Abstract
“The success of the film will depend on the naked thighs of Miss Dietrich”. This was the answer that Heinrich Mann gave to Emil Jannings, when he asked the novelist if he had liked his performance. Made in 1930 and directed by Josef von Sternberg, The Blue Angel will always be remembered in the history of cinema as the movie in which the myth of Marlene Dietrich was born. However, its merits go well beyond this fact. The Blue Angel is the prototype of a hybrid film, made in Germany by an Austrian settled in America since he was a young boy, having been influenced not only by the American studio production, but also by the German Expressionism, through Max Reinhardt. A director whose cinema Nöel Simsolo compares to tapestry, in which all the elements are always necessary and important, with the supremacy of the décor because everything that appears on the screen becomes it. More than a motion picture that marks the end of an era, that of the German silent cinema, or the German Expressionism, more than a ‘foreign’ production of Paramount, The Blue Angel is above all a film by Josef von Sternberg, a point of arrival and a point of departure for all the marvels to come.
Keywords: Josef von Sternberg, Marlene Dietrich, Expressionism, German Cinema, Paramount.
Um pouco de história
“O sucesso do filme será devido às coxas nuas de Marlene” (Baxter 1985, 559).* Foi a resposta que Heinrich Mann deu a Emil Jannings, quando este lhe perguntou se tinha gostado da interpretação dele. Para o robusto e orgulhoso actor alemão (o mais importante do seu tempo, reconhecido tanto pela crítica como pelo público), estas palavras devem ter caído como uma bomba. Mas, de facto, o escritor tinha razão e, embora os méritos do filme não se resumam às coxas nuas de Marlene, o que é certo é que aqui nasceu um dos maiores mitos de sempre da história do cinema: Marlene Dietrich.
Tudo aconteceu um pouco por acaso. Em 1929, sendo a primeira vez que ia participar num filme sonoro, Emil Jannings exigiu ao produtor Erich Pommer que trouxesse de Hollywood para Berlim o realizador Josef von Sternberg (austríaco de nascença, radicado na América desde os 14 anos), com o qual tinha feito nos Estados Unidos o filme The Last Command (A Última Ordem) em 1928. Sternberg estranhou o convite, até porque as relações entre ambos estavam longe de ser as melhores, tendo havido vários conflitos durante a rodagem do filme (dois egos do tamanho do mundo era natural que chocassem um com o outro), ao ponto de Sternberg dizer a Jannings, no final, que jamais voltaria a trabalhar com ele.
Dos seis filmes que fez para a Paramount em apenas três anos, Underworld (Vidas Tenebrosas) em 1927, The Last Command (A Última Ordem), The Dragnet (A Rusga) e The Docks of New York (As Docas de Nova Iorque) em 1928, The Case of Lena Smith (Amor de Mãe) e Thunderbolt (Debandada) em 1929, só o primeiro é que tinha sido um grande sucesso junto do público, o que levou Sternberg a procurar uma viragem na sua carreira (concomitantemente com a passagem do mudo ao sonoro) e a aceitar realizar o primeiro talkie na Alemanha.
A primeira escolha de Jannings foi Rasputin, mas Sternberg vetou por não querer filmar uma história cujo final era conhecido de antemão. Depois Jannings surgiu com o livro Professor Unrat1 escrito em 1905 por Heinrich Mann. Era a história de um professor (Rath) que se apaixona por uma cantora de cabaret (Rosa Frölich), já com um filho de um amante anterior, o que o leva a perder a cátedra. Vinga-se da sociedade que o baniu, integrando-se num movimento político-militar de esquerda até ser preso pela polícia. Sternberg interessa-se sobretudo pela primeira parte da novela e obtém o consentimento do autor para fazer uma adaptação livre.2 Suprime o filho da cantora e toda a segunda parte, transformando-a num dos “mais horríveis estudos da degradação humana jamais filmados” (Monaco 1992, 81). Nasce assim, em 1930, O Anjo Azul.
Naturalmente que o papel de professor estava destinado a Jannings, faltando apenas encontrar a actriz que faria de Lola-Lola.3 Por uma razão ou por outra, os nomes de Lucie Mannheim, Trude Hesterberg ou Brigitte Helm foram rejeitados. Especulava-se que Sternberg andava atrás de uma mulher que não existia quando, ao ver a peça Zwein Krawatten, na qual entravam Hans Albert e Rosa Valetti (que já estavam escolhidos para o elenco do filme), viu
Fraülein Dietrich pela primeira vez em carne e osso, se assim se pode dizer, já que estava vestida como se quisesse esconder todas as partes do seu corpo (Sternberg 1970, 276).
A intuição de Sternberg disse-lhe que estava perante a mulher que procurava. Marlene foi, então, requisitada para fazer um teste, para o qual nada preparou, pois estava convencida que seria uma pura perda de tempo (o mesmo pensava Sternberg, que já tinha decidido dar-lhe o papel). Apesar da oposição de todos os que tinham a ver com o filme (Jannings incluído), foi mesmo contratada.
Não sendo propriamente uma desconhecida,4 só com Lola-Lola, como diz João Bénard da Costa, é que “Marlene começa a ser Marlene” (AAVV 1984, 44). Sternberg, nas filmagens, dedicou-lhe as maiores atenções, provocando enormes ciúmes a Jannings, que, provavelmente, começou a perceber (tendo-lhe Heinrich Mann, na sua resposta, dado a confirmação) que o nome de Marlene Dietrich suplantaria o seu (apesar de este surgir no genérico maior que os demais). Conhecido por ser um actor conflituoso, a rodagem não foi fácil, mas ficou concluída em dois meses (Novembro de 1929 a Janeiro de 1930), no final dos quais foi Jannings, desta vez, a dizer a Sternberg que por nenhum dinheiro do mundo voltaria a filmar com ele.
Quando o filme estreou, em Berlim, Sternberg já tinha regressado à América e Marlene para lá caminhava, contratada pela Paramount.5 A première em 1 de Abril de 1930 foi um grande sucesso e Marlene, que estava presente, na véspera de embarcar para os Estados Unidos, foi aplaudida de pé. De referir, como curiosidade, que na América o filme só foi visto depois de Morroco (Marrocos), a película seguinte estreada nesse mesmo ano, pois os produtores queriam que os americanos vissem primeiro Marlene num filme “made in Hollywood”.
O fim do Expressionismo
Nas enciclopédias, o expressionismo vem definido como um estilo de pintura, escultura e literatura que expressa as emoções interiores da humanidade em vez da sua aparência exterior. Surgido nos começos do século XX na Europa do Norte e Central, o expressionismo tende a distorcer ou exagerar a aparência natural da realidade, muitas vezes através de um uso não-objectivo de símbolos, personagens estereotipados e estilização, para criar um reflexo de um mundo interior. Este movimento é associado ao fim do figurativismo (nas artes plásticas com o cubismo, fauvismo) e à tendência inata dos alemães pela metafísica, pelo maniqueísmo bem/mal, pelo misticismo, etc.
No cinema, o termo expressionismo deve ser utilizado com reserva. É normalmente associado à Escola Alemã da década de 20, tendo começado com Das Cabinet des Dr. Caligari (O Gabinete do Dr. Caligari), de Robert Wiene, em 1920. Para o público alemão daquele tempo, o filme nada tinha a ver com o cinema que se fazia naquele país. Segundo diz Henri Langlois,
Caligari opunha-se ao cinema alemão, marcando o triunfo dos jovens artistas que haviam imposto o expressionismo e a vanguarda plástica e teatral no mundo do écran” (Langlois 1956, 16).
Na génese deste movimento, está um nome fundamental, que é considerado o ‘pai espiritual’ do cinema alemão da década de 20: Max Reinhardt. Director e produtor teatral, influenciou muitos cineastas que se iriam tornar famosos (Murnau, Lubitsch, Preminger, entre outros) e que puseram em prática, no cinema, as suas teorias e encenações teatrais.6 Langlois propõe, então, substituir o termo expressionismo pelo de caligarismo (já que tudo começa e ganha contornos com este filme), para descrever a “aplicação no cinema das pesquisas e das descobertas da arte teatral alemã renovada por Reinhardt” (Langlois 1956, 20).
Verifica-se assim que a classificação expressionista não se aplica directamente à sétima arte. É antes o caligarismo que faz a aproximação entre os dois, através das relações inseparáveis que o cinema tem com o teatro expressionista, pelo qual perpassa a literatura, a música e as artes plásticas. A produção fílmica na Alemanha deste tempo distingue-se, então, da que existe em outras nações (como a França, os Estados Unidos e, posteriormente, a União Soviética), onde o cinema é uma arte nova que se opõe ao teatro, só precisando dele como fonte de inspiração e ponto de partida.
Com o Nosferatu de F.W. Murnau, em 1922, há uma evolução e passa a haver duas correntes: por um lado, aqueles que defendiam Caligari e, por outro, os que eram por Nosferatu, em nome do primado do fundo sobre a forma. Langlois contesta esta interpretação, defendendo que estes últimos (os quais estavam cheios de cinema americano) eram fiéis, sim, a um cinema antiteatral e não ao primado do fundo sobre a forma.
De facto, com este filme,
Murnau soube esquecer as suas próprias experiências teatrais, aproximar-se do cinema, iniciar-se e assimilar a própria essência do cinema (Langlois 1956, 26).
Para além de ser o nome mais representativo do caligarismo, Murnau leva o cinema alemão mais longe, fundindo o caligarismo com o impressionismo francês.
Em 1925, Max Reinhardt foi à América apresentar a sua encenação de O Milagre de Karl Vollmöller, e foi aí que Sternberg o conheceu. O produtor teatral tinha gostado muito do seu primeiro filme (The Salvation Hunters), estreado nesse mesmo ano, e sugeriu-lhe que viesse trabalhar com ele para Berlim. À semelhança do que aconteceu posteriormente, aquando do convite de Erich Pommer, a carreira de Sternberg não passava por um bom bocado (problemas com Charles Chaplin, Mary Pickford e os patrões da Metro-Goldwyn-Mayer), pelo que resolveu aceitar a proposta. No entanto (e ao contrário do que sucedeu na sua segunda visita a Berlim), não obteve quaisquer resultados desta vez, mas parece que aproveitou para ver quase tudo do cinema e teatro alemães, o que, a ser verdade, pode ajudar a explicar muito acerca da influência do caligarismo/expressionismo na sua obra, em especial n’ O Anjo Azul.
O caligarismo é definido por uma extrema estilização dos cenários/décor, assim como das interpretações, luz e ângulos de câmara. Os cenários (distorcidos e abstractos) eram tão importantes como os actores. Para assegurar o controlo e a manipulação completos do décor, da luz e do trabalho de câmara, os filmes eram sempre rodados em estúdio, nunca em exteriores. A luz era deliberadamente artificial, destacando sombras profundas e contrastes pronunciados, a câmara era colocada de maneira a salientar o fantástico e o grotesco, e os actores exteriorizavam as suas emoções ao extremo. Através desta definição, pode explorar-se até que ponto Sternberg é influenciado por este movimento.
Para Sternberg, a tarefa do realizador era muito abrangente e difícil de descrever:
ele controla a câmara de acordo com a sua visão, usa a luz, a sombra e o espaço como a sua mente lhe dita, domina o tempo e o conteúdo do som, controla os cenários, escolhe os actores, decide a sua aparência e maquilhagem, adiciona e corta cenas, e é responsável por cada metro de película. Para além disto, é o chefe das numerosas pessoas que trabalham no filme (...). Esta é a minha tarefa e é minha intenção realizá-la (Sternberg 1968, 10).
A partir disto, não é difícil perceber o porquê de Sternberg só ter realizado um filme em décors naturais (The Salvation Hunters, coincidência ou não, feito antes do seu encontro com Reinhardt). Nos outros filmes, os elementos naturais presentes no argumento foram recriados em estúdio. Sternberg só escrevia os argumentos em função dos elementos de décor desejados ou que eram postos à sua disposição. Considerava tudo o resto (actores, iluminação, ruídos, palavras, música e linguagem cinematográfica) como elementos funcionais nesse décor. Esta importância dada aos cenários é uma aproximação muito concreta de Sternberg ao caligarismo e expressionismo.
N’ O Anjo Azul isto é muito evidente. Temos uma acção que decorre maioritariamente em três espaços fechados (o quarto do professor, a sala de aula e o cabaret), que influenciam tudo e todos.
O quarto do professor é tipicamente um quarto de solteiro, muito desarrumado, papéis por todo o lado, as janelas não se abrem, o único som que presumivelmente havia era o canto do pássaro (que morre no princípio do filme), por conseguinte é um lugar onde ninguém se sente bem (a criada, que se queixa da desarrumação e que cruamente atira o cadáver do pássaro para dentro da salamandra, e o melhor aluno, que se sente visivelmente embaraçado), inclusive o próprio professor, que o vai preterir em favor do cabaret (obviamente que há o ‘factor’ Marlene a desequilibrar a balança) e que, na cena final, prefere a sala de aula ao quarto, para morrer.
A sala de aula é mais arejada e iluminada, o som (a música) já entra pelas janelas (consoante os desejos do professor), é o lugar onde este se sente realizado ao exercer o seu poder sobre os alunos (que não se atrevem a contestá-lo, até à sua decisão de casar com a cantora do cabaret, o que lhe retira toda a credibilidade perante eles e perante o director da escola, provocando a sua demissão). Todavia, dos três espaços, não é por acaso que o professor o escolhe para morrer, porque, apesar da cena de sublevação estudantil e do despedimento, foi o único em que foi verdadeiramente feliz.
O cabaret é o lugar da perdição e da desgraça de todos os personagens: do professor, que vai lá atrás dos seus alunos e é envolvido na ‘rede’ de Marlene, passando de um docente respeitado a um palhaço humilhado e gozado por todos; dos alunos, uma premonitória amostragem da juventude hitleriana,7 que são clientes habituais; da própria Marlene, motivo do ‘desvio’ dos outros, que não é muito feliz e acaba o filme sozinha, como se vê na última vez que canta Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt, em que, como diz João Bénard da Costa,
nem o professor, nem o amante (Hans Albert), nem o público (que já não se vê nem ouve), nem nós (que estamos mais interessados no destino do professor) querem saber dela (AAVV 1984, 62).
Daqui se percebe o que diz Langlois: “O Anjo Azul reconduz-nos à atmosfera confinada da Kammerspiel” (Langlois 1956, 39). Esta expressão (que significa literalmente “teatro de câmara”) foi usada pelo dramaturgo sueco August Strindberg, para definir a transposição para o teatro do carácter intimista da música de câmara. Reinhardt deu este nome a um teatro na Alemanha, que era uma sala muito pequena destinada a um público de elite, a qual representava peças intimistas (os actores estavam muito próximos da assistência) e de carácter fechado. Aqueles três espaços claustrofóbicos e tudo o que neles se passa são a Kammerspiel do filme.
Na carreira de Sternberg, a luz tem também um papel fundamental, sendo referida por Nöel Simsolo como “o elemento essencial da força dinâmica do cinema de Sternberg” (AAVV 1970, 19). A este propósito diz o realizador:
cada raio de luz projecta uma sombra; onde distinguimos uma sombra, deve haver luz. A sombra é o mistério, a luz é a claridade. A sombra esconde, a luz revela (a arte consiste em saber o que é necessário revelar, o que é preciso esconder e em que grau e como isto se deve fazer). (...) O conhecimento da significação da luz e os seus efeitos é a primeira fase da arte da fotografia (AAVV 1970, 20-21).
Há uma certa semelhança no tratamento da luz no caligarismo/expressionismo e em Sternberg (como exemplo, temos a luz deliberadamente artificial – o foco do segurança da escola – que ilumina o corpo inerte do professor em cima da secretária na cena final e, em todas as canções de Marlene, o foco do cabaret projectado nela).
Todavia, nesta altura, já o auge do caligarismo tinha acontecido. Em 1922, dois anos depois da estreia de Caligari, o poeta Ivan Goll proclamava a morte do expressionismo, que era rejeitado pela maioria dos artistas e intelectuais teutónicos. O expressionismo aparecia no cinema, quando estava moribundo nas outras artes, mas também não durou muito mais tempo. Langlois afirma que foi em 1924 que o caligarismo entrou em decadência, exactamente quando começava a ser aceite na América. Concomitantemente com a estreia dos filmes de Chaplin e Griffith na Alemanha, surgem outros filmes (como Die Verrufenen [Bairros de Lata de Berlim], de Gerhard Lamprecht e Varieté [Variedades], de E.A. Dupont) que prenunciam o naturalismo e o realismo na sétima arte.
Portanto, em 1930, é natural que O Anjo Azul também ultrapasse o caligarismo/expressionismo (contendo até um certo grau de realismo, principalmente nas personagens, que são humanos e não vampiros, monstros ou outros seres com poderes sobrenaturais). As performances dos actores estão já muito longe de elevar ao extremo as suas emoções, com o típico gesto inacabado, em devir, com esgares, que foi herdado de Reinhardt. O maniqueísmo bem/mal não é tão evidente (mesmo a personagem de Marlene, até que ponto será ela não a ‘má da fita’, mas sim mais vítima de toda a situação que se gerou – não esquecer que ela acaba o filme sozinha –?). Os décors, apesar de serem igualmente fundamentais, não são fantásticos nem bizarros. Refere Simsolo que Sternberg
utiliza-os com contornos mais ou menos irregulares, mas inscritos num conjunto onde a harmonia e o equilíbrio acabam por se impor ao olhar (AAVV 1970, 14).
Este crítico compara o cinema de Sternberg a uma tapeçaria, na qual todos os elementos são necessários e importantes; a supremacia do décor vem do facto de tudo o que está no ecrã tornar-se décor.
Influências da Paramount
Quando aceitou o convite de Erich Pommer e foi para Berlim, Josef von Sternberg já tinha realizado seis filmes para a Paramount. O realizador refere, no seu livro Fun in a Chinese Laundry, que o estúdio só lhe concedeu as ‘férias’ alemãs na condição de prolongar o seu contrato por mais dois anos. Assim aconteceu, tendo igualmente a Paramount satisfeito o pedido de Sternberg, no final da rodagem d’ O Anjo Azul, e contratado Marlene Dietrich, assegurando também a distribuição do filme nos Estados Unidos.
De entre todos os estúdios americanos, a Paramount ocupa um lugar muito especial e tem características muito próprias. Aos realizadores era dada grande liberdade pelos produtores, que interferiam muito menos no seu trabalho do que nas outras companhias. Adolphe Zukor, que a fundou, traz para o cinema a noção broadwayiana de “actores famosos em obras famosas”, o que leva a companhia a ter estreitas ligações com o teatro, indo buscar a esta arte muitos actores e actrizes. Enquanto os outros estúdios mantinham uma certa uniformização de estilo (os realizadores não faziam filmes muito diferentes entre si), na Paramount os cineastas preservavam o seu próprio estilo e toque pessoal. Isto é também devido ao facto de a Paramount ter uma cadeia de distribuição e exibição própria, que monopolizava os principais cinemas nos centros metropolitanos (chegando, assim, a muitas pessoas), o que lhe dava imensa liberdade para transpor os limites de um género e os clichés da época. Outra característica importante era o erotismo, presente em diversos filmes, o que levou Ethan Mordden a dizer que “o que a Paramount queria era meter todo o mundo na cama” (Mordden 1989, 70).
Habituado que estava a todo este universo, Sternberg transporta-o para Berlim. Deste modo, consegue que Pommer lhe desse controlo total sobre o filme e lhe prometesse que este iria sair tal como era idealizado pelo cineasta, o que viria a ser de importância fundamental, nomeadamente na escolha de Marlene, que não era desejada por ninguém e que assim pôde participar no filme. A atitude de Pommer foi acolhida com muita reserva pelos outros chefes da organização (e o próprio Pommer não estava muito seguro). Afinal de contas, ir-se-ia dar liberdade a um cineasta estrangeiro para fazer um filme no qual “a imagem exterior da moralidade e do orgulho alemães era violada” (Sternberg 1970, 285), já que a ideia que se dava do sistema escolar não correspondia à realidade e o caso do professor com uma cantora de cabaret estava longe satisfazer o ego do povo alemão.8
A segunda parte do argumento, totalmente modificada por Sternberg, corresponde ao “tratamento do amor como uma humilhação da autoestima” (Mordden 1989, 42). Por coincidência, ou talvez não, outros filmes da Paramount da mesma altura tinham o mesmo tema, como, por exemplo, The Love Parade (Parada do Amor), de Ernst Lubitsch ou as primeiras comédias de sociedade de Cecil B. DeMille. Todavia, ao passo que estes realizadores preferem um final feliz, Sternberg inclina-se para a fatalidade amorosa.
Isto é particularmente evidente n’ O Anjo Azul, onde tudo atrai o professor para Marlene: a descoberta do postal de Marlene, na aula, que lhe desperta a atenção; o comportamento dos alunos, que o obriga a segui-los até ao cabaret; a primeira canção que Marlene canta (“Esta noite procuro um homem para me amar”), durante a qual a cara dele é iluminada; a perseguição aos alunos dentro do cabaret, que o leva até ao camarim de Marlene; a confusão do director do cabaret, pensando que o professor tinha um caso com ela; a descoberta das calcinhas no seu casaco (foram aí colocadas por um aluno escondido no camarim), quando já tinha regressado a casa;9 a atitude do capitão do navio a cortejar Marlene, o que leva o professor a defendê-la; a primeira vez que Marlene canta Ich bin von Kopf bis Fuß auf Liebe eingestellt (uma canção de amor), dedicada a ele, que estava na varanda dos convidados de honra do cabaret; o seu despertar no camarim ao som de um pássaro (de relembrar que o dele tinha morrido); finalmente o despedimento na escola, que o lança de vez para os braços dela.
Todavia, a predestinação no filme não é só amorosa: saliente-se a presença constante e silenciosa do palhaço triste nas duas vezes em que o professor vai ao camarim; o repreendimento que o director do cabaret dá ao palhaço, por este ter estragado o número (sem dúvida uma premonição do futuro do professor, que também será um palhaço); durante o casamento, a mulher do director relembra que também teve uma boda bonita (agora os dois davam-se mal) e acontece a cena fulcral do ilusionista a tirar ovos da cabeça do professor, que imita um galo. O contraponto desta cena é no final, no cabaret, quando, sendo o palhaço assistente do ilusionista, os ovos são partidos na sua cabeça (“nada no chapéu, nada na cabeça, professor” diz o ilusionista) e ele cacareja, o que provoca a hilaridade do público e o conduz à loucura. Tenta então matar Marlene, que entretanto tinha arranjado um amante (o qual, durante a ‘actuação’ do professor, a beija), e foge do cabaret para morrer em paz na sala de aula.
O erotismo é mais do que explícito: Marlene aparece sempre em trajes provocantes, excepto quando o cabaret vai partir em digressão e o professor lhe propõe, então, casamento; os postais dela que os alunos possuem e que posteriormente são vendidos no cabaret pelo marido (o professor) para arranjar dinheiro (logo na cena anterior, depois do casamento, a mala dela cai, os postais espalham-se e ele diz que não serão vendidos enquanto ele tiver dinheiro); o flirt que Mazeppa, o halterofilista (Hans Albert), faz a Marlene, que lhe corresponde (“temos tempo”); na cena inicial, vemos uma empregada a lavar o vidro onde está um cartaz de Marlene e a comparar as suas pernas às dela.
Se, neste magnífico filme, há alguma cena que o resuma, ela será certamente aquela na qual Marlene canta (antes da subida ao palco do professor/palhaço)
Cuidado com as loiras
Elas têm um não sei quê
Não se vê logo à primeira
Mas qualquer coisa é
Numa simples troca de olhares
Atenção podes ficar preso
Cuidado com as loiras
Elas têm um não sei quê.
Infelizmente para o professor, esta ‘lição’ não chegou a tempo.
O Anjo Azul é o protótipo de um filme híbrido, feito na Alemanha por um austríaco radicado na América desde muito novo, que recebeu influências não só do tipo de filmes e da maneira de produzi-los de um estúdio americano, como também do expressionismo alemão através de Max Reinhardt. Mais do que uma película que assinala o fim de um ciclo, o do cinema mudo alemão ou do expressionismo germânico, mais do que uma produção ‘externa’ da Paramount, O Anjo Azul é, acima de tudo, um filme de Josef von Sternberg, aonde tudo chega, donde tudo parte.
Notas Finais
* Todas as citações de livros estrangeiros foram traduzidas para português por mim próprio.
1 Unrat em alemão quer dizer excremento, dejecto.
2 As adaptações livres são um costume de Sternberg também noutros filmes, onde raramente há uma transposição literal das obras que lhes dão origem.
3 Consta-se que foram os argumentistas que arranjaram este nome porque seria “twice as sexy” (Dickens 1980, 91).
4 Marlene Dietrich entrou em 18 filmes entre 1922 e 1929.
5 Marlene viria a fazer mais seis filmes com Sternberg entre 1930 e 1935 para os estúdios da Paramount.
6 Por exemplo, composições com grandes massas humanas, organização do espaço, função da iluminação e do décor.
7 A menos de três anos de distância, convém lembrar.
8 Aliás decerto que não foi por acaso que o filme foi proibido depois da chegada dos nazis ao poder.
9 E é a última vez que vemos o professor na sua casa, será coincidência?
Bibliografia
AAVV. 1970. La Revue du Cinéma – Image et Son, nº 238. Paris.
AAVV. 1984. Josef von Sternberg. Lisboa: Cinemateca Portuguesa e Fundação Calouste Gulbenkian.
Baxter, Peter. 1985. “On the Naked Thighs of Miss Dietrich”. In Nichols, Bill (ed.). Movies and Methods: Vol. II. Berkeley: University of California Press.
Dickens, Homer. 1980. The Films of Marlene Dietrich. New Jersey: Citadel Press.
Langlois, Henri. 1956. “Imagens do Cinema Alemão por Henri Langlois”. In AAVV. 1981. Ciclo de Cinema Alemão: 1918-1933 / 1965-1980, 12-40. Lisboa: Cinemateca Portuguesa e Fundação Calouste Gulbenkian.
Monaco, James (ed.). 1992. The Movie Guide. New York: Perigee Books.
Mordden, Ethan. 1989. Los Estudios de Hollywood. Barcelona: Ultramar Editores.
Sternberg, Josef von. 1968. The Blue Angel / an authorized translation of the German continuity. Londres: Lorrimer Publishing.
Sternberg, Josef von. 1970. Cine Y Realidad (tradução espanhola de Fun in a Chinese Laundry). Madrid: Film Ideal.
Weinberg, Herman G.; Sternberg, Josef von. 1966. Josef von Sternberg: extraits de découpages et commentaires, panorama critique, filmographie, bibliographie, documents iconographiques. Paris: Seghers.