AVANCA | CINEMA

Naiá e a Lua (2010): indigenous legends under the spotlight of narrative

Naiá e a Lua (2010): lendas indígenas sob os holofotes da narrativa

Pollyanna Rosa Ribeiro

Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil

Keyla Andrea Santiago Oliveira

Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Brasil

Abstract

This article aims to discuss the composition of narratology in the award-winning Brazilian short film (12 minutes and 45 secunds) Naiá and the Moon (2010) under the direction of Leandro Tadashi. This work is linked to interinstitutional research Art, psychoanalysis and education: aesthetic procedures in cinema and the changes of childhood CEPAE / UFG / PUCGO / UEG / UAB-UNB / UEMS, which seeks to highlight the potentialities of the relations between cinema and education. The proposed film analysis will reveal the narrative functioning of the intersection of two indigenous legends that the short film contains, since it projects for the viewer a story within the story, the passionate narration of the legend of the appearance of the stars (relationship between Jaci and the Indians of tribe) with the ultimate construction of the legend of Vitória-Régia and its origin. Still, the place of childhood, the dreamlike quality of the narrative and the components of the diegetic world will be treated: characters - in this case, the central narrator and the protagonist child, Naiá, gain centrality; the spaces; temporality; the voice of the film; the spectator, narrator and narrative relationship based on the aesthetic devices used - photography, chosen soundtrack, the mix between live-action and animation - that make the film so touching and loaded with a symbolic-cultural charge. Gardies (2008) e Tarkovski (1998) will be fundamental references to support the discussion, alongside authors such as Benjamim (1994) and Adorno (2008).

Keywords: Cinema, Narratology, Film Analysis, Education, Childhood.

Introdução

O contexto do curta metragem Naiá e a Lua (2010)

Derivado da palavra francesa court-métrage, o termo curta-metragem se detina a definir um formato de filmes que varia na minutagem, normalmente até 30 minutos, e que não deixa nada a desejar se comparado com os longas, geralmente mais populares, se o assunto em voga for sua qualidade e temática. Não são comuns salas de cinema destinadas a esse tipo de projeção, mas já se aventou, com a Lei do Curta, a obrigatoriedade de sua exibição antes de filmes em cartaz. Há, no entanto, muitos festivais que celebram e premiam os curtas como Festival Internacional de Curta Metragem do Rio de Janeiro (Curta Cinema), que em sua edição de 2019 ofereceu ao público 153 filmes de 35 países diferentes.

A lei nº 6281, de 9 de dezembro de 1975, que extinguiu o Instituto Nacional de Cinema (INC) e ampliou as atribuições da Empresa Brasileira de Filmes S.A. – EMBRAFILME, ainda do período da Ditadura Militar no Brasil, em seu artigo 13, prevê que:

Nos programas de que constar filme estrangeiro de longa-metragem, será estabelecida a inclusão de filme nacional de curta-metragem, de natureza cultural, técnica, científica ou informativa, além de exibição de jornal cinematográfico, segundo normas a serem expedidas pelo órgão a ser criado na forma do artigo 2º.

Em seu parágrafo único, é dito ainda que “para os efeitos deste artigo, o órgão a ser criado na forma do artigo 2º estabelecerá a definição do filme nacional de curta-metragem”. De lá para cá, várias resoluções do “órgão”, Concine (extinta em 1990), tentaram estabelecer regras de exibição e percebe-se que a definição de curta-metragem pode cambiar de acordo com o contexto; na lei supracitada, entendia-se o máximo de 15 minutos, já no Oscar, por exemplo, nos dias atuais, são admitidos e analisados filmes com até 40 minutos de duração. O fato é que a configuração destacada neste trabalho ganha notoriedade pelas qualidades estéticas da narrativa, quase treze minutos da “experiência comunicável” de que falava Benjamim (1994), capazes de resgatar o sentido da tradição e do humano em nós, mesclados à capacidade de sonhar e imaginar. Este trabalho é vinculado à pesquisa interinstitucional Arte, psicanálise e educação: procedimentos estéticos no cinema e as vicissitudes da infância CEPAE/ UFG/PUCGO/ UEG/UAB-UNB/UEMS, a qual busca evidenciar a potencialidade das relações entre cinema e educação.

Sob a direção de Leandro Tadashi, diretor aqui em foco, o curta-metragem brasileiro Naiá e a Lua (2010) foi ganhador de vários prêmios, alguns, a saber: Destaque Feminino pela Direção de Fotografia no Tudo sobre Mulheres em 2010, Melhor Curta de Ficção no Curta Carajás - Festival de Cinema de Parauapebas em 2010, Menção especial no International Short Film Festival Oberhausen em 2011, Menção Honrosa no Noite Contemporânea Cine Fest em 2010, Prêmio do Júri Popular no Cinecipó - Festival de Cinema Socioambiental da Serra do Cipó em 2011, e por fim, Melhor Curta de Ficção- Júri Popular no Amazônia Doc - Festival Pan-Amazônico de Cinema em 2010.

Leandro Tadashi, também roteirista e animador, dirigiu ainda, ao lado de Encanto (2006), Nossa paixão (2006), Ausente (2013) e Amanhã (2015), produções como Bá (2015), obra tocante que destaca a visão infantil e suas perdas e ganhos diante da vinda definitiva da avó para a casa da criança, a cumplicidade na relação entre duas gerações que encontram um caminho de amizade e sensibilidade, escrevendo uma nova história em meio a conflitos de adaptação e sofrimento de ambas as partes.

Naiá e a Lua (2010) é um intertexto ou texto fílme híbrido, composto por atuação real e animação, que traz em seu enredo a captura e encantamento de uma indiazinha pela narrativa que enaltece a lua. O maravilhamento pela lua torna-se tamanho que Naiá é arrebatada pela beleza e luz do astro. Na mitologia dos povos originários do Brasil, Jaci é a lua, a deusa que resguarda a noite e os enamorados. Vale ressaltar que aqui utilizamos predominantemente referências à mitologia porque o mito se refere a um conhecimento baseado na crença, na fé de um povo, que toma uma determinada explicação apegada ao sobrenatural como verdade. Já o título deste trabalho menciona lendas indígenas, porque para nós que não comungamos com a ótica mitológica, chamamos essas narrativas ficcionais ou fantásticas de lendas por reconhecer seu caráter folclórico que compõem uma parcela muito significativa da cultura brasileira.

A discussão aqui realizada toma como objeto de análise fílmica o curta-metragem acima citado. Com base em Vanoye e Leté (1994) procurou-se realizar uma interpretação semântica do filme, aquela em que o leitor dá sentido ao filme, em que o significado produzido na análise tem como fonte o próprio texto, não o autor ou a perspectiva subjetivista. Portanto, a busca de sentido opera rigorosamente a partir do texto, “como meio de fundamentar a liberdade interpretativa em averiguações e validações tão concretas quanto possível” (Vanoye e Leté, 1994, p.54). Essa metodologia de pesquisa propõe descortinar, como que desmontar um quebra-cabeça que é a obra fílmica e construir outro que é a análise, ultrapassando o teor descritivo e alcançando o analítico por meio de uma leitura do texto fílmico, composto por signos audiovisuais que são o roteiro e os procedimentos estéticos inerentes ao processo de produção. Obviamente, a análise é uma produção de outra natureza, a linguística, que recorta e destaca aspectos puxando alguns fios da tecitura fílmica, construindo uma outra trama a partir de uma obra cinematográfica.

Desenvolvimento

O universo diegético de Naiá e a Lua

A película é iniciada com a câmera objetiva em close-up em uma grande arara-canindé comendo milho ao som de ruídos diegéticos. O contexto de uma floresta no período noturno inaugura o curta-metragem situando-o em uma tribo indígena brasileira. Logo ocorre a mudança de ângulo na mesma cena e vemos Naiá, uma indiazinha que aparenta ter por volta de 8 anos de idade observando atentamente a ave e, ao que parece, é ela a responsável por sua alimentação. De repente, a menina se assusta ao surgirem sons de gritos e a correria de outras crianças seguindo em uma única direção para escutar uma história, o que é mostrado com a quebra de eixo focando as pernas das crianças. A câmera paralisada em frente a mulheres em preparo de alimentos captura esse movimento e a inserção de outras crianças no grupo, inclusive Naiá que transfere sua atenção e sua ação para essa direção. Em primeiro plano vemos o rosto da anciã iluminado pela fogueira, nesse momento o eixo dramático ganha alternância com o público infanto-juvenil, acompanhado pela sonoplastia de uma flauta indígena que ganha volume com os sons ambientes.

Em seguida, novamente o plano aproximado comparece, agora voltado para lenhas incandescentes de uma fogueira. Em plano geral vê-se uma senhora indígena sentada em uma pedra com um numeroso grupo de crianças a sua frente ao lado de uma oca, todos ao redor da fogueira anteriormente apresentada. Nesse instante inicia-se uma interessante alternância de close-ups entre o rosto da contadora de história, centro das atenções e para onde todos os olhares se voltam e as faces do público. Nessas várias trocas de faces reveladas em primeiríssimo plano, encontra-se nesse meio novamente o rosto de Naiá com a feição já de encantamento pelo porvir. Esse uso frequente do close-up é um recurso estético que tem a intencionalidade de capturar a atenção do espectador para as minúcias não menos relevantes do enredo, o que tende a mobilizar ainda mais os afetos e as emoções. Assim, “o detalhe em destaque torna-se de repente o único da encenação; tudo o que a mente quer ignorar foi subitamente subtraído à vista e desapareceu. As circunstâncias externas se curvaram às exigências da consciência. Os produtores de cinema chamam isso de close-up” (Munsterberg, 1983, p.34).

Com o dedo indicador e o olhar voltando-se para o céu, em especial, para a iluminada lua cheia em uma noite estrelada, a senhora inicia em tupi a narrativa do mito da origem das estrelas. Encontra-se aí o princípio de uma animação que será discutida posteriormente neste trabalho. Nesse momento, a ancião narra: “No início, o céu era habitado apenas por Jaci. À noite, o solitário Jaci saía de trás das montanhas. Jaci procurava as índias mais belas para lhe fazer companhia. Ao se apaixonar por uma índia, Jaci lançava sobre ela toda sua luz. O toque de Jaci transformava o sangue da moça em luz. A índia era transformada em uma estrela. Ela subia ao céu para ficar para sempre ao lado de Jaci”.

Na sequência, volta-se ao uso do primeiro plano para a fogueira já quase sem brasa, com as últimas fumaças, como uma pista elíptica que demarca a passagem do tempo, percebida pelo esvaziamento do local antes repleto de jovens ouvintes. Artefatos e utensílios são expostos até que a rede em que Naiá dorme vai ganhando uma iluminação tal que desperta a indiazinha. Como um chamado de Jaci, que ilumina o chão da entrada da oca em que ela se encontra. A criança se levanta, toca com o pé o reflexo, corre para fora da moradia visualizando a grande lua cheia no céu (figura 1). A menina retribui à luz com um sorriso (figura 2), fecha os olhos e fica na ponta do pé em plano detalhe, como se quisesse subir até o lá.

Figura 1: Naiá encarando Jaci.

Figura 2: alternância de enquadramento

Ao ver que estava no mesmo lugar, encara a luz, o que é perceptível pelo assíduo uso do recurso de alternância de close-ups, traço muito marcante nessa obra. A garota olha para trás e, capturada pela lua, sai em disparada pela floresta seguindo-a. Revezando a câmera objetiva e subjetiva, a corrida só é brevemente interrompida quando Naiá chega a uma clareira e volta seu olhar para a lua. Para se aproximar ainda mais de seu alvo, a criança sobe em uma árvore. Essa escalada é exibida em diferentes planos, realçando a obstinação e o fascínio da criança pelo astro. Ao chegar no ponto mais alto da copa da árvore, estica os braços para alcançá-lo até cair. Mesmo com escoriações o semblante de contentamento e persistência permanecem, pois ela vê o reflexo da lua em um igapó. Sem pestanejar, entra na água escura em busca de Jaci. Agora seu olhar não se volta mais para o céu, mas sim para a imagem que vê em sua frente. Alternam-se os planos para o reflexo da lua, Naiá em plano americano e sua imagem da cintura para baixo no interior da água.

A criança nada até não conseguir sustentar-se mais. A cena do afogamento ganha toda uma poética com a mudança de cadência da trilha sonora para o som da água e seu corpo afundando sob os raios do luar. As imagens do reflexo da lua e o rosto de Naiá se entrecruzam, até que a suspensão de seu corpo no universo aquático remete à sua subida ao céu, primeiro de frente e depois em câmera contra-plongée (figura 3). A cor branca toma toda a tela até mostrar aceleradamente o desabrochar de uma flor branca contrastada ao fundo escuro. Novamente o branco toma conta para ressurgir a flor. Ampliando o enquadramento, vemos que a flor está ao lado de uma vitória-régia, planta aquática típica da Floresta Amazônica, e também está posicionada ao lado do reflexo da lua (figura 4). Nesse momento, ressurge a fala final da narradora “Ela subia ao céu para ficar para sempre ao lado de Jaci”.

Figura 3: analogia de Naiá subindo ao céu.

Figura 4: Naiá transformada em flor da vitória-régia ao lado de sua paixão refletida no lago com o paralelismo espacial e simbólico

A poética fílmica e a participação ativa do espectador

Em Naiá e a Lua (2010), a inspiração vem de do mito tupi-guarani sobre o surgimento da flor da vitória-régia, na obra vemos novamente a figura de uma criança na pele da protagonista, licença poética do diretor, que acaba agregando à história aspectos como a imaginação, fantasia, ingenuidade e poesia. A relação com uma espécie de avó (pajé) também aparece aqui (como no curta Bá, de 2015), na figura da narradora de toda a história. O curta parece ser a ilustração da narrativa da anciã, que muito nos impele a recuperar as palavras de Benjamin (1994), ao enfocar a importância do narrador como aquele que, por meio da arte de narrar, propicia experiência e carrega em si o sentido mais latente da sabedoria.

Na verdade, duas poderiam ser as interpretações do curta. Na primeira, a citada acima, a história da anciã seria ilustrada pela animação e live-action, um jogo intertextual a favor da narrativa, fruto da imaginação de Naiá: à medida que a história é contada, nossa pequena protagonista ativa seu potencial criativo e sonha acordada, como um devaneio, no qual que é acompanhada pelo espectador. Essa dedução é possível porque a figura da índia que se encanta com Jaci nos surge incorporada pela criança, contrariando a lenda original.

A outra possibilidade seria a vivência real dos acontecimentos pela criança, uma jornada mais linear, no entanto, plena do que poderíamos chamar de beleza gótica, categoria cunhada por Alicia Entel (2010) e que nos envolve na conjugação de aspectos que parecem não combinar suas essências, mas que na verdade espelham tudo que é humano e característico de nossa virtude enquanto seres viventes neste planeta, poesia e ao mesmo tempo horror, magia, contemplação e ainda tristeza e choque. Nessa aposta analítica cabe mencionar a habilidade do diretor em dar corpo à personagem principal utilizando-se de uma criança, isso agregou densidade às cenas, encanto no que seria tragédia.

Como toda obra de arte, capaz de sumarizar infinitos sentidos, deixar-nos-emos levar aqui por esses dois prováveis caminhos, cruzando-os quando isso nos parecer plausível e deixando ao espectador trilhas abertas para que nos acompanhe em nossos devaneios, ou crie os seus próprios, combinando o que a arte deveria fazer sempre e faz com quem se permite, prazer e reflexão. Sendo assim, o curta-metragem aqui analisado contém um fluxo imagético e dados visuais que alcançam uma grande gama semântica. Ao deixar margem para o espectador pensar o filme, abre-se um convite à elaboração. Essa significação biunívoca ou plural é um trunfo narrativo ao conceber um espectador ativo. Para Tarkovski,

O método pelo qual o artista obriga o público a reconstruir o todo através de suas partes e a refletir, ido além daquilo que foi dito explicitamente, é o único capaz de colocar o público em igualdade de condições com o artista no processo de percepção do filme. E, na verdade, do ponto de vista do respeito mútuo, só esse tipo de reciprocidade é digno dos procedimentos artísticos (Tarkovski, 1998, p.18).

Para o autor, a participação do espectador na interação com o texto fílmico só é possível quando este é regido pela lógica poética, presente na forma de sonhar, celebrar, agir e encarar o mundo. O cinema então é uma manifestação artística que pode resguardar esse “raciocínio poético”, tão claro em Naiá e a Lua (2010), já que demonstra “articulações poéticas, a lógica da poesia. [Essa constelação de elementos parece-nos perfeitamente adequada] ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte” (Tarkovski, 1998, p.16).

A intertextualidade como trânsito de linguagem

O roteiro predominantemente em live-action é atravessado pela animação. A animação se liga à cena em que a anciã aponta para a lua cheia e inicia a narração da mitologia indígena. O gesto inicial da anciã, concentrada e de olhos semiabertos, que aponta o dedo para cima, mostrando a lua, depois de ser observada atentamente por todos por alguns minutos, é acompanhado por todos com um virar de pescoços para o céu, em especial pela indiazinha Naiá.

Ao redor da lua iluminada no céu escuro surgem os grafismos geométricos compostos por linhas retas e muitas paralelas em preto e branco. Essa linguagem gráfica apresenta uma estética com traçados retilíneos que convida o olhar a se entregar ao movimento. O padrão regular e reiterado associado à dupla de cores já mencionada reforça a ilusão de ótica de aceleração e vai formando o cenário, personagens e enredo da narrativa.

A inserção da animação no roteiro é um dispositivo estético que, nesse caso, demarca a presença de uma narrativa dentro de outra história, recurso estilístico intertextual que torna o curta-metragem surpreendente, já que traz um outro corpo ao texto fílmico. Essa configuração certamente exigiu do cineasta um grande empenho que se origina nos rascunhos do storyboard até a animação em si, com o movimento dado aos traçados por meio dos recursos digitais no processo de edição. Embora a duração da animação ao longo do curta tome pouco mais que um quinto do tempo do curta-metragem, sua presença traz uma dinâmica que impacta e delimita a narração em voz off do mito a origem das estrelas, como um recurso diegético que conduz o espectador para outro universo e registra a singularidade da narrativa do próprio curta em questão. Voz off é aquela presente em que o locutor, embora componha a cena não está evidente, apenas presente por meio de sua voz. A personagem Naiá, ouvinte da narrativa é tomada justamente pela transmissão oral da memória coletiva de seu povo. Já o espectador, envolto na animação, em geral não consegue deduzir a possibilidade de que, talvez, logo emergirá – a partir dessa narrativa ilustrada pela animação – outro mito: o da vitória-régia.

Retomando a estética da animação, o contraste do preto e branco ressalta os grafismos tribais, dá corpo à imaginação conduzida pela narrativa. O preto é uma cor muito presente nas pinturas corporais, utensílios e adereços indígenas, representa a cor que na verdade é o azul marinho muito escuro, quase preto, derivado do fruto jenipapo, tão comum quanto o urucum, que libera a coloração vermelha. A predominância dos traçados retilíneos e circulares traz uma ligadura perfeita da lua cheia visível e os olhos dos personagens com a história contada pela anciã. A estética utilizada na animação revela uma racionalidade outra dos povos indígenas. Enquanto consideramos o pressuposto da dicotomia homem e natureza, a mitologia evidencia a compreensão da unicidade de todas as formas de vida, como uma interligação de laços, inclusive familiares, entre os homens, a terra, os rios, as montanhas, o sol, a lua, as pedras, as estrelas e tudo que nos rodeia.

Com Gardies (2006) chamamos de estética “uma coleção de posturas, atitudes e procedimentos de uma variedade sem paralelo, que não pára de evoluir desde os dois séculos e meio que nos separam do seu lançamento oficial no mercado das ideias filosóficas” (Gardies, 2006, p. 199). Acrescentaríamos aí um conjunto de formas presentes no traço artístico que provoca sensações e afetos no outro, aqui no caso, o espectador. Essa animação interligada ao live-action nos traz justamente essa estética dos povos nativos em que a marca constitui o vínculo concatenado a todas as formas de vida. O traço que forma a montanha é encadeado ao rio, à índia que sobe ao céu sob a forma estrela.

Na racionalidade dos povos indígenas, o que nós chamamos de elemento natural é um ser dotado de personalidade, um órgão que compõe um organismo só, essa concepção é uma cosmovisão que vai de encontro à lógica edificada nos últimos séculos que tanto valoriza a individualização, a objetificação, o consumo e artificialidade. O ambientalista Krenak (2019) nos chama a atenção para a maneira que estamos dizimando e drenando a Terra. Crítico de nossa era que ele intitula da Antropoceno, o autor refuta a ideia que desune a humanidade do resto dos seres, para ele,

essa humanidade que não reconhece que aquele rio que está em coma é também o nosso avô, que a montanha explorada em algum lugar da África ou da América do Sul e transformada em mercadoria em algum outro lugar é também o avô, a avó, a mãe, o irmão de alguma constelação de seres que querem continuar compartilhando a vida nesta casa comum que chamamos Terra (Krenak, 2019, p. 47/48).

Em Naiá e a Lua (2010) a pictografia sequenciada em movimento nos eixos verticais e horizontais, como toda animação em 2D que é presente no curta está a favor dessa ideia da unicidade vital de tudo que compõe a Mãe Terra. Inclusive, o trecho da anciã narradora que diz “o toque de Jaci transformava o sangue da moça em luz” remete a essa ideia cosmológica da vida, o uso do significante sangue não é sem razão, sua força de significação apresenta a ideia de que o fluído vital também corre nos raios de luz, em uma interação fisiológica entre todos os seres. Essa perspectiva redimensiona ao que parece uma tragédia pela morte – da índia ou da criança – e que nesse contexto mitológico ganha um sentido distinto, pois deixar de ser humano é apenas uma transformação, na literalidade de uma mudança de forma, na teia sagrada que provê a vida é uma honra se tornar outro ser. Percebe-se assim que esse comprometimento estético com causa indígena contém uma ética, a evidência de um grupo populacional, a perpetuação de uma temática, um compromisso social ou um posicionamento singular ou a busca do registro de uma percepção da vida. Para Tarkovski,

As obras-primas nascem da luta travada pelo artista para expressar seus ideais éticos. Na verdade, é destes que nascem seus conceitos e suas sensações. Se ele ama a vida, se tem uma necessidade imperiosa de conhecê-la, de modificá-la, de tentar torná-la melhor - em resumo, se ele pretende cooperar para a elevação do valor da vida, então não vejo perigo no fato de sua representação da realidade ter passado pelo filtro das suas concepções subjetivas, dos seus estados de espírito (Tarkovski, 1998, p.26).

A intertextualidade aqui presente traz à baila uma discussão muito profícua desenvolvida por Lajolo (2018, p. 159). Para a autora, o enredamento de textos, no campo da intextualidade, torna possível “ o trânsito de uma linguagem a outra, enlaçando-as em significados que, transcendendo ambas, criam uma terceira”. O enlace proposto por Tadashi, entre live action e animação traz uma riqueza ímpar ao curta, capaz de nos fazer mergulhar no diálogo entre os dois tipos de linguagem com naturalidade, como se ele fosse de fato imprescindível; a conexão ali criada nos leva a um outro patamar imagético, a princípio inusitado, estranho e que aos poucos soa familiar, a ponto de alavancar nosso repertório e propiciar capturas de entendimentos, de superposições, acionando nossa capacidade, enquanto espectadores, de apreciar, e dando à obra, uma polifonia sofisticada, que recoloca novos ângulos ao mito tão conhecido, renovando questões e refinando nossa curiosidade.

Oportuno se faz referir aqui o trabalho de direção de fotografia realizado por Thaisa Oliveira e que recebeu premiação apontada no início deste artigo, pois ela nos oferece uma atmosfera fílmica muito peculiar e atraente nessa obra. A narrativa se passa no período noturno, então a luz da lua, o jogo de luz e sombra nos rostos das personagens tornam-se signos audiovisuais consideravelmente importantes no curta metragem. Com a fundamentação de Bazin (1983, p. 124) é possível reportar à concepção de “fotografia como uma modelagem, um registro das impressões do objeto por meio da luz”. A implicação estética provocada é de transparecer e de avantajar a realidade com a finalidade de capturar a atenção do espectador. Desse modo, o uso predominante do close-up aqui já mencionados, os filtros, a palheta de cores prevalecente dos tons de preto, branco, vermelho, verde, azul e terrosos, assim como a iluminação, são elementos do campo fotográfico que estão a favor de produzir o efeito fotográfico da crença do que está visível corresponde ao real, mesmo que seja um pressuposto para o espectador que todo filme é do campo da representação, da abstração e da simbolização do real, portanto é sempre ficcional.

A trilha sonora original, abundante de elementos, de responsabilidade de Vitor Kisil Miskalo, reserva surpresas, coroa a animação e invade as cenas em live-action, alternando desde sons da natureza puros, com grilos, pássaros, sapos, outros animais, canto de vozes humanas graves em uníssono, como se fossem guerreiros ancestrais, a ecoar, outras vezes vozes a imitar o som do vento, à criação de uma paisagem sonora rica em maracás, tambores, flautas, reportando-nos àquele ambiente distante da cidade e de sons mecânicos e imprimindo um ritmo binário em alguns momentos, conhecidos habitualmente por estarem associados à dança, com passos marcados e que seriam como o bater dos pés em passadas compassadas. No final, com o início da apresentação dos créditos, temos a belíssima música interpretada por crianças guaranis, “NHANERÃMOI’I KARAI POTY”.

Há uma preocupação, em sua elaboração criteriosa, em sair dos estereótipos em que muitas vezes colocamos os povos indígenas, percebe-se um arsenal de artifícios, certamente advindos de longa pesquisa e investigação, que traduzem uma especificidade. O espectador literalmente é tomado pelos sons em diferentes volumes que se amalgamam às imagens, intimando ao ouvinte uma escuta atenta da complexidade impressa em cada cena e não apenas existindo ali como ornamentação.

A narratologia em Naiá e a Lua

O sentar em torno de uma fogueira em comunidade, com uma plateia atenta e absorta, como a anciã da obra parece encontrar, nos convida a imergir na história, como ouvintes, hipnotizados pelo que parece ser, nas palavras de Benjamin (1994, p. 204), “um estado de distensão que se torna cada vez mais raro”. A cena sugere que o ato coletivo é um hábito cultivado e esperado por todos, especialmente jovens e os curumins. O silêncio reinante antes do começo da narrativa é oferecido ao espectador como um momento de respeito, que gera certo suspense e não há, além dos barulhos externos da natureza reinante no lugar, um único som que se antecipe à contadora de histórias.

Importante destacar que a raridade a que se refere o autor supracitado, também relacionada à experiência já mencionada, também é realçada por Adorno (2008, p. 56), para quem “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite”. Em um mundo programado para a velocidade, para o progresso e para o resultado rápido, a espera, a quietude significam perda de tempo. Existe nesse contexto a produção da reificação de todas as relações entre os indivíduos, o processo social da vida se fecha para as essências e em seu lugar derramam-se véus e erguem-se fachadas a produzir engodos que transformam “qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da maquinaria, a alienação e a autoalienação universais [...]” (p. 57). Ainda para o autor,

Noções como a de sentar-se e ler um bom livro são arcaicas. Isso não se deve meramente à falta de concentração dos leitores, mas sim à matéria comunicada e à sua forma. Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice (ADORNO, 2008, p. 56).

No cultivo da informação, inimiga da narrativa enquanto forma de comunicação, alerta Benjamin (1994), só é a válida a ideia da novidade, da verificação imediata, da exatidão, tão cara ao horizonte da plausibilidade e das razões acompanhadas de explicações, não há mistério ou possibilidade de interpretação pessoal. Parte da narrativa, ainda segundo as premissas benjaminianas, seria dedicada ao ouvinte ou leitor, este seria livre para encarar a história como lhe conviesse, dando aos finais e nuances ao longo das histórias, o seu ritmo e sua marca pessoais. A amplitude narrativa está neste cenário de liberdade, sem imposições ao leitor, abrindo espaço para o miraculoso e para o extraordinário, muito diferente daquilo que ocorre com a informação, mais íntima das notícias de jornal, das explicações fechadas e positivistas, geometricamente planejadas. A jornada narrativa se abriga no campo do enigma e das viagens sem fins demarcados a priori, elas seriam mutantes ou itinerantes.

De acordo com ele, ainda comparando a informação ao que seria a narrativa em seu cerne, “muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. [...]. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças germinativas” (BENJAMIN,1994, p. 204).

Outra característica latente das narrativas, nessa perspectiva aventada pelo autor, seria sua relação com o reconto, o que nos leva a tematizar sobre a memória, dentro da convicção que também Adorno introduziu, a relação com a experiência, muito presente no curta. No fundamento da experiência com o ato de narrar, coexistem muitas ideias, entre elas, e talvez a mais importante, seja aquela que nos remete a essa sutileza do pensamento, quem conta histórias, e também quem as ouve, sempre recorrerá, nessa forma artesanal de comunicação, à rememoração.

A memória manifesta-se aqui com a anciã, quem corporifica a memória de seu povo, personagem que apesar de não ser a protagonista, é a única que dá voz ao texto fílmico, ela é o gatilho da história, sendo de significativa importância para os acontecimentos vindouros. É por meio de sua fala que percebemos a impressão de assombro e magia que se apoderam de Naiá, que como aquela que tem “o dom de ouvir”, consegue tecer mais um fio na trama narrativa. Com Benjamin (1994), sabemos que o processo pelo qual a história fica gravada na memória do ouvintes se dá pela assimilação em camadas profundas.

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência, o menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos - as atividades intimamente associadas ao tédio - já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas [...] (BENJAMIN, 1994, p. 204 ).

Numa comunidade indígena como a de Naiá, esses valores são cultivados desde sempre, o contato com a natureza, o trabalho orgânico em todos os seus diferentes níveis, respeitando e estimando o manual, os processos, o vagarosamente orquestrado, as circunstâncias ainda incólumes no tocante à poluição dos afazeres com o tempo do relógio que insiste em fragmentar os tempos biológicos, reduzindo os seres a coisas e extirpando a vida e o significado do estar junto. Os ovos da experiência são chocados ali na sabedoria dos dias que entendem o ser infantil como aquele a quem se devem voltar o cuidado e a atenção para o futuro, é com as crianças que a chama substancial das narrativas se manterá viva por gerações e é desse chamamento que nos falam Benjamin (1994) e Adorno (2008). A experiência para se consubstanciar necessita do tempo para adentrar nos corpos e mentes, exige o calor das vivências compartilhadas, sem o quê, resta apenas “uma sociedade em que os homens estão apartados uns dos outros e de si mesmos”, como nos diz o segundo autor. Guardar na memória uma narrativa conjura, em outras palavras, todas as narrativas; saber uma história é saber todas elas, empenhar-se nessa prática traduz o sabor de todos os sabores antes degustados e oferecidos à humanidade.

Outro aspecto a ser destacado aqui diz respeito ao que Benjamin (1994, p. 207)) enuncia como sendo uma tendência nos últimos séculos, “pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação. [...]. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos”. Este é um ponto interessante. Segundo ele, a morte é a oportunidade de transmissão da existência dos viventes, sua sabedoria e visões de vida. O mito enfocado no curta de Tadashi não se exime de abordar isso, o que poderia ser evitado, especialmente com a figura de uma criança fazendo as vezes de Naiá. Pelo contrário, a morte é apresentada de forma poética, como dissemos, e na crença de transfiguração dos corpos a assumência da vida em outro corpo é vista com naturalidade. Reina aqui a beleza gótica, que seria, para Entel (2010), uma ação diferenciada e genuína que está no campo da beleza, mas em outros termos, desconstruindo uma ideia de beleza clássica, recepcionando inclusive o assombro, que não deixa de nos impactar. Mencionar a morte faz parte da vida, de encará-la como parte do processo de viver. As cenas que a colocam em destaque, assim como a mensagem advinda tanto da lenda, do mito, ou mesmo dentro da possibilidade de Naiá ter passado por todos os acontecimentos e de fato morrido, abarcam essa beleza gótica, tão próxima do que seria mais dissonante e inusual para os indivíduos, mas por isso mesmo também mais reflexiva, grávida de um pensamento que não se contenta com o que é imposto e nos auxilia a pensar em diferentes direções, descortinar outros horizontes estéticos.

É disso também que trata o curta, o diretor lança mão desse expediente da ênfase na morte que se transforma em vida, chamando para o papel uma criança e nos oferece uma versão da história que nos aproxima de um entendimento menos ingênuo com relação à infância. Uma infância que participa de todos os atos da vida, sem eufemização, Leandro Tadashi não poupa o espectador da ponderação que isso envolve, aprimorando o olhar e saindo das fórmulas desgastadas dos finais felizes e que muitas vezes não acrescentam à economia da obra de arte.

Conclusão

Não poderíamos deixar de mencionar a aventura a que nos dedicamos neste trabalho ao realizarmos a análise fílmica de um curta-metragem que para nós se apresentou como a primeira oportunidade. A obra de Leandro Tadashi, encarada como uma narrativa de qualidades estéticas indeléveis, daquelas que viverão por muito tempo, nos transportou para um cenário com entrada nas dimensões do sonho, da tradição, da beleza em suas diversas facetas, da experiência em sua melhor conformação. De acordo com Benjamin (1994), “o grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” e o diretor demonstrou em Naiá e a Lua (2010) estar inteiramente aberto a recuperar o mundo mítico que tem sempre algo novo a nos ensinar, podendo ser revisitado infinitamente e resguardar entre os tesouros da humanidade a voz de um povo sábio e que ressoa concepções de vida e morte que não podem ser perdidas na esteira das atmosferas efêmeras e fugazes, e que a um só tempo circundam o espectador de questões, perguntas, diferentes fins possíveis e que poderiam facilmente se tornar novos começos.

Referências

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ENTEL, Alicia. La belleza gótica y otros estudios visuales. Buenos Aires, AR: Aidos Editores, 2010.

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