“The case of the wrong man” – Cinema as an instrument to denounce the genocide of the black population

“O caso do homem errado” – o cinema como instrumento de denúncias do genocídio da população negra

Edileuza Penha de Souza1

Universidade de Brasília - UnB, Brasil

Abstract

The present paper analyzes the fallacy of racial democracy in Brazil, studying the film The Case of the Wrong Man, documentary by Camila Moraes which investigates in detail the death of Júlio César de Melo Pinto, a black young man murdered by the police on May, 14th, 1987, in the state of Rio Grande do Sul. The documentary feature film was born in 2015, when the movie director was in college and taking a course on investigative journalism. Through several collected testimonies, the movie director reproduces the episodes involved in the execution of Júlio César, bringing to the film the view, the technique and the sensitivity peculiar to a black woman movie maker who reaffirms the osition of the black cinema in the space of the feminine. A documentary at the same time expository and investigative, marked by the argument that “Black lives matter”, The Case of the Wrong Man, consolidates itself as a film from within, towards from the outside. By denouncing the genocide of the Brazilian black youth, the film presents the helplessness and hopelessness of the black families in the country and reiterates the innocence of Júlio César.

Keywords: Documentary, The Case of the Wrong Man, Genocide of the Black Youth, Júlio César de Melo Pinto, From the Outside.

Introdução

Oh!, meu Brasil verdadeiro
Não me iludo mais com tuas falácias
Devo mesmo apagar essa longa mentira
Devo mesmo cobrar esta dívida antiga
Devo mesmo dizer que não há mais dúvidas.

Nelson Maca

A falácia da democracia racial tira a vida de homens negros e mulheres negras todos os dias. Tem sido assim! A execução da juventude negra pelo Estado brasileiro e demais instituições públicas ocorre em muitos lugares, em todos os momentos. Foi assim naquele 14 de maio de 1987, quando Júlio César de Melo Pinto, homem, negro, jovem, trabalhador saiu de sua casa em Porto Alegre!

Perde-se a conta de quantas vezes foi assim! Na noite de 23 de julho de 1993, quando Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos, Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos, Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos, Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos, “Gambazinho”, 17 anos, Leandro Santos da Conceição, 17 anos, Paulo José da Silva, 18 anos; e Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos dormiam na calçada da igreja da Candelária no Rio de Janeiro. “Os homicídios de jovens representam uma questão nacional não só de segurança pública, mas de saúde pública também” (BRASIL, 2017).

Foi assim!... no dia 6 de fevereiro de 2015, 88 dos 143 tiros disparados ceifaram as vidas de Evson Pereira dos Santos, 27 anos, Ricardo Vilas Boas Silvia, 27, Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luís Pereira Rodrigues, 21, Adriano de Souza Guimarães, 21, Vitor Amorim de Araújo, 19, Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19, Bruno Pires do Nascimento, 19, Tiago Gomes das Virgens, 18, Natanael de Jesus Costa, 17, Rodrigo Martins de Oliveira, 17, e Caique Bastos dos Santos, 16 anos, no bairro do Cabula, na cidade mais negra do país, Salvador.

Diante de dados tão assustadores perguntamos: o que se pode esperar de uma sociedade que expõe os seus jovens a um grau alarmante de violência? Que extermina os seus jovens? E, mais ainda, quando esse extermínio tem como recorte de crueldade o fato de a maioria desses jovens serem homens e negros? As ciências criminais serão capazes de nos ajudar a descriminalizar essa juventude e se contrapor ao seu extermínio? O sistema de justiça consegue, de fato, fazer justiça? A educação se preocupa com essa questão? (GOMES e LABORNE, 2018).

Tem sido assim!... 111 tiros no dia 28 de novembro de 2015 tiraram a vida e os sonhos de Roberto, Carlos Eduardo, Cleiton, Wilton e Wesley, quando apenas comemoravam a alegria do primeiro salário. E não para por aí. No Brasil, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Afinal, “a carne mais barata do mercado é a carne negra2

Não basta nascer pobre, se assim fosse, no dia 3 de fevereiro de 2004, policiais militares da Força Tática do 5º Batalhão de São Paulo não teriam matado a tiros o dentista Flávio Ferreira Sant´Anna, homem negro de 28 anos, quando voltava do Aeroporto Internacional de Guarulhos em seu carro importado, “homicídio é a principal causa de mortalidade entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, fenômeno que mostra crescimento pelo menos desde a década de 1980” (BRAZIL, 2017).

É assim! Ser negro, numa sociedade racista e excludente como a brasileira, é a premissa para a execução sumária, como foi no dia 14 de fevereiro de 2019 a morte do jovem negro Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, estrangulado por um segurança do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Teve um pouco mais de sorte o empresário negro Crispim Terral, de 34 anos, e escapou da morte no dia 19 de fevereiro do mesmo ano, quando foi imobilizado e retirado a força de uma agência da Caixa Econômica, em Salvador.

Não cabem nessas páginas. São mais de 60 mortes diárias, ultrapassam 1.800 mortes por mês. A vulnerabilidade de ser negro desestrutura a vida de mais de 22 mil famílias brasileiras anualmente. Famílias que sofrem com a perda de filhos, pais, irmãos, namorados, netos, sobrinhos, afilhados, maridos, primos, amigos, amantes, colegas, estudantes, trabalhadores...

Enquanto escrevo esta resenha, escuto o noticiário de mais um desses erros. Desta vez, militares do Exército, amparados pela Lei nº 13.491, de 20173, que determina que quando em serviço, os crimes “cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União”, dispararam “por erro” mais de oitenta tiros em um carro, guiado pelo músico negro Evaldo Rosa dos Santos. Para o delegado da polícia civil que assumiu o caso no momento, “Tudo indica que houve o fuzilamento do veículo de uma família de bem indo para um chá de bebê. Uma ação totalmente desproporcional e sem justificativa” (Delegado Leonardo Salgado em entrevista à imprensa4). O resultado, é mais um corpo estendido no chão. São muitos nomes e sobrenomes, de comum, eles têm apenas a cor que os marca para morrer.

O racismo faz aumentar a vitimização violenta das populações negras por dois canais, um indireto e o outro direto. O canal indireto está associado à pior condição socioeconômica dos afrodescendentes, que deriva não apenas de um processo de persistência na transmissão intergeracional do baixo nível capital humano, que seguiu como um legado da escravidão, mas por consequência dos efeitos culturais da ideologia do racismo no mercado de trabalho para negros. Se, do ponto de vista da demanda por trabalho, o racismo bloqueia o acesso a oportunidades e interdita o crescimento profissional, efeitos igualmente maléficos podem ocorrer pelo lado da oferta de trabalho. (Cerqueira e Moura, 2013, p. 13).

Até quando? Essa foi a pergunta do Movimento Social Negro - MSN após a execução de Júlio César de Melo Pinto. Essa é a pergunta que setores da sociedade civil fazem a cada execução, que a jovem cineasta Camila Lopes de Moraes clama em seu primeiro longa-metragem, o documentário “O Caso do Homem Errado”. O filme reúne depoimentos que elucidam “o caso”, e não é por acaso que Camila de Morais desvenda o descaso das autoridades.

Depois de meses de apuração jornalística, com a descoberta do local do crime, a reconstituição do itinerário feito pela viatura policial, a derrubada de versões apresentadas pela BM [Brigada Militar] e a identificação dos envolvidos na execução, o caso foi a julgamento na Justiça Militar. A maioria dos PMs acusados – entre eles, dois oficiais – foi expulsa da BM. 5

Embora Camila não tenha conhecido Júlio Cesar pessoalmente, desde muito pequena ouvia histórias sobre ele e de como fora barbaramente assassinado. Júlio Cesar era irmão de criação do pai de Camila, o jornalista Paulo Ricardo de Moraes e padrinho de seu irmão mais velho, o arquiteto Horácio Lopes de Moraes.

O percurso do filme e da cineasta Camila de Moraes

Figura 1 – Cartaz do Filme

Título: “O Caso do Homem Errado”
Produtora: Praça de Filmes
Diretora: Camila de Moraes
Roteiro: Camila de Moraes, Mariani Ferreira e Maurício Borges de Medeiros
Produção Executiva: Camila de Moraes e Mariani Ferreira
Elenco: (Depoentes): Juçara Pinto, Paulo Ricardo de Moraes, Ronaldo Bernardi, Luiz Francisco Corrêa Barbosa, João Carlos Rodrigues, Jair Kirschke, Edilson Nabarro, Renato Dornelles, Paulo Antônio Costa Corrêa, Waldemar Moura Lima, Vera Daisy Barcellos, Romeu Karnikowski, Aline Kerber
Direção de Fotografia: Maurício Borges de Medeiros
Trilha Sonora: Rick Carvalho
Montagem: Maurício Borges de Medeiros
Desenho de Som: Guilherme Cássio dos Santos

Um cinema que devolve a dignidade de parte de nossas histórias. Ainda na universidade, a disciplina de jornalismo investigativo despertou em Camila a ideia de fazer o filme, que a princípio seria um curta-metragem. Em 2015, ela buscou financiamento coletivo para realização, mas não obteve êxito, como também em 2016, quando, apesar do novo insucesso, a equipe resolveu iniciar o filme, cujas gravações foram realizadas em junho, em Porto Alegre, e seis meses depois, em Brasília.

O argumento foi ganhando volume, e no meio de pesquisas em arquivos de jornais e televisão, os roteiristas Mariani Ferreira, Maurício Borges de Medeiros e Camila de Moraes abandonaram a opção inicial por um curta-metragem por terem visto nos vigorosos depoimentos a possibilidade de ampliar a narrativa para um longa–metragem. A sintonia dos roteiristas trouxe para as telas um filme delicado e contundentemente cuidadoso nas relações a aparição de cada pessoa.

Nos depoimentos de Paulo Ricardo de Moraes – militante do MSN, jornalista e irmão da Vítima –, Ronaldo Bernardi – fotógrafo, autor do registro fotográfico do caso –, Luiz Francisco Corrêa Barbosa – advogado e ex-procurador da república –, o repórter João Carlos Rodrigues, Jair Kirschke – presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos –, o sociólogo Edilson Nabarro, o jornalista Renato Dornelles; Paulo Antônio Costa Corrêa - vizinho na época de Júlio César -, Waldemar Moura Lima – professor e ex-secretário da educação–, Vera Daisy Barcellos – jornalista, militante do MSN–, Romeu Karnikowski – advogado do Sindicato da Polícia Civil–, a socióloga Aline Kerber, e da viúva Jussara Pinto o filme costura o tempo com as lembranças de pessoas que, de alguma forma, cruzam a história da vida à morte de Júlio César de Melo Pinto.

Ao reconstituir os episódios da execução de Júlio César, Camila traz o olhar, a técnica e a sensibilidade peculiar a uma mulher negra cineasta. “O caso do homem errado” é um cinema de gente negra para o mundo, fiel ao movimento que desde Zózimo Bulbul6 se consolida como um cinema de desde dentro, para desde fora, um documentário expositivo e investigativo, demarcado pelo argumento “Vidas negras importam”. Nessa premissa, Camila relata o desamparo das famílias negras e reitera a inocência de Júlio César.

Fotos 1 e 2 – Set de gravação – Fotos de Irene Santos

Ainda na época da investigação e julgamento do caso, a defesa do réu contou com depoimentos dos assaltantes e das pessoas feitas reféns durante o assalto. As sequências de fotos de Ronaldo Bernardi, publicadas no jornal “Zero Hora”, foram fundamentais para provar a inocência de Júlio César e caracterizar o racismo institucional do Estado. Na trama, violência, dor e poesia, leveza e ternura atravessam o documentário em diversos momentos, como no depoimento do irmão de criação, Paulo Ricardo. No entanto, é a narrativa de Juçara Pinto que traz a marca da dor na memória de quem fica. Juçara fala dos sonhos abortados com a morte de Júlio; da timidez, do cuidado, do respeito e da doçura de seu companheiro.

Embora a mãe de Júlio César, dona Maria Sebastiana de Melo Pinto, não esteja fisicamente no documentário, os relatos sobre ela nos permitem sentir sua imensa dor e aflição. A reprise do padecimento, do luto e do tormento de todas as mulheres com a morte de seus filhos. Juçara e dona Sebastiana parecem entoar os versos da canção “Não Lugar” de Ellen Oléria: “Quem fica é quem sofre / Quem fica é quem sofre”.

Fotos 3 e 4 – Set de gravação – Fotos de Carlos Moura

O longa-metragem “O caso do homem errado” faz coro a uma filmografia de denúncia do extermínio da juventude negra, a exemplo do curta-metragem da cineasta capixaba Daiana Rocha, “Braços Vazios7” (2018), onde ficção e documentário se misturam para narrar a história de Vera, mãe de Carlos, barbaramente assassinado aos 16 anos. O doloroso isolamento de Vera sucumbe numa fresta de esperança ao encontrar um grupo de mães irmanadas no mesmo lamento.

Foto 5 – Mulheres no Set de gravação - Foto de Irene Santos

Outras tantas produções como “Auto de Resistência” (2018), documentário de Natasha Neri e Lula Carvalho; “Talvez Futuro” (2011), animação de Jamile Coelho em stop-motion, têm encontrado no cinema espaço para denunciar o assassinato de jovens negros. Camila não está sozinha.

Seu cinema se assenta na Associação dos Profissionais do Áudio Visual Negro - APAN, nascida da necessidade de fomentar a diversidade racial em toda a cadeia produtiva do audiovisual, cuja política se estrutura na concepção, produção, distribuição e exibição do audiovisual, com o compromisso de combater o racismo, as discriminações e os preconceitos.

Camila de Moraes conta como é difícil ser e permanecer diretora negra e o quanto o racismo e o sexismo tentam deslegitimar o lugar de ser cineasta negra. Em entrevista, a cineasta descreveu o intenso aprendizado que lhe permitiu inserir o filme no circuito comercial, mas sobretudo falou das lições de vida pessoal e profissional que realizar o filme lhe proporcionou.

Inspirações dos depoentes formaram o fio condutor do filme, entretanto eles também possibilitaram um giro 360º grau na vida profissional. Eu trabalhava com assessoria de comunicação e quando terminamos o filme começou a dificuldade de distribuir, então eu precisava sair dessa fase e fui fazer a produção executiva do filme. Aí eu tinha que aprender a fazer o filme circular (Camila, 2019).

Em março de 2018, o documentário entrou em circuito comercial, o que parece ter sido o abre-te sésamo para percorrer diversos festivais. Camila revela que há um caminho árduo para que um filme de produção independente entre no circuito comercial, e destaca a importância de ter participado do Festival Latino-Americano, em São Paulo, e da 2ª Mostra Cineclube Teresa de Benguela: Encontros, em Vitória, onde ela e a amiga, produtora e corroteirista Mariana Ferreira foram responsáveis por um laboratório de escrita de narrativas.

Camila enfatiza os momentos de trocas e aprendizagem com a equipe de filmagem, composta majoritariamente por pessoas negras, com paridade de gênero. Nos sets de gravação, a maioria usaram roupas de tecidos africanos, como forma de integração e posicionamento político.

Em mais um passo de sua trajetória promissora, o filme está disponibilizado para os próximos três anos na programação do É Tudo Verdade do Canal Brasil. Camila também destaca o quanto o filme tem repercutido e das estratégias de mobilização em todos os locais onde o filme tem sido exibido; “Nunca vou sozinha aos locais, em todas as ações para exibir e/ou falar do filme temos ido ‘em bando’, o que tem fortalecido ainda mais o percurso do filme”.

Fechar um contrato com Canal Brasil foi algo bem legal que aconteceu, foi o momento de aprender a ler um contrato, a vender o filme. Estamos o tempo todo fazendo cinema de guerrilha, cinema de resistência. Daí não aprendemos essas coisas. Ninguém diz para você: “tem que fazer assim”. Ninguém ensina, a agente vai rompendo barreiras, vai aprendendo a fazer cálculos, calcular custos, negociar com salas de cinema. Entrar no circuito nacional (Camila, 2019).

O desejo da diretora é agora disponibilizar o filme para cineclube, escolas e demais entidades que debatem de diferentes modos a importância de vidas negras.

O circuito dos afetos

Quero mais espaço para que
mais pessoas negras ocupem o audiovisual.

Camila (2019)

Em 2016, Camila conseguiu apoio da Produtora “Praça de Filmes”, de Porto Alegre, o que possibilitou fazer as gravações. Essa parceria foi feita após a finalização da campanha de financiamento coletivo que não teve êxito. O filme circulou em quinze estados brasileiros e mais o Distrito Federal. Por onde anda, a diretora tem ouvido histórias de extermínio, desamparo e dor, algumas delas evocam a execução de Júlio Cesar, enredos muito semelhantes de uma mesma história. Nesse caso, houve o. diferencial da intensa e ampla mobilização por parte do Movimento Social Negro do Rio Grande do Sul, do Movimento de Justiça dos Direitos Humanos e da própria família de Júlio César, que na época travaram uma batalha incessante com o Estado.

“O caso do homem errado” denuncia o racismo e preconceito racial. Júlio César de Melo Pinto foi morto por se preto, foi esse o único motivo que impeliu umas das pessoas presentes a gritar “pega ladrão!”. Sua detenção evidencia o abismo social de um país que foi e continua sendo escravocrata e colonialista. Sua morte, desenha o genocídio perpetrado pelas forças de segurança como a segunda maior causa de mortes violentas no País, e aponta para a urgente necessidade de verdadeiramente democratizar os espaços institucionais e a sociedade civil para construir outras visões de mundo. Ao que a psicóloga Cida Bento afirma:

As decisões, normas, planos e programas que emanam destes lugares institucionais afetam uma gama variada de grupos com trajetórias, identidades, interesses e contribuições diversificadas e impactam seus direitos, muitas vezes conquistados após muita luta, nas ruas. Não podem ser decisões tomadas a partir de premissas e processos viciados, excludentes e antidemocráticos (BENTO).

Em agosto de 2017, o filme estreou nacionalmente no 45º Festival de Cinema de Gramado. A partir daí, foi exibido em vários festivais, mostras e cineclubes, e premiado como melhor longa-metragem do 9º Festival Internacional de Cine Latino, Uruguay y Brasil, em Punta del Este, em novembro de 2017; e na II Mostra Competitiva de Cinema Negro – Adélia Sampaio, em novembro de 2018. “O caso do homem errado” chegou ao circuito comercial como o primeiro filme de uma cineasta negra brasileira a ser cotado para representar o Brasil no Oscar, na categoria filme estrangeiro, porém não figurou entre os escolhidos pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura.

“É uma história que precisa ser contada”, afirma Camila, e nos remete à importância de fazermos cinema, conforme Zózimo Bulbul proclamava: “o cinema é uma arma, nós negros temos uma AR15 e com certeza sabemos atirar”.

Além do assassinato de Júlio César, a produção discute as mortes de pessoas negras de que a polícia é acusada. O grande número de jovens negros mortos no Brasil, pelas forças de segurança pública, levou a Anistia Internacional a tratar a situação como genocídio da juventude negra. O filme também apresenta dados sobre a violência contra a comunidade negra. “Vivemos num país, onde o Estado está autorizado a matar a população negra”, afirma Camila, e enfatiza a dificuldade que a população negra tem em fazer cinema, de construir e consolidar um cinema negro, uma vez que todas as estruturas brancas e racistas agem na contramão da diversidade.

Muitas pessoas negras estão trabalhando para chegar e cumprir os vários rituais impostos pelo mercado. No entanto, muitas vezes sequer a gente consegue chegar ao eixo que eles determinam. Por exemplo, o filme, no início do nosso circuito comercial, por questões estratégicas, escolhemos começar por Rio Grande do Sul, onde o caso ocorreu, Bahia, por ser o estado mais negro no país, e Acre, por estar na região norte do país, para depois ir para os demais estados brasileiros. No entanto um dos pré-requisitos para entrar concorrer para representar o país no Oscar, é entrar em circuito comercial e que tenha ficado em cartaz pelo menos no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Após Acre entramos em cartaz em São Paulo e depois em outros 11 estados, além de cumprir outros requisitos do regulamento, foi o que nos possibilitou a chegar na lista de possíveis filmes nacionais para representar o país no Oscar de 2019. O que percebemos? As nossas produções negras normalmente não chegam nesse patamar de circuito comercial. O que quero dizer é que gente não tem as mesmas condições de competir com quem há séculos faz cinema – e só fazem isso, vivem disso. Pessoas brancas não precisam nomear o seu cinema de “Cinema Branco”, isso está naturalizado, o cinema é branco e masculino, além de elitista. Então, é preciso proporcionar melhores condições para que se possa de fato estruturar um cinema negro, um cinema LGBTT, um cinema inclusivo. Não queremos cota das sobras. As pessoas sempre tiveram 100% das fatias milionárias do Cinema, daí eles dão migalhas para fingir que estão fazendo inclusão no Cinema Brasileiro. Não é mais possível continuar assim, são necessários recursos para produzir audiovisual e as pessoas precisam ser bem remuneradas. Por exemplo, é inadmissível lançar um edital para produção e produtores negros/negras e premiar pessoas brancas. Chega disso, estamos em 2019. Por isso, me junto à luta para fortalecer e ampliar o audiovisual feito por pessoas negras. (Camila, 2019).

Foto 6 – Camila Moraes – Foto de Fafá Araújo

“O caso do homem errado” rodou pelo mundo e tem servido de ponte para debater o extermínio da população negra. Em fevereiro deste ano, Camila participou de um debate sobre o genocídio da juventude negra na Universidade da Califórnia; a aceitação do público nos congressos e festivais na Argentina, Brasil, Estados Unidos, Portugal e Uruguai, por onde o filme foi exibido demonstra a urgência da representação do povo negro no cinema e o poder da imagem na construção da identidade. Ao mesmo tempo, nos remete ao que Muniz Sodré (2002) chamou de conceito de pertencimento, ou seja, em qualquer parte do mundo é o coletivo que nos possibilita a humanização.

Na comunidade está implicada a ideia de uma continuidade, derivada não dos atributos de uma entidade ou da propriedade de uma substância comum (seja sangue, território, um laço cultural, etc.), e sim da partilha de um múnus, que é a luta comum pelo valor, isto é, pelo que obriga cada indivíduo a obrigar-se com o outro. Tal é a dívida simbólica, transmitida de uma geração para outra por indivíduos imbuídos da consciência de uma obrigação, tanto para os ancestrais... quanto para com os filhos... (SODRÉ, 2002, p. 178).

Camila também demarca o momento de retrocesso que o Brasil, em especial a Cultura e a Educação, passa neste momento, mesmo assim ela segue otimista com muitos planos para o futuro: “Vou tirar alguns projetos da gaveta. A busca agora é tentar permanecer no audiovisual, tenho muitos planos, quero fazer ficção, penso em fazer uma série e estou trabalhando no roteiro de dois documentários”.

Se por um lado o filme “O caso do homem errado” demarca a violência e o genocídio da população negra, por outro, ele celebra o cinema negro no feminino em que Camila de Moraes concretiza, em denúncia, o combate às múltiplas opressões, evocando em setenta e sete minutos uma estética de afetos e aprendizagem. Encerramos este texto com o poema Negridianos, de Lívia Natalia, por entender que a poética de Camila de Moraes é uma alternativa que consolida um cinema que se impõe fértil e poderoso.

Há uma linha invisível,
lusco-fusco furioso dividindo as
correntezas.
Algo que distingue meu pretume de
sua carne alva
num mapa onde não tenho territórios.

Minha negritude caminha nos sobejos,
nos opacos por onde sua luz não
anda,
e a linha se impõe poderosa,
oprimindo minha alma negra,
crespa de dobras.

Há um negridiano meridiando nossas
vidas,
ceifando-as no meio incerto,
a linha é invisível mesmo:
mas nas costas ardem,
em trilhos rubros,
a rota-lâmina destas linhas absurdas
que desenhas
enquanto eu não as enxergo.

Notas finais

1Professora, historiadora, doutora em educação e comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisadora e documentarista, foi estudante na Escuela Internacional de Cine y TV de San Antonio de los Banõs – República de Cuba. Autora e organizadora da Coleção: “Negritude Cinema e Educação – Caminhos para implementação da lei 10.639/2003”, editado pela Mazza Edições, Belo Horizonte, Brasil.

2Trecho da música “A carne”, composição de Seu Jorge, Marcelo Yuca e Wilson Capellette. Interpretada por Elza Soares no álbum “Do cóccix até o pescoço” (2002).

3Lei sancionada em 13 de outubro de 2017 pelo governo Temer e o seu ministro da Defesa Raul Jungmann, alterou o Decreto-Lei nº 1.001 do Código Militar (de 21 de outubro de 1969).

4“Exército dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico” Folhapress de 08/04/19 às 12:28 atualizado às 12:52. Disponível em: <https://www.bemparana.com.br/noticia/exercito-dispara-80-tiros-em-carro-de-familia-no-rio-e-mata-musico>. Acesso em: 8 abr. 2019.

5Disponível em: <https://agroemdia.com.br/2018/08/26/filme-gaucho-e-um-dos-candidatos-a-indicacao-do-brasil-ao-oscar/>

6Zózimo foi ator, diretor e roteirista, pelo protagonismo e conjunto de sua obra, é considerado o pai do cinema negro brasileiro.

7Ficção, (16min) - 2018.

Referências

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Camila de Moraes, Entrevista concedida a Edileuza Penha de Souza, em março de 2019.

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