Brazilian Western Cinema: the Bull, the Bullet and the Bible

Faroeste brasileiro: a bala, o boi e a bíblia

Hugo Nogueira Neto

Universidade de São Paulo - DIVERSITAS (Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos), Brasil.

Sandra Regina Nunes Chaves

Universidade de São Paulo - DIVERSITAS (Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos), Brasil.

Abstract

Throughout the years 1953-1979, bloomed a popular Brazilian cycle of films closely related to the North-American Western gender. Notwithstanding, these Westerns fell quickly into oblivion, mainly due their lack of aesthetics innovations and their undisguised commercial drive. Nevertheless, once it was bound to satisfy the collective phantasies of its audience, the corpus of these films displayed a plethora of representations pertaining to their sociocultural, historical and political environment. They provided a profuse amount of audiovisual material open to researches in a variety of fields – gender representation, psychosocial culture, authoritarian politics and ethics – which are still at work in actual Brazilian social, institutional and political practices. And since they were bound to please a masculine audience, Brazilian Western movies framed a striking fictional world underlined by the psychoanalytical theme of the figuration of women as the absolute model of alterity. Women were usually placed as imaginary emblems of private property, democratic values and/or Christian faith, which, by their turn, performed dramatically under three signifiers: the “Bull”, the “Bullet”, and the “Bible”. Depicted not as proper characters and deprived of dramatic motivations, they were, by consequence, liable to specific modalities of physical violence – abduction, torture, rape and murder. Cruelty against the feminine body blended together the misogynistic bias of Brazilian culture with the masculine impotence during the authoritarian dictatorship epoch in a framework which could only be furnished by the imaginary themes and structures of Western movie.

Keywords: Brazilian Cinema, Western Movie, Nordestern, Feminism, Psychoanalysis.

Introdução

Entre meados dos anos 1950 e os primeiros anos da década de 1970, houve, no Brasil, uma variedade específica de filmes comerciais, os quais constituíram um ciclo cinematográfico que a crítica nacional reuniu numa categoria incerta, vagamente definida pela epígrafe “faroeste brasileiro”.

Sob esse rótulo, foi então reunida uma errática pletora de obras, as quais, à primeira vista, coincidiam apenas em dois aspectos: a ênfase em personagens marginais – em geral comandantes de quadrilhas ou de bandos – e a localização do drama em cenários rurais, particularmente no sertão do Sudeste e na região agreste do Nordeste. De tal modo que o gênero do faroeste brasileiro viria a incluir uma variedade de subgêneros aparentemente desconexos tanto na forma e conteúdo das obras, quanto em seu contexto sociocultural. Desses subgêneros, tornaram-se significativos o ciclo de dramas rurais da década de 1950 (concomitante ao declínio da República Populista); os filmes de cangaço dos anos 1960 (contemporâneos da instauração da ditadura civil-militar); e, seguindo a trilha bem sucedida do western spaghetti italiano, o faroeste feijoada dos anos 1970 (coevo ao endurecimento do regime militar).

Esse excêntrico gênero de filmes pouco ocupou os críticos e historiadores da cinematografia brasileira. Das suas ocasionais elucubrações teóricas, a única linha de continuidade entre as heterodoxas e assincrônicas obras indexadas ao faroeste nacional evolveu em torno de seus dois elementos temáticos – o personagem marginal e a ambientação agreste – bem como na evidente adesão desses filmes ao modelo de narrativa clássica consagrado pelo cinema hollywoodiano.

Não obstante, tal arranjo vislumbrava apenas a forma epidérmica assumida pelas produções, desconsiderando as estruturas semióticas em funcionamento no seu nível subliminar, pelas quais se justificou sua assimilação a um gênero específico de cinema. Por conseguinte, essas produções ensejam um duplo questionamento: 1) quais eram e como se organizavam os elementos e conteúdos estéticos invariantes, posto que inerentes ao gênero, os quais propiciavam a motivação para os personagens interagirem no drama e, sobretudo, 2) qual resultado ideológico advinha dessa interação de forças, pelo que o gênero informava o triunfo de um sistema de valores sociais, culturais e morais em detrimento de outros?

A partir da averiguação de 22 obras, extraídas de um catálogo de 64 produções indexadas como filmes de faroeste (todas essas, elencadas na filmografia, nas páginas finais deste artigo), parece razoável estabelecer algumas estruturas reincidentes, aptas a qualificar aspectos próprios ao gênero e consteladas de fatores ideológicos.

Filme após filme, a coesão dos dramas num mesmo gênero advinha de embates sobredeterminados por três estruturas históricas nacionais, reconstituídas no nível imaginário e modeladas como fantasias fílmicas. São elas: 1) a luta pela terra ou por um território, 2) a hierarquização do poder com base na força das armas e 3) a capilaridade do messianismo cristão como registro de valor moral.

Esse sistema tríplice de forças, na conformação do gênero, pode ser presumido em três referentes investidos de poderosa conotação simbólica no imaginário psicossocial brasileiro: 1) o Boi, materializado na cena como o equivalente à realidade do latifúndio ou dos territórios em disputa; 2) a Bala, enquanto manifestação explícita da violência derivada dessa disputa; e 3) a Bíblia, id est, a escala de valores da cristandade pela qual a instância narrativa revelava e discernia, na luta pela terra, o bom e o mau uso da violência.

A bala, o boi e a bíblia, funcionaram como indícios imaginários mediante os quais a disputa pela terra podia ser significada. Conspicuamente, nos westerns brasileiros, essa disputa adquiriu os contornos de uma forma melodramática específica, distinta tanto da matriz hollywoodiana, quanto da variante do faroeste spaghetti. Ela se fazia explícita quando consumada sobre o corpo de uma mulher.

Os filmes entreviam uma relação de equivalência entre o corpo feminino, o corpo da terra e o corpo das instituições sociais. De tal maneira que esse gênero laconicamente denominado como “faroeste brasileiro” se definia pela articulação sistemática de três discursos – a disputa pela terra, a violência e a fé cristã – correlacionados em torno de três significantes – o boi, a bala e a bíblia – produzindo sentido ideológico a partir da destituição da mulher como sujeito e pela ressignificação do feminino não como objeto de desejo, mas enquanto instituição encarnada e situada sob o domínio da lei simbólica1.

Do drama à feijoada

As realizações relacionadas ao faroeste brasileiro, provieram, majoritariamente de uma indústria cultural moldada no padrão norte-americano de produção, mas limitada pela carência de recursos materiais e de know-how técnico.

Essa modalidade de indústria cultural subalterna, nascida no ocaso do estúdio Vera Cruz, diferia largamente da única experiência até então bem-sucedida de cinema comercial produzido no Brasil: a chanchada carioca da década de 19402. Ainda que ambas categorias de filmes – a chanchada e o faroeste – sobrevivessem por mais de vinte anos e coincidissem na pretensão de atrair um público jovem e plebeu, a chanchada conservou uma unidade formal e temática que o faroeste brasileiro desconheceu. Paulo Emílio Sales Gomes exaltou nas chanchadas precisamente sua proficiência em explicitar o subdesenvolvimento da cinematografia nacional predando implacavelmente sobre o cinema hollywoodiano para, a partir disso, produzir um mundo imaginário acessível e atraente ao espectador. De tal modo que, do ponto de vista de Sales Gomes, a chanchada declarava, na explícita debilidade material das obras, o combate pela ocupação dos espaços de exibição, competindo com a cinematografia estrangeira em territórios imaginários que essa jamais poderia alçar3.

O faroeste nacional, apesar de episódicos surtos de popularidade, percorreu uma trajetória bastante distinta. Historicamente coincidiu com o advento do Cinema Novo, ao qual se opunha. De um modo paradoxal, não obstante, ao mesmo tempo em que rejeitava o eixo da vanguarda cinematográfica, esse gênero não perdia de vista a perspectiva de elaborar produtos comerciais a partir da cultura nacional. Por isso, constituíam também uma fração da cinematografia brasileira que, conforme observou Jean-Claude Bernardet, interpelava o espectador em níveis que o cinema estrangeiro se mostrava incapaz de alcançar. Pois ela advinha da realidade na qual sua audiência habitava. Ainda que não se dispusessem a explorar criticamente os aspectos dessa realidade, pelo simples fato de se referirem a ela, os filmes se comutavam num espelho imaginário com o qual o espectador se via confrontado e frente ao qual se sentia compelido a reagir, mesmo que apenas na dimensão contemplativa. De tal modo que, concluiu Bernardet, independentemente de sua qualidade artística, uma produção brasileira desse tipo, mesmo quando não se dispunha a promover provocações estéticas, exprimia as inquietações, os modos de vida e os valores da cultura local4.

Tratando-se de um cinema devotado à produção de mercadorias para as classes média-baixa e média ascendente, nele se confundiam os critérios de qualidade com o apelo do consumível. De tal maneira que, prosseguiu Bernardet, seus produtos massificavam acriticamente os valores ideológicos das elites. Motivo pelo qual, enfatizou, a realidade brasileira persistiu carente de uma existência concreta nos filmes comerciais nacionais. Seja devido à escassez de recursos, seja por causa da apatia do público, não se constituiu uma cinematografia brasileira consistente e contínua, pautada em estilos e experimentos coadunados historicamente. Ao invés disso, a indústria cultural subalterna ofereceu à sua audiência um amálgama difuso de obras marcadas pela personalidade de seus autores, cujos proventos criativos cessavam de atuar com eficácia em prol da formação de um cinema especificamente brasileiro tão logo seus criadores se viam colocados à margem do mercado de filmes. Por conseguinte, a cinematografia do Brasil foi constituída de poucos momentos episódicos, alguns deles, não obstante, de extremo vigor, os quais não se deixaram ignorar, permeando diferentes níveis estéticos – do comercial ao autoral – e ideológicos – da esquerda à direita5.

As premissas de Bernardet produzem uma luminosa moldura para aproximação dos filmes de faroeste brasileiros em seus diferentes estágios cronológicos. No final dos anos 1950, houve um breve ciclo de obras ambientadas no interior paulista, o qual nunca chegou a constituir um público estável em seu entorno. Produzidos em diferentes cidades interioranas do estado de São Paulo, esses filmes emulavam abertamente o western norte-americano no registro do cinema de aventura. Propugnavam, portanto, uma ascese puritana da sociedade contra os excessos da violência e do sexo no submundo criminal. Conhecidos como “dramas rurais”, as produções, usualmente, contrastavam o vaqueiro e o bandoleiro em cenários típicos dos westerns (cidades fronteiriças, pradarias, etc), ao que sobrepunham alguma intriga criminal muitas vezes arrematada com toques de film noir. Compuseram um passageiro ciclo regional, que pouco repercutiu no mercado de filmes6. A partir do que os produtores paulistas deram início à transição dos filmes regionais para os nordesterns7, rubrica que tentava delimitar um gênero mal definido, cujos motivos orbitavam ao redor do fenômeno do cangaço8. Nordestern tornou-se, então, o denominador mais habitual para descrição de uma variedade imprecisa de filmes modelados pelos padrões do faroeste estrangeiro, os quais coincidiam apenas pela referência a um personagem específico, o cangaceiro.

De acordo com Jean-Claude Bernardet, num país privado de qualquer tradição cinematográfica autóctone, o nordestern tornou-se, então, uma “filial do western norte-americano”9. E não apenas a crítica acadêmica recebeu esse revival local do faroeste de modo reticente, mas o próprio meio cinematográfico o acolheu com dúbio entusiasmo. O diretor Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, mal discernia em sua produção de 1962, “Mandacaru vermelho”, qualquer traço de afiliação ao nordestern, apesar do cineasta Glauber Rocha exaltar a obra como um consumado exemplo do gênero10. Para Glauber, aliás, ainda que o nordestern oferecesse vislumbres de possibilidades inauditas para fundação de uma cinematografia especificamente nacional, quase nenhuma das produções derivadas desse ciclo produziu-lhe uma boa impressão. Pois, ao seu ver, a obra inaugural dessa nova categoria de filmes, “O cangaceiro” (1953, de Lima Barreto), maculou o gênero com o convencionalismo, a falsidade e a vulgarização apelativa da violência11.

Porque obedecia ao padrão consagrado por Hollywood, opinou Célia Tolentino, “O cangaceiro” chegou ao público recheado de erros sociológicos. Contrariando o contexto histórico em que os bandos deambulavam e combatiam a pé, os cangaceiros do filme se deslocavam a cavalo, como os bandidos do faroeste norte-americano. Essa inadequação estendia-se ao cenário, marcado pela mata densa e por um rio caudaloso num completo descompasso com as menções articuladas nos diálogos acerca da aridez do sertão, mas em concordância com o modelo do western que evocava o Oeste como uma terra prometida12. Filme após filme, esses mesmos equívocos serviriam para firmar um pacto espectatorial no qual o imaginário do nordestern absorvia elementos do western norte-americano para os formalizar com o verniz de um exótico Nordeste. Essa região era, assim, tratada à distância como um território de alteridade fantasmática, habitado por criaturas fabulosas: cangaceiros, rezadeiras, beatos, coronéis e coiteiros13.

O cinema brasileiro tomou, então, a saga do cangaço como matéria prima para uma variedade de obras vacilantes quanto à qualidade técnica e à precisão histórica do complexo fenômeno do banditismo social. Na opinião do diretor José Umberto, a maior parte desses filmes desprezou a complexidade do assunto ao qual se referia para aderir a “algumas fórmulas importadas do faroeste americano, com sua simplificação maniqueísta”14. Os filmes do ciclo do cangaço, enfatizou Jean-Claude Bernardet, dispensavam qualquer compromisso crítico com a realidade das lutas sociais no Nordeste em ficções consteladas de elementos românticos. Confundiam marginalidade, revolta popular e violência sem lhes apor nenhum matiz político. Revolviam idealisticamente num fenômeno ultrapassado, superado pela modernização nacional, o qual, assim, não guardava mais nenhuma semelhança com a realidade contemporânea. Motivo pelo qual, o cangaceiro oferecia ao público um ponto de identificação. Ele misturava rebeldia contra a opressão num acontecimento social longínquo, que evolveu num tempo mítico em torno das bordas remotas do país. O cangaceiro imaginário estava, assim perfeitamente situado fora da História. Podia, portanto, ancorar qualquer enredo de fantasia transgressiva sem oferecer o risco de estimular a consciência crítica de seu público acerca das condições históricas da opressão15.

Nos anos 1960, o papel cultural do cangaceiro cinematográfico adquiriu, por conseguinte, uma dimensão épica. O bandoleiro se transformou na figura que, imaginariamente, protagonizou o último momento determinante para instauração de um mito fundador da nação. Era o derradeiro denominador do atraso cultural destinado a ser superado pelo triunfo civilizatório liberal. Graças a ele, o Nordeste pode ser transmutado num “valor de produção” para o cinema comercial. O agreste foi tomado como uma condição precedente à modernidade num gesto supremo de negação mediante o qual os filmes tornavam a violência da dominação do Sul sobre o Norte mais pitoresca e agradável ao espectador16.

A produção de filmes de cangaço, que atravessaram os anos 1960 como um gênero próprio, marcado por temas, ambientes, motivos e personagens característicos, terminaria restrito à Boca do Lixo, o principal eixo de produção cinematográfica brasileira nas décadas de 1970 e 198017, onde seriam redimensionados pela imitação dos spaghetti westerns (esses, por si mesmos, uma imitação do faroeste norte-americano)18. E, novamente, Jean Claude Bernardet aportou elementos significativos para compreensão do processo de substituição do nordestern, quando esse entrou em decadência, por um produto específico do cinema industrial da Boca, o faroeste feijoada.

Do ponto de vista de Bernardet, a cinematografia nacional oscilou na mesma medida em que o país atravessava ciclos históricos de maior ou menor autonomia política. Essa flutuação impunha aos produtores o dilema de ora oferecer obras atraentes aos espectadores pela mera imitação artesanal do produto estrangeiro, ora dispor-lhes elementos nacionais inacessíveis nos filmes internacionais. O embate usualmente tendeu a se resolver mediante um procedimento de adequação pelo qual o similar nacional se esforçava em emular com crescente subserviência o protótipo original. Daí que o filme de cangaceiro, ao invés de investir na realidade do cangaço, assumiu as formas do cinema hegemônico, como o western e o filme de aventura, revestindo-as com uma tépida coloração tropical. Tão logo a autonomia política nacional se desvaneceu, o protótipo envernizado com as cores nativas cedeu lugar a uma cópia servil do original numa política de substituição de importações. Daí que o cangaceiro terminasse rendido por pistoleiros e paródias de cowboys com ponchos dos pampas ao invés do chapéu de couro nordestino. E, na Boca do Lixo, esse procedimento de substituição foi efetuado de um modo exemplar. “O cangaceiro queria atingir o público pela diferença”, concluiu Bernardet, “o Gringo paulista quer atingi-lo pela semelhança”19.

O crítico Guido Bilharinho, ao contrário de Bernardet, lamentava que continuasse despercebida a existência de um western estritamente brasileiro. Pois reconhecia o faroeste como um gênero universal ao invés de uma categoria fílmica fixada num único espaço (o oeste dos Estados Unidos) e num tempo invariável (o século XIX). Seus elementos, opinou, incluíam temas atemporais, organizados numa estrutura constante, mas extremamente maleável. Revolviam em torno do confronto entre o Bem e o Mal após a performance de uma grave injúria, cuja reparação requeria a ação de um indivíduo respaldado pela coletividade numa zona de fronteira onde as instituições estatais careciam de eficácia. Tais conteúdos podiam, portanto, assentar-se em qualquer contexto, incluindo o Brasil da segunda metade do século XX. Do seu ponto de vista (o qual, deve-se ressaltar, passava longe dos produtos da Boca do Lixo), houve, portanto, uma série de faroestes nacionais20. Tais filmes demonstravam como o western constituía um receptáculo imaginário para a angústia daqueles que ansiavam por um milagre ou um salvador. De tal maneira que a presença do justiceiro sustentava as bases dramatúrgicas do gênero. No western, a coletividade dependia dessa figura messiânica para obter êxito. Como observou Bilharinho, tratava-se, pois, de “uma categoria demiúrgica de filmes”21.

Na sua versão prevalente, derivada da Boca do Lixo, contudo, os faroestes aglutinavam experimentos francamente comerciais, apropriando-se dos filmes de cangaço e dos dramas sertanejos, que já encontravam respaldo na prática espectatorial, para os imiscuír com elementos estrangeiros também apelativos à audiência. De tal modo que os faroestes feijoadas aculturavam a narrativa dos westerns às raízes regionais de um a maneira complexa e original. A premência de ocupação de um mercado extremamente competitivo com produtos que satisfizessem as expectativas de um público acostumado aos modelos estrangeiros promoveu, então, uma prática ambivalente de substituição por similaridade e imitação. Pois, de um lado, ao invés de promover conteúdos e representações alheias aos filmes estrangeiros – temas brasileiros, cenários regionais, personagens característicos da diversidade nacional – a maior parte das produções contentava-se em copiar o modelo originário. Não obstante, essa cópia afluía impura, tensionada pela impossibilidade da mimese integral22.

A apropriação da produção estrangeira aclimatada à realidade brasileira tornou-se um modo característico de operação na Boca do Lixo. O mercado em disputa não era mais o dos filmes originais, mas de suas versões B e C, voltado para a classe baixa. As companhias cinematográficas da Boca sequestravam o imaginário cinematográfico – temas, ambientes, iconografia e conteúdos ideológicos – do produto estrangeiro transplantando-os ao cenário sertanejo. A referência, assim, deixava de ser o western norte-americano ou italiano, para incidir em uma forma de filmes distinta que aquela parte do público passou a considerar atraente. Daí que os faroestes feijoadas tiveram uma produção sustentada e continua, com realizadores especializados no gênero – Edward Freund, Ruben da Silva Prado e Custódio Gomes por exemplo23.

Com o afrouxamento da censura, a Boca do Lixo inclinou-se para o cinema pornográfico e para o filme de sexo explícito, momento que marcou o início do ocaso daquela indústria voltada à produção de um cinema comercial e popular. Esse declínio acompanhou a decadência das grandes salas de exibição nos centros urbanos, em especial nas periferias e a ascensão da televisão como mídia preferida do público, o que alijou as classes populares do cinema enquanto espaço social24. Com o crepúsculo da Boca do Lixo, o faroeste feijoada também se esvaneceu, sem sequer deixar resíduos de sua memória na crítica cinematográfica e no público que o prestigiou. Com o final desse ciclo, encerrou-se também a história de duas décadas de westerns brasileiros. Esse faroeste nacional, daí em diante, persistiu como um fenômeno estético praticamente desconhecido, ignorado pela historiografia cinematográfica, desprezado pelos seus temas e, como todos objetos recalcados, remetido acriticamente ao domínio das coisas descartáveis.

Sobre o corpo da mulher

Em todas as suas vertentes, o faroeste brasileiro situou persistentemente o homem como seu protagonista exclusivo. O personagem do sexo masculino foi, então, o único fator de identificação junto ao espectador. Nesses filmes, com raras exceções, as mulheres, ao contrário, ocuparam um espaço subsidiário. Serviam aos homens como esposas, mães, amantes, prostitutas, professoras ou qualquer outra figura de apoio. Deambulavam pelos enredos sem nenhum outro propósito funcional exceto o de estarem presentes para se submeterem às demandas dramáticas dos protagonistas masculinos. Dificilmente constituíam personagens, no senso estrito do termo. Eram, num certo sentido, apenas portadoras dos belos ideais liberais: o cultivo da família, da liberdade, da civilidade, da fé, do saber, da paz e do prazer.

No melodrama burguês, a exaltação do feminino como ideal simbólico de beleza e de vida social plenamente realizada somente se provou possível em detrimento da representação objetiva da mulher em personagens encarnadas como mulheres. Esse paradoxo se explica pela posição à qual a mulher foi alocada nos processos da subjetivação masculina. O trajeto edípico, postulou Lacan, trabalha em prol da estabilização imaginária do corpo da mãe, tomado pela criança como um território permanentemente defasado devido a uma castração originária. Do que Lacan aduziu que, na etapa pré-edípica, a criança almejou preencher essa lacuna, fazendo de si própria o falo alternativo, o qual tornaria a mãe “completa”, ou seja, fálica. A mulher fálica é, portanto, o chão inicial da subjetivação, o local fundamental em que o complexo de Édipo instaurou o falo no lugar simbólico da autoridade25. Na economia do desejo que fez do falo feminino imaginário a medida de dotação da subjetivação, a mulher viria a se tornar o tal “enigma” indecifrável que aturdiu Freud26, o domínio alteritário o qual, inacessível à descrição intrapsíquica, passaria a servir como matéria bruta para qualquer forma de representação. A mulher foi inscrita no horizonte do desejo, prosseguiu Lacan, devido a essa peculiar posição de inacessibilidade e despersonalização27. Motivo pelo qual, ela constituiu um valor de representação, um meio sublimado de acesso ao real, um médium entre o real e o significante28. “A mulher é, então, o próprio terreno da representação”, asseverou Teresa de Lauretis, “tanto objeto quanto suporte do desejo que, intimamente atrelado ao poder e à criatividade, é a própria força motriz da cultura e da história”29.

Daí que, na ordem burguesa, nas mulheres não se presumiam sujeitos, mas a corporificação de valores, os quais Foucault alinhou em torno de três determinantes sociais: – a continuidade ordenada da cultura, a sustentação do núcleo familiar e a transferência do legado cultural à geração seguinte30. Paradigmas sobejamente explorados nos filmes de faroeste brasileiro. Nesse gênero cinematográfico, a personagem feminina funcionava estruturalmente graças à possibilidade pré-determinada de sua despersonalização. Desinvestidas dos atributos de personagens, as mulheres terminavam elevadas (ou, a preferir, rebaixadas) ao nível de instituições corporificadas31. E, como tal, estavam sujeitas a todas arbitrariedades impostas por um espaço social – o meio rural – definido de antemão como eminentemente arcaico, onde o chauvinismo perfazia a única forma reconhecida de institucionalidade32. Motivo pelo qual, nesse gênero de filmes, a corrupção do corpo de uma mulher tornava-se a causa de deflagração das disputas dramáticas que opunham o Bem (os valores civilizatórios burgueses, presumidos como justos e corretos) ao Mal (os elementos resistentes a esses valores, subentendidos como arbitrários, primitivos e antinaturais).

Nessa categoria de filmes, a destruição do corpo da mulher, que evolveu do sequestro ao estupro, ao linchamento e ao assassinato, solicitava a institucionalização da lei simbólica instruída pela lei da bala, do boi e da bíblia. A mulher servia, então, não como um referente erótico para a parcela pervertida do público sequiosa de experimentar estímulos libidinais pela contemplação de cenas de violência sexual e feminicídio. Sua função precípua seria instruir o drama, sediado no meio arcaico-rural, pela ordem dos valores urbanos, os quais ela encarnava. Em torno dela, definiam-se os contrastes entre os fundamentos do progresso liberal-capitalista--burguês contra os modos primitivos de existência comunal no ambiente agreste, ainda dominados pelo latifúndio, pelas quadrilhas de jagunços, pelo cangaço e pelo fanatismo messiânico.

Conclusão

Um dos problemas analíticos que cerca o conjunto de filmes reunidos na rubrica “faroeste brasileiro” foi, provavelmente, a coincidência de seu surgimento, ascensão e declínio com o advento do Cinema Novo e das demais vanguardas autorais do filme brasileiro. Em outro contexto, parece improvável que uma filmografia tão rica em modos de expressão e em contradições internas tivesse passado desapercebida pelos historiadores da cinematografia nacional.

Pela relevância de suas inovações estéticas e pelo seu engajamento nas complexas dinâmicas sociopolíticas de seu contexto histórico, o cinema de vanguarda tornou-se objeto privilegiado da crítica acadêmica. Daí que as demais formas fílmicas, porque destinadas às solicitações de um outro público, menos letrado e destituído dos meios para formular suas próprias demandas estéticas, terminaram à margem das análises33. Mereceram, nos estudos dos mais renomados teóricos do cinema nacional, – Paulo Emílio Sales Gomes, Ismail Xavier e Jean Claude Bernardet – quando muito, alguns poucos parágrafos. Em concisas linhas, invariavelmente, eles se serviram dessa categoria de filmes apenas como referência negativa para enfatizar o contraponto com as ousadias formais do Cinema Novo e seus sucedâneos.

Não obstante, o cinemanovismo, por conta da ênfase na estetização formal como ferramenta de crítica contra o ilusionismo do cinema narrativo, permaneceu alheio à parcela mais expressiva do público, observou Paulo Emílio Sales Gomes34. Sua centralidade na crítica acadêmica parecia, então, inversamente proporcional à sua constrição dentro de círculos homogêneos de espectadores mais seletivos e intelectualizados.

Contrariamente, o cinema comercial, sobretudo aquele cultivado na Boca do Lixo, a despeito de sua flutuante eficiência em defletir a atenção do público das realizações estrangeiras e atrair seus olhares sobre si, remanesceu marginalizado pela crítica. Tendo sido de imediato relegado ao território da cópia subalterna, em torno dele, não se constituiu nenhum modelo de teoria analítica. À exceção de uma exígua atenção historiográfica, os poucos ensaios de críticos jornalísticos e diretores cinematográficos como Ely Azeredo, Guido Bilharinho e José Umberto de modo algum serviram para retificar o alheamento dos sucessivos ciclos de dramas que constituíram o faroeste brasileiro.

Nas suas modalidades de expressão formal, na pertinência de seus temas e abordagens com seu contexto sócio-histórico e na prospecção de seus conteúdos em elementos há muito sedimentados na tradição nacional, esse gênero cinematográfico seguiu explicitamente as prescrições do modelo hegemônico de industrialização da cultura. Ou seja, ele veio ao público calcado no chão do desejo. Voltava-se não à elite intelectual, mas à difusa classe média nacional, em particular ao segmento econômico menos privilegiado dela, a camada social que, mutatis mutandis, o sociólogo Jessé Souza denominou “ralé” estrutural35. De tal modo que os filmes, vistos retrospectivamente, lançam luz sobre as elucubrações e os anseios imaginários de uma camada reduzida à invisibilidade, discriminada, inclusive, nos produtos da indústria cultural de sua preferência. Inscritos no domínio das fantasias industrializadas e pré-modeladas para atender a clientelas mais e mais amplas, esses filmes, por conseguinte, provêm um amplo material perfeitamente apto ao escrutínio da teoria psicanalítica. Pois a psicanálise constitui a teoria da subjetividade exclusivamente voltada para os saberes referentes às inflexões privadas e sociais do desejo humano.

Por sua reduzida importância estética, o cinema de faroeste brasileiro ainda hoje remanesce à margem das discussões acadêmicas. Dos poucos estudos contemporâneos voltados a esse gênero, apenas uma parcela extremamente reduzida se ocupou da prospecção de seus conteúdos psicossociais. Daí que tanto a politização do corpo feminino quanto a constituição imaginária do meio rural e do agreste nordestino como palcos simbólicos das lutas pela terra apareceram de maneira episódica na literatura referente a essa categoria de cinema. Ademais, nem mesmo uma cartografia minimamente precisa do gênero, apropriada para qualificar um índex de obras por critérios de similaridade temática e formal, chegou a ser formulada pelos seus historiadores. E, porque esse cinema permaneceu atravessado por lacunas, nenhum sistema de interpretação elucidou a complexidade das formações culturais de que ele se apropriava como matéria dramática.

A lacônica bibliografia voltada ao faroeste brasileiro reconheceu nele emblemáticas figuras: o cangaceiro, o beato, o justiceiro, o jagunço, o vaqueiro, o posseiro, o coronel etc. Porém, não detectou nessas entidades as representações das profundas cicatrizes que suturaram uma sociedade fundada e sustentada pela violência, pela desigualdade e pelo apagamento da subjetividade feminina. Os filmes apresentavam esses tópicos no registro do entretenimento, promovendo fantasias conciliatórias que obliteravam a consciência crítica de seus espectadores. Esse tratamento, apropriado a qualquer indústria cultural, mesmo aquela mais deficiente em recursos, tomado pelo seu valor de face, escamoteou do olhar historiográfico as implicações ideológicas que sustentavam suas estruturas formais e conceituais.

Os traços culturais que recortaram esses filmes, assimilados ao trinômio bala-boi-bíblia, persistem como um sistema de recalque jamais plenamente exorcizado da vida social brasileira. Uma conspícua evidência desse recalcado que sempre retorna seria, pois, a sua atual encarnação em bancadas parlamentares definidas precisamente por esses três significantes, dedicadas à manutenção do sistema latifundiário, à criminalização dos movimentos sociais de luta pela terra, à rígida revitalização de um cristianismo ultraconservador e, em todas as instâncias, à jurisdição política do corpo da mulher.

A cena pública contemporânea tornou-se o palco quase caricatural dos mesmos assuntos que percorriam transversalmente as narrativas do faroeste nacional. Isso sugere uma linha de continuidade pela qual esses filmes habilitaram a transposição de um universo hostil e anticivilizado da única dimensão em que ele podia, então, ser explicitamente significado (o plano imaginário da fantasia cinematográfica) para a dimensão do real, de onde passou a derivar e aprofundar seus efeitos em prol da barbárie institucionalizada. Se há correção na controversa tese defendida por luminares da Escola de Frankfurt como Siegfried Kracauer de que o imaginário precede o real na constituição permanente da tirania, a compreensão dos processos de elaboração e recepção desses filmes justifica-se pela longevidade e pelo agravamento dos valores culturais que, ali recebiam seu primeiro tratamento ficcional indistintamente voltado à massa36.

Notas Finais

1Pela expressão lei simbólica, neste texto, a referência equivale àquela adotada por Judith Butler a partir das constatações de Claude Lévi-Strauss. Lei simbólica remete, portanto, aos sistemas de determinação social do parentesco, os quais tomam, essencialmente, a mulher como objeto de permuta. É por sua situação de elemento de circularidade no regime parental, que as os processos de dessubjetivação da mulher atuam com eficácia nas instituições sociais heteronormativas, inclusive no que tange às operações performativas que ela assume, dentre muitas plataformas semióticas, nos filmes cinematográficos. Butler. 2019. 77-84, 269.

2A chanchada cinematográfica constituiu um gênero tipicamente brasileiro, extremamente popular junto ao público nas décadas de 1940 e 1950. Ela articulava elementos de farsa, paródia de filmes internacionais e interlúdios musicais protagonizados por cantores célebres. Seus enredos combinavam uma variedade de acontecimentos cômicos decorrentes das atitudes inadvertidas de um personagem trapalhão, por vezes grotesco e, frequentemente, tinham, como pano de fundo, ingênuas intrigas românticas envolvendo um casal apaixonado e turbulento. Caracteristicamente, a chanchada produzia efeitos cômicos por situar personagens das classes populares em ambientes sofisticados da elite, expondo as inadequações de ambos os meios sociais. Ainda que desprezado tanto pelos críticos quanto estudiosos, esse gênero foi comercializado com imenso sucesso popular. Gomes. 1996. 74-5, 95-6 e Vieira. 1987. 158-78.

3Gomes. 1996. 95-6.

4Bernardet. 1978. 21-2.

5Ibid. 13-7, 23.

6Do ciclo de dramas regionais, destacam-se algumas produções como “Da terra nasce o ódio” (Antoninho Hossri, 1954), “Armas da vingança” (Carlos Coimbra, 1955), “Terra sem justiça” (Moacir de Almeida Ramos, 1956), “A lei do sertão” (Antoninho Hossri, 1957) e “Homens sem paz” (Lorenzo Serrano, 1957). Barro. 1997. 70-3 e Miranda. 2005. 96-7.

7Um neologismo atribuído ao pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva, o termo nordestern surgiu em meio às polêmicas oriundas do triunfo de “O cangaceiro” (1953. De Lima Barreto) num esforço de justificativa para os inúmeros elementos idiossincráticos dessa obra. Porque foi o primeiro filme a projetar a cinematografia nacional no exterior, “O cangaceiro” ocasionou furores ufanistas exponencializados pela sua premiação em Cannes como Melhor Filme de Aventura e Melhor Partitura. Recolheu, além disso, outros 35 prêmios internacionais. O público brasileiro se identificou prontamente com o imaginário desse filme que desbancou a supremacia comercial da chanchada carioca para se tornar um êxito de bilheteria, um depositário de emblemas e honrarias e um representante mundial da cinematografia industrial brasileira, sendo transladado em vários idiomas, incluindo japonês e árabe. Pelo seu porte e sua carreira, tornou-se o protótipo dos filmes de cangaço que lhe sucederam e um modelo de produção comercial para a indústria nacional. Segundo o crítico Guido Bilharinho, entre 220 opções, foi selecionado por 22 críticos como “o mais importante filme brasileiro” numa enquete realizada pela revista Filme-Cultura em 1968. Azeredo. 2009. 36-8; Bilharinho. 2009. 43, 46; Umberto. 2005. 31; Galvão. 2005. 85-6 e Xavier. 2006. 147-9.

8O cangaço constituiu uma forma específica de banditismo social prevalente no sertão nordestino durante a transição dos séculos XIX e XX. Congregava bandoleiros (os ditos cangaceiros) organizados em bandos que perambulavam pela caatinga. Esses renegavam a ordem social vigente numa combinação eclética de elementos oriundos tanto das classes baixas quanto das famílias de prestígio, unidos em sólidas fraternidades criminais. A pauperização da população nordestina e o acúmulo de poder político e econômico nas mãos de grandes latifundiários tornavam mais aguda a dimensão psicossocial do fenômeno do cangaço o qual ganhou proporções imensas no imaginário urbano mesmo depois da extinção dessa modalidade de contravenção no início dos anos 1940. Pericás. 2010. 25-35.

9Bernardet. 1978. 46.

10D’Ávila. 2002. 31-2.

11Rocha. 2003. 91, 96.

12Tolentino. 2001. 68-9 e Xavier. 2006. 150-1.

13Tolentino. 2001. 85-91.

14Umberto. 2005. 31.

15Bernardet. 1978. 47.

16Tolentino. 2001. 67-9.

17O local que viria a ser denominado Boca do Lixo situava-se num enclave da cidade de São Paulo, o cruzamento da Rua Vitória com a Rua do Triunfo. Distante dos embates que absorviam a atenção dos expoentes da cinematografia e da crítica brasileira, ali evolveu um outro cinema, menos preocupado com os problemas da liberdade de criação e expressão e mais devotado à consecução pragmática de sua própria sobrevivência num mercado altamente competitivo. Essa cinematografia se organizou em torno de pequenos produtores que operavam com recursos bastante limitados, elaborando mercadorias cinematográficas baratas, aptas a serem escoadas em cadeias de exibição restritas, revertendo esse esforço em exíguo lucro para o custeio das próximas produções. Tais filmes contrastavam com o Cinema Novo porque não escamoteavam, em absoluto, sua pretensão de satisfazer à audiência no registro do entretenimento, dispensando as angústias do artista-intelectual para firmar o marginal e o cafajeste como protótipos do novo herói cinematográfico. Desse modo, aglutinavam experimentos francamente comerciais que o cinemanovismo qualificava como resíduos degenerados da matriz hegemônica norte-americana: os spaghetti westerns, os kung-fu, as comédias eróticas italianas, os filmes B de ação, etc. Abreu. 2006. 36 e Caldas. 2006. 143.

18Abreu. 2006. 63.

19Bernardet. 1982. 25.

20Guido Bilharinho menciona especificamente “Férias no Arraial” (1960), “Sertão Bravio” (1964), “Gregório 38” (1969), “O homem do corpo fechado” (1970) e “Caingangue, a pontaria do diabo” (1973). Bilharinho. 2007. 105.

21Ibid. 107.

22Abreu. 2006. 35, 63.

23Ibid. 61-2.

24Ibid. 107, 126-8.

25Lacan. 1995. 193-9, 249, 288, 433.

26Freud. 1996. 121-43 .

27Lacan. 2008a. 153, 181.

28Lacan. 2008b. 224-5.

29Lauretis. 1984. 13.

30Devido à sua condição de natureza vencida e domesticada pela cultura patriarcal, observou Foucault, a mulher foi historicamente destituída do direito de representar sua própria subjetividade. Ao invés disso, passou a servir como objeto de idealização do belo. Por trás do louvor masculino ao belo, ocultava-se, contudo, um obsceno desprezo do sexo “potente” contra o sexo “frágil”. E, porque do corpo feminino transbordavam desejo sexual e patologias que lhe eram intrínsecas, prosseguiu Foucault, a mulher “estava colocada em comunicação orgânica com o corpo social (do qual ela deve assegurar a fecundidade regrada), o espaço familiar (do qual ela deve ser um elemento substancial e funcional) e a vida das crianças (que ela produz e que deve garantir por uma responsabilidade biológica-moral que deve durar por toda educação)”. Foucault. 2008. 137.

31Laura Mulvey demonstrou que, no cinema narrativo clássico hollywoodiano, a personagem feminina ocupava a cena “como portadora de significado e não produtora de significado”. Os filmes encetavam uma espécie de divisão do trabalho pela qual ao homem cabia o papel de enquadrar ativamente o olhar do espectador, enquanto a mulher servia como matéria bruta passiva para o seu deleite escopofílico. O cinema industrial norte-americano, em todas suas esferas de influência, obrou para manipular o prazer visual dentro dessas convenções, fazendo da mulher o objeto passivo do olhar dominante masculino. De modo que sua presença visual operava na direção oposta ao fluxo da ação. Porque era disposta nas tramas para ser vista, admirada e/ou desejada, ela obstruía o desenvolvimento da narrativa, interrompendo-a para se expor como objeto espetacular e, assim, produzir estímulos voyeurísticos nos espectadores. Nada disso, obviamente servia a um propósito diverso do que manipular o elemento feminino para comutar sua subjetividade em valor abstrato, passível de apropriação e expropriação pelos personagens masculinos. Mulvey. 2018. 356, 361-2, 368. Para referências mais específicas dessa apropriação do corpo da mulher com a finalidade de produzir representações de estados de idealização do belo e de sociabilização pela sublimação de sua “natureza indomável” no cinema narrativo clássico cf. Haskell, Molly. 1987. From Reverence to Rape: the Treatment of Women in the Movies.

32O ambiente rural, opinou Célia Tolentino, serviu para a produção cinematográfica de um peculiar mito da brasilidade desde os anos 1950, o qual persistiu mais vigorosamente nas décadas seguintes. Essa permanência, com sua instrumentalização ideológica, tanto em produções comerciais como em filmes autorais de um cinema mais politizado, instaurava uma dicotomia que apartava um Nordeste arcaico, ícone de um Brasil imaginariamente impoluto, do Sul, contaminado pelo cosmopolitismo e pela urbanidade, mas prevalente nos domínios da racionalidade e da intelectualidade. Essa clivagem, afirmou Tolentino, teria, assim, penetrado nos filmes na medida em que seus elementos advinham de estratos histórico-culturais mais profundos da psique coletiva nacional. Tal ambivalência, não obstante, reforçavam os profundos preconceitos culturais que apartavam o Sul do Norte. Tolentino. 2001. 94.

33O diretor Ody Fraga, um dos grandes expoentes da Boca do Lixo, atentou para um importante indício acerca da relação entre as obras e a suas audiências, pela qual, no estamento da crítica, uma parecia desqualificar ainda mais a outra. Em entrevista à revista Filme Cultura em 1982, enfatizou que um filme da Boca do Lixo atingia seu espectador e se tornava popular porque o ambiente de produção colocava, no mesmo patamar de “cultura”, quem estava fazendo a obra e quem a ela assistia. Longe de delimitar a produção aos problemas existenciais da burguesia ilustrada, tal qual nos filmes da vanguarda autoral, diretores e espectadores, opinou Fraga, dialogavam num mesmo horizonte sociocultural. “Tem muito diretor da Boca que está falando na mesma linguagem do baiano da construção civil que está lá assistindo”, disse. “Ele está no mesmo nível intelectual”. Abreu. 2006. 73.

34Gomes. 1996. 102-3.

35Souza. 2018. 178.

36Kracauer considerava que obras cinematográficas logravam produzir uma fração imaginária do mundo para uma plateia de espectadores passivos. Essa passividade somente se sustentava na medida em que um filme coincidisse com os processos mentais de seu público. “O que os filmes refletem não são credos muito explícitos, mas disposições psicológicas”, enunciou, “aquelas camadas profundas de mentalidade coletiva mais ou menos abaixo da consciência”. Levando adiante essa hipótese, considerou que, no rol dos fatores cruciais para o advento do fascismo na Alemanha, não subjaziam apenas as razões materiais objetivas dadas pela convergência de uma dupla crise – política e econômica – mas também as disposições imaginárias cultivadas pela indústria cultural. A partir do que estabeleceu que a constituição de imaginários calcados em figuras tirânicas e violentas nos filmes weimarianos pavimentou o caminho para o advento da tirania real da era hitlerista. Kracauer. 2004. 7-11.

Referências Bibliográficas

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Filmografia

Dioguinho. 1916. De Guelfo Andaló (filme desaparecido)

O cangaceiro. 1953. De Lima Barreto.

Da terra nasce o ódio. 1954. De Antoninho Hossri.

Armas da vingança. 1955. De Carlos Coimbra.

A volta de Jerônimo no sertão dos homens sem lei. 1955. De Ceveró Agenor Alves.

Fugitivos da vida. 1956. De Massimo Sperandeo.

A lei do sertão. 1956. De Antoninho Hossri.

Terra sem justiça. 1956. De Moacir de Almeida Ramos.

Dioguinho. 1957. De Carlos Coimbra.

Homens sem paz. 1957. De Lorenzo Serrano.

A sina do aventureiro. 1958. De José Mojica Marins.

Chão Bruto. 1959. De Dionísio Azevedo.

Férias no Arraial. 1960. De Edward Freund.

A morte comanda o cangaço. 1960. De Carlos Coimbra e Walter Guimarães Motta.

Lá no meu sertão. 1961. De Eduardo Llorente.

Mandacaru vermelho. 1962. De Nelson Pereira dos Santos.

Nordeste sangrento. 1962. De Wilson Silva.

O Cabeleira. 1963. De Milton Amaral.

Três cabras de Lampião. 1963. De Aurélio Teixeira.

O matador. 1964-1967. De Amaro César; Egydi Eccio.

Sertão Bravio. 1964. De Armando Sábato.

Entre o amor e o cangaço (Aurélio Teixeira, 1965)

Lampião, rei do cangaço. 1965. De Carlos Coimbra.

Obrigado a matar. 1965. De Eduardo Llorente.

O Diabo de Vila Velha. 1966. De José Mojica Marins e Ody Fraga.

Riacho do Sangue. 1966. De Fernando de Barros.

Cangaceiros de Lampião. 1967. De Carlos Coimbra.

O tesouro de Zapata. 1968. De Adolpho Chadler.

O cangaceiro sem Deus. 1969. De Oswaldo de Oliveira.

O cangaceiro sanguinário. 1969. De Oswaldo de Oliveira.

Gregório 38. 1969. De Rubens Prado.

Corisco, o diabo loiro. 1969. De Carlos Coimbra.

Meu nome é Lampião. 1969. De Mosael Silveira.

Meu nome é Tonho. 1969. De Ozualdo Candeias.

Quelé de Pajeú. 1969. De Anselmo Duarte.

Uma pistola para Djeca. 1969. De Ary Fernandes.

A herança. 1970. De Ozualdo Candeias

Lista negra para Black Medal. 1970. De Charles Oliver.

O homem do corpo fechado. 1970. De Schubert Magalhães.

A vingança dos Doze. 1970. De Marcos Faria.

Vida, paixão e morte do cangaceiro Faustão. 1970. De Eduardo Coutinho.

A marca da ferradura. 1970. De Nelson Teixeira Mendes.

Pantanal de sangue. 1971. De Reynaldo Paes de Barros.

Ringo, a caminho do inferno. 1971. De Sebastião Rosa.

Sangue em Santa Maria. 1971. De Rubens da Silva Prado.

O último cangaceiro. 1971. De Carlos Mergulhão.

Gringo, o último matador. 1972. De Toni Vieira.

Jesuíno Brilhante, o cangaceiro. 1972. De William Cobbet.

Rogo a Deus e mando bala. 1972. De Osvaldo de Oliveira.

Um pistoleiro chamado Caviúna. 1973. De Edward Freund.

Os três justiceiros. 1973. De Nelson Teixeira Mendes.

Trindad... é o meu nome. 1973. De Edward Freund.

Caingangue, a pontaria do diabo. 1973. De Carlos Hugo Christensen.

Pedro Canhoto, o vingador erótico. 1973. De Rafaelle Rossi.

Quatro pistoleiros em fúria. 1973. De Edward Freund.

Gregório volta para matar. 1974. De Rubens da Silva Prado.

Noiva da noite: o desejo dos sete homens. 1974. De Lenita Perroy.

O poderoso garanhão. 1974. De Antônio Bonacin Thorne.

A última bala. 1974. De Luigi Picchi.

A filha do padre. 1975. De Tony Vieira.

O poder do desejo: na terra onde meu revólver é lei. 1976. De Salvador do Amaral.

Chumbo quente. 1978. De Clery Cunha.

A intrusa. 1979. De Carlos Hugo Christensen.

Os três boiadeiros. 1979. De Waldir Kopezsky.

Os violentadores. 1979. De Tony Vieira.