhava uma mudança de atitudes da comunidade linguística relativamente a este tipo de linguagem. Neste mesmo sentido, Sapolsky e Kaye (2005, 293) afirmam o seguinte: “Music, films and television have pushed the boundaries of expletive use. Words once considered taboo are now commonplace”.
Apesar da alargada frequência no uso destas palavras, a investigação dedicada à linguagem tabu nos média é escassa, tal como afirmam Cressman et al. (2009, 121-122) e Bednarek (2019, 30). Ainda assim, alguns estudos relativos a finais do século XX e princípios do século XXI sobre a linguagem tabu nos meios audiovisuais têm vindo a sugerir dados relevantes que confirmam o aumento da frequência destas palavras no contexto norte-americano, quer no cinema, quer na televisão (e.g. Jay 1992; Slotkin 1994; Kaye e Sapolsky 2004, Cressman et al. 2009; Kaye e Sapolsky 2009; Sapolsky et al. 2010; Beers Fägersten 2014). Por exemplo, num estudo dedicado à análise da linguagem tabu em horário nobre, no contexto televisivo norte-americano, Kaye e Sapolsky (2004, 911) sublinham não só que a linguagem tabu tem vindo a tornar-se cada vez mais frequente na televisão, como também que, ao longo dos últimos anos, esta frequência tem sido notória mesmo em canais de sinal aberto. Sapolsky et al. (2010) confirmam-no, igualmente, apontando médias de 9,8 instâncias de palavras tabu por hora em canal aberto e de 15 por hora em canal de televisão por cabo, no horário nobre da televisão norte-americana. Em confirmação destes dados, o estudo da organização norte-americana Parents Television Council (PTC, 2010), sobre a frequência de palavras tabu nos programas de entretenimento dos mais importantes canais televisivos de sinal aberto norte-americanos, refere que, entre 2005 e 2010, se assistiu a um aumento de 69% de palavras e expressões tabu no horário nobre, a par de um aumento de 2400% na frequência de “f-words” silenciadas ou com sobreposição de um “beep”. No que diz respeito ao horário e ao tipo de programas com maior frequência de linguagem tabu, Kaye e Sapolsky (2004) igualmente sublinham ainda que a linguagem tabu aumentou, em particular no horário entre as 21h e as 22h e em comédias sitcom.
Mais especificamente, no que diz respeito a análises de palavras tabu em filmes norte-americanos, alguns dados surgem como relevantes. Na sua análise de 120 filmes estreados entre 1939 e 1989, Jay (1992) refere uma média de 70 a 80 palavras tabu por filme. Para além disso, confirma o aumento desta frequência em anos mais recentes (Jay, 1992: 226). Igualmente, as análises dos estudos de Xavier (2009, sobre Goodfellas, Snatch e Analyze This), Soler Pardo (2001; 2015, sobre Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Four Rooms, Jackie Brown, Kill Bill, e Inglourious Basterds) e Ávila Cabrera (2014, sobre Reservoir Dogs, Pulp Fiction e Inglourious Basterds) comprovam esta frequência amplificada, até a médias de quatro instâncias tabu por minuto de filme.
Tomando esta realidade como ponto de partida, destacámos como objectivo deste estudo investigar a linguagem tabu no discurso cinemático focando a forma como estas palavras específicas são usadas nos filmes e, principalmente, quais as suas funções, ao nível do texto e para além do texto, i.e. na relação deste com a audiência. Para além disto, no enquadramento teórico, apresentamos uma reflexão, fundamentada na revisão da literatura disponível, sobre diferentes aspectos como a caracterização de personagens através do recurso a palavras tabu, a tradição na caracterização de personagens com recurso ao tabu e a caracterização marcada e não marcada tendo em conta diferentes cenas. Com base na bibliografia relacionada, apresentamos uma proposta de funções intra- e extratextuais da linguagem tabu no discurso dos filmes, que servirá de base à análise de seis filmes escolhidos para o efeito.
Enquadramento teórico
A linguagem tabu e a caracterização de personagens
Através da caracterização directa e indirecta das personagens, realizadores e argumentistas têm por objectivo proporcionar pistas que a audiência reconheça e, assim, formule um perfil das personagens. Paralelamente à caracterização directa, através da qual se descreve, de forma explícita, o aspecto físico, os sentimentos ou o comportamento das personagens, também os indícios fornecidos indirectamente, por exemplo através do seu discurso, são significativos para que a audiência chegue a conclusões sobre as personagens e o seu percurso na história. Este discurso que indirectamente caracteriza as personagens é, pois, importante, na medida em que a audiência reconhece e avalia as escolhas lexicais, a pronúncia e a gramática na fala das personagens, e, assim, as identifica com um espaço, um tempo, uma escolaridade ou um grupo social.
A bibliografia que aborda especificamente o uso de linguagem tabu na ficção é escassa (Jay 1992; McEnery 2006; Soler Pardo 2011, 2015; Norrick 2012; Ávila Cabrera 2014, 2015; Briechle e Eppler 2019). Ainda assim, previamente à análise de um corpus de filmes, pretendemos apresentar algumas reflexões sobre o tema, considerando alguns aspectos relevantes, como seja o tabu como estereótipo linguístico reconhecível, o seu uso marcado ou não marcado de acordo com a tradição, discutindo também a frequência do seu uso em diálogo ficcional e os seus efeitos potenciais nas audiências.
Ao recorrer a marcas linguísticas especialmente distintivas, realizadores e argumentistas confiam na partilha de valores com a audiência. Quer isto dizer que, com o objectivo de posicionar as personagens na história, dotam-nas de uma forma de falar reconhecível que explicite particularidades relevantes para a história. Esta forma de falar é, contudo, exagerada nas suas características mais marcantes para que os receptores rapidamente as reconheçam e, avaliando-as positiva ou negativamente, recuperem a sua significação extralinguística (Dimitrova 2004, 123). Paralelamente, a recriação da linguagem tabu é, levada a cabo de forma a que o receptor a reconheça. Como sublinha Norrick (2012, 32): “Swearing appears (only) in dialogue (set off in recognizable ways) to delineate certain types of characters or to signify emotion” [Sublinhado nosso]. É, portanto, expectável que os receptores dos textos ficcionais partilhem com o produtor do texto os mesmos conhecimentos sociolinguísticos e identifiquem os estereótipos linguísticos recorrentes na ficção (Blake 1981; Leech e Short [1981]1982; Tamasi 2001; Rosa 2003).
A propósito do processo de estereotipação no plano social, Kristiansen (2001, 137) esclarece: “Stereotyping, then, is a functional cognitive device by means of which we systematize our social environment, creating distinct and apparently homogenous categories”. Associamos, por isto, a grupos específicos determinadas características que reconhecemos nos outros falantes. Os autores ficcionais recorrem, analogamente, a esta associação para tipificar as personagens com formas de falar reconhecíveis e facilmente retratáveis. Também com este objectivo, o uso ficcional da linguagem tabu baseia-se no estereótipo linguístico, partilhado pela comunidade, sobre o perfil de quem normalmente utiliza estas palavras. Mais especificamente, Norrick (2012, 32) refere: “Traditionally, these [characters who swear] were lower class characters and always men, while they have increasingly become middle and higher class and increasingly women as well as men”. Disto se conclui, portanto, que a estereotipação da linguagem tabu na ficção recuperava, tradicionalmente, a imagem do falante do sexo masculino, de baixo estrato social, baixa escolaridade e de educação reduzida. Soler Pardo (2011; 2015) aponta no mesmo sentido ao frisar que a linguagem tabu está associada, no cinema, ao vilão, avaliado negativamente pelo receptor. Se, na tradição do texto ficcional, o estereótipo está vinculado a estas características socioculturais, deve entender-se como caracterização não marcada o uso da linguagem tabu por personagens tendencialmente do sexo masculino, de classe baixa, cujo idiolecto ou sociolecto ficcionais estão, de alguma forma, baseados no recurso a esta marca lexical. Todavia, deve entender-se como caracterização marcada a utilização surpreendente destas palavras, por personagens de quem, por motivo da sua posição social, escolaridade ou situação comunicativa, não fosse esperado o uso deste tipo de palavras.
Porém, como Norrick (2012, 32) também refere, o panorama da tradição do uso da linguagem tabu em contexto ficcional tem vindo a alterar-se, ou seja, a personagem que tipicamente recorre a estas marcas pode, agora, ser do sexo feminino, de classe social alta ou de escolaridade elevada. Contrariamente a esta sugestão do autor, os trabalhos já referidos (cf. Introdução) de Xavier (2009), sobre Goodfellas, Snatch e Analyze This, de Soler Pardo (2011; 2015), sobre Reservoir Dogs, Pulp Fiction, Four Rooms, Jackie Brown, Kill Bill, e Inglourious Basterds, e de Ávila Cabrera (2014), sobre Reservoir Dogs, Pulp Fiction e Inglourious Basterds, notaram a manutenção desta tradição, ou seja, o estereótipo linguístico negativo e a exclusão social dos falantes ficcionais, do sexo masculino e de classe baixa, caracterizados com recurso frequente a palavras tabu.
A linguagem tabu e a ficção audiovisual
Como já abordado na secção anterior, diferentes particularidades linguísticas são incluídas no discurso das personagens dos filmes, com o objectivo de lhes atribuir um perfil sociolinguístico que os espectadores reconheçam. A este propósito, Hodson (2014, 3) refere:
In everyday life, the way in which someone speaks provides clues about where they come from, what social group they belong to, what kind of education they received, and so forth. This is something that authors and filmmakers make use of in various ways, not the least of which is to provide information about characters and location.
Alguns estudos têm vindo a abordar a caracterização de personagens por via de variedades não padrão no contexto audiovisual (e.g. Dobrow & Gidney, 1993; Lippi-Green, 1997; Kozloff, 2000; Azad, 2009; Hodson, 2014). Por exemplo, no seu estudo sobre a discriminação de certas pronúncias do inglês nos Estados Unidos da América e as relações de poder que a motivam, Lippi-Green (1997, 101) conclui que estas questões ideológicas se reflectem e são alimentadas pela ficção audiovisual:
Characters with strongly positive actions and motivations are overwhelming speakers of socially mainstream varieties of English. Conversely, characters with strongly negative actions and motivations often speak varieties of English linked to specific geographical regions and marginalized social groups.
A mesma conclusão é apresentada por Dobrow e Gidney (1998), que estudam a caracterização linguística de personagens de animação com o recurso a marcas dialectais não padrão no contexto americano dos anos 90. Os autores frisam que a marginalização dos dialectos não padrão é reproduzida na maioria dos programas de animação que estudam, sendo que o vilão usa recorrentemente marcas desprestigiadas. Já Azad (2009), ao estudar as marcas dialectais em filmes de animação emitidos no contexto norte-americano, de 1995 a 2008, conclui que a variação linguística é usada como retrato de estereótipos linguísticos ao nível étnico, social e regional. Hodson (2014), por sua vez, analisa diversos filmes em que os dialectos não padrão são utilizados com diferentes objectivos, entre eles retratar a identidade social de classes médias ou baixas, dar pistas para as diferenças de poder entre as personagens, ou denotar a estratificação social baseada nas formas de falar de cada classe. Destes estudos, conclui-se, portanto, que a tradição audiovisual da caracterização por via de dialectos não padrão remete para diferenças de poder entre classes ou para personagens consideradas de posição social inferior ou reprováveis devido a más acções.
Mais especificamente, no que diz respeito à linguagem tabu na ficção audiovisual, Xavier (2009) frisou que esta marca lexical correspondia frequentemente à marginalidade, ao estatuto periférico e ao baixo estrato sociocultural das personagens, nos filmes Goodfellas, Analyze This, e Snatch. Nestes filmes, a maioria dos falantes que frequentemente recorre à linguagem tabu faz parte do mundo da Máfia e pratica crimes como assassinatos, tráfico de diamantes ou de estupefacientes. Por outro lado, a par da periferia social, a linguagem tabu é também marca de solidariedade entre os falantes, que se reconhecem não só por comportamentos mas também pelo tipo de linguagem desviante a que recorrem. Igualmente, Soler Pardo (2011; 2015) e Ávila Cabrera (2014), em análise de filmes do realizador Quentin Tarantino, concluem que a marca tabu acompanha a estereotipação das personagens. Soler Pardo (2011, 141) assim sublinha:
Cursing in films, for example, is a way of representing, antiheroes: the thief, the gangster, the bank-robber who do not succeed in his/her mission. This is not an example to follow, children would not like to look like them” [sublinhado nosso].
Por sua vez, Ávila Cabrera (2014), em análise dos três filmes de Tarantino atrás referidos, aponta no mesmo sentido.
A linguagem tabu usada na ficção audiovisual tende, consequentemente, a representar o vilão, o marginal, a personagem ou o grupo de personagens afastado do centro de poder e de prestígio. Não obstante, importam também os aspectos positivos da caracterização das personagens com recurso à linguagem tabu e que, ainda assim, fazem parte da tradição audiovisual. Em primeiro lugar, destacamos a comicidade no uso de palavras tabu em situações inesperadas, onde a inadequação do tabu ao contexto gera humor e riso no espectador. Em segundo lugar, há que ter conta o prestígio encoberto destas palavras que, para além de representar a união dos grupos marginais, pode gerar empatia com o espectador que avalia positivamente o uso da linguagem tabu, mesmo que pelo vilão da história.
Para além do anterior, há ainda que ponderar duas características fundamentais dos filmes, pelos seus efeitos não só na transmissão mas também na recepção de significados extralinguísticos associados à linguagem tabu. Referimo-nos 1) ao imediatismo e efemeridade do produto audiovisual; e 2) à sua multimodalidade. Tal como sugeriram já os trabalhos de Lippi-Green (1997), Azad (2009) e Xavier (2009), ao contrário do contexto literário, onde o leitor tem tempo para assimilar a transmissão dos significados comunicativos e valores sócio-semióticos das variedades linguísticas não padrão no discurso dos falantes ficcionais, no cinema, esse tempo é encurtado para um período limitado de duas ou três horas de filme. Logo, o tempo disponível para que se retirem informações caracterizadoras sobre as personagens e das relações entre elas por via das suas opções linguísticas é curto e estas informações têm de ser descortinadas com a maior celeridade possível. Como sugere Xavier (2009, 74), a incidência de recursos linguísticos não padrão mais marcantes, como a linguagem tabu, tende a ser, consequentemente, adaptada a este imediatismo dos produtos audiovisuais, estando o aumento da frequência de palavras tabu relacionado com a necessidade de interpretação imediata do perfil da personagem.
Adicionalmente, a importância da multimodalidade dos textos audiovisuais tem sido recorrentemente referida, pela produção múltipla de significados ao nível de diferentes canais. Consequentemente, a caracterização das personagens nos filmes pelo uso da linguagem tabu deve ser entendida como um todo já que o texto audiovisual é resultado dos vários modos semióticos que criam um produto semiótico autónomo. Na ficção audiovisual, a composição física das personagens, fornecida por via das imagens, caracteriza o falante pelo seu aspecto físico, vestuário, acções, atitudes, gestos, gritos, expressões faciais, etc. A componente linguística do uso da linguagem tabu deve, assim, ser analisada em conjunto com a componente não verbal dos textos fílmicos para que se analise a (in)adequação da palavra tabu ao contexto e, consequentemente, se identifique a complementaridade entre o uso da linguagem tabu e a imagem, em retrato do marginal ou do falante de classe baixa, ou, por outro lado, se reconheça o conflito entre a linguagem tabu e a imagem, em retrato do falante de classe alta e prestigiada. Considerando isto, deve entender-se como caracterização marcada da linguagem tabu, uma cena exemplo em que um médico ou um advogado, em ambiente profissional, recorre a uma palavra tabu, denunciando uma relação não expectável entre a imagem e o tipo de linguagem utilizada. Esta palavra tabu remete não só para um corte na caracterização da personagem, mas também para a quebra de expectativa da audiência, relativamente ao que é esperado do falante e da cena naquele momento e ainda da tradição textual do uso da linguagem tabu, que atrás referimos (cf. secção anterior). Por outro lado, uma personagem que é representada visualmente como sendo de grupos marginalizados da sociedade, que, comummente, recorra a linguagem não-padrão, não cria conflito entre a componente visual e a componente verbal pois a relação entre ambas é expectável, recebendo a audiência informações coincidentes dos diferentes modos semióticos produtores de significados, e, assim, as suas expectativas não são defraudadas. Vejamos os exemplos:
Figura 1 - Imagens do filme Bad Boys 2
Figura 2 - Imagens do filme Crueldade Intolerável
O filme de acção e comédia, Bad Boys II, de 2003, gira em torno de dois polícias de Miami que investigam o tráfico de ecstasy em massa na cidade. A maioria das personagens pertence ao mundo do combate ao crime ou a máfias especializadas no tráfico de droga e o uso da linguagem tabu é recorrente, de tal forma que é integrado na lista de filmes norte-americanos com maior frequência de palavras tabu.3 Por outro lado, o filme Intolerable Cruelty, de 2003, é uma comédia sobre um caso de divórcio onde a mulher, mais nova, pretende obter a independência financeira desejada após saber da infidelidade do marido, rico e mais velho. A maioria das personagens, i.e. o marido, a mulher e os advogados de ambos, surge como pessoas de classe sociocultural elevada e endinheirada, facto indiciado pelo seu vestuário e acessórios e pelo tipo de linguagem, padrão, a que recorrem. Não obstante as várias peripécias ao longo do filme, a linguagem utilizada não foge ao padrão, pelo que a audiência é surpreendida quando, numa cena de restaurante, a empregada responde “What the fuck colour would it be?” à pergunta “Do you have a green salad?”. Esta resposta entra em conflito com a situação comunicativa em questão e com os restantes componentes da imagem, principalmente porque se trata de uma situação formal em que os participantes estão, naquele momento, em posições sociais diferentes.
Funções intra- e extratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual: uma proposta
Autores como Díaz Cintas (2001a), Norrick (2012) e Ávila Cabrera (2015) sugerem que a linguagem tabu, na ficção, é um veículo de informação sobre a personalidade e o grupo social da personagem ou sobre a situação comunicativa em que está envolvida (Díaz Cintas 2001b; Ávila Cabrera 2014; 2015), que torna o diálogo mais realista (Norrick 2012), que retrata emoções das personagens (Norrick 2012) e, finalmente, que serve o intuito de provocar reacções nos receptores. Não obstante realçarmos a importância destas sugestões, notamos faltar, na bibliografia, uma tipologia clara e objectiva das funções que a linguagem tabu ocupa na ficção audiovisual, ao nível intra- e extratextual. Seguimos, assim, autores (Kozloff, 2000; Rosa, 2003; Hodson, 2014) que têm partilhado a ideia de que as variedades não padrão desempenham funções intra- e extratextuais, uma distinção especialmente útil para a análise da linguagem tabu em contexto audiovisual. A propósito, Hodson (2014, 10) propõe:
I have offered two reasons for studying dialect in film and literature: that it can tell us about individual characters and locations, and that it can tell us about relationships between characters, and so high-light broader thematic concerns. Both of these motivations might be characterized as text-internal (....).
Text-external reasons for studying the representation of dialects of English in film and literature focus on the way in which such representations interact with the society within which they appear.
Mais especificamente, Norrick (2012, 27) refere: “[S]wearing in literary fiction is neither gratuitous nor arbitrary”. Sugere, portanto, que o autor do texto ficcional tem objectivos específicos aquando da inclusão de marcas lexicais tabu, e adianta:
[l]ittle (…) discussion concerns the actual forms, the distribution and functions of swearing in prose fiction, which words and phrases recur, how offensive they are, where the swearing appears. (Norrick 2012, 26)
Apesar de salientar a escassez de estudos sobre a presença e o papel da linguagem tabu na Literatura, este comentário é extensível à ficção audiovisual. Em face disto, e na falta de uma tipologia de funções, como atrás referido, recuperamos e adaptamos os trabalhos de Allan e Burridge (2009), para definir e apresentar as funções da linguagem tabu na narrativa, i.e. entre as personagens da história, e de Delabastita (2002), que, num estudo sobre as funções do multilinguismo na obra shakespeariana, contribui para a compreensão da função da linguagem tabu na relação entre o texto ficcional e o seu receptor.
As funções intratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual
De acordo com Allan e Burridge (2009), a linguagem tabu preenche quatro funções na linguagem do dia a dia. Seguindo a proposta dos autores, propomos que, ao nível intratextual, a linguagem tabu nos filmes assume quatro funções possíveis, potencialmente justapostas:
Função expletiva
Realizadores e argumentistas podem introduzir, no discurso das personagens, palavras tabu, esporádicas, para retratar a frustração da personagem. Sem intenção de ofender outra personagem, a personagem exprime raiva ou exclamação perante um elemento exterior que a incomoda, psicológica ou fisicamente. Como exemplo desta função: “Un-fucking-believable” (exemplo do filme Goodfellas).
Função ofensiva
Esta função da linguagem tabu tem por objectivo insultar e ofender o interlocutor. Assim, a função ofensiva, no diálogo ficcional cinemático, reporta para o recurso a palavras tabu para insultar o destinatário ou para denegrir o objecto que a personagem avalia negativamente. Como exemplo desta função: “Fuck yourself, you piece of shit” (exemplo do filme The Departed)
Função social
A propósito da linguagem tabu na ficção literária, Norrick (2012, 27) menciona: “[i]t predictably offends some (other characters in the story-world and perhaps some readers as well), but for others it will ratify membership in the group and create/sustain rapport”. Desta forma, no desenrolar da narrativa, a linguagem tabu pode ter o objectivo de 1) criar distância entre personagens, ou seja, a palavra tabu tem o propósito de chocar a outra personagem e afastá-la; ou de 2) gerar solidariedade entre personagens, isto é, as palavras ou expressões tabu, esporádicas ou frequentes, poderão ser marca identitária de um grupo e, como tal, as personagens reconhecem fazer parte deste grupo, criando laços de intimidade. Como exemplo desta função: “Shut the fuck up!” (exemplo do filme Jarhead).
Função estilística
Paralelamente ao seu uso autêntico, também no discurso ficcional o recurso a palavras tabu pelas personagens de um filme pode ter como função estimular e aumentar a vivacidade deste discurso, concedendo-lhe emoção e maior expressividade. Como exemplo desta função: “Fucking way, it works!” (exemplo do filme Pulp Fiction).
As funções extratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual
Tal como alguns autores sugerem (cf. Blake 1981; Leech e Short [1981]1983; Dimitrova 1997; Delabastita 2002; Rosa 2003; Ramos Pinto 2009), as variedades não padrão são relevantes, ao nível extra-narrativa, na caracterização indirecta das personagens, no retrato realista das vozes das personagens, na identificação do seu estatuto e grupo social, na compreensão das suas atitudes perante os outros e perante as situações, na localização da personagem temporal e geograficamente, e na formulação de um perfil das personagens para que o receptor ficcional estimule laços ou, por outro lado, estabeleça distância relativamente a elas.
Consequentemente, também no recurso à linguagem tabu no diálogo cinemático, é possível afirmar-se que a audiência reconhece estas palavras introduzidas no diálogo ficcional e avalia o seu significado. Atribui, assim, um perfil à personagem, com as características socioculturais que associa ao uso da linguagem tabu, ou, por outro lado, avalia a emotividade pontual na cena. A propósito, Norrick (2012, 32) menciona:
Swearing serves to characterize fictional persons because it evokes standard associations in readers: as a character trait, swearing signifies (male) toughness, (lower) working class; as a situational factor, swearing signifies pain, strong emotion.
Parece, contudo, evidente que Norrick (2012) apenas considera a função mimética do uso da linguagem tabu na ficção. Por considerarmos a existência de outras funções extratextuais do uso ficcional da linguagem tabu, recuperamos Delabastita (2002), que, para além da função mimética de variedades, distingue ainda a função cómica e a função ideológica.4
Função mimética
Blake (1981), Leech e Short ([1981] 1982) ou Delabastita (2002) são apenas alguns dos investigadores que destacam o uso de variedades não padrão para retratar dialectos e idiolectos das personagens e, através deles, conferir credibilidade, verosimilhança e autenticidade ao seu discurso (Leech e Short [1981] 1982, 185). Delabastita (2002) esclarece ainda que a função mimética do discurso ficcional corresponde à tentativa de representação da realidade discursiva, ilustrando com a recorrente reprodução de dialectos na literatura cujo objectivo é conferir credibilidade e substância às personagens (2002, 306). Baseada em factos sociolinguísticos, ainda que potencialmente estereotipados (Delabastita, 2002, 306), esta recriação apenas assume o seu propósito quando partilhada e identificada pelos receptores, que reconhecem as normas linguísticas implícitas no discurso:
The mimetic function can only make individual characters and their personal verbal idiosyncrasies come to life against the background of more collective linguistic norms, defined in terms of social, regional or national identities. When characters (…) resort to “foreign” languages or “funny” accents, this adds further strokes to their individual portraits in the play, but not without simultaneously giving them a position and an identity in a wider spatio-temporal setting (…). (Delabastita, 2002: 306)
Neste enquadramento, conferir uma identidade específica à personagem permite ao receptor posicioná-la relativamente às outras personagens e, disto, gerar expectativas sobre as suas acções e, potencialmente, sobre o desenrolar da história. Desta forma, também o recurso a palavras tabu no discurso da personagem pode posicionar a personagem numa hierarquia social. A linguagem tabu é frequentemente valorizada de forma negativa na comunidade linguística, o que pode indicar que a audiência vai reconhecer o estigma associado a este tipo de linguagem e, consequentemente, antagonizar a personagem e as suas acções no desenrolar da história. Contudo, a par do que Rosa (2003, 178) propõe relativamente à variação linguística, podemos também concluir que a audiência pode avaliar positivamente o uso de palavras tabu gerando empatia e proximidade em relação à personagem.
Função cómica
Delabastita (2002) e outros autores (Leech e Short [1981] 1982; Rosa 2003; Ramos Pinto 2009) sublinham a importância da função cómica das variedades dialectais ficcionais, referindo o seu propósito de gerar humor para o receptor do texto ficcional. Neste enquadramento, os autores ficcionais têm ao seu dispor mecanismos linguísticos para provocar o riso, sendo a linguagem tabu frequentemente usada para a produção do cómico ou de sátira. Delabastita (2002, 310), por exemplo, associa frequentemente a função cómica ao humor baseado no uso de palavras tabu ou alusivo ao campo semântico do sexo, através de piadas ou mal-entendidos. Para além disto, o humor pode gerar-se pelo uso inesperado da palavra tabu em situações comunicativas específicas, em que se reconheça a inadequação deste tipo de linguagem ao contexto (tal como o exemplo atrás apresentado do filme Intolerable Cruelty).
Ainda que a propósito da variação dialectal, Rosa (2003, 178) refere um aspecto desta função, pertinente para o estudo da linguagem tabu:
A recriação da variedade literária pode ter uma função paródica, cómica ou satírica, e, portanto, geradora de distância em relação à personagem, que marginaliza; ou pode, pelo contrário, ser geradora de proximidade e empatia, por exemplo quando é valorizada como marca de autenticidade.
Em face disto, pode afirmar-se que também as palavras tabu no discurso cinemático podem levar à criação de empatia para com a personagem pela frequência do riso em situações diversas da narrativa, como sejam o insulto humorado, a catarse da personagem numa situação específica ou os trocadilhos.
Função ideológica
Delabastita (2002, 314) sugere que a manipulação linguística da fala das personagens na literatura pode ser motivada por interesses ideológicos. Exemplificando com a peça shakespeariana Henry V, Delabastita (2002, 314) refere que quer a personagem quer o seu discurso característico pode satirizar países, baseando-se em crenças e estereótipos. Nesta peça, o inglês corrompido de algumas personagens parece servir o propósito de demonstrar a superioridade das personagens inglesas. Ideologicamente motivado, o nacionalismo inglês que fundamenta esta sátira em torno das personagens francesas, galesas e escocesas retrata a tensão existente com a França e com os restantes territórios das ilhas britânicas, espelhando os desvios linguísticos destas personagens a sua inferioridade e, dessa forma, a inferioridade do seu país (Delabastita 2002, 335). O receptor da peça partilha, portanto, este sentimento de supremacia e de orgulho nacionalista e, consequentemente, sente fazer parte de um grupo, i.e. o grupo que não fala desta forma e que não é objecto de sátira e escárnio.
Neste enquadramento, parece-nos adequado igualmente aludir à função ideológica no uso da linguagem tabu em contexto ficcional por se tratar de uma marca linguística saliente que recupera um estereótipo linguístico de desprestígio e de marginalidade do falante. Como vimos, Xavier (2009), Soler Pardo (2011; 2015) e Ávila Cabrera (2014) confirmam o uso de palavras tabu pelo vilão, ou vilões, da história, salientando, desta forma, a marginalidade destas personagens no cinema. Também ideologicamente motivada, a inserção frequente de palavras tabu no discurso dos vilões, tal como marginais, mafiosos, assassinos, entre outros, imediatamente aponta para baixo estrato social e fraco prestígio das personagens. Tal como exposto por Delabastita (2002) relativamente às variedades dialectais do inglês ou aos desvios linguísticos por parte das personagens francesas em Henry V, também no caso da linguagem tabu no cinema a audiência sente fazer de um outro grupo, i.e. um grupo que não usa estas palavras e, portanto, não se revê nas acções e características associadas à personagem que frequentemente recorre à linguagem tabu.
Em face do anterior, estabelecemos a seguinte tipologia de funções intra- e extratextuais da linguagem tabu, recuperável na análise de filmes em secções seguintes (Figura 3):
Funções intra- e extratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual | |
---|---|
Função intratextual | Função expletiva Função ofensiva Função social Função estilística |
Função extratextual | Função mimética Função cómica Função ideológica |
Figura 3 - Funções intra- e extratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual
Análise
Corpus e método
Com o objectivo de investigar o papel da linguagem tabu no discurso do cinema, foram escolhidos seis filmes norte-americanos para integrar o corpus de análise. Para isso, identificámos filmes com elevado número de palavras tabu, tendo por base os dados de diferentes plataformas.5
Os filmes escolhidos são apresentados na Figura 4:
Título | Realizador | Ano de Produção |
---|---|---|
Goodfellas | Martin Scorcese | 1990 |
Pulp Fiction | Quentin Tarantino | 1994 |
Another Day in Paradise | Larry Clark | 1998 |
Jarhead | Sam Mendes | 2005 |
The Departed | Martin Scorsese | 2006 |
American Pie: Beta House | Andrew Waller | 2007 |
Figura 4 – Filmes analisados no corpus
Na Figura 5, é apresentada uma descrição dos minutos de cada filme, número de palavras tabu e a frequência de palavras tabu por minuto de filme:
Título | Minutos de filme | Frequência absoluta de palavras tabu | Frequência de palavras tabu por minuto de filme |
---|---|---|---|
Goodfellas | 146 min | 341 | 2,33 |
Pulp Fiction | 154 min | 43 | 2,84 |
Another Day in Paradise | 101 min | 400 | 3,96 |
Jarhead | 125 min | 432 | 3,45 |
The Departed | 151 min | 378 | 2,5 |
American Pie: Beta House | 84 min | 81 | 0,96 |
Figura 5 – Descrição dos filmes analisados no corpus
Desta forma, as funções intra- e extratextuais que permitirão chegar a conclusões sobre o papel que a linguagem tabu ocupa nesta amostra de filmes serão identificadas em 2.069 palavras tabu nos seis filmes, correspondendo a uma média de 2,71 palavras tabu por minuto nos 761 minutos do conjunto dos filmes.6
Resultados
Sobre as funções intratextuais
Tal como exposto em secção anterior, para estudar o papel que a linguagem tabu ocupa no texto e nas relações estabelecidas entre as personagens dos filmes, apoiámo-nos na proposta de Allan e Burridge (2009) sobre o uso real da linguagem tabu, para distinguir quatro funções intratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual: 1) a função expletiva; 2) a função ofensiva; 3) a função social; e 4) a função estilística. Em face disto, identificámos os padrões de distribuição das funções intratextuais no conjunto dos filmes, classificando cada palavra tabu de acordo com as quatro categorias definidas, quantificando-as, em valores absolutos e relativos.
Entre as 2069 palavras tabu do corpus, a distribuição de funções intratextuais da linguagem tabu apresenta alguma variação, sem que, contudo, se verifique um predomínio expressivo de uma das categorias. A tabela ilustra as frequências absoluta e relativa destas funções no conjunto dos filmes.
Funções intratextuais | Frequência absoluta | Frequência relativa |
---|---|---|
Função estilística | 698 | 34% |
Função expletiva | 288 | 14% |
Função ofensiva | 334 | 16% |
Função social | 749 | 36% |
Figura 6 - Frequências absoluta e relativa de funções intratextuais das palavras tabu nos filmes analisados
A leitura destes dados retrata uma distribuição relativamente equilibrada das funções intratextuais da linguagem tabu nestes filmes, com um predomínio ténue da função social (36%). Mais especificamente, nos textos audiovisuais ficcionais que este estudo analisa, a linguagem tabu tem, predominantemente, como função estabelecer laços de solidariedade e de distância entre as personagens (36%) e, ainda, revelar a emotividade e expressividade do discurso, em 34% dos casos. O uso das palavras tabu nestes filmes está, maioritariamente, relacionado com situações comunicativas ficcionais em que uma personagem recorre a uma palavra ou expressão tabu para gerar solidariedade com outra personagem que reconhece o prestígio encoberto associado a este tipo de linguagem, enquanto marca de identidade de um grupo específico e, ainda, para criar distância e conflito relativamente a outra personagem, quando utilizada de forma surpreendente. Na maioria dos filmes do corpus (Pulp Fiction; Goodfellas; Another Day in Paradise; The Departed), as personagens são elementos marginais, assaltantes, mafiosos e assassinos, que recorrem ao uso da linguagem tabu como forma de estabelecer relações próximas e fortalecer o grupo que reconhece o prestígio destas marcas linguísticas identitárias. Não obstante, casos há também em que a linguagem tabu é utilizada para afastar outras personagens, em situações de conflito, individual ou em grupo. A título de exemplo, numa das cenas de maior frequência de palavras tabu no filme Another Day in Paradise, Bobbie, a personagem principal, e Jewels, outro membro do grupo marginal que leva a cabo roubos e tráfico de droga, recorrem continuadamente à linguagem tabu como forma de quebrar uma relação anteriormente solidária, e agora quebrada porque ambas querem lidar com uma situação de assalto e agressão de forma diferente. A frequência exagerada de palavras tabu serve, portanto, o propósito comunicativo de estabelecimento de conflito e criação de distância, que culmina na morte de Jewels, pela mão de Bobbie:
Jewels – Thanks for the fucking back up!
You believe this piece-of-shit pulled a gun on me!
Bobbie – Hit him again and I’ll kill you!
Jewels – Get the fucking thing off me, this is business!
Bobbie – Fuck you, this ain’t business, this is bullshit!
Jewels – Motherfucker, I’ll kill you!
[...]
This fucker robs us and you put a gun to my head?
Correspondentes à função estilística da linguagem tabu, no corpus são frequentes os casos em que as personagens recorrem à linguagem tabu sem outro propósito que não seja estimular a expressividade e a emotividade do discurso, tornando mais aliciante a sua própria narrativa das situações (34%).7 Por outro lado, as situações comunicativas ficcionais nas quais a personagem insulta outra personagem (16%) ou recorre à palavra tabu apenas para expressão de raiva (14%), sem visar uma outra personagem, têm valores absolutos e relativos pouco expressivos.8
Sobre as funções extratextuais
Identificámos, ainda, a distribuição das funções extratextuais das palavras tabu no corpus, para analisar o papel que a linguagem tabu para além do texto, procedendo, para isso, à quantificação das seguintes funções (cf. secção anterior sobre a proposta de Delabastita 2002): 1) função mimética, segundo a qual a palavra tabu confere realismo ao discurso ficcional no retrato do seu uso autêntico, excluindo o retrato do falar comum associado ao vilão; 2) função cómica, segundo a qual há uma produção de humor; e 3) função ideológica, segundo a qual associamos o falar do vilão ou vilões da história ao uso de palavras tabu. Nestes termos, estas funções distribuem-se de forma não equitativa nos filmes:
Funções extratextuais | Frequência absoluta | Frequência relativa |
---|---|---|
Função mimética | 786 | 38% |
Função cómica | 70 | 3% |
Função ideológica | 1213 | 59% |
Figura 7 - Frequências absoluta e relativa de funções extratextuais das palavras tabu nos filmes analisados
A leitura destes valores, absolutos e relativos, ilustra o predomínio da função ideológica da linguagem tabu (59%), em conjunto com a função mimética (39%). Neste corpus, a função cómica restringe-se a 70 palavras tabu, que equivalem a 3% da totalidade das palavras tabu identificadas. Desta forma, torna-se evidente, nos filmes seleccionados neste trabalho, o predomínio do uso da linguagem tabu como estereótipo linguístico que recupera o desprestígio do falante marginal e fora da lei. A maioria das personagens dos filmes Pulp Fiction, Goodfellas, Another Day in Paradise e The Departed adequa-se a esta realidade do gangster e do anti-herói, tal como Soler Pardo (2011: 141) os classificava. Nestas histórias, as personagens principais são, igualmente, mafiosos, traficantes de droga, malfeitores e assassinos, que frequentemente utilizam palavras tabu, que o receptor reconhece, criando expectativas sobre o papel destas personagens na história.
Para além disto, a frequência das palavras tabu com função mimética (38%) retrata a sua relevância nestes filmes. Relativamente a esta função, realizadores e argumentistas levam a audiência a reconhecer estas palavras como retrato da realidade discursiva e, assim, a conferir credibilidade à personagem. A este respeito, o filme Jarhead tem a maior percentagem de palavras tabu com função mimética (99%). Neste filme, a linguagem tabu é um recurso linguístico frequente (439 instâncias) que retrata a forma de falar característica do corpo de Fuzileiros do exército dos Estados Unidos da América. A audiência reconhece, portanto, as relações de solidariedade entre os fuzileiros, um grupo social específico, jovem e violento, prestes a deslocar-se para a Guerra do Golfo, ao mesmo tempo que identifica o predomínio hierárquico dos oficiais superiores que geram temor pelo uso da linguagem tabu, tendencialmente ofensiva.
Por fim, os valores reduzidos da função cómica no corpus reportam-se, predominantemente, ao filme American Pie: Beta House. Neste filme para adolescentes, a maioria das palavras e expressões tabu tem como função estimular o riso, em situações de sátira da vida desregrada dos jovens universitários. Para além disto, as palavras tabu com função cómica geram uma relação de empatia entre a audiência e as personagens, que as avalia positivamente pela produção de humor.
Conclusão
O estudo da linguagem tabu na maioria dos filmes deste corpus testemunhou, a par dos estudos de Lippi-Green (1997), Dobrow e Gidney (1998), Kozloff (2000), Azad (2009), Hodson (2014), Xavier (2009a), Soler Pardo (2011; 2015) e Ávila Cabrera (2014), a manutenção do estereótipo linguístico a que Norrick (2012) inicialmente aludia já que em quatro dos seis filmes analisados (Pulp Fiction, Goodfellas, Another Day in Paradise, The Departed), as personagens principais que utilizam palavras e expressões tabu frequentemente são, de facto, homens, de baixo estrato social, marginais da sociedade que vivem de forma ilícita, recorrendo a tráfico de drogas, agressões e assassinatos. Desta forma, a maioria dos filmes retrata o vilão/vilões e a sua forma de falar típica, que o receptor reconhece pela tradição audiovisual. Os marginais de Pulp Fiction, Goodfellas, Another Day in Paradise e The Departed vivem na periferia social e perfazem a quase totalidade das personagens das histórias.
Apesar disto, identificámos, no corpus, outros estereótipos relacionados com a linguagem tabu, afastados de classes baixas ou de grupos marginais. Em Jarhead, o estereótipo linguístico da linguagem tabu está relacionado com a forma de falar representativa das tropas, que a audiência facilmente reconhece e avalia, gerando expectativas relativamente à história. Neste filme, o uso de palavras tabu é generalizado a todas as patentes das tropas americanas, principalmente pelos jovens soldados ou por patentes superiores relativamente às inferiores. Não há, consequentemente, a associação de valores negativos a este estereótipo, mas sim empatia por grupos de jovens adolescentes que são destacados para a Guerra. Adicionalmente, a linguagem tabu está relacionada com os jovens, enquanto geração que tipicamente recorre a palavras e expressões tabu, no seu uso autêntico. Assim, no filme American Pie: Beta House, estes jovens universitários são caracterizados pelo uso da linguagem tabu e a audiência reconhece a adequação desta linguagem no diálogo de jovens de classes altas e de educação de nível superior. Por isto, o receptor estabelece expectativas relativamente ao desenrolar da história com base neste estereótipo, de teor positivo, porque a maioria das situações comunicativas ficcionais em que estes jovens recorrem ao tabu é de teor cómico. Ambos os casos confirmam que o estereótipo linguístico da linguagem tabu, no qual a ficção se baseia, não se encontra vinculado apenas ao falante de baixo estrato social e de educação reduzida, ou ao vilão da história, mas também a outros grupos específicos, como jovens ou classes profissionais específicas, com quem a audiência cria empatia. Desta forma, confirma-se, pelo menos em parte do corpus, a proposta de Norrick (2012: 32), relativa à alteração do panorama da tradição do uso da linguagem tabu no contexto ficcional, no qual a personagem que tipicamente recorre a estas palavras já não é obrigatoriamente o vilão da história.
Não obstante os filmes estudados retratarem formas de falar características de grupos marginais, de jovens universitários e de soldados, o exagero na produção destas palavras e expressões é comum aos seis filmes. O uso desta marca saliente e facilmente identificável é, assim, exagerado para facilitar a identificação do grupo e o reconhecimento do estereótipo linguístico, como refere Rosa (2003: 175), a respeito da variação linguística.
Adicionalmente, ao estudo aqui proposto cabe ainda apontar algumas limitações entendidas como caminhos para investigação futura. Em primeiro lugar, apesar de considerarmos adequada à investigação singular a amostra de seis filmes com mais de duas mil instâncias tabu para análise, reconhecemos que um maior número de filmes permitira chegar a conclusões mais abrangentes. Por outro lado, ponderamos que a inclusão de outros filmes possa alterar a tipologia de funções intratextuais e extratextuais aqui proposta, pelo que consideramos que deve ser vista como “work in progress”, podendo ser alterada e ampliada, em resultado de uma nova discussão sobre o tema.
Notas finais
1Este artigo tem por base o trabalho desenvolvido na tese intitulada Tabu e Tradução Audiovisual: um estudo descritivo de normas de tradução para legendagem de linguagem tabu em contexto televisivo (Xavier, 2019).
2Jay (1992: 217-218) recorda a conjuntura inicial desta censura aos filmes norte-americanos em que até a palavra damn causava desconforto à comissão de classificação de filmes ao relembrar a história de como Selznick foi multado em cinco mil dólares pela insistência em manter a frase “Frankly, my dear, I don’t give a damn” em Gone with the Wind.
3Vide: “List of films that most frequently use the word ‘fuck’” (https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_films_that_most_frequently_use_the_word_%22fuck%22). O filme tem 153 instâncias ‘fuck’ o que equivale a 1,04 por minuto, não incluindo outras palavras tabu que possam fazer parte do filme.
4Apesar de proposto inicialmente para o estudo das funções do multilinguismo na Literatura, o enquadramento de Delabastita (2002) é especialmente relevante e adequado à categorização de funções extratextuais da linguagem tabu na ficção audiovisual.
5As plataformas utilizadas foram as seguintes: “List of films that most frequently use the word ‘fuck’” (disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_films_that_most_frequently_use_the_word_%22fuck%22); 2) “Hollywood’s most profane movies” (disponível em http://xfinity.comcast.net/slideshow/entertainment-profanemovies/); 3) Internet Movie Database (disponível em www.imdb.com); pesquisa de filmes classificados como “restricted” de acordo com The Classification and Rating Administration (disponível em http://filmratings.com/).
6Cada palavra tabu foi verificada separadamente em três dicionários distintos: 1) Cambridge Advanced Learner’s Dictionary (CALD); 2) Collins Cobuild Dictionary for Advanced Learners (CCDAL); e 3) Oxford Advanced Learner’s Dictionary (OALD). Desta forma, evita-se o enviesamento dos dados.
7Por exemplo, no filme Pulp Fiction, Vince e Jules, duas das personagens principais, usam frequentemente palavras tabu na apresentação da sua própria opinião sobre assuntos que discutem e na descrição de situações (e.g. “This is some fucked-up repugnant shit”).
8Como exemplos, Melvin, numa cena de frustração da personagem em Another Day in Paradise, grita “Fuck!”, sem que haja um receptor da linguagem tabu. Igualmente, em Pulp Fiction, Mia surge numa casa de banho de um restaurante a drogar-se e diz para si mesma: “I said goddamn! Goddamn!”. Também em Pulp Fiction, Vincent grita “Oh fuck me! Fuck me!”, ao ver Mia deitada no chão, numa crise de overdose de heroína.
Referências bibliográficas
Allan, Keith e Kate Burridge. 2009. “Swearing.” In Comparative Studies in Australian and New Zealand English. Grammar and beyond. Organizado por Pam Peters, Peter Collins e Adam Smith, 359-384. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.
Ávila Cabrera, José Javier. 2014. The subtitling of offensive and taboo language: a descriptive study. Tese de doutoramento. UNED-Universidad Nacional de Educación a Distancia.
Ávila Cabrera, José Javier. 2015. “Propuesta de modelo de análisis del lenguaje ofensivo y tabú en la subtitulación” in Verbeia. Revista de estudos filológicos nº0: 8-27.
Azad, Sehar. 2009. Lights, Camera, Accent: Examining Dialect Performance in Recent Children’s Animated Films. Dissertação de mestrado. Georgetown University.
Bednarek, Monika. 2019. “The multifunctionality of swear/taboo words in television séries.” In Emotion in Discourse. Organizado por J. Lachlan Mackenzie e Laura Alba-Juez, 29-54. Amsterdam: John Benjamins.
Beers Fägersten, K. 2014. “The use of English swear words in Swedish media”. In Swearing in the Nordic countries. Organizado por Marianne Rathje, 63-82. Copenhagen: Dansk Sprognævn.
Blake, Norman F. 1981. Non-Standard Language in English Literature. London: André Deutsch.
Briechle, Lucia e Eva Duran Eppler. 2019. “Swearword strength in subtitled and dubbed films: A reception study” in Intercultural Pragmatics 16, 4: 389-420.
Cressman, Dale L., Mark Callister, Tom Robinson e Chris Near. 2009. “Swearing in the cinema. An analysis of profanity in US teen-oriented movies, 1980-2006” in Journal of Children and Media, 3, 2: 117-135.
Delabastita, Dirk. 2002. “A Great Feast of Languages. Shakespeare’s Multilingual Comedy in ‘King Henry V’ and the Translator” in The Translator, 9, 2: 303-340.
Díaz Cintas, Jorge. 2001a. La Traducción Audiovisual: El Subtitulado. Salamanca: Almar.
Díaz Cintas, Jorge. 2001b. “Sex, (sub)titles and videotapes.” In Traducción subordinada II: el subtitulado (inglés – español/galego). 2001. Organizado por Lourdes Lorenzo Garcia e Ana Maria Pereira Rodriguez, 47-67. Vigo: Universidade de Vigo.
Dimitrova, Birgitta Englund. 2004. “Orality, literacy, reproduction of discourse and the translation of dialect.” In Dialektübersetzung und Dialekt in Multimedia. Organizado por Irmeli Helin, 121-139. Frankfurt am Main: Peter Lang.
Dobrow, Julia e Calvin Gidney. 1998. “The Good, the Bad, and the Foreign: the Use of Dialect in Children’s Animated Television.” In The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science 1998, 557. pp. 105-119.
Hodson, Jane. 2014. Dialect in Film and Literature. London/New York: Palgrave Macmillan.
Jay, Timothy. 1992. Cursing in America. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins.
Kozloff, Sarah. 2000. Overhearing Film Dialogue. Berkeley/Los Angeles: University of California Press.
Kristiansen, Gitte. 2001. “Social and linguistic stereotyping: a cognitive approach to accents” in Estudios Ingleses de la Universidad Complutense, 9: 129-145.
Leech, Geoffrey N. e Michael H. Short. [1981] 1982. Style in Fiction: A Linguistic Introduction to English Fictional Prose. London/New York: Longman.
Lippi-Green, Rosina. 1997. English with and Accent: Language, Ideology and Discrimination in the United States. London: Routledge.
McEnery, Tom. 2006. Swearing in English. Bad Language, purity and power from 1585 to the present. London/New York: Routledge.