Abstract
When a couple dance, a face-to-face interaction is established putting into action a social and corporal file that belongs to a collective archetypal history. In fact, it is this collective archive that enables the communication between the dancing couple. When two persons, who do not know each other, decide to dance together they put into play (or should we say into dance) their common social file, but above all, the common file that interests their dance. Through dancing, the couple devises a choreographic repertoire that allow them to create a memory of a space and time, as well as the call of a legacy of rhythms and steps belonging to a universal choreographic library. The symbolic interactionism of which Erving Goffman is representative, have analyzed a series of daily life situations pointing out that Individuals shape their identity through contact with others. Goffman highlights the relevance of dance, mentioning the “ballroom” as the space par excellence of nonverbal relationships analysis. The author emphasizes that the dancer in a social dance context privileges almost exclusively the corporal communication, dissociating the semiotic use of the word, with a corporal vocabulary. Supported by Masayuki Suo’s film Shall we dance (1996), this paper aims to analyze, through the filter of symbolic interactionism, the way a dancing couple interacts, summoning a collective body and an individual body
Keywords: Sociology of Everyday Life, Dramaturgy of the Body, Dance analyses, Film analyses, Shall We Dance
Introdução
Quando duas pessoas se encontram estabelece-se uma interação face a face, pondo em ação um arquivo social e corporal que vem, por um lado, de uma história coletiva (social, cultural, familiar) e, por outo lado, das experiências e vivências de cada um. Será graças a esse arquivo coletivo que os dois interlocutores comunicam e se entendem. Quando duas pessoas, que não se conhecem, decidem dançar nos braços um do outro colocam em jogo (ou deveríamos dizer em dança) o seu arquivo social comum, mas, sobretudo, o arquivo comum que interessa à sua dança. Trata-se de um reportório semelhante de formas de movimento que permitirá que dois corpos criem uma coreografia que se constitui como memória de um espaço e tempo, bem como um património de ritmos e passos coletivos pertencente a uma biblioteca coreográfica universal. O nosso objetivo, tendo como referência o filme de Masayuki Suo - Shall we dance? (1996), será refletir, através do filtro do interacionismo simbólico, a forma como se constrói um par/corpo dançante numa situação social, convocando, para tal, um corpo coletivo e um corpo individual.
A interação face a face na vida de todos os dias
Os indivíduos formam a sua identidade através da relação com o exterior e do contacto com os outros. Inventamo-nos a partir da nossa interpretação dos olhares que os outros nos depositam. Desta feita, os atores sociais agem em função do sentido que dão à sua ação, sendo que este sentido nunca é independente da interação que, por sua vez, obedece a uma lógica própria. Será graças a esse arquivo coletivo que os dois interlocutores comunicam. O interacionismo do qual o sociólogo Erving Goffman é exemplo, explorou e analisou uma serie de situações reais da vida quotidiana. Pese embora não lhe tenha dado um plano central, Goffman (1993) estudou algumas situações dançantes salientando o seu interesse. O autor refere o “salão de baile” como o espaço por excelência de análise das relações não verbais. Salienta que o bailarino, em contexto de dança social, privilegia quase exclusivamente a comunicação corporal, dissociando o uso semiótico da palavra com um vocabulário corporal. Com efeito, a dança social pode ser tomada como um fenómeno social total em espaço urbano na medida em que se constitui como narrativa social. Assim entendido, o discurso da dança faz parte de uma ecologia das relações humanas no sentido em que Nancy (2005) o define. Então, a dança social (a par) objetivará, sempre, o lugar social de pertença bem como a relação que o indivíduo assume com este mesmo lugar (social, geográfico, cultural). Isto sabendo que analisar a situação de “baile” será, igualmente, analisar o comportamento psicossocial do sujeito com o seu meio envolvente que, por sua vez, assumirá interações de poder. Na esteira metodológica do interacionismo simbólico afirmamos que a interação verbal não é o capital na relação humana. De facto, embora a funcionalidade da linguagem seja estrutura da cultura, a tónica comunicacional está na interação não verbal. Como nos ensina Mauss (1973) a linguagem é estrutura, mas não estruturante. Será, então, a interação que irá nomear o ser humano na sua unicidade e essa interação é de ordem simbólica. Note-se que os símbolos não provêm em linha direta da realidade. Isto é, apesar dos símbolos serem coletivos estão sujeitos a leituras individuais e subjetivas. Então, e de um ponto de vista artístico, os símbolos são sempre de ordem arquetípica e coletiva. Serão os sentidos comuns dados a uma realidade que irão estruturar a experiência social. Desta feita, o humano fabrica a sua realidade atribuindo um sentido à mesma. Efetivamente, o indivíduo constrói-se em sociedade por socialização e integração e será através destas duas categorias que a manutenção de estruturas basilares sociais são asseguradas. No entanto, será, igualmente, através da diferenciação e individualização que o individuo se descobre como identidade e, note-se, será a individualização que potencia a renovação social. Concludentemente, os sentidos e significados do mundo não são prévios nem individuais, mas pertencem à ordem da interação que, do seu lado, promove uma comunicação de sentidos. Observe-se que os indivíduos formam a sua identidade através da relação com o exterior, através do contacto com os outros. Com efeito, inventamo-nos a partir da nossa interpretação dos sentidos do olhar que os outros nos depositam mesmo que num limite esse olhar exterior despolete mecanismos de violência simbólica como nos mostra Bourdieu (2001).
A interação face a face na dança
As instruções para dançar a dois poderiam ser as seguintes: (i) os bailarinos avançam na medida em que a coreografia e/ou corpo do outro se revela significante; (ii) os bailarinos improvisam em função do sentido que dão à “dança do outro”; (iii) o sentido da dança nunca é independente da interação com o par, sendo que, como já afirmámos, essas interações ocorrem por meio de uma lógica própria. Nesta perspetiva, a “dança a par” é mais um processo criativo do que estrutura coreográfica, uma vez que as regras da estrutura coreográfica não determinam as ações de movimento, mas, antes, apontam para uma dança singular. Com efeito, face a um par dançante há uma atenção na “ação/interação” do par e não na ordem social da coreografia, sendo as relações face a face privilegiadas pela própria lógica simbólica do par. Interessa, então, analisar os procedimentos que os indivíduos usam para se colocarem em interação. Goffman (1974) analisando o conceito de interação nota que as estruturas influenciam as ações sociais ao fornecerem quadros de interação. Regressando à análise da dança, o “salão de baile” é a estrutura que despoleta a ação e, naturalmente, a coreografia será o quadro que potencia a interação. Note-se que para Goffman (1974) existe uma prefiguração nas ações sociais marcada pela estrutura. Ou seja, à partida nem todos os sujeitos estão preparados para dançarem num “salão de baile”. Num “salão de baile” estamos face, portanto, a duas ordens de presença: a ordem social (espaço de potencialidade cénica) e a ordem da interação (só possível para quem domine os códigos da dança e do próprio baile). Note-se que, e como refere Goffman (1974), a ordem da interação está em parte configurada pela ordem social. Sendo que as ações despoletadas na interação irão determinar a estrutura e não o inverso. Será o mesmo autor que, apesar de reconhecer que o foco da dança está na ordem da interação, assinala o peso da ordem social no contexto da dança social. Então, torna-se pertinente tentar compreender que tipo de relação há em cada par que dança, bem como estudar como se processa a passagem entre a ordem da interação simbólica e a ordem social que moldura a individualidade. Ou seja, mesmo que as situações sejam, aparentemente, iguais os quadros de interação e de ordem social podem ser diferentes. O “salão de baile” é o mesmo, as danças também, mas os quadros de interação diferem uma vez que os bailarinos são únicos e singulares. Nesse sentido, os atores sociais (ou deveríamos, antes, dizer os bailarinos sociais?) procederão sempre a uma espécie de pré-agenciamento de comportamento. Regressando ao exemplo do “salão de baile” os bailarinos sabem através de experiências anteriores qual o quadro (estrutura, regras, modus operandos) da sua ação. Logo, projetam as suas ações face a um mapeamento pré-existente, nomeadamente a uma gramática coreográfica. Claro que muitas vezes ocorrem fenómenos novos e não esperados que se sobrepõem ao quadro pré-definido. Ou seja, apesar de existir uma estrutura previamente construída e os atores(bailarinos) sociais respeitarem um “argumento/coregrafia” que já dominam, em cada apresentação surgirão elementos novos e inesperados que despoletarão situações de improvisação que se inscreverão na ordem da interação.
O Baile, o Corpo, o Encontro.
O encontro de dois corpos num salão de baile é uma situação excepcional. Efetivamente, em poucas situações da vida um homem e uma mulher, ou um homem e um homem, ou uma mulher e uma mulher que não se conhecem ou têm qualquer ligação um(a) com o(a) outro(a), são autorizados a abraçarem-se por alguns minutos.
Mais peculiar ainda: toda a comunidade que os observa e testemunha irá apoiar e incentivar o “abraço”. Em situação de baile a exploração de um corpo expressivo não é olhada com estranheza, mas, pelo contrário, é encorajada. O ambiente coletivo assume a obrigatoriedade do uso do corpo como instrumento de comunicação privilegiada. Num par dançante uma série de regras socialmente válidas para a interação social entre dois corpos são substituídas por novas regras que irão regulamentar o funcionamento do baile. Do quadro de interação que estrutura a dança teremos como elementos fundamentais:
(1) O olhar: após terem estabelecido contacto visual, o par vai-se aproximando progressivamente da pista mantendo o olhar um no outro. Seguramente, o olhar é o primeiro elemento para entrar em relação com o outro. No contexto da dança social o olhar está preenchido de interrogações, exclamações, afirmações. Com efeito, tal como definiu Edouard T. Hall (1979), o olhar revela o momento onde se passa de uma distância pública para uma distância social; (2) Aproximação e abraço: o passo seguinte implica ultrapassar uma distância social com o intuito de estabelecer uma distância pessoal que delimitará a relação do par dançante. À medida que se inicia a dança a distância reduz-se entre os dois, uma sorte de bolha que corresponde à distância pessoal e íntima é esbatida, permitindo novas informações sobre uma situação que se renova a cada instante. Nesse momento a comunicação passa a ser com o corpo todo: pele, odor, temperatura. Será através desse encontro sensorial, no qual o toque se revela fundamental, que a dança tem lugar. O contacto corporal (através da tensão muscular, da temperatura da pele, etc) vai dar-nos uma informação profunda sobre o outro, fornecendo dados sobre as possibilidades técnicas dos bailarinos que serão determinantes para a qualidade da dança.
A Escrita da Dança
Ao longo da história da dança, a escrita e a grafia do corpo revelam-se fulcrais na solidificação de uma sociologia do corpo, bem como na definição dos territórios de um corpo quotidiano expressivo. A dança, podemos avançar, compõe-se como escrita dramatúrgica do corpo que, de um ponto de vista estético, adquire o nome de coreografia. Conforme Hanna (1993) a notação da dança gravada no pensamento coreográfico ocidental descreve o movimento como símbolos ideográficos em vez de linguagem verbal. Assim entendida a notação da dança é um instrumento conceptual que utiliza uma qualidade de partitura “alfabética” para descrever a linguagem. Tal como um alfabeto verbal, os símbolos da notação da dança podem transcrever diversas linguagens. Os sistemas de notação de dança que enfatizam a universalidade da estrutura corporal são compostos por alfabetos aplicáveis a diversos dialetos de dança. Em certo sentido, a notação de dança é uma metalinguagem que lida com as diferentes linguagens de movimento. Similarmente a uma partitura musical, as notações de dança são partituras que podem ser criadas e lidas para reconstruir movimentos físicos e qualidade dos movimentos. Os sistemas de notação usam substantivos, verbos e adjetivos para descrever diferentes movimentos e linguagens de dança com a sua própria memória cultural, expressão individual, e significado físico e verbal. Na notação da dança, o verbo é a ação feita por partes do corpo no espaço. Relembremos que as notações em artes parecem ser mais evidentes e desejadas na história da arte ocidental, principalmente naquelas que são performáticas como a música, o teatro e a dança. No teatro o texto literário é a primeira grafia e na música será a partitura musical. É de notar que a história da notação de dança está, de certa forma, correlacionada com a consolidação da dança como categoria artística visível. Sabe-se que a necessidade expansionista do cristianismo favoreceu duas linguagens como dispositivo de unificação social. Uma foi a língua latina e outra a estruturação da notação musical. A dança, como já referimos, teve dificuldade em se estabelecer como categoria artística e consequentemente em criar uma forma de escrita. Podemos avançar com a noção de que a coreografia lida com a lógica e o equilíbrio da dança numa síntese espácio-temporal. Ou seja, existe uma qualidade da gramática da dança que sumaria a linguagem do movimento lidando, não só com a forma exterior do movimento, mas também com seu conteúdo mental e emocional. Neste contexto, a dança vive de corpos que a materializam, ao ponto de a transformar numa experiência real e percepcionável. Esta materialização dos corpos dançantes revelar-se-á como registo da própria dança. Note-se que nenhum corpo é igual a outro. Nesse sentido, cada corpo traz à dança que materializa a sua identidade e a sua verdade. Podemos então, e retomando o entendimento da construção de uma sociologia do corpo pela dança, afirmar que as formas dançadas contribuem para a construção social do corpo na medida em que este é registo, memória, técnica e significado. Assim compreendido, a dança, quer de um ponto de vista estético e artístico, quer de um ponto de vista social construir-se-á sempre na interpessoalidade de quem a dança, mas, igualmente, como narrativa do mundo e dos tempos. Isto na certeza de que o corpo em situação de dança é, forçosamente, um corpo singular e biográfico.
Dança e Técnica
Enquanto dançam os bailarinos vão isolar-se e fechar-se no seu par num imaginário que só pertencerá aos dois. Note-se que as danças sociais são, em certa medida, subversivas alargando as fronteiras de uma ordem social e colocando um corpo livre em cena. Desta feita, a técnica de dança vem regulamentar este jogo livre entre dois corpos. Os corpos que dançam estão sempre, metodologicamente, em situação de improvisação e, nessa perspetiva, não há paradigma que os coaja. Será a singularidade de cada intérprete que cria a coreografia. No entanto, quer a singularidade, quer a improvisação como modelo de composição coreográfica só se tornam possíveis se existir sincronismo no encontro social entre os dois bailarinos. A sincronia, como refere Hall (1979), será a forma como os dois bailarinos vão, em breves segundos, interagir por forma a coordenar e sincronizar uma série de movimentos entre os dois e com a música. Falamos de uma improvisação quase pura sem grandes partituras. Para que a improvisação possa acontecer, principalmente quando os dois bailarinos não se conhecem, é imperioso saber dançar. A técnica de dança é capital para que a ilusão de uma dança espontânea aconteça, uma vez que as coreografias que surgem, acontecem por recombinação de domínio técnico das mesmas. Note-se que, como refere Hall (1979), os ritmos e os padrões inscritos nas formas coreográficas das danças sociais são universais e pertença de um património coletivo. Remi Hess (1989) fala-nos na dimensão cósmica da dança e, consequentemente, na consciência intuitiva do valor cultural da dança. Daí a perpetuação da dança social e etnográfica na passagem de gerações. Efetivamente, a transmissão geracional da matéria da dança prova o quanto ela se constitui como uma espécie de gramática da linguagem do movimento lidando, não só com a forma exterior do movimento, mas também com seu conteúdo mental e emocional.
Primeiro passo: O olhar
Em Shall We Dance? o realizador Masayuki Suo conta-nos a história de um homem banal de meia idade - um “sarariman” - isto é, um assalariado de classe média, que em plena crise existencial descobre as danças de salão. Shohei Sugiyama (interpretado por Koji Yakusho) é esse homem de classe média, casado, uma filha adolescente que, por inibição, oculta da família o seu hobby: as danças de salão. Note-se que as danças de salão são fruídas por uma minoria no Japão. Culturalmente, na sociedade japonesa, a dança social é vivida a solo, não sendo muito frequente o toque físico entre bailarinos. Quando se dança em grupo não há, comummente, contacto corporal. Mesmo entre casais é mantida uma distância formal quer física, quer emocional. Note-se que esta realidade social está em mutação na sociedade nipónica, mas é da estrutura tradicional que o realizador Suo quer falar. O seu desejo temático prende-se não só com uma reflexão sobre o papel feminino e masculino na relação amorosa, mas, igualmente, sobre o medo vivido pelo indivíduo em se destacar socialmente, quer seja por um hobby, quer por se comportar um pouco à margem da norma social. Na vida de todos os dias a personagem Sugiyama sente a pressão social da noção preconceituosa de que a “Shako Dansa” (danças de salão em japonês) é uma distração frívola. Mais uma vez, e regressando ao japão que Suo quis retratar, socialmente não é bem vista a diversão social e o foco essencial da existência está no trabalho. Neste sentido, entende-se porque é que para a personagem Sugiyama, a dança surge aliada a um sentimento de culpa e de vergonha. O foco essencial da sua vida deveria estar no trabalho, em pagar a sua casa, em estar com a família e, no entanto, ele descobre a dança. Decide aprender a dançar e com estas aulas descobre um sentido feliz (ou pelo menos alegre) para preencher a rotina da sua existência. Note-se que a filha de Sugiyama representa o “novo Japão”. Ela não entende a apatia da mãe e o papel subserviente que esta assume no casamento. Aliás, será a filha que aceitará e apoiará o pai no seu hobby e, mais importante, será a filha que o desafia a ensinar a mãe a dançar, ficando como final aberto do filme a ideia de que este casal passará a dançar a par. Com a primeira valsa do casal inaugura-se uma nova etapa na família e, assim o deseja Suo, um novo tempo no Japão. É de notar que Shall we dance? para além de ter sido um êxito de bilheteira no Japão despoletou um movimento “pró - danças de salão”. Isto porque à data do filme (1996) a realidade das danças de salão, bem como das escolas onde se ensinavam as técnicas de dança de salão espelhavam o vivido pela personagem Sugiyama. Ou seja, os bailarinos e alunos evitavam falar com amigos e família sobre a sua prática ou mesmo escondiam-na do seu ambiente familiar e laboral. O filme Shall we dance? abanou as estruturas tradicionais da sociedade japonesa. Após o lançamento do filme, e com o seu sucesso, multiplicaram-se as escolas de dança e bailarinos e alunos que estavam em silêncio começaram a assumir que dançavam, por vezes já há muitos anos.
Passo 2: O encontro
Um homem casado, com uma filha adolescente, sente-se sozinho e perdido. Pese embora a sua vida pareça perfeita falta-lhe algo essencial. Podemos chamar-lhe paixão, aventura, estímulo, o que quisermos. É algo de essencial à vida e que não está presente no quotidiano da personagem. Um dia, quando regressa a casa de comboio, avista uma escola de dança de salão e uma jovem professora Mai (interpretada por Tamiyo Kusakari) à janela do estúdio. Atraído pelo estúdio de dança e pela sua jovem e melancólica professora vai visitar a escola e, impulsivamente, acaba inscrito numa classe de iniciação às danças de salão. Mesmo que num primeiro momento Sugiyama tenha sido atraído para a escola por causa da jovem professora Mai, cedo desvia a atenção dela e se entrega plenamente à aprendizagem da dança. Note-se que o lado ilícito que têm as danças de salão na sociedade nipónica parece agradar a Sugiyama. Efetivamente, as danças de salão, como é explicado no filme, são consideradas algo escandalosas uma vez que se trata, como já notámos, de uma sociedade onde o contacto físico em público, mesmo entre casais, não é comum. A entrada na escola de dança é feita de forma furtiva e secreta como se tratasse da entrada num bordel. Sugiyama surge-nos com um comportamento suspeito e, inicialmente, a sua motivação para aprender a dançar não é clara. Shohei Sugiyama está farto do seu emprego, da rotina familiar e sente como imperioso alguma mudança na sua vida. Nesta crise existencial, Sugiyama é tocado pela música e pela dança. A dança entra na sua vida e passa a contaminar todo o seu quotidiano, ainda que secretamente. À medida que as aulas decorrem podemos vê-lo a ensaiar na casa de banho da empresa, furtivamente em casa, etc. A diferença no seu comportamento é tal que a sua mulher se questiona o que é que o fará estar tão feliz. Tal é a mudança no seu ânimo que, desconfiando de um caso amoroso, contrata um detetive privado para o investigar. Com efeito, Sugiyama mantém a sua dança em segredo da família e dos seus colegas de trabalho tendo comportamentos que, para os seus próximos, indiciam um caso extraconjugal. Efetivamente, a sua obsessão privada pelas danças de salão pode parecer mais disruptiva do que um caso amoroso real, uma vez que Sugiyama começa a desenvolver sentimentos amorosos e apaixonados pela arte de dançar. A diretora da dança da escola onde Sugiyama estuda confidencia-lhe que começou a querer dançar quando viu a dança de ‘’Shall We Dance’’, número do filme The King and I (Walter Lang: 1956). E a interrogação “shall we dance?” torna-se uma espécie de código entre os dois, professora e aluno, uma forma de se lembrarem que o desafio da dança vai além do domínio técnico dos passos. De facto, neste filme dançar é, fundamentalmente, nomear os sentidos simbólicos do mundo. À medida que Sugiyama prossegue nos seus estudos de dança, descobre toda uma comunidade de apaixonados bailarinos amadores e de um glamour ao estilo de Fred Astaire – Ginger Rogers. Entre os colegas de turma, cada qual com a sua motivação particular para dançar, surge uma amizade sólida que é feita de secretismo e clandestinidade. A comunidade que dança é vista, nesta obra, como indivíduos que reinventam a sua existência. Para além da história de Sugiyama vamos conhecendo a história dos seus colegas de turma: o rapaz gordo e tímido que busca na dança o remédio para a introversão; o bailarino amador frustrado e ressabiado; o homem que busca reconhecimento público e que vive numa solidão limite.
Note-se que todas estas personagens são desenhadas com grande sensibilidade e apresentadas como seres humanos com valor. A obra é filmada buscando-se sempre a noção de glamour e elegância dos anos dourados dos musicais de Hollywood. Inevitavelmente temos a competição de dança que eleva estas personagens ao estádio da visibilidade pública. No entanto, esta competição não traz nada de “heroico” ou de sublimação social. É, antes, uma viagem interior de um herói quotidiano que, através da dança, entende a vida, ou pelo menos exorciza as suas frustrações. Em Shall we Dance? o realizador Masayuki Suo usa a dança como forma de explorar assuntos complexos como o vazio existencial despoletado pelas convenções sociais japonesas, a falta de sentido para a rotina da vida e, no seu contraponto, o direito que o indivíduo tem em ter um mundo privado “entusiasmante”. O realizador coloca estes assuntos de forma delicada e sensível. Embora as temáticas surjam com intensidade e a critica social esteja presente, nada é exposto de forma forçada, mas, bem pelo contrário, a temática é apresentada de forma simbólica, metafórica e sempre com um carácter lúdico. Há um respeito pelas convenções culturais japonesa apesar das críticas a estas feitas. Na dança aprende-se também, para além do êxtase de se dançar, o respeito pelo nosso par, pelo outro que está envolvido na dança. Como refere a diretora da escola na primeira aula de Sugiyama: dançar é mais do que saber passos, é sentir a música e dançar a alegria.
Passo 3: O abraço
Em Shall We Dance? um comboio opera a passagem entre um espaço público e um espaço privado. Por tal, o comboio pode ser considerado uma metáfora para a jornada da vida. A narrativa do filme começa com o retrato de um homem que regressa do trabalho. A plataforma do comboio ajuda a criar a atmosfera e cenário de rotina diária banal e repetitiva. O comboio marca também a transição entre o trabalho e a família, entre a esfera do público e a esfera do privado. Habitualmente um homem da classe trabalhadora no Japão não vai para casa a seguir ao trabalho. Junta-se com colegas de emprego para beber algo e socializar um pouco. Esses espaços são chamados de “sakariba” e marcam uma fronteira entre o espaço do trabalho e o espaço da casa. Sugiyama não tem esta prática, a sua rotina diária implica regressar a casa após o trabalho, facto que até inquieta a mulher. A personagem acaba por tornar as aulas de dança no seu “sakariba”, pese embora o estúdio de dança não corresponda ao estereotipo de socialização que caracteriza o “sakariba”. Efetivamente, um estúdio de dança implica envolvimento com a prática artística e uma socialização mais desafiante. Shall we Dance? fala de uma crise existencial de quem se sente vazio e melancólico. O que a personagem busca, o que lhe falta, é o próprio sentido da vida. A conclusão a que Sugiyama chega é que, como nunca soube o que verdadeiramente queria da sua vida, não sabe o que lhe falta, restando-lhe um vazio existencial que a dança preencheu. Note-se que a dança faz sempre referência a uma noção de melancolia, como refere Lepecki (2006). Para este autor a melancolia de quem dança é uma concentração afetiva de algo que está perdido. A dança é um acontecimento efémero, emerge numa espiral de tempo que se evapora. Tendemos a conceber a dança como algo material, mas a sua materialidade é apenas retida na memória dos seus participantes e numa recordação difusa de quem assistiu e testemunhou a dança dos outros. Será, enfim, essa memória imagética e efémera que se constituirá como grafia do gesto e registo de movimento, fazendo com que as formas de dança se perpetuem no tempo. Neste sentido, o ato de coreografar é um ato, quase cinemático, de construir memória. O último século, com o advento da imagem em movimento, permitiu que um novo olhar sobre a dança e o seu registo se desenvolvesse. Não só podemos registar a coreografia e seus intérpretes como, também, criar coreograficamente para a câmara. No entanto, o filme captura a dança e o seu passado, mas não consegue capturar a natureza efémera do tempo, quer da dança, quer da vida. Será esse tempo que passa e que não conseguimos guardar que dota a dança de uma sensação melancólica. Ozu, com este filme, explora muito bem esta relação entre o desejo de dançar e a melancolia do tempo que passa e que marca um sentido para a vida, ou a falta desse sentido. Principalmente a personagem da professora Mai reflete esta melancolia de um tempo que não se recupera e, no caso desta personagem, aponta para a memória de um outro corpo, de uma outra época. Efetivamente, Mai representa a elegância de um outro tempo que, na sua codificação estética, não colide com a codificação corporal do Japão tradicional. Relembre-se que historicamente a dança surge como ritual sagrado e, tendo perdido esse espaço, manteve a ideia da captura de um tempo perdido e de elevação do “espirito”. Obviamente que as danças sociais contêm um lado competitivo que as aproxima do discurso atlético do desporto (daí que as danças de salão em contexto de competição adquiram a nomenclatura de danças desportivas). Pese embora o seu carácter virtuoso e atlético, o registo estético estará sempre presente e com ele a noção de um tempo efémero que é urgente guardar, ou, como refere Garaudy (1984) a necessidade de dançar a vida, uma vez que esta é intangível e fátua. Quando Sugiyama no seu regresso do trabalho observa a imagem melancólica da professora à janela do estúdio ela espelha o seu próprio sentimento de vazio existencial. Embora atraído pela professora, ele procura a escola de dança na busca de algo que lhe falta e que ele sabe sublime, indizível e incomunicante. A história de Sugiyama e da professora Mai vai cruzar-se e clarificar-se na cena final do filme. Mai ensinará a Sugiyama que a dedicação à dança tem como consequência a percepção da grande Beleza da vida. Sugiyama, através da sua entrega à dança irá dar a Mai a possibilidade de reforçar o seu autoconceito e autoestima, regressando à dança profissional e à competição. Neste sentido, é significante que as cenas iniciais e finais do filme tenham como plano central o espaço “sagrado” do salão de baile de Blackpool, a grande referência das competições de dança de salão. Em Shall we dance? Masayuki Suo dá-nos a esperança de que até a vida mais banal e tímida pode ser transformada pelo sonho da dança.
Bibliografia
Bourdieu, Pierre. 2001. O poder simbólico. Lisboa: Difel.
Garaudy, Roger. 1984. Dançar a vida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Goffman, Erving. 1974. Les rites d’interaction. Paris: Minuit.
Goffman, Erving.1993. A apresentação do eu na vida de todos os dia. Lisboa: Relógio d’Água.
Hall, Edouard T. 1979. Au-delà de la culture. Paris: Seuil
Hanna, Thomas. 1993. The Body of Life: Creating New Pathways for Sensory Awareness and Fluid Movement NY: Inner Traditions/Bear,
Hess, Remi.1989. La valse, révolution du couple en Europe. Paris;: éditions Métailié
Lepecki, Andre. 2006. Coreopolítica e coreopolícia EUA: Tisch School of the Arts, New York University
Mauss, Marcel. 1973.Techniques of the body, economy and society. Mayer: Adrian C.
Nancy, Jean -Luc. 2005. The Ground of the Image New York FORDHAM UNIVERSITY PRESS 2005
Filmografia
Shall We Dance. 1996. De Masayuki Suo. Japão. Toho:DVD
The King and I. 1956. De Walter Lang. USA. Century Fox. DVD