Paulo Freire's aesthetics in the film “The King's Friend”, by André D`Elia: notes for thinking a critical cinema

Estética freiriana no filme “O amigo do rei”, de André D`Elia: notas para se pensar um cinema crítico e libertador

Rafael Nogueira Costa

Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil

Robson Loureiro

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

Abstract

This work analyzes the film “The Friend of the King” (2019), by director André D`Elia. It identifies ethical and aesthetic elements for thinking in a critical cinema based on Paulo Freire’s philosophy. In dialogue with his theses, it proposes a hermeneutics that addresses the situation of the effects of the Mariana dam rupture (called “Fundão”, November, 5th, 2015). The film operates between fiction and documentary gender; reveals behind-the-scenes digging of iron ore from asset debris, testimonials from mining officials, academics and others, details of the dam rupture that dumped 40 million cubic meters of tailings from the Doce River at its mouth in Regency, Espírito Santo coast. The “toxic mud” killed human lives, their stories, dreams and drastically reduced an ability to maintain a local biodiversity. The film gives voice to the exploited / excluded of official history and reveals its power when analyzed under a Paulo Freire worldview. That justifies its affiliation with a critical social practice, whose objective is to surpass or reduce the performance by the hegemonic cultural, orchestrated by industry cultural. The film denounces crimes committed, injustices and manifestation for reparation by the victims, many of which have not yet been identified.

Keywords: Cinema, Environmental Education, Paulo Freire, Environmental Sciences, Critical Theory.

Introdução

O escopo deste ensaio é analisar o filme O amigo do rei (2019), dirigido por André D’Elia, diretor da nova geração de cineastas brasileiros, que de maneira crítica e fora do circuito do grande mercado de entretenimento tem produzido filmes sobre a temática socioambiental. A análise do filme tem por base elementos éticos e estéticos, inspirados e oriundos da filosofia libertadora de Paulo Freire, para se pensar um cinema crítico-libertador. Em diálogo com suas teses (de Freire), propõe uma hermenêutica que aborda a situação dos atingidos pelo rompimento (em 5 de novembro de 2015) da barragem do Fundão em Mariana, Minas Gerais, Brasil (Milanez and Losekann 2016).

O filme apresenta os detalhes do rompimento dessa barragem que despejou mais de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos no Rio Doce e contaminou todo o trajeto do rio até atingir a sua foz, em Regência, litoral do Espírito Santo. A narrativa do vídeo opera tanto com elementos da ficção como do filme documentário e expõe os bastidores da exploração de minério de ferro. A mesma atividade retratada no poema A montanha pulverizada de Carlos Drummond de Andrade (1973), que era “[...] britada em bilhões de lascas, deslizando em correia transportadora, entupindo 150 vagões, no trem-monstro de 5 locomotivas”.

Ao escavar os escombros soterrados da memória dos atingidos, revela os detalhes de um dos maiores crimes socioambientais do Brasil. Para compor a narrativa, D´Elia entrevista cientistas de diversas áreas do conhecimento, militantes ligados aos movimentos sociais, indígenas e servidores do Ministério Público de Minas Gerais. Imagens de protestos, de audiências públicas e do percurso da lama, somados a uma trilha sonora potente temperam os 142 minutos do filme.

O presente ensaio tem como proposta responder a seguinte pergunta: haveria, no filme O amigo do rei, uma aproximação com a perspectiva ética e estética endógenas à obra do educador Paulo Freire?

Paulo Freire e o cinema

O educador progressista brasileiro Paulo Freire, internacionalmente reconhecido por sua obra, deixou um importante legado para a filosofia da educação, em nível global. Em função da sua perspectiva libertadora, Freire foi preso por 75 dias pelas forças repressoras da ditadura militar (1964-1985) e na qualidade de exilado político (1964-1979) tornou-se um intelectual livre pensador. Contudo, no âmbito da filosofia freiriana, há um aspecto pouco explorado, ou ao menos com baixa repercussão no campo acadêmico. Sua proposta de educação crítico-transformadora, além de comprometida com mudanças estruturais da sociedade, é também uma perspectiva criadora e constitutiva de formas estéticas (Romão 2010, Berino 2017).

Ainda que não haja uma relação direta com a produção cinematográfica, suas reflexões, presentes em Extensão ou comunicação? (Freire 2019a), revelam a potência da dimensão ética e estética passível de ser relacionada ao universo do cinema. Escrito quando ele estava exilado no Chile, nesse livro Freire visava, também analisar “[...] o problema da comunicação entre o técnico e o camponês” e promover uma “[...] perspectiva humanista e científica” dentro de um contexto específico, que era a constituição de uma “nova sociedade agrária” (Chonchol 2019a, 7-8). Ele critica um tipo de extensão (que aqui se pode considerar um tipo de cinema) que transforma o camponês em coisa; também argumenta sobre o processo de invasão cultural, passível de ser apropriado pelo métier cinematográfico: esse tipo de abordagem “[...] pressupõe a conquista, a manipulação e o messianismo de quem invade”, pois assim funciona a “[...] propaganda, os slogans, os depósitos, os mitos [...] que são instrumentos usados pelo invasor para lograr seus objetivos” e impor a sua visão de mundo (Freire 2019a, 49).

Para isso acontecer, o invasor descaracteriza o perfil (original) da cultura invadida e a enche de subprodutos da cultura invasora (Freire 2019a, 50). Por outro lado, para que o diálogo criador aconteça, é necessária uma estrutura horizontal e flexível. Nesta cosmovisão, ao invés de apenas escutar e obedecer, o oprimido pode expor a sua palavra, haja vista que educação “[...] é diálogo”; não é transferir saberes, mas proporcionar [...] um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados” (Freire 2019a, 89).

Outro importante elemento, da filosofia libertadora freiriana, passível de ser incorporado no campo da práxis cinematográfica, é a sua perspectiva progressista e comprometida com a luta contra todas as formas de injustiça social: discriminação, preconceitos e violência que atinge as pessoas e destrói a natureza. Freire nunca disfarçou seu posicionamento político, em favor da democracia. Sua opção ético-humanista é endógena à sua ontologia. Ela combate todas as formas de opressão. É a favor da vida, da liberdade de existir, de pensar e dialogar. Ele se “[...] sentia ofendido, como gente, pela perversidade de uma realidade injusta e negadora” da “vocação ontológica do ser humano em ser mais” (Freire 2013a, 140).

Freire apostava não apenas na possibilidade da transformação social. Ele depositava esperança na história como possibilidade para construção de diferentes hipóteses de futuro, “[...] na capacidade humana de transformar o mundo” (Freire 2013a, p. 187). Para ele, “[...] a história que me faz e de cuja leitura participo é um tempo de possibilidade, e não de determinismo” (Freire 2013a, 259). Mais do que um convite, sua obra cria as condições subjetivas de possibilidades para se pensar uma práxis transformadora, não apenas no campo da educação, stricto senso, mas em inúmeras áreas da produção humana.

No caso particular do cinema, dentre as características, acima destacadas, soma-se o compromisso com os oprimidos e com a sua resistência possível, com posições políticas bem definidas. Ou seja, um posicionamento radical contra os interesses das classes dominantes e a favor das camadas subalternizadas.

Com efeito, a pergunta-problema desse artigo diz respeito à sua perspectiva política, passível de ser apreendida na sua forma (narrativa) de exposição. Afinal, se existir uma aproximação do filme O amigo do rei com a perspectiva ética e estética endógenas à obra do educador Paulo Freire, quais seriam os possíveis elementos?

Esse problema sugere a seguinte hipótese de investigação: no filme O amigo do rei, talvez à revelia do diretor, é possível encontrar alguns elementos da perspectiva ética e estética próprios da filosofia freiriana, em particular com sua praxiologia fundamentada na relação crítico-dialógica de construção do conhecimento. Como desdobramento, dessa primeira hipótese, consideramos que o filme O amigo do rei opera como uma narrativa contra-hegemônica, ao revirar na lama tóxica, discursos, imagens e histórias que não foram contadas pela grande mídia e pela fundação mantida pelas mineradoras diretamente envolvidas com o crime e criada para “gerir e executar medidas previstas nos programas socioeconômicos e socioambientais” (Fundação Renova 2016, 2). Por sua vez, o escopo aqui é propor uma aproximação entre a filosofia da educação freiriana e o campo da produção audiovisual (filmes).

O amigo do rei

Esperança, almas antes proibidas simplesmente de falar gritam e cantam; corpos proibidos de pensar discursam e arrebentam as amarras que os preendiam (Freire 2019b, 241).

5 de novembro de 2015. Racham-se as paredes da barragem de minério de ferro localizada no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, interior do Estado de Minas Gerais (Milanez, Losekann 2016). Mais de 40 milhões de metros cúbicos de lama mataram 17 pessoas, dentre elas duas crianças (Porto 2016). Os impactos e o risco desse trágico evento foram e podem ser assim configurados: contaminação do Rio Doce por sedimentos tóxicos; contaminação do solo e da atmosfera; alteração dos ciclos de vetores, hospedeiros e reservatórios de doenças, danos às habitações e infraestrutura e impactos socioeconômicos (Freitas et al. 2019). Ao longo do trajeto de mais de 600 Km, a lama tóxica liberada com a ruptura da barragem, atingiu 39 municípios, tanto no estado de Minas Gerais como do Espírito Santo. Mais de 1 milhão de pessoas, que temem pela contaminação do Rio Doce, foram afetadas pela falta d’água; foram recolhidas 11 toneladas de peixes mortos (Porto 2016). Por onde passou, a “lama tóxica” soterrou todas as formas de vida, inclusive humana, levando também suas histórias e seus sonhos. O rejeito de minério reduziu drasticamente a capacidade de manutenção da biodiversidade no seu trajeto – na bacia de drenagem e no estuário – ao gerar, por exemplo, genotoxicidade em peixes (Gomes et al. 2019).

O amigo do rei: argumento

O argumento central do filme O amigo do Rei (André D’Elia 2019) é justamente esse crime ambiental. Os personagens expressam, na angústia manifestada pelas inúmeras vítimas, o desejo por justiça. Nas comunidades atingidas, muitas pessoas sequer foram indenizadas e ainda clamam por justiça social.

Mistura entre ficção e documentário, o filme expõe os “bastidores” da exploração de minério de ferro no estado de Minas Gerais. Ao escavar os detalhes do rompimento da barragem de minério de ferro de Mariana, o diretor também cria uma atmosfera ficcional, na qual a natureza é tornada uma mercadoria a ser comercializada no balcão de negócios gerenciado pelo Estado, braço direito da atuação de empresas, de políticos dos três poderes e dos meios de comunicação. O amigo do rei é apenas um dos produtos inseridos no projeto de informação ambiental intitulado “mar de lama nunca mais”1.

Para facilitar a análise, propomos uma dissecação didática ao examinar tecnicamente, num processo de distanciamento, e submetê-lo aos nossos instrumentos de análise e a nossa hipótese (Vanoye and Goliot-Lété 2012). Só a partir de uma “leitura” atenta o espectador tem condições de perceber que esse filme aposta no diálogo entre ficção e documentário.

Na parte ficcional, ele constrói a imagem do deputado Rey Naldo (Luciano Chirolli), um articulador entre os interesses privados-mercantis das mineradoras e do estado. Fanfarão, machista, debochado e insensível, em sequências de cenas surreais o deputado mercantiliza a natureza e ironiza as vítimas do crime-desastre. Em sua rotina de trabalho, os elementos que constroem a figura do representante da sociedade patriarcal estão presentes. Restaurantes luxuosos; terno, gravata e colarinho branco; uma secretária (que faz o papel de sedutora e submissa); festas, onde são decididas os caminhos da dominação e exploração incontida da natureza. Suas decisões políticas são tomadas em situações corriqueiras, como na cena em que ele, no final de uma “reunião”, realizada em um restaurante. Bêbado, com um guardanapo na cabeça, a boca cheia e uma taça de vinho na mão2, o deputado ordena sua secretaria, Juju (que é obrigada a fazer favores para além de despachar documentos), que seduza todos que entram em seu gabinete para negociar.

O filme revela o lado obscuro do financiamento de campanha para as eleições políticas, um jogo complexo que envolve lobistas e um complexo jogo de interesses. De acordo com o filme, 3 presidentes, 18 governadores, 19 senadores, 261 deputados federais, 599 deputados estaduais, tiveram suas campanhas financiadas pela maior empresa de mineração do Brasil. Delatado, em seu “jatinho” particular, Rey Naldo foge de Brasília. Ele simula uma situação na qual posa para fotos, como se tivesse sido preso. Na sequência, vai para uma praia. A sequência das cenas revela a impunidade “[...] em nome do Brasil, da família brasileira e de Deus” (2h18’) – um crime perfeito?

De acordo com o Ministério Público, o caso do rompimento da barragem de Fundão pode ser concebido como um crime, pois “[...] resultou da adoção de tecnologias e decisões técnico-administrativas” de três empresas (Espindola, Nodari and Santos 2019, 141).

Na parte documental, O amigo do rei expõe os relatos daqueles que foram atingidos pela lama tóxica. São depoimentos que caracterizam com detalhes o episódio que transformou completamente a vida das pessoas. As inúmeras habitações foram tomadas pelo rejeito de minério. Em cima da lama, os personagens se emocionam ao revisitar o local das suas casas e memórias. “A gente vai viver com esses pensamentos pelo o resto da vida, só quando a gente morrer que vai ficar livre desses pensamentos. É muito difícil de lembrar dessa história”, comenta um morador atingido pela lama.

Ao contar a história, com base nas narrativas dos atingidos (os oprimidos pela lama tóxica), o diretor faz a opção e revela o seu posicionamento. Ou seja, a favor de quem está munido com sua câmera. Em Pedagogia do oprimido (Freire 2013b), o autor faz o seguinte comentário, passível de se associar ao filme O amigo do rei: “[...] diálogo crítico e libertador, por isto mesmo que supõe a ação, tem que ser feito com os oprimidos, qualquer que seja o grau em que esteja a luta por libertação. Não um diálogo às escâncaras, que provoca a fúria e a repressão maior do opressor (Freire 2013b, 72).

Por outro lado, os conglomerados dos media hegemônicos produzem narrativas sensacionalistas que operam na lógica do espetáculo. Em observações de campo no mês de janeiro de 2020, realizadas na Vila de Regência no Espírito Santo, foz do Rio Doce, podemos ver jogos de entretenimento para crianças, atividades teatrais com distribuição de doces, num processo de docilização (Foucault 2014), que parece funcionar como medidas para controle da população por doses de distração. Esse tipo de atuação funciona como “[...] manto da invisibilidade para as mineradoras [...] ao canalizar para si as atenções e as práticas discursivas de todos os atores envolvidos no processo de remediação, restauração e compensação” (Espindola, Nora and Santos 2019, 148).

Contudo, O amigo do rei faz oposição ao discurso oficial. O diretor do filme aposta em uma narrativa contra-hegemônica. Ele valoriza a voz silenciada pelo trauma que aflige os atingidos pela escória da barragem rompida. Ao espectador cabe respeitar e ouvir as vozes soterradas pela lama tóxica. Além dos depoimentos dos atingidos, D´Elia exibe o ponto de vista de cientistas e acadêmicos de várias áreas. Com detalhes, eles descrevem o rompimento da barragem de rejeitos; o ritual administrativo do licenciamento ambiental e os impactos da atividade mineradora. A narrativa é complementada com a participação de servidores da promotoria de justiça do Ministério Público de Minas Gerais, biólogos de uma empresa de consultoria, ex-funcionários da mineradora, integrantes da Pastoral da Terra, prefeitos de municípios atingidos e aqueles que tiveram suas vidas modificas de maneira negativa, Os condenados da terra (Fanon 2005) ou “oprimidos” (Freire 2013b).

O filme também põe em destaque imagens de reuniões e audiências públicas, protestos, e o percurso da lama tóxica que soterrou vidas humanas, liquidou com sonhos e reduziu, drasticamente, a capacidade de manutenção da biodiversidade ao longo do seu trajeto, ao transformar uma paisagem colorida (antes do crime ambiental), em um “tapete laranja”. Em outra seção, uma pesquisadora de um grupo independente explica, em uma palestra, a presença de elevados níveis de concentração de compostos inorgânicos, como ferro, manganês, arsênio e chumbo ao longo da bacia de drenagem atingida pela lama, muito além do permitido pela legislação. Por exemplo, o Manganês, segundo a pesquisadora, foi encontrado ao longo da bacia de drenagem a 1.000 vezes acima da concentração limite preconizada pela resolução Conama nº 357 (Brasil 2005). Em um auditório lotado, a palestrante declara que “[...] todos esses metais tóxicos causam algum impacto na saúde humana e dos animais também, que consomem essa água”.

Em outra cena, a prefeita do município de Governador Valadares, bebe a água da torneira para mostrar que passados alguns meses do rompimento da barragem, os serviços ecológicos (Alho 2012) haviam se normalizado: nesse caso, o fornecimento de água potável. A teatralidade da prefeita é captada pela mídia tradicional, que ao produzir a “peça publicitária”, tem por escopo “acalmar” os ânimos dos moradores. Sem embargo, a farsa é desmentida. Uma mãe, com sua filha no colo, mostra as bolhas na perna da criança, cujos ferimentos teriam surgido após o consumo da água contaminada.

Outro destaque dá-se à cena do discurso do promotor de justiça do município de Governador de Valadares. Realizado em uma audiência pública, ele reforça a ideia de contaminação da água, principalmente por alumínio. O promotor cita a portaria do Ministério da Saúde nº 2.914 de 2011, que dispõe sobre os “[...] procedimentos de controle e de vigilância da qualidade da água para consumo humano e seu padrão de potabilidade” (Brasil 2011). Há ainda “[...] um grande risco de que chuvas, quaisquer tipo de alteração na dinâmica do curso hídrico, possa de novo acarretar a piora da qualidade, turbidez, inclusive novos episódios de mortandade de peixes” (Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais e Coordenador – O Amigo do rei 2019, 49’).

Logo após a fala do promotor, chocalhos são balançados, penas e penachos apontam para uma transição na paisagem e na cosmovisão, somos apresentados a “uma gente que fica agarrada na terra” (Krenak 2019, p.11). A tinta preta na pele e a cor vermelha simbolizam, para a comunidade indígena, que se está preparado para o combate/guerra. É a etnia Krenak que apresenta a expressão de resistência na voz de uma de suas principais lideranças:

Como é que você vai imaginar um futuro, com um rio morto, num lugar que não tem água, suprido por caminhão pipa, enchendo a caixa d’água de plástico de água. Ninguém vive desse jeito! O nosso território está parecendo um campo de refugiados. Eu costumo dizer que nos estamos refugiados dentro de casa. Agora vamos ficar recebendo suprimento, ração. Enquanto a empresa quiser, né? Porque eu não estou vendo nenhum investimento sendo feito para criar novas condições de sobrevivência na beira do rio (Ailton Krenak - O amigo do rei, 2019, 50’, grifo nosso).

Para os Krenak, o rio é sagrado. A água do rio é “viva e é vida” (Dejanira Krenak, Aldeia de Resplendor – O amigo do rei, 2019, 51’). Aqui parece haver um nítido vínculo do filme com o cinema político-militante. O filme de D´Elia põe em cena as artimanhas, as tramas da ideologia. Ele faz lembrar aquele sentimento, tão defendido por Freire (2019b): o sonho possível de mudar o mundo.

Bastante representativa é a fala de uma moradora, gravada em uma Audiência Pública, na qual ela conclama por justiça:

Como trabalhadores e como moradores dessa cidade, a gente não pode aceitar, qualquer coisa. A gente não pode passar um cheque em branco para a empresa, porque a empresa quer se salvar. Ainda que isso represente o fim da natureza, do meio ambiente, de um rio inteiro, de uma fauna, flora, de pessoas, casas, de uma cidade inteira, de vilas inteiras (Moradora de Mariana (MG) em uma Audiência Pública – O Amigo do rei, 2019, 1h17’, grifo nosso).

No filme, diante da complexidade do crime-desastre, alguns cientistas tecem comentários sobre as limitações da própria ciência para responder as questões que o cenário impõe. Talvez, seja necessário algo mais do que uma abordagem integrada, interdisciplinar e multidimensional:

O nosso método de conhecimento não dá conta de interpretar o mundo como ele é, transdisciplinar. É um mundo complexo, em que todas as coisas estão interligadas. [...] Pela água eu posso fazer uma leitura do grau de desenvolvimento, espiritual e cultural daquela sociedade (Médico e ambientalista, 1h37’).

Essa fragmentação científica, em disciplinas, ela é uma ferramenta artificial, a natureza não é separada [risos]. A natureza é uma coisa só. Mas, como que a gente na nossa insignificância intelectual vai abordar uma coisa tão complexa, entendeu? Aí a gente tenta simplificar para poder começar a entender. Essas fronteiras que a gente cria, a gente tem que ter consciência, a gente criou ela. Para um determinado momento se decidir e romper essas fronteiras, né? (Biólogo, 1h39’).

Porque a questão ambiental é transversal [...] a gente não pode tratar ela isoladamente (Cientista, 1h40’).

Dessa forma, o filme contribui com aportes de elementos críticos para formação de cientistas, cineastas e educadores atentos as superações da barbárie capitalista, que gera consequências nos territórios e provocam alterações climáticas globais (Costa, Loureiro and Sánchez 2020). Ao longo do filme, são apresentadas imagens de protestos e depoimentos dos atingidos em diferentes territórios, desde a Bacia do Rio Doce, até o município de Vitória (ES), cerca de 120 km de distância. Essa seção é conduzida pelo potente som do músico Kleber Cavalcante Gomes, conhecido como Criolo. O músico sintetiza de maneira enérgica, a natureza em disputa, conflitos e controvérsias:

Peixes mutantes invadindo o congresso. Vomitando poluentes com o logotipo impresso. Br (?) quem é do mangue não esquece. As vítimas perecem, as famílias enlouquecem. O caranguejo gigante decepando seus corpos. Aniquilar suas famílias, jogá-las aos corvos [...] Enquanto ser humano eu vou destruindo o que posso. O elevador aqui só desce, o demônio é meu sócio (Música Chuva ácida do álbum Ainda há tempo (2016), composição Criolo).

Conclusão

Neste ensaio, as reflexões e discussões em torno do filme O amigo do rei, tem como referência teórica a filosofia libertadora de Paulo Freire. Ainda que não tenha sido intenção do cineasta/diretor, tomar a filosofia freiriana como inspiração e modelo ético e estético, a película explora essa dimensão transformadora da arte. D´elia dá voz aos explorados/excluídos da/pela história oficial, o que justifica sua filiação à uma prática social crítica e libertadora, cujo escopo parece ser a superação do reducionismo proposto pelo entretenimento massificado, orquestrado pela indústria cultural hegemônica.

Em O amigo do rei é possível identificar vários elementos da perspectiva ética e estética presentes na obra de Paulo Freire, especialmente em relação ao posicionamento crítico que a obra assume. O diálogo com os oprimidos e o direcionamento da câmera não deixa dúvidas sobre quais personagens são os exploradores e a quem estão filiados, e quem são os explorados e silenciados pela história oficial. Talvez, pelo filme ter sido financiado por meio de uma ação (iniciativa) movida pelo Ministério Público, a partir de um inquérito civil, esse posicionamento tenha sido fortalecido no início da produção, tornando-o evidente em várias passagens. Por outro lado, em outros filmes3 do mesmo diretor, é possível identificar a mesma proposta, qual seja: um cinema militante e com claros e bem definidos posicionamentos políticos, cuja temática central também são as pautas e a relevante agenda político-ambiental fundamentada em uma perspectiva crítica, próximas ao debate que tem sido produzido no campo da ecologia política. O que confirma a tese de que o cineasta (D´Elia) opera dentro de uma narrativa crítico-libertadora e seus filmes podem ser considerados exógenos ao circuito do grande mercado de entretenimento.

Dessa forma, confirma-se nossa hipótese: o filme O amigo do rei é um representante do cinema contra-hegemônico, progressista. Ele trabalha com o esclarecimento e a denúncia das barbáries perpetradas pelo capitalismo contemporâneo. O diretor põe em destaque as contradições do discurso (ideologia) naturalizante da classe dominante.

Por fim, o filme analisado não encerra o debate sobre o crime de Mariana. Pelo contrário. Ele abre novas possibilidades para a compreensão dos desfechos desse episódio que marcou, de maneira indelével, a danificação das vidas humanas e a destruição da natureza ocasionadas pela exploração insana e bárbara realizada pelas empresas mineradoras, no Brasil e no mundo. O filme também aponta para a necessidade de futuras produções audiovisuais que evidenciem essa temática, a partir da perspectiva ética e estética dialógica porque fundamentada na filosofia crítico-libertadora capaz de tornar visível e audível os traumas silenciados e o soterramento dos sonhos dos sobreviventes atingidos pelos crimes ambientais ocasionados pela insanidade do capital. Os rejeitos ainda permanecem. Em vários municípios, principalmente na foz do Rio Doce, eles têm gerado incertezas relativas à qualidade da água e dos ecossistemas que foram expostos aos metais pesados.

Notas Finais

1 Resultado do termo de compromisso celebrado nos autos do Inquérito Civil no 0024.11.006422-7.

2 Para nós, em analogia a fotografia do ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho e companhia na França.

3 Outros filmes do mesmo diretor: Belo Monte: anúncio de uma guerra (2012); A Lei da Água: novo código florestal (2015) e Ser tão velho Cerrado (2018).

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Filmografia

O amigo do rei. 2019. De André D’Elia. Rio de Janeiro, Brasil: DVD (142 min.).