Abstract
The scene of Sofia Coppola’s movie, Marie Antoinette, is made in dialectic with pictorial works, which occur primarily in three forms: classical painting within diegetic space, as an element of scenography; painting as a scene, when the film picture incorporates the pictorial aesthetics of a canonical work; and the re-appropriation of a canonical painting according to the aesthetic molds of the fictional universe of the film in question, which was placed as scenic object.
Keywords: Cinema, Sofia Coppola, Painting, Art Direction, Imagination.
Introdução
Este trabalho apresenta uma análise sobre o filme Maria Antonieta (2006) de Sofia Coppola, e seus cruzamentos estéticos com pinturas canônicas utilizadas pela Direção de Arte desta produção. O material aqui desenvolvido é parte de minha pesquisa de mestrado, “A Poética do Espaço na obra de Sofia Coppola“1 (2019), na qual investigava a cena fílmica da obra desta diretora e suas intrínsecas relações estéticas com outras mídias e expressões artísticas.
Por tratar de uma narrativa de cunho histórico, cabe ressaltar que este filme não teve como proposta um material documental ou realista, embora tenha se baseado em estudos deste âmbito para ser construído. A versão de Maria Antonieta elaborada por Sofia Coppola e sua equipe, buscou expressar a história desta mulher em um sentido íntimo, sua trajetória pessoal e emocional durante sua vida em Versalhes. É um filme inspirado pela biografia de Maria Antonieta escrita pela autora Antonia Fraser2 (2001), que segue essa abordagem intimista relativa à vida da rainha dos franceses. Assim, a proposta do filme se faz em atmosfera e estética ligadas ao lúdico e liberdade artística no sentido de „licença poética” da diretora.
Como diz bem o cineasta Carlos Diegues3, “o cinema não é a reprodução da realidade, logo um filme implica a criação de um universo paralelo, alternativo e verossímil”, em que “sua verossimilhança não depende tanto da experiência diária dos espectadores quanto de seu espírito e ideologia” (ROSENSTONE, 1997:137 apud DIEGUES). Nessa acepção, a noção de verossimilhança, como expressa por Aumont, contribui para nossa abordagem, pois enfatiza que o cinema não é uma equivalência com a realidade, mas sim um universo fabricado e elaborado que dialoga com a realidade em variados aspectos. Aumont coloca:
(...) O respeito do verossímil impõe inventar uma ficção e motivações que produzirão o efeito e a ilusão de realidade. A verossimilhança distingue-se de várias outras noções dramáticas: o verdadeiro, o possível, o necessário, o racional, o real. Assim, para Aristoteles, “a tarefa própria do poeta não é contar coisas que realmente aconteceram, e sim contar o que poderia acontecer. Os acontecimentos são possíveis conforme a verossimilhança e a necessidade” - é o que distingue a poesia da história. (AUMONT, 2006: 296)
Podemos com isso então, estabelecer o ponto de onde esta versão cinematográfica parte para construir a vida de Maria Antonieta. A diegese e narrativa fílmicas de Sofia Coppola, se edificam como uma ficção, uma obra poética, detendo-se na liberdade do meio artístico do próprio cinema e em diálogo com outras formas de artes. É neste sentido de verossimilhança que a obra de Sofia Coppola se estabelece, pois, embora parta de uma base histórica, a diretora se permite um estado de suspensão dessa base a fim de abrir espaço para expressar outros sentidos, como o sentimento e a expressividade poética da arte.
A verossimilhança entretanto, se faz em compromisso com o próprio universo ficcional da obra, devendo haver coerência em si, no sentido narrativo e estético. Independente do quão o filme se distante das normas da realidade ele precisa manter a coesão interna, pois assim a diegese apresenta seus personagens em diálogo com o drama, e o espectador permanece envolvido.
No cinema, o verossímil concerne à representação e à narração. O mundo representado é verossímil se for conforme a imagem que o espectador pode fazer do mundo real. Quanto à narrativa, seu verossímil repousa, por um lado, em princípios gerais (princípio de causalidade e de não-contradição, por outro, em convenções de gênero e nas regras implícitas que elas pressupõem; o mundo de referências é o mundo possível definido pelo conjunto dos postulados narrativos, próprios ao gênero particular. (AUMONT, 2006: 296)
O filme Maria Antonieta oferece um olhar mais solidário com a personagem histórica, dando enfoque na jornada da personagem enquanto uma mulher. Embora esta se vincule a um cenário histórico, com questões sociais, políticas, culturais de grande complexidade, -- o da revolução francesa e da queda da monarquia francesa --, Sofia Coppola busca retratar aspectos que expressam e denunciam questões paralelas, relativas à vida pessoal de Maria Antonieta. Aspectos como a „colonização” de outra cultura sobre o corpo e identidade desta menina austríaca, são apresentados de maneira questionadora, expandindo o olhar sobre a jornada de vida da personagem. Sofia buscou transmitir a experiência sensível das pressões e perda de liberdades que Maria Antonieta enfrentou desde que passou a viver na França, para tanto carregando a cena fílmica de uma estética e poética lúdicas e afetivas.
Sobre o Filme
Sinopse
Maria Antonieta é casada quando adolescente com o herdeiro francês do trono, o futuro Louis XVI, por razões políticas de sua mãe, a imperatriz austríaca Maria Teresa. Com o coração pesado, a princesa de 14 anos tem que deixar seu amado lar para trás e encontra um mundo completamente novo. A corte francesa tem outros costumes. Seu marido prefere caçar do que cumprir com seus deveres matrimoniais: entediada com seu casamento, Maria Antonieta promove celebrações pomposas em uma atmosfera elitista isolada do resto da sociedade. Vivos, alegres, despreocupados e luxuosos são os atributos desse regime. A Pompa encontra o Pop - uma corrida de consumo decadente! “As pessoas não têm pão? Deixem que comam bolo.”- citação famosa atribuída a Maria Antonieta, ignorante da política e das mudanças sociais que estação ocorrendo em seu novo país. E assim o começo da Revolução Francesa se anuncia no microcosmo da corte real, até que finalmente a população enfurecida e faminta toma o cetro... De acordo com a biografia de Antonia Fraser, a vencedora do Oscar Sofia Coppola (Lost In Translation) dirige Maria Antonieta em um frenesi de imagens e trajes, em locais originais na França e com uma trilha sonora moderna (The Strokes, Siouxsie And The Banshees, The Cure, New Order, Air). Os atores principais são KIRSTEN DUNST e JASON SCHWARTZMAN. Vencedor do Oscar® 2007 Milena Canonero, Melhor Figurino. (Sinopse capa dvd - Tradução nossa)
Na matéria A escolha de Sofia (2006), escrita por Fraser para Vanity Fair, a autora transcreve páginas de seu diário pessoal, exibindo o processo que teve com Sofia Coppola para o filme, e sobre os dias de gravação de que participou. A autora relata o primeiro contato estabelecido por parte da diretora:
Referindo-se ao meu livro como “o melhor, cheio de vida, não um drama histórico seco”, e acrescentando: “Eu sei que vou ser capaz de expressar como uma menina experimenta a grandeza de um palácio, as roupas, festas, rivais e, finalmente, ter que crescer” (...). (FRASER, 2006: s/p)
A experiência que Sofia Coppola buscou criar e transmitir em seu filme, trata especificamente da fase de vida na corte francesa, logo, a relação da personagem com o espaço de Versalhes, criando uma estética que diz respeito à trajetória subjetiva da protagonista. Sofia Coppola afirma que, a construção do filme e protagonista veio da sua atividade de imaginar “como deve ter sido do ponto de vista dela [Maria Antonieta] (...)”, foi “imaginar mais sobre o seu lado pessoal” (COPPOLA, 2006a - chaves nossas). Dessa maneira ela acabou por construir uma outra versão desta rainha, logo, um novo imaginário relativo a tal figura.
Segundo Patrícia Dourado4, este filme se diferencia no modo de abordar uma trama histórica justamente pelo aspecto da “intimidade”, que se expressa em forma artística com os planos, direção de arte e de atores, iluminação, enfim, pela estética e linguagem cinematográfica eleita. Com isso, acompanhar a jornada da personagem, suas transformações e sentimentos, torna-se algo afetivo e sensível, que o espectador é convidado à sentir e participar emocionalmente:
Esse crescimento foi tanto mais íntimo quando Sofia compreendeu que o ponto de vista que interessava para sua abordagem era o da personagem histórica, não o dos historiadores ou da historiografia em si, que serviram de base para sua imaginação e para a construção do contexto histórico, mas com a consciência de que o que estava em questão era a construção de um sentimento, a construção de uma experiência íntima dentro de uma história maior. Nas palavras do ator Schwartzman (Luís XVI), “uma história muito íntima de algo enorme”. (DOURADO, 2017: 70)
A poética da cena se faz em conjunto com o aspecto histórico, contudo, se afasta do relato fixado pela historiografia, sendo inseridos elementos que demarcam esse afastamento. Através de rupturas de códigos culturais, temporais, sociais e mesmo estéticos do século XVIII, a obra consegue se re-localizar em um novo sentido. O espaço fílmico se torna uma construção híbrida entre determinado período do passado e a contemporaneidade, utilizando músicas, cores, adornos, vocabulários, costumes e quadros que transitam entre os dois “espaços-tempos”.
Este recurso incorpora, como posto, todo o conjunto estético da obra, logo, todas as áreas artísticas que dão forma ao o filme, como a direção musical, a fotográfica, de arte, de atores, etc. O elemento mais popular, neste sentido, é o tênis All Star que aparece em uma das cenas (Figura 1). Pois, este se apresenta como evidência da dissonância entre dois códigos de moda: a cenografia e figurino do século XVIII e este tênis bem contemporâneo.
(Figura 1)
Outros casos a serem citados são: músicas de rock dos anos 1980 misturadas com músicas barrocas; frases como “isso é ridículo” saindo da boca da protagonista; os figurinos com a modelagem do século XVIII, mas adotando cores, como rosa-choque, que pertencem à moda contemporânea; e outros mais. Como diz Jean-Paul Scarpitta, o consultor das cenas de ópera, Sofia “(...) nos conta uma história do passado, com uma extrema consciência de nosso presente. Não é uma representação de estilo do século XVIII. Ela coloca o século XVIII na nossa realidade de hoje.” (SCARPITTA, 2006; 00:03:12).
É por meio deste recurso, que a obra de Sofia Coppola consegue se estabelecer em um novo espaço de discussão, pois cria deste modo um vínculo com o imaginário da atualidade, para além da compreensão intelectual de tais elementos: ela cria uma ponte que possibilita a emoção de empatia para com uma adolescente se transformando em mulher.
Rococó e Anacronismo
A história da rainha Maria Antônia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena, se passa na França, século XVIII, durante o período artístico denominado Rococó, que durou de aproximadamente 1730 até a revolução francesa, em 1789. Esta revolução pôs fim ao sistema monárquico e ao Rococó, um estilo relacionado com os modos de vida da aristocracia, seus luxos, exacerbações e prazeres sensoriais. A autora Marie Louise Nery explica que o Rococó:
(...) era um estilo rico que se caracterizou pelo abuso de ornamentos de flores, conchas e plantas sem a regularidade geométrica. Foi uma expressão da liberdade de movimento, da sensibilidade e do espírito típicos do século XVIII e pode ser visto como uma ponte de ligação entre o Barroco e a postura romântica no século posterior. (...) O rococó desenvolveu-se como forma buscando unicamente o efeito estético, livre de qualquer fim utilitário, num culto à beleza! (…) Os traços característicos da época do Rococó - (...) - foi o excesso generalizado no culto à aristocracia, ao militarismo, à decoração e ao erotismo procurando fugir das linhas e dos ângulos retos do período anterior, que foram substituídos por arabescos rebuscados. (NERY, 2007: 136 - grifo nosso)
Este estilo foi a base do conceito estético adotado pela Direção de arte, utilizando das características do filme para conceber visualmente espaços, cenografia, objetos cênicos, palheta cromática, figurinos, maquiagem, e também estilo de vida, hábitos dos personagens, etc. O universo diegético exibe assim costumes e ações dos personagens em torno de compromissos efêmeros, festas, refeições extravagantes, passeios pelos jardins, múltiplos romances, dentre outros.
Por outro lado, como vimos, são introduzidos elementos que rompem com tal período trazendo propostas contemporâneas para a narrativa, e é assim que o Rococó é “re-trabalhado”, em conformidade com a proposta do filme.
Tais elementos não apenas se inserem dentro da trama, mas revestidos de atualidade a partir de uma mesma essência conceitual e atmosférica do passado. A música de rock mencionada, por exemplo, não é uma escolha aleatória, são seleções de trilhas musicais inglesas dos anos 1980, que pertenceram ao movimento denominado neo-romantismo, parte do new wave. Estas se conectam ao espírito romântico que emergiu no final do século XVIII europeu, fase em que o filme Maria Antonieta trata, principalmente na parte final do filme. Estas músicas evocam os aspectos de prazeres sensoriais, decadência, e transgressões, fizeram parte da juventude de Sofia Coppola, e ela resgata para construir essa ponte entre passado e atualidade mantendo os mesmos princípios atmosféricos e simbólicos. A diretora diz:
Muitas bandas no início dos anos 80 têm esse tipo de espírito romântico do século XVIII. Eu quis que [o filme] fosse um pouco nesse espírito neo-romântico, que era decadente, e relacionado aos adolescentes...além das cores, e das músicas [daquele período] que refletem isso.” (COPPOLA, S., 2006a - grifo nosso)
Uma das cenas que em este estilo musical é utilizado é quando Maria Antonieta, Luis, e alguns membros da corte fogem de Versalhes para o baile de máscaras - parte da fase fílmica mais “festeira” da protagonista. O salão do baile (a locação utilizada foi a Ópera de Paris), é extremamente grande, amplo, e luxuoso, com arquitetura adequada ao período. Os personagens usam vestimentas do século XVIII com máscaras variadas, mas a música é Hong Kong Garden (1978), da banda inglesa Siouxsie and the banshees, executada como elemento diegético, criando um laço ainda mais forte com os personagens, pois se passa dentro do universo deles.
No artigo Imaginando Maria Antonieta, a autora Jennifer Milan identifica:
Esses momentos criativos (...) não estão ligados ao passado histórico. O espectador que reconhece no disfarce de Dunst [máscara do baile] uma dívida com a máscara preta pintada da personagem de Daryl Hannah, “Pris”, no filme de 1982, Blade Runner, sabe que a intertextualidade do filme é mais importante para a cineasta do que as superfícies da história e do cinema de atração (...). (MILAM, s/d : 51 - tradução e grifo nosso)
Esta caracterização de Maria Antonieta (Figura 2) em diálogo com a personagem Pris (Figura 3), do filme de Ridley Scott, incorpora uma intertextualidade para a leitura fílmica. Por meio da máscara preta, cabelo loiro platinado e cheio, essa associação atribui à personagem um cunho de rebeldia, decadência e futurista, tal como “Pris” em Blade Runner, contagiando toda a cena e o espaço, visto que tudo é simultâneo com a música, a fuga do palácio para ir ao baile e outros elementos dramáticos.
(Figura 2)
(Figura 3)
Neste caso, é possível ressaltar como através da estética do anacronismo o filme mais se aproxima da realidade contemporânea, possibilitando o vínculo afetivo do espectador com a protagonista. Logo, embora a forma mude, existe uma coerência de sentimento, seja a pintura, o matiz cromático, o diálogo, e outros aspectos que conduzem esta transposição de época. O propósito de obter a adesão do espectador não é meramente comercial, mas visa a facultar uma comunicação emocional direta com este olhar sobre Maria Antonieta, para que o espectador se sinta tocado ou repelido, conforme o caso.
Trata-se então de um filme que se volta para a história de uma menina, levada à terras estrangeiras, com outros hábitos e costumes, para casar-se com um desconhecido e a enorme responsabilidade de reinar sobre uma nação. E o modo que Sofia Coppola elege para expressar essa jornada e aprisionamento em ambiente de luxo é a cena dotada de uma construção visual carregada de objetos, cores, detalhes arquitetônicos e figurinos rebuscados, conforme a referência do período rococó. Desta maneira a Direção de Arte é fundamental para edificar a expressividade da narrativa e estética do filme.
Pinturas pelo espaço
Para criar a teia narrativa, os filmes de Sofia Coppola operam com o uso de diversas mídias e intertextualidades, ou seja, é através do diálogo com outras obras de arte, suas estéticas e significados que a história e cenas se constituem. Como vimos, a relação entre Pris (Blade Runner) e Maria Antonieta ocorre por meio da caracterização alusiva, mas não por mero acaso, pois está carregada de índices significativos e simbólicos. São formas visuais que acionam informações da personalidade e do espírito “rebelde” da personagem nesta cena. Ademais, aparece aqui também o anacronismo, estabelecendo o nexo de linguagem estética da obra.
Neste artigo, nosso tema são as pinturas, pois, além de exibirem o recurso da intertextualidade em três formatos distintos, a própria arte da pintura funciona como registro histórico visual de onde tal narrativa fílmica pode emergir. A pintura mantém um diálogo com o cinema que é inerente ao “quadro”, pois em ambos, temos o recorte de um espaço que abre um novo universo, ou mesmo, delimita tal espaço de modo a recortar a intenção do artista. Logo, por meio desses quantos pictóricos que buscaremos apontar e expressar as operações que tal dinâmica exerce no nível do imaginário da obra, contribuindo para a narrativa e para a atmosfera e sensibilidade estética das cenas.
As pinturas em Maria Antonieta portam um papel elementar no filme, pois são registros estéticos do período rococó, além de elementos cenográficos que compunham Versalhes, logo estas fundamentam a direção de arte da obra em suas múltiplas camadas,. Um quadro além de deter diálogo direto com o cinema em sentido da moldura, que “recorta” um ponto de vista - ou “abre uma janela” (BAZIN) - para uma outra realidade, detém igualmente parcela do registro histórico. Assim, para um estudo sobre a direção de arte e seus efeitos sensíveis sobre aquele que frui da obra, este recorte é um ponto crucial. A forma da história desta rainha também provém de registros pictóricos que compuseram o imaginário cultural coletivo sobre ela, e que aqui, neste filme, tornam-se a teia de uma nova visão.
As pinturas denotam abordagens diversas no filme, aparecendo de maneiras diferentes e sendo trabalhadas com propósitos específicos. Durante a pesquisa organizamos estas pinturas em três grupos: (1) Os Quadros em Cena: que são pinturas clássicas dentro dos espaços e servem para conceber a cenografia ao mesmo tempo que constroem uma atmosfera subjetiva para a cena; (2) As Reapropriações de Pinturas Clássicas: que são releituras de uma pintura clássica conforme os códigos estéticos do filme, dispostas diegeticamente, servindo como recurso narrativo para dispensar a fala oral e ao mesmo tempo fortalecer a imagem de Maria Antonieta criada pela ficção fílmica; (3) A Cena Fílmica aludindo ao Quadro Pictórico: que são cenas visualmente inspiradas em quadros pictóricos canônicos, introduzindo a dimensão subjetiva à imagem fílmica conforme a carga histórica e emocional da própria pintura em campo.
Os Quadros em Cena
As pinturas que identificamos nos espaços cenográficos, são parte da coleção atual do museu de Versalhes, ou seja, existem dentro de Versalhes independente da obra de Sofia Coppola, e atestam o cunho de “veracidade” da trama e do período retratado. Todavia, cabe recordar que tudo que aparece em campo, dentro do quadro fílmico, é entendido como proposital, uma escolha deliberada do diretor/diretora. Assim, essas pinturas aparecem com uma intenção, seja de composição cenográfica estabelecendo que lugar é este, localizando Versalhes em si, seja cumprindo um papel narrativo e atmosférico, inclusive sendo reposicionadas no interior do palácio de Versalhes pela equipe do filme: quadros que no museu encontram-se em um determinado salão, no espaço fílmico aparecem em outros.
O primeiro exemplo são duas pinturas expostas no quarto do rei Luís XV, que aparecem em duas cenas distintas. Na primeira cena, ele e sua amante, Madame Du Barry, recebem a notícia sobre a noite de núpcias de Maria Antonieta e o futuro Luís XVI e são informados que o casamento não foi sexualmente consumado (Figura 4). Na parede do quarto, de cor vermelha, existem dois quadros pendurados nas laterais da cama, estando em segundo plano, ao fundo dos personagens que estão mais à frente. No lado esquerdo (campo de visão do espectador), o quadro é a pintura denominada Perseu transforma Phineas e seus seguidores em pedra (1680) (Figura 5), e do lado direito está O banquete de Tântalo (1766) (Figura 6), ambos do pintor Jean-Hugues Taraval (1729-1785).
(Figura 4)
(Figura 5)
(Figura 6)
O primeiro quadro é uma representação do mito de Perseu, um herói que combateu Medusa, uma górgona com cabelos de serpente que transformava em pedra todos aqueles que olhassem em seus olhos. Esta pintura representa o momento final da jornada de Perseu, em que ele triunfa em sua batalha, ao decapitar Medusa e utilizar sua cabeça para transformar seus inimigos em pedra.
O segundo quadro é também sobre um episódio mítico, o banquete que o rei Tântalo ofereceu aos deuses. Tântalo era filho de Zeus e usufruía o acesso aos deuses e de sua intimidade. No entanto, por diversas vezes abusou desse privilégio. Na mais fatal e que é o tema do quadro, Tântalo queria saber se os deuses eram mesmo oniscientes, convidou-os para um banquete e serviu, misturada às iguarias comuns, a carne de seu próprio filho, Pélops, contando assim verificar se os convidados identificariam ou não o que estavam ingerindo. Contudo, com a exceção de Deméter, os deuses logo perceberam o que lhes estavam servindo e Zeus lançou o próprio filho, Tântalo, no Tártaro. Alí, Tântalo, toda vez que, faminto ou sedento, tenta beber ou comer, a água escoa por seus dedos e os galhos com os frutos lhe escapam.
Enquanto no primeiro quadro a mensagem narrativa expressa a glória e a vitória, no segundo o que está sendo expresso são a arrogância e o castigo. Esses dois objetos criam pilares para o espaço que conforma o quarto do rei, atrelando-se assim ao personagem e ao que se passa nesta cena. As pinturas agem em nível estético, instaurando através de imagens narrativas e simbólicas, uma camada atmosférica que revela o lado subjetivo da arrogância e superioridade de Luís XV, bem como o fardo que sente por seu neto não demonstrar virilidade. Este peso também alude ao dever dinástico e cultural de Maria Antonieta e Luís XVI gerarem um herdeiro e assim manterem a continuidade do reino e a aliança entre a França e a Áustria.
Embora tais quadros posicionem-se ao fundo, tais escolhas são deliberações da equipe fílmica, como já assinalamos. Nesta pesquisa verificamos inclusive que neste aposento do palácio de Versalhes, enquanto museu e locação, essas pinturas não estão expostas usualmente, ou seja, fazem parte do acervo mas foram dali retiradas para compor a cena e construir a cenografia. Assim, a escolha destas peças remete para “além do fundo” e cumprem um propósito à primeira vista invisível, mas que carregam fortemente a cena com uma fala própria e cunho emocional.
Mais à frente outra cena se passa neste mesmo cômodo, novamente o rei recebendo notícias frustrantes sobre o matrimônio de seu filho (Figura 7). Como antes, a personagem Madame Du Barry está presente, e a parede dos quadros aparecem ao fundo. Desta vez, todavia, somente o quadro O Banquete de Tântalo esta em campo, ainda que vazando para fora do quadro fílmico. Com isso lemos a intensificação desta parte narrativa e emocional do rei: o fardo, a humilhação, o risco de perda do status, o sentimento de estar sendo punido.
(Figura 7)
A próxima pintura a ser destacada aparece na cena do primeiro café da manhã de Maria Antonieta e Luís após o casamento (Figura 8), exposta acima da mesa: o quadro Éliézer et Rebecca (1580) de Paolo Veronese. (Figura 9).
(Figura 8)
(Figura 9)
Na Bíblia conta-se que o patriarca Abraão não conseguia encontrar uma esposa adequada para seu filho Isaque e então encarrega um servo fiel a sair pela região para descobrir a jovem mais adequada, formosa e digna do filho. Segundo o relato bíblico, o servo, cansado de perambular sem resultado, chega a um poço d’água ao qual acorrem muitas mulheres para retirar água. Como saber qual a mais digna de se unir a Isaque? Ele então ora para que Deus lhe dê um sinal, o que é narrado na Bíblia assim:
Eis que estou junto à fonte de água; seja, pois, que a donzela que sair para tirar água e à qual eu disser: Peço-te, dá-me um pouco de água do teu cântaro; E ela me disser: Bebe tu e também tirarei água para os teus camelos; esta seja a mulher que o Senhor designou ao filho de meu senhor. E antes que eu acabasse de falar no meu coração, eis que Rebeca saía com o seu cântaro sobre o seu ombro, desceu à fonte e tirou água; e eu lhe disse: Peço-te, dá-me de beber. E ela se apressou, e abaixou o seu cântaro de sobre si, e disse: Bebe, e também darei de beber aos teus camelos; e bebi, e ela deu também de beber aos camelos. Então lhe perguntei, e disse: De quem és filha? E ela disse: Filha de Betuel, filho de Naor, que lhe deu Milca. Então eu pus o pendente no seu rosto, e as pulseiras sobre as suas mãos. (Gênesis, 24:43-47).
O ponto de diálogo entre o quadro e a cena de Maria Antonieta é o matrimonio. Como Rebeca, Maria Antonieta deixa sua família para ir ao encontro de um noivo que não conheçe e recebe joias (simbolismo do luxo, riquezas).
A continuação do relato bíblico oferece outro detalhe de alusão para a narrativa do filme: “E Isaque orou insistentemente ao Senhor por sua mulher, porquanto era estéril; e o Senhor ouviu as suas orações, e Rebeca sua mulher concebeu” (Ge. 25:21) – ou seja, as dificuldades para a geração de filhos do casal Maria Antonieta e Luís;
Contudo, logo em seguida, tendo engravidado, a história de Rebeca revela circunstância dotada de valor simbólico especial para a compreensão do filme:
“E os filhos lutavam dentro dela; então disse: Se assim é, por que sou eu assim? E foi perguntar ao Senhor. E o Senhor lhe disse: Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão das tuas entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o maior servirá ao menor“. (Ge. 25:22-23)
A rivalidade “das duas nações” desde o ventre da mãe nos empurra diretamente à cisão que a França viveria por muitos anos, começando pela crise da monarquia e a revolução.
Essa conexão entre a pintura e a cena, estabelece uma narrativa subjetiva para a história do casal fílmico, reforça subliminarmente o enredo dos dois, e apresenta um “prelúdio”. Conforme ocorrido com Rebeca e Isaque, Maria Antonieta e Luís terão seus filhos, e encontrarão uma conexão mais íntima em seu relacionamento, de cumplicidade e amizade (apesar dos amantes da rainha).
Além desses quadros existem outras formas de pintura que podem ser desempenhar papel semelhante ao que até agora consideramos, como as ilustrações das paredes, dos leques, e dos biombos. Para cada cena há uma subjetividade distinta que as pinturas corroboram. A cúpula pintada de anjos e céu aparece na chegada de Maria Antonieta em Versalhes, indicando este espaço divino de ascensão e paraíso que supostamente é o palácio com sua corte.
Reapropriação de Pinturas Clássicas
O segundo caso de pinturas trabalhadas em cena são as apresentadas de modo reformulado conforme a estética do universo fílmico. Distintamente do primeiro caso, em que as pinturas se mantém tal qual as originais (são as originais na realidade), aqui, Sofia Coppola e a equipe de arte criam novas pinturas. Nestas as imagens da rainha Maria Antonieta são reformuladas com o rosto da atriz Kirsten Dunst, que interpreta a protagonista, e modificações estéticas são realizadas para atribuir mensagens narrativas. Ademais a forma que essas modificações são feitas estão de acordo com o conceito do anacronismo, logo, duas destas possuem uma estética contemporânea, ressaltando a proposta do filme e exacerbando recursos de tecnologias atuais.
As três pinturas são referentes aos quadros: Maria Antonieta e seus dois filhos (1785), Maria Antonieta com uma rosa (1783), e Maria Antonieta rainha da França com seus filhos (1787), todos pintados pela pintora Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun (1755-1842).
O primeiro quadro se apresenta no espaço externo de um dos jardins de Versalhes. Nesta cena vemos Maria Antonieta com seus dois filhos posar para a artista enquanto esta realiza a pintura (Figura 10). Embora a pintora esteja de costas, sabemos que é Élisabeth Le Brun, pois o quadro, embora incompleto, já exibe elementos suficientes para identificarmos a obra Maria Antonieta e seus dois filhos (Figura 11).
(Figura 10)
(Figura 11)
Através da cenografia, dos figurinos, e posição dos atores, a cena que foi pintada por Le Brun é reconstituída no quadro fílmico. Logo, vemos a dupla imagem do quadro pictórico: a tela sendo pintada e as figuras que posam para a artista. Assistimos parte do processo de criação com a pintura original de Le Brun, e assim um metatexto é criado, atrelando história e ficção.
O segundo quadro que aparece neste formato, é Maria Antonieta com uma rosa (Figura 12), que está posicionado de outro modo. Na cena o quadro é o objeto de destaque, e serve para realizar uma narrativa mais explícita e uma elipse temporal. A imagem pictórica aqui é mais estetizada e está em primeiro plano, o que possibilita evidenciar as feições da atriz, e não da figura histórica.
(Figura 12)
Este momento é construído por três planos fixos, em todos o quadro pictórico esta centralizado e cada um deles com uma intervenção textual de tipografia contemporânea sobreposta à própria a imagem da rainha. O design gráfico desses textos possuem uma estética modernizada, com fontes em caixa alta, escritas à mão, letras de forma, em cima de faixa branca, semelhante à um risco grosso de tinta. As frases inseridas são mensagens narrativas, que relatam as manifestações de revolta da população francesa começando as revoltas. Os escritos são: “Cuidado com o déficit” (Figura 13), “Rainha do débito” (Figura 14), “Gastando até a ruína da França” (Figura 15).
(Figura 13)
(Figura 14)
(Figura 15)
O terceiro quadro é posto em cena também com destaque e criando elipse temporal para a narrativa. A pintura alusiva a Maria Antonieta rainha da França com seus filhos (Figura 16) é apresentada em suas representações diferentes: primeiro Maria Antonieta com seus três filhos, que inclui seu bebê recém nascido. no berço; a segunda, o mesmo quadro, contudo com o berço vazio. Neste momento o filme narra o falecimento desde bebê, que na versão original do quadro foi pintado assim, com o berço vazio.
(Figura 16)
A cena é construída de uma sequência de dois planos, cada um mostrando uma versão desta releitura da pintura, de modo a narrar a perda de seu terceiro filho e construir uma elipse temporal. Primeiro dois guardas entram em campo com esta pintura (de dimensões muito grandes), o penduram na parede (Figura 17), e saem de quadro. Em seguida estes mesmos personagens entram novamente em campo, retiram o quadro da parede, no qual estão Maria Antonieta e seus três filhos, o terceiro sendo um bebê no berço. Em seguida, um plano mais fechado, os guardam entram novamente agora com o mesmo quadro, mas sem o bebê no berço (Figura 18).
(Figura 17)
(Figura 18)
Esta criança nem mesmo aparece enquanto personagem, Coppola opta por narrar a história através deste recurso visual, o que intensifica o vínculo com a história devido à pintura ter sido o meio de registro daquele século e daquela família. Igualmente, desta forma, o filme fortalece a intertextualidade entre cinema e pintura, criando o cruzamento entre ambos dispositivos e enaltecendo o estilo desta cineasta cunhado na narrativa visual e de mídias diegéticas.
Além da inserção desta criança que não existe no quadro original, outras alterações foram realizadas por parte da diretora e sua equipe, como o uso do rosto de Dusty (como nos anteriores) e a palheta cromática do figurino. Para acentuar o efeito da morte e do luto enfrentado pela personagem, os figurinos da cena pictórica são postos em preto, enquanto no original o vestido da rainha é vermelho.
Essas alterações são parte da direção de arte do filme, que se utiliza de efeitos especiais para recriar tais obras de modo coerente com o universo fílmico, e “mergulhando” assim o registro histórico dentro da estética do universo fictício imaginado por Coppola. São recursos que enunciam o anacronismo, o hibridismo entre mídias e auxiliam a esclarecer o papel das artes e do cinema enquanto ficções, por mais correlacionados que estejam a qualquer evento real.
Estes quadros originais foram criados à pedido da rainha Maria Antonieta justamente como elementos comunicacionais para com a população, ou seja, foram mídias concebidas para associar sua figura à uma imagem mais maternal. Isso se deu por conta das revoltas que já haviam iniciado, então tratava-se de uma tentativa de mudar a forma que era vista, de “esbanjadora” para “maternal”. Assim, por meio dessas pinturas o filme constrói um universo que consolida intradiegeticamente esta versão de Maria Antonieta enquanto rainha de Versalhes. Ou seja, a associação com pinturas reais, reapropriadas pela ficção imaginada por Sofia Coppola, fortalece o espaço fílmico enquanto universo próprio, criando potência estética para os questionamentos e perspectivas apresentadas ao longo da narrativa.
Além do mais, a escolha da artista Élisabeth Le Brun ocupando o lugar de elemento diegético, que aparece no ato de criação da pintura, é importantíssima. Esta introdução da pintora dentro do universo fílmico formula mais uma camada que agrega ao ponto de vista da mulher, do olhar feminino, para esta versão de Maria Antonieta. As figuras criadoras que se destacam na poética do filme, são então essas mulheres: Sofia Coppola, Antonia Fraser, Maria Antonieta, Elizabeth Le Brun. Logo, ainda que em uma cena breve, e aparecendo de costas, a personagem de Le Brun no filme não é um “acessório”, uma peça secundária ou casual: trata-se de reforçar o ato criativo pelo olhar da mulher, aqui vinculado ao subjetivo da protagonista, Maria Antonieta.
Quadro Fílmico em alusão à Pintura
O terceiro caso é a transformação da cena em alusão a uma pintura. Nestas, o quadro fílmico adota uma concepção estética e cênica cruzada com a de quadros canônicos. Para isto, a direção de arte e a de fotografia - ou seja, os cenários, a palheta cromática, os figurinos, a iluminação, o enquadramento - se referenciam diretamente aos mesmos critérios estéticos das pinturas em questão.
A cena de coroamento de Luís XVI (Figura 18a) é nosso primeiro exemplo, estando em analogia com a pintura Coroação de Napoleão Bonaparte (1807) (Figura 19) de Jacques-Louis David. Nesta, apesar da cena inverter horizontalmente a composição, a coroação de Luiz XVI como Rei da França é representada conforme o quadro da coroação de Napoleão Bonaparte. Os espaços se referem a uma Catedral, com uma elevação criando um tablado para as figuras monárquicas e do clero, com um grande trono ao fundo, de aspectos semelhantes, e na lateral um trono com fundo azul marinho aveludado no qual está a figura feminina.
(Figura 18a)
(Figura 19)
A cenografia destes espaços apresenta semelhanças através desses tronos, em seus respectivos materiais, tecidos e design, as cortinas, e a palheta cromática em azuis, bordô, creme e dourado, que incluem a padronagem dos tecidos em azul, que possuem cruzes douradas.
Entre estas existe a distinção de perspectivas das matriarcas, que na pintura é a mãe de Napoleão, Maria Letícia Ramolino, e no filme é Maria Antonieta. Na pintura, a figura central que está sendo coroada é a Imperatriz Josefina de Beauharnais, ajoelhada recebendo a coroação de Napoleão, e no filme é Luis, ajoelhado, sendo coroado pelo clero. No quadro, Napoleão já está coroado e foi ele mesmo quem se coroou, como ato de empoderamento perante o reino e à própria Igreja.
Além da hibridização da cena, que apresenta a narrativa por meio da imagem (tal qual foi função da arte pictórica), a relação entre as figuras estabelece a dimensão de subjetividade para os personagens. Maria Antonieta está em posição de poder ao associar-se a Maria Letícia Ramolino, diferente de Josefina de Beauharnais que está ajoelhada perante seu esposo. Luís, por sua vez, liga-se a Napoleão no que tange à má administração de seu reinado, e se diferencia no sentido de posse de poder, pois ele se mostra inseguro para assumir o posto que lhe é designado, não está emocionalmente no comando da situação.
A reconstituição desta cena enquanto momento da coroação reforça inclusive a fala de Luís XVI no filme quando é anunciada a morte do pai. O personagem ajoelha junto a Maria Antonieta, e olhando para cima diz: “Querido Deus, nos guie e nos proteja. Nós somos muito jovens para reinar”.
O próximo caso, é a cena do conde Axel na guerra (Figura 20), concebida como alusão à pintura Napoleão Bonaparte cruzando os Alpes (1801) (Figura 21), de Jacques-Louis David. Esta imagem está associada aos pensamentos de Maria Antonieta, à janela e saudosa do amante que partiu. Logo, neste caso, a associação com Napoleão incita o poder.
(Figura 20)
(Figura 21)
Os quadros são análogos enquanto composição cênica, posição das figuras, cenário, figurino, palheta cromática, e atmosfera heróica que atribui “movimento” à pintura, quesito que no filme é incorporado reduzindo a velocidade de movimento da imagem. Nestes quadros, ambos personagens estão montados em um cavalo branco, que está empinado, trajando vestimentas militares de época nas cores branco, preto e bege, com uma capa vermelha e chapéu preto no mesmo estilo. O espaço apresenta uma paisagem semelhante, que se refere à um campo de batalha, com com fumaça, ambiente terroso, soldados e rodas de carroças ao chão, sendo esses dois últimos elementos posicionados ao fundo, na pintura, e a frente, no quadro fílmico.
O quadro representa a vitória de Napoleão sobre o exército da Áustria, revelando a relação subjetiva entre Maria Antonieta e Axel, conforme ela “perde” sua alegria com sua partida. Além de incitar a “perda” da personagem perante a nação francesa, uma vez que ela é austríaca, “perde” para a França em diversos sentidos ao longo do filme, que neste final, se conforma efetivamente com a revolução.
Desta maneira, o filme constrói imagens que por meio da intertextualidade e referência às artes, contribuem com a narrativa conforme reforçam subjetivamente o momento da história diegética. Outras cenas mostram possuir alusões à pinturas clássicas, como o quadro fílmico do pic-nic embaixo da árvore (Figura 22), com o quadro Parada após caça (1705) (Figura 23), de Charles André Van Loo. A cena da noite da festa de aniversário de Maria Antonieta, quando, junto com seus amigos (Figura 24), ela vai para o lago esperar o sol nascer, alude à estética de Iluminação do Belvedere de Petit Trianon (1781) (Figura 25), de Claude-Louis Châtelet. A cena de Maria Antonieta com os músicos no Trianon (Figura 26), remete ao quadro Concurso de Música (1754) (Figura 27) e a cena da protagonista beijando Axel (Figura 28), ao quadro Amantes apaixonados (1765) (Figura 29), ambas pinturas de Jean-Honoré Fragonard.
(Figura 22)
(Figura 23)
(Figura 24)
(Figura 25)
(Figura 26)
(Figura 27)
(Figura 28)
(Figura 29)
Conclusão
Essas inúmeras referências aos quadros clássicos incitam as reflexões sobre ¨Cinema e Pintura” de modo geral, uma vez que estão presentes na construção mesma do filme. Contudo, nossa atenção aqui se volta para pensar esse cruzamento em termos da fruição estética, da imaginação, intensificando a experiência do filme.
A presença das molduras, estabelecidas tanto pelo quadro fílmico, como pelos quadros pictóricos, travam diálogo e realizam a função do recorte de um espaço representativo: o campo em que a imagem se revela e apresenta uma cena, a qual detém uma intenção dramática, estética e narrativa própria. Conforme esses múltiplos quadros se imbricam, localizando-se dentro de novos quadros, ambos universos passam a dialogar e se influenciar. A pintura passa a contribuir para a atmosfera e expressão artística do filme, de tal modo que em filmes como Maria Antonieta as pinturas ultrapassam (ao nosso ver) a função de elementos de fundo ou plásticos, cumprindo o aprofundamento subjetivo da poética dos espaços.
Cada caso abordado é um modo distinto desta poética, e propõe efeitos estéticos próprios. Por exemplo, o uso das pinturas originais na cenografia agrega valor narrativo e simbólico mais sutil, enquanto as pinturas reapropriadas de Maria Antonieta, articulam mensagens mais explícitas, quanto à reapropriação dessas imagens, anacronismo, e reposicionamento do imaginário cultural desta rainha. Em ambos, todavia, a referência a uma obra canônica precursora é clara. Já nos casos das cenas que se transformam em seu total na alusão a um quadro canônico, podem não necessariamente ser claras para o espectador. Com isso, seja explicitado ou não o cruzamento estético, o efeito se cumpre: as camadas do imaginário destas pinturas estão efetivamente lá.
A delimitação de um quadro traz consigo a idéia de uma área, ou um espaço, em que a imaginação pode se apresentar, expressar-se e registrar-se. Dentre as inúmeras maneiras e estilos de construir uma imagem na tela, em um quadro encontramos registros de uma expressão artística carregada do espírito do artista, estilo, da época, das cores, da narrativa, cultura, e etc. Ao mesmo tempo, todos esses aspectos se projetam para além da realidade, em um “ponto” no espaço fixado nessas imagens, que deixam o campo do que existia naquele tempo-espaço, para eternizar-se por si mesma enquanto obra. É um produto da imaginação.
Assim, é interessante perceber que, embora essas artes visuais cumpram o papel de registros, elas estão à disposição do imaginário. E, neste filme é importante perceber que a relação entre a pintura e o cinema atual é parte do fundamento de questionamento da imagem que existe de Maria Antonieta. Uma vez que os parâmetros sobre sua história são reposicionados pela autora Fraiser na biografia que inspirou Sofia Coppola, a utilização da arte pictórica se apresenta em auxílio desse questionamento. A mudança de ponto de vista que sugere um olhar para com seu lado humano e de mulher, tem apoio nesta direção de arte, que invoca a pintura de modo renovado e anacrônicos.
O cinema, dotado da capacidade de reproduzir imagens do mundo com enorme fidelidade, possui uma linha tênue no que diz respeito a esse fator de “veracidade”. Uma imagem fílmica cativa o espectador a acreditar nela, e isso gera um aspecto tendencioso de compromisso com a realidade. Todavia cabe recordar que o cinema é um arte, e seu papel é de expressão, imaginação e liberdade. Aqui, então, Sofia Coppola torna claras todas essas camadas de questionamento da função da arte, do cinema, da pintura, nesses múltiplos papéis que exercem, entre a realidade e os sonhos.
Como posto por Bazin, a tela é uma janela que abre para outro mundo, e dentro do quadro, as imagens revelam um espaço outro. Neste sentido a delimitação do quadro não restringe, mas expande, pois são novas aberturas. No caso do filme, com essas intertextualidades, novas camadas complexificam e adicionam informações às cenas de modo que a intenção deixa de ser a da capacidade racional, mas sim da sensível, subjetiva, estética. Em segundos somos expostos à esses „abismos“ imagéticos, ultrapassando a função de transmitir uma informação, mas sim, buscando transmitir a experiência, a sensação.
Outro aspecto é a relação da base histórica com a própria pintura. Uma vez que a arte pictórica é - até a chegada da fotografia no final do século XIX -, a fonte de registro visual da história, esse jogo cênico entre cinema e pintura abre espaço para o posicionamento reflexivo sobre visões estratificadas. Na reapropriação das imagens da rainha francesa enquanto elemento da ficção e na utilização de alusões a pinturas canônicas para construir a cena, Maria Antonieta de Coppola cria uma fissura com a função de registro questionando outros aspectos sob a formulação cultural desta mulher.
De modo complementar, os quadros originais utilizados como parte da cenografia, contribuem com essa função, pois cumprem o duplo papel de cunhar “veracidade” ao mesmo tempo que são as materializações de peças lúdicas, pois são simulacros e histórias representadas pictoricamente. Se denunciam enquanto próprio artifício e arte.
A liberdade criativa que uma tela possibilita, independente de sua superfície, dispositivo ou dimensões, é a abertura de um espaço no qual o imaginário do artista pode se projetar. E, neste sentido, camadas culturais formam-se nesses atos criativos, sedimentando imaginários coletivos e culturais também. Seja com a tinta, programa digital, palavras escritas, conforme a moldura se apresenta, a porção de mundo subjetiva ganha seu espaço, encontra uma superfície para manifestar-se no mundo material.
Em Cinema e Pintura (2004), Aumont coloca:
As duas funções do quadro (moldura) são, provavelmente, mais fáceis de ser consideradas juntas e, sobretudo, de ser “estendidas” a todas as artes da imagem figurativa. (...) O quadro (moldura), nos diz ele [Bazin], em suma, pode abrir ou fechar a obra; ele pode obrigar o olhar a percorrê-la ou incitar o espírito a vagabundear para além de seus limites.(...) Limite e janela (...), a imagem pictórica e a imagem fílmica jogam com os dois e, no mais das vezes, com os dois juntos. A história da pintura está repleta de casos onde o limite se transforma em janela e vice-versa, na fronteira, às vezes, do indivisível. (AUMONT, 2004:119)
Esses rebatimentos entre a pintura e o filme Maria Antonieta, tratam não somente desse prolongamento na perspectiva do espaço euclidiano, mas das mídias e imaginação. O cruzamento entre essas linguagens, indicam que a capacidade estética ultrapassa delimitações dos modos processuais, estando intrinsecamente em constante diálogo e tensionamento. A história que era registrada por pinturas, hoje é registrada por mídias tecnológicas, de modo que, em ambos os casos, o cunho de veracidade é ficcional: uma vez que sempre há pontos de vista, recortes, posicionamentos, enquadramentos de uma “porção de espaço posta em campo”, temos essa poética acontecendo. Há uma seleção do que ¨por em cena”. Conforme essas cenas exibem a mistura desses procedimentos, a capacidade estética se potencializa, se projeta no espaço poético do filme.
No dicionário Bachelardiano (2013), a definição do termo projeção é:
A imaginação deforma, transforma e transfigura o real numa obra de arte, imprimindo-lhe a marca e a força projetante de seu criador. Cada autor tem suas impressões “íntimas sobre o mundo exterior” e uma “experiência onírica” anterior à contemplação. Contempla-se o mundo de acordo com os sonhos e os fantasmas que habitam o mundo de um poeta. (ARIAIS, 2013:159)
Esta idéia de “projeção” nos serve então para pensarmos no que uma obra emana, em um sentido do imaginário coletivo, e mesmo até conforme posto por Benjamin, sobre a aura. A pintura canônica se apresenta em cena gerando um efeito simplesmente por sua presença, esteja explícita ou no fundo do cenário. E, ao re-trabalhar estas obras, o filme mexe com o imaginário destas também, transfigurando-as para um novo espaço-tempo, universo diegético, atribuindo novos significados a elas.
Ao assumir uma nova imagem para registros históricos, Sofia Coppola declara que seu filme é uma obra de arte, que não pretende reconstruir o passado, mas expressar sua própria visão de mundo interior através dos “olhos” de sua personagem.
Notas Finais
1 A Poética do Espaço na obra de Sofia Coppola; cruzamentos de mídias e a intertextualidade no imaginário de As Virgens Suicidas e Maria Antonieta. (2019)
2 “Antonia Margareth Caroline Fraser, mais conhecida como Antonia Fraser, é uma biógrafa e escritora britânica. Escreveu várias biografias e romances policiais. Nascida na família dos Condes de Longford, mais tarde tornou-se a segunda esposa do dramaturgo Harold Pinter, vencedor do Nobel de Literatura de 2005.” (Wikipédia)
3 Carlos José Fontes Diegues é um cineasta brasileiro. Um dos fundadores do Cinema Novo.
4 Ana Patricia de Queiroz Carneiro Dourado: Doutoranda em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, doutorado sanduíche Centro de Investigação em Artes e Comunicação - CIAC, da Universidade do Algarve.
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