AVANCA | CINEMA

Between Oceans and Knowledge - Documentary film at the University

Entre oceanos e conhecimentos – O cinema documental na Universidade

Gilmar Santana

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil

Abstract

Nowadays in several intellectual productions of the academic world in the fields of humanities, documentary film is an integral and simultaneous part of the processes and results of scientific research. Given the irreversibility of this fact, it is clear that dilemmas about its relevance still appear questioning its legitimacy as a tool, in itself, of knowledge. In this sense, from the testimony and reflection of five university professors who develop their research concomitantly with the imagery production in five different countries - Brazil, Cuba, the United States, England and Switzerland - this paper intends to debate how they present and articulate themselves: the presence of documentary cinema at university, its place as a producer and problematizer of knowledge, its support as a dialogical resource and its relevance as a sociological data in a world increasingly marked by the image as a vehicle of cultural practices.

Keywords: Cultural practices with image, Documentary film, Globalized world, Knowledge production, Legitimacy.

Introdução

“Toda manifestação da vida espiritual humana pode ser concebida como uma espécie de linguagem, e essa concepção leva, em toda parte, à maneira de verdadeiro método, a novos questionamentos.” (Walter Benjamin – Escritos sobre mito e linguagem)

Há em todas as formas de produção do conhecimento o pressuposto de que este resulta de uma busca constante por novos caminhos que esclareçam dúvidas pertinentes ao tempo e espaço em que necessidades humanas precisam ser solucionadas. Para satisfazê-las, articulam-se de modo simultâneo saberes acumulados no presente e do passado numa trama que envolve o uso de técnicas, tecnologias, teorias e oralidades de múltiplas fontes ora difusas ora sistematizadas.

Cientes dessa relação intrínseca, soa destoante prescindir de algum desses fatores no conjunto de situações concretas, quando estas já se encontram na prática conectadas por eles mesmos. Todos se traduzem em ferramentas compartilhadas que contribuem para o avanço cognitivo. No entanto, no campo acadêmico, como uma das instâncias, tradicional e legitimado para estes fins, insiste-se por vezes em resistir ao uso de certos elementos componentes como se estes representassem uma ameaça ou não fossem parte integrante de todo processo de sua elaboração.

É o caso mais evidente, em particular nas ciências humanas, quando do emprego da imagem e mais especificamente, do documentário como instrumento de construção em si do saber. Se existe pesquisa científica, análise teórica e empírica com recursos humanos e técnicos mobilizados sobre os objetos investigados e há resistências, a questão que se evidencia é tentar compreender como e porque se constituem esses tipos de atitude. Partindo de seu contraponto, ou seja, do diálogo com quem trabalha com o documentário dentro dessas perspectivas, pretende-se aqui analisar como ocorre a ação documental e a reação no campo acadêmico, considerando-se objetivos e disputas envolvidos nessa dinâmica.

Assim, este debate ocupa-se de encontrar e refletir as razões de atitudes de resistência e se dispõe a defender a prática do documentário como exercício portador de conteúdos consistentes equiparados lado a lado com a construção cultural acadêmica vigente.

A presença do cinema documental na universidade - experiências

Sabe-se, já por conta dos suportes e maneiras de recepção que, existe uma grande diferença entre uma produção acadêmica escrita e uma filmada. Quando se finaliza uma pesquisa calcada em dados estatísticos e de laboratórios ou de fundamentos teóricos de vários autores e relatos orais sobre um tema, quase de modo automático o que vem à mente para divulgação é um livro ou um texto argumentativo em formato de grandes relatórios esclarecendo os resultados. Muitas vezes se admite com reservas ilustrações fotográficas ou filmes como complementos das investigações, porém, não apenas as imagens em si como porta-vozes do conhecimento adquirido.

Ao que parece, há uma condição velada de aceitação dessa linguagem somente como recurso adicional para aqueles que já se legitimaram no meio acadêmico por sua produção escrita. No entanto, permitir que tudo corra conjuntamente delegando-se o mesmo grau de importância frente à realização das obras filmadas, continua se mostrando um grande desafio. Diante dele, surgem questionamentos e apontamentos de resultados positivos, sobretudo para o público externo à universidade. Acerca dessas reações, novamente volta-se à indagação sobre por que, para que e para quem serve a produção do conhecimento.

Nesse sentido, para melhor visualizar esse panorama, optou-se aqui por traçar alguns paralelos por meio do depoimento de intelectuais que no trabalho com documentários constataram ao longo de suas trajetórias aspectos similares ao que foi levantado até agora nessa reflexão. De distintas formas e localidades, suas experiências com o meio científico, acadêmico e cinematográfico se cruzam. Ainda que com algumas pequenas diferenças resultantes de caminhos profissionais diversos, todos se encontram no ponto documentário, estabelecendo diálogos que os identifica e mostra como em trajetórias tão singulares se revelam saldos tão semelhantes. As entrevistas para este trabalho (também um documentário, em fase de edição), datam entre julho de 2016 e janeiro de 2019.

a-) Mathias Röhrig Assunção, University of Essex, Inglaterra

Historiador, professor, pesquisador e realizador visual, residente na cidade de Colchester, Mathias Assunção desenvolveu pesquisas durante mais de 10 anos sobre a capoeira relacionando e descobrindo diferenças e similaridades de sua prática entre Angola e Brasil. Dos trabalhos resultaram um livro, artigos e um documentário concluído em 2014, intitulado “Jogo de corpo, capoeira e ancestralidade”.

Ele relata que desde o início das investigações, sua principal preocupação e também de sua equipe, fator que os levou à realização do filme, era como explicar o movimento desse jogo ou dança – como muitos a entendem. Capoeira é música, ritmo, canto, golpes de defesa. Objetivamente, o documentário deveria mostrar isso. Ressalta que desde o momento em que seus estudos se direcionaram para a cultura popular, também começaram a aparecer interesses por suas representações por intermédio da imagem. E já na década de 90, isso havia se transformado num problema que deveria ser resolvido. No seu estudo sobre a capoeira, indica que foi seguindo o rastro das obras dos anos 1950, do pintor Albano Neves Souza, que se obtiveram as conexões possíveis para se chegar às descobertas que posteriormente culminaram no filme e em seus desdobramentos culturais internacionais.

Albano retratou a capoeira estabelecendo um vinculo que até então ninguém tinha falado, ou seja, de uma luta africana com localidade de origem. Ele possuía desenhos e percebeu na Bahia que aqueles movimentos feitos lá, eram muito parecidos com os que tinha daquelas imagens representadas na Angola. Foi o pesquisador Câmara Cascudo a personalidade importante para a divulgação dessa origem africana, especificamente do processo do “Engolo” para a Capoeira. Porém, isso ficou esquecido na década de 1960. Somente a partir da década de 1990 e anos 2000, que se abriu um novo capítulo, quando pesquisadores perceberam nos fragmentos da guerra da modernização o que ainda existia e o que acabou desta cultura popular. Assim, o trabalho praticamente arqueológico e associativo de montar um quebra-cabeça que desse sentido às pistas deixadas pelo pintor, levou Mathias, quase que naturalmente, a filmar o material que estava encontrando e o registro etnográfico já se misturava como parte integrante das cenas que seriam exibidas no documentário.

Observemos portanto, que a imagem aparece aqui, não como forma de ilustração, mas também como uma questão metodológica e didática, como código e objeto a ser explorado e dissecado, sobretudo porque a intenção mais ampla era levar a obra para o maior número possível de pessoas, em especial, para aquelas que tivessem relação direta com as narrativas apresentadas. Havia ali escopos sociais e culturais de troca de conhecimentos, de vivências sociológicas, das quais o documentário seria o porta-voz dialógico entre tempos históricos, inclusive daquele presente em que no encontro das culturas se criavam novos olhares e perspectivas acerca da capoeira. Nesse sentido, a recepção e o debate, tinham mais importância do que a simples exibição do filme.

b-) Belkis Vega Belmonte, EICTV, Cuba

Com uma carreira consolidada ao longo de 50 anos de atividades em cinema, com mais de 60 filmes e diversos prêmios conquistados em vários festivais e mostras pelo mundo, a designer, documentarista e professora Belkis, moradora de Havana, também trabalha ao menos uma vez ao ano na Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba, situada no município de San Antonio de los Baños, na província de Artemisa, ministrando oficinas de cinema documentário junto a outra documentarista sua amiga, Marianne Pletscher, que será apresentada um pouco mais adiante nesse tópico do texto. Foi correspondente de guerra na África e no Oriente Médio, filmou reportagens na Síria e no Congo, além de documentários no Líbano, Angola e na. Espanha. A diretora cubana não produz filmes para a universidade e não faz pesquisa compreendida nos termos acadêmicos apontados aqui, ainda que a EICTV onde ministra aulas possua este status e seja professora convidada em Madrid. Sua produção de conhecimento difunde-se de outras formas.

Além da vivência acumulada em vários países, ao ministrar aulas para diferentes tipos de público provenientes de inúmeras partes do mundo e realizar seus documentários, exerce um outro tipo de atividade investigativa, pois o que se compartilha são dimensões diferenciadas de produção e uso do documentário, culturas, histórias, filmes e sociabilidades. Sua trajetória conta com um grande período de trabalho nas forças armadas cubanas, o que diante dessa forma de poder já soaria ausência total de liberdade de criação. Porém na sua contextualização elencando todo seu processo de inserção e atividades desenvolvidas, é possível notar quais caminhos são possíveis para o bom andamento e avanço de propostas críticas de qualidade que não necessariamente passem por questões políticas ou sociais.

Para ilustrar o que entende sobre o compromisso com a sociedade e com a cultura diante das formas de poder que muitas vezes podem sugerir o cerceamento de propostas de realização das imagens, a diretora analisa os modos de relação que podem ser constituídos com a instituição. Entende que existem nela intenções formativas e que dentro disso houve épocas melhores e outras mais difíceis, atentando para o detalhe de que o setor audiovisual é um mundo diferente das forças armadas em si. Cita que na obra “Vida de Galileu”, de Bertolt Brecht, há uma parte em que o autor coloca na fala da personagem a frase: “ – diante dos obstáculos, a menor distância entre dois pontos é a linha sinuosa”.

Para ela, essa foi sua tática, a da linha sinuosa, com a qual junto à sua equipe, se conseguiram realizar várias obras de alta qualidade. Uma delas, foi o financiamento pelos estúdios das Forças Armadas para uma série de dez episódios sobre o maior artista plástico de Cuba. Em sua avaliação, vê que durante os anos de seu trabalho junto às forças armadas, houve muita flexibilidade para fazer uma obra pessoal. Às vezes havia exceções para temáticas sociais ou políticas, ainda que reconheça no perfil próprio de cada instituição uma orientação a seguir e respeitar. Sobre os anos vividos lá, considera que não houve nenhuma frustração, ao contrário, produziu-se muito.

Seu estilo de argumentação para contar sua trajetória e concepções qualitativas de trabalho, parte sempre de experiências concretas, para a partir delas avançar acerca de alguma avaliação teórica, como foi visto agora e o será mais adiante aqui. Nessa primeira abordagem, pode-se verificar o dado relevante concernente ao processo e possibilidade de criação junto a instâncias fortes do poder, na busca de maneiras para se produzir e difundir o conhecimento. De um certo modo, diante das temáticas científicas, seu trabalho e proposta estética, chegam muito próximos – às vezes realizam – a etnografias. No entanto, mesmo não fazendo parte de seus objetivos, não assume sua nomenclatura em razão da ausência de preocupações com premissas teóricas existentes no campo de áreas da ciência humana que ao classificarem determinados métodos, ganham certa propriedade sobre essas ações, estas que também representam outra esfera de poder.

c-) José Roberto P. Novaes (Beto Novaes), UFRJ, Brasil

De todos os entrevistados, talvez a experiência mais contundente para mostrar de forma dialética a produção do conhecimento que não hierarquiza, nem separa teoria e prática na atividade acadêmica, razão pela qual se utiliza das ferramentas adequadas e necessárias para que este se construa e se propague o mais democraticamente possível à toda sociedade, seja a da obra imagética de Beto Novaes. Engenheiro agrônomo, especialista e doutor em economia rural, professor aposentado da UFRJ, desde finais dos anos 1970 até hoje, soma oficialmente em seu currículo mais de 20 documentários, muitos deles premiados em mostras e eventos institucionais de diversas vertentes indo de acadêmicas, sindicais a eclesiásticas. Comprometido com sua práxis, mesmo aposentado, coordena até hoje o Projeto de extensão “Educação através das imagens”. Ferramenta que lhe garante um vínculo direto e dialógico com todos os agentes sociais que são objeto e personagens criticamente ativas das temáticas levantadas em suas obras.

Morador na cidade do Rio de Janeiro, tendo vivido 14 anos no estado da Paraíba quando trabalhou na Universidade federal de Campina Grande, região do início de suas atividades documentais, Beto conta que a princípio ele e sua equipe pensavam em fazer pesquisas e usar imagens apenas para ilustrar o trabalho. Foi da experiência sensível entre professores, – a maioria doutores que estavam voltando do exílio em razão da lenta abertura do regime ditatorial vigente na época no Brasil – , das atividades de extensão que aproximava a comunidade da universidade e da realidade brutal objetiva que vinculava a todos num espaço social e territorial de convivência comum, que as leituras e a maneira de conceber a produção do conhecimento, mudaram sua vida. Dali para adiante, num profundo exercício de arte etnográfica, nunca mais Beto separou de suas pesquisas e imagens, a realidade de trabalhadores precários, suas lutas e reivindicações por direitos, a exposição dos conflitos frente a diversos poderes e os impactos múltiplos que estes representam sejam eles políticos, ambientais, culturais ou econômicos sobre a sociedade.

Já no primeiro documentário “O que eu conto do sertão é isso”, frase de uma senhora expulsa da terra que no filme contou sua história, estavam postas todas as premissas que norteariam suas futuras obras: os poderes políticos e econômicos locais e do grande capital, a realidade resultado da contradição e dos conflitos a partir da voz e das condições sociais dos agentes sociais envolvidos e de suas representações, as conseqüências globais dos fatos abordados. Frente a sua grande produção acadêmica escrita o que pode-se constatar comparativamente é a intrínseca relação de conteúdo e informação de riquíssima qualidade que aparece nos filmes. Sem deixar de lado o rigor científico se verifica nos trabalhos a constante proposta do diálogo entre as diversas expressões com seu lugar de fala marcados pelo paradoxo de uma dinâmica de construção desigual da sociedade.

Documentários em aberto, que em seu teor apontam analiticamente o problema e continuam a provocar questões, buscar respostas, motivar o debate e apropriar o espectador de seu papel histórico. Nesse exercício, Beto cumpre a conversão que via como necessidade modificar na vida acadêmica. Ele afirma que: “ – a pesquisa na Universidade faz você ter o seu interlocutor como objeto de pesquisa e você colhe o material, mas não devolve o material e depois fala por ele (...) Toda dinâmica do projeto é para você retirar dele as informações que você quer para você e cumprir todo o ritual Acadêmico”. Era isso que precisava ser transformado e com os documentários, isso foi possível.

d-) Marianne Pletscher, EICTV, Suíça

A exemplo de Belkis, a jornalista, professora e documentarista Marianne, também acumula ao longo de 50 anos de atividade documental, vários prêmios internacionais em razão dos mais de 50 trabalhos que realizou em sua carreira cinematográfica. Trabalhou na televisão Suíça como repórter correspondente internacional em muitos países e em todos fez muitos amigos, decidindo em algumas localidades realizar documentários, prática que aos poucos a fez descobrir, compor e definir seus temas. Na Suíça, também se dedicou a temas sociais, sobretudo quando, contribuindo a seu favor, na TV, no departamento de documentário que ela era co-fundadora, pôde fazer um pouco do que queria, ainda que dentro de uma certa margem. Avalia hoje que na época, o fato de não precisar buscar fontes de financiamento para seus filmes, ajudou muito nos projetos. Foi um período em que se realizavam três documentários por ano, porém o desgaste mental era demasiado. Uma das razões que a levaram a ministrar oficinas.

Reconhece que as experiências são muito distintas. Na primeira vez em que trabalhou na EICTV, desenvolveu as aulas sozinha e foi convidada por conta de um prêmio que ela havia ganhado num festival internacional narrando em seu documentário a história de uma cigana na Suiça. Acerca do filme, como ela sabia que em geral na Suíça os ciganos foram muito maltratados, e também grupos de estrangeiros, entendeu que era muito importante levar a um público amplo suas realidades numa narrativa. Vê a obra como relevante, não só por ter sido ela a primeira pessoa na Suíça a falar sobre o assunto, mas porque as repercussões de seu documentário chegaram até o parlamento e provocaram uma reação tão forte que mudou inclusive leis.

Fez filmes sobre refugiados bósnios que viveram na Suíça por um certo tempo e que foram deportados de volta ao país de origem. Frente aos fatos, via de extrema importância, mostrar os dois lados da história. E para ela, quem dirige deve necessariamente acreditar naquilo que vai filmar. Na sua convicção de que nunca faria um documentário de coisas que não a interessam está presente aquilo que consiste a narração sensível num cinema direto sobre o drama humano, sobre a realidade de quem vive de maneira injustiçada, como foi o caso dos refugiados.

Moradora em Zurique, a diretora ministrou oficinas na Suíça, Nepal e Sri Lanka. E nessas andanças, compara a diferença de perfil tanto de estudantes como de entrevistados nos filmes. Percebe a abertura maior entre alunos em Cuba do que nesses outros países onde as pessoas são muito fechadas e por conseguinte, ser muito mais difícil a execução de um cinema direto, sua preferência estilística para documentar. Nas oficinas na universidade de Berna, suas atividades são externas às estruturas dos cursos normais. São de nível mais prático, enquanto que na universidade em cursos muito teóricos, não se ensina como fazer um filme. Nesse aspecto, sustenta que a teoria e a prática não podem estar tão separadas. Tanto que não fez filmes no curso.

Frente a esse panorama, distingue-se a praticidade de uma realizadora de documentários, frente o caráter reflexivo e introspectivo do universo acadêmico, que como visto, pela separação entre teoria e prática, para ela, acaba por obstruir possibilidades mais críticas de intervenção na sociedade, o inverso do que de fato ocorreu socialmente quando da exibição de seus filmes. Percebe-se que sua preocupação com o conhecimento provém desse contato direto com a temática filmada, cujo distanciamento só acabará ocorrendo no momento da exibição do documentário quando a oportunidade da reflexão será democratizada com todos os espectadores presentes. O que a faz concluir que, quanto maior o alcance da obra, maior será seu potencial comunicativo e crítico diante da problemática podendo desencadear conseqüências sociais transformadoras na sociedade.

e-) Jonathan Warren, Universty of Washington, Seattle, EUA

Sociólogo, pesquisador e professor da Henry M. Jackson school of international studies da University of Washington, colaborador em pesquisas intercontinentais e multidisplinares com estudos realizados na América latina, Caribe e Sudeste da Ásia, Warren vive em Seattle. Em 1995, começou a fazer pesquisas no norte do estado de Minas Gerais, numa região considerada uma das mais pobres do Brasil, conhecida como o Vale do Jequitinhonha. De maneira contínua retornou à região várias vezes, na cidade de Araçuaí, pesquisando a cultura e a realidade político-social de sua população. Depois de alguns anos, militantes dos movimentos culturais, políticos e sociais com os quais conviveu naquele período, pediram a ele que contasse suas histórias, vividas em tantos anos de luta e conquistas.

Concordando com a idéia, o que num primeiro momento seria um livro, após uma reflexão e constatação própria do perfil cultural das pessoas tanto do Brasil como dos EUA, de moverem-se formativamente mais pelas imagens, a pesquisa acabou se transformando num documentário. Como faltava a ele o conhecimento técnico para sua realização, após muitas buscas, somente por volta de 2008 é que, junto a uma aluna e seu marido que já sabiam fazer bem documentários, depois de vários acordos, dois anos à frente, foi possível realizar as filmagens. De volta aos EUA com o material, após exaustiva análise das narrativas, concordâncias e divergências sobre a viabilidade de discursos e imagens, mais dois anos adiante se seguiram e constatou-se a necessidade de um retorno ao Brasil para a obtenção de mais informações. A equipe conseguiu voltar novamente ao vale. A exemplo da vez anterior, fizeram mais uma semana de inúmeras entrevistas e a primeira versão do trabalho foi apresentada às pessoas no intuito de receber o feed back. Após a exibição e debate, foram incluídas sugestões e efetuadas novas filmagens.

Mais um ano se passou de discussões e numa reedição, foram colocados os subtítulos, nomes, fotos e documentos indicados pelos entrevistados. Com uma nova narrativa, houve a possibilidade de exibir mais uma vez o filme para aquele público “exigente” afim de refinar mais a obra. E finalmente, após uma grande revisão e muitas horas na ilha de edição, no final todos ficaram felizes com o resultado que chegou concluído em 2015, no documentário “From the bottom up” (De baixo para cima). Warren conta que sentiu-se satisfeito com o filme, ao avaliar que chegou aos objetivos pretendidos. Um deles, era contar o sentido social da história daquelas pessoas. Muitos não sabiam como a ligação de ações entre educadores, artistas e figuras religiosas, conseguiu criar as condições objetivas que permitiram o desenvolvimento de um movimento político que melhorou o Vale do Jequitinhonha.

Reconhece que tiveram uma luta financeira grande. Pagaram para tudo. Avalia que mesmo hoje sendo possível fazer um documentário sem muitos recursos, fica difícil manter todos os custos. Isso porque profissionalmente esse ramo não é reconhecido no meio acadêmico nos EUA. Ainda que ele soubesse desde o início, que não teria ajuda profissional da universidade. Fato que lamenta profundamente, afinal afirma que a mesma dedicação despendida e resultados obtidos nesse trabalho, se equiparam a qualquer outra pesquisa já realizada por ele em todos esses anos de carreira no seu meio intelectual. Caminhos de identificação e clareza diante de sua relevância científica.

A escolha intencional pela descrição de passagens da trajetória profissional juntamente a momentos de realização dos documentários dos entrevistados nesse texto procurou localizar em cada uma das falas, dilemas e satisfações que os motivam a insistir nessa linguagem como forma de expansão de debates acerca de problemáticas humanas que não se restringem a apenas uma questão pontual, mas, pelo contrário, se conectam a diversos elementos em áreas que aparentemente estão separadas. Em todos os discursos se nota o compromisso social presente, seja na cultura, na arte, na economia, na política, na ciência, na comunicação, culminando todos com ética, na produção de algum tipo de conhecimento, aqui compreendido como aquele fator que esclareça as dúvidas e as necessidades humanas para uma vida mais digna.

Sob esse viés se pensa, portanto, no questionamento dos filtros avaliativos de um meio acadêmico que resiste de maneira explícita ou velada ao uso do documentário como ferramenta de análise e produto científico para a construção dos saberes. Ou então o coloca num sistema classificatório de um conhecimento secundário e complementar. Várias questões emergem desse panorama. A primeira delas é entender para quem e a quem serve o que é produzido. A segunda é constatar objetivamente como os trabalhos se comunicam socialmente, haja vista que a produção acadêmica deve servir e ser compreendida por toda sociedade que a mantém. A terceira é compreender como ocorrem os graus de apropriação do conhecimento quando linguagens além da leitura escrita, como esta do documentário, entram como processos relacionais de linguagens já apropriadas socialmente. Sobre estes aspectos, os próximos itens procurarão explanar os possíveis caminhos para a abertura do debate.

Documentário no campo científico

Esta discussão se dirige diretamente às esferas acadêmicas na perspectiva de fomentar a reflexão sobre a importância de pensar o aumento da produção do documentário no seu cotidiano, sobretudo nas ciências humanas. Visa debater maneiras de firmar seu lugar equiparado ao patamar das pesquisas realizadas no campo científico, uma vez que seus pressupostos e processos de análise também estejam dentro de suas mesmas condições. Pelo que foi visto nas experiências apresentadas no item anterior, tem-se verificado ao longo dos anos que sua utilização, em especial ao falar de problemáticas de questões sociais, revela-se como ferramenta democrática para a difusão da diversidade humana em diversos aspectos, formando cidadãos críticos na medida em que ao estabelecer uma linguagem acessível e identificada com o espectador, consegue maior alcance comunicacional e, sobretudo, rompe lentamente as barreiras de linguagens impostas por um padrão de conhecimento que separa e hierarquiza socialmente seu acesso.

Frente a essas constatações e pensando na constante preocupação de muitos membros do campo científico sobre tornar mais inteligível seus estudos para a sociedade mais ampla, fica ainda difícil compreender as razões de certas resistências a esse modo de linguagem. Obviamente, é sabido que há tempos o cinema documental chegou à universidade e inúmeras obras refletindo suas contribuições e dificuldades, já foram apontadas. O trabalho já clássico de Jean-Claude Bernardet (1985) que discute a forma com que cineastas brasileiros apresentaram em imagens no período da ditadura militar-civil no Brasil, a realidade das classes populares em sua condição precária de vida e em seus movimentos de reivindicação por direitos, revela com sensibilidade a importância desse gênero. E vai mais além, ao investigar o caráter narrativo e ficcional de um cinema que também é resultado da interpretração e representação de seus realizadores, em si, portanto, um tema sociológico.

Um projeto de pesquisa realizado por Marcius Freire, finalizado em 1997, já indicava os propósitos da mudança de entendimento do documentário de simples ilustrador para se constituir em objeto de pesquisa em si. A importante revista digital Doc-on line na qual é editor junto a Manuela Penafria, ocupada com a relação cada vez mais estreita entre documentário e ciência, busca divulgar pesquisas com ênfase especial em abordagens de caráter multidisciplinar no âmbito documental dentro de suas várias linguagens. Além desta e outros periódicos similares, inúmeros congressos científicos e de comunicação têm recebido de maneira crescente trabalhos cujos resultados das investigações prescindem ou são o próprio recurso para evidenciar seus objetos, em forma de documentário.

Historicamente, várias foram as trajetórias de seu uso na educação e na ciência em muitos países. A título exemplar de experiências bem-sucedidas, na Inglaterra da década de 1920, criou-se uma estrutura significativa direcionada ao fomento do cinema documental. Em 1934, a biblioteca nacional de filmes que era mantida pelo instituto de filmes britânicos tinha como metas:

A. preservar filmes de valor histórico e nacional, incluindo filmes de entretenimento, científicos e de pesquisa (...) ou documentários julgados de importância como documentos históricos. B. distribuir filmes para escolas e outras instituições consideráveis usando filmes considerados para educação e outras propostas afins” (CUMBERLEGE, 1947, p.146)

Observa-se naquele contexto o caráter nacional do discurso da ordem em sua necessidade de reprodução, vendo nos documentários o registro do fato e da verdade históricos. Ainda que passível de interpretações envolvendo interesses ideológicos, a forte estrutura burocrático-administrativa que comportava dez órgãos governamentais criados para garantir o bom funcionamento e preservação dos registros, a produção de filmes denota a importância da imagem e sua difusão, mesmo havendo no período a cobrança de aumento das verbas para a área, proporcionalmente restritas diante de outras. Percebía-se a importância do filme para a pesquisa científica e industrial, com seu uso já desde finais do século XIX, na biologia, na medicina e mesmo mais limitados na sociologia e antropologia, obviamente com destaque para os trabalhos de Robert Flaherty e Ernest B. Schoedsack. Na indústria, filmes foram utilizados na psicologia industrial para mostrar formas de otimização na redução de movimentos e busca por melhor eficácia na produtividade. (CUMBERLEGE, 1947, p.146-149). Não deixa de ser curioso perceber nesse panorama quais interesses norteiam sua ampliação ou limitação.

Diante desse quadro, motivados pelo avanço da produção cinematográfica, formaram-se no Reino Unido, vários grupos em torno de um movimento cultural que ficou conhecido por “sociedade do filme” que, entre outras ações, incentivava grupos como escolares, sindicatos e associações de bairros para se reunirem a fim de apreciar filmes. Muitas das produções documentais tornaram-se amplamente conhecidas por conta desses grupos que na Inglaterra em 1937, chegaram ao número de quarenta e que só aos poucos declinaram posteriormente em razão dos anos que se seguiram da guerra. Com exceção da Escócia, cujos membros tinham suas próprias organizações, na Inglaterra as autoridades locais davam assistência a eles (CUMBERLEGE, 1947, p. 154-155).

“Essas organizações não se limitaram a exibir filmes continentais para atrair diversos públicos. Trataram de introduzir nas exibições temas relacionando filme, produção e técnica na intenção de formar comitês para estimular a direção e produção de filmes locais e representações para as autoridades locais. Também preocuparam-se em organizar festivais de cinema amador, cursos de apreciação fílmica e filmes para crianças (...) o largo avanço do movimento da “sociedade do filme científico” durante a guerra, reflete a nova configuração das propostas de uso do filme, em particular do documentário. Representa alguns caminhos que retomam preocupações com a técnica e estilos da forma do fazer filmes direcionados para uma concepção prática como um meio de expressão (...) Em 1942, depois da publicação do manifesto do filme científico e seus usos no mundo moderno, o comitê de filmes da associação organizou duas conferências nacionais. Como resultado dessas conferências, a associação de filmes científicos formou em 1943, um representação de todas as sociedades para promover o uso nacional e internacional de filmes científicos (...) a atitude dos promotores do movimento da sociedade de filmes científicos direciona-se para assuntos que não escapam dos temas da especificidade da ciência. Os focos e objetivos são motivar o mundo do pensar cientifico sobre uma ampla cadeia de problemas humanos (...)” (CUMBERLEGE, 1947, p.156-157)

Frente a esse contexto, nota-se que havia uma preocupação com o aprendizado e o entretenimento. Ambos faziam parte dos projetos e misturavam-se a interesses tanto estatais como privados. Concomitantemente, no conjunto das ações, estava-se criando uma cultura do cinema documental. Hoje, com o universo da internet e a prática cada vez mais privada de assistir filmes, um dos desafios colocados, inclusive indicado por todos os entrevistados nessa reflexão, é a continuidade do exercício dialógico e o gosto pelo debate, prática cotidiana das experiências passadas. Entretanto, o fator essencial não seria retomar alguma dessas experiências passadas, mas compreender seus nexos motivadores e avaliar quais são os atuais que possam estabelecer formas de ampliar a fluidez da atividade documental, sobretudo sua circulação dentro do universo pensado aqui, ou seja: tornar cotidiana a exibição da produção do conhecimento científico via documentário. Isto porque, a simples expansão do documentário produzido para além dos limites da universidade, já tem se ampliado por seus próprios canais. Segundo dados compilados pelo Guia Knoforum em 2019, entre os principais festivais de cinema documentário no mundo, só o Brasil soma mais de 230 eventos, frente a 215 internacionais.

Assim, se hoje já existe esse quadro que inclui instâncias de divulgação, debate e reflexão editorial em processo contínuo, Não se trata de entender as dificuldades encontradas para produzir filmes, que a exemplo do depoimento das pessoas entrevistadas nesse debate, constata-se que são muitas. O que cabe nesse momento é verificar quais possíveis elementos de legitimação na relação social do campo científico com o documentário interferem em sua ampliação acadêmica. Podemos elencar aqui alguns fatores e refletir sobre eles. Um primeiro, diz respeito ao pressuposto do distanciamento científico diante do objeto. Ainda que existam diferenciadas pesquisas antes da ida a campo, sobretudo teóricas, ocorre no processo da realização das imagens uma simultaneidade entre produzir e ao mesmo tempo problematizar o conhecimento que se desenvolve na relação da filmagem, tanto com a câmera ligada como desligada. Se nada pode fugir ao olhar dos documentaristas e sua relação é intensa com seu objeto, poderia existir aí um argumento de reservas quanto ao grau de imparcialidade ou objetivação das intenções analíticas.

Porém, isso acontece na ciência e não por essa razão, a resposta obtida é menos útil à sociedade. A questão é entender e saber realizar a distância quando esta se faz necessária. Portanto, a racionalidade exigida para tanto é a mesma quando se diz respeito ao envolvimento com o objeto. Ética, profissionalismo e sensibilidade misturam-se nesse momento para saber o que se pretende contar com imagens. Para todos os resultados almejados existem regras ou pressupostos a serem seguidos e no meio documental não é diferente. No estilo conhecido como direto e que também dialoga com o “docudrama”, há uma dramaturgia a ser seguida. Marianne comenta:

“ – Há que se pensar sempre na dramaturgia. Sem uma boa dramaturgia, não há um bom conto. Então nessa hora há que se conhecer a parte teórica, não só a parte do amor. Necessitamos um fundamento para fazer documentários. Não só amor. Técnico e dramatúrgico”.

Assim, também para a confecção destes filmes existem condições teóricas e técnicas que se processam para além dos impulsos ou emoções. E a exigência quanto à racionalidade e ao distanciamento com o objeto são as mesmas quando se pretende narrar uma boa história. Um bom exemplo desse conjunto de pré-condições ate agora elencadas, apresenta-se no depoimento de Belkis:

“ – Quase todo o documentário que fiz foi um desafio (...) Cada um implica um desafio pessoal. O maior que tive, foi sobre meu melhor amigo que estudou comigo na universidade. (...) tínhamos uma vida em comum com tudo. Ele morreu de AIDS. Isso em Cuba de 1986, quando as pessoas soropositivas eram isoladas no sanatório. A vida que possuíam lhes eram arrancadas. Na primeira vez que fui dar alento, foi ele quem deu alento. Nunca estava deprimido ... bem, quando ele morreu, eu decidi que deveria fazer um filme que ajudasse as pessoas que fossem soropositivas (...) Foi um processo muito longo. (...) Isso era o desafio. Transformar a dor em uma coisa criativa. Eu não queria contar o histórico, nem um docudrama. Queria fazer uma reconstrução mais emocional, mais psicológica. Até isso foi um desafio. (...) Queria um cinema direto. Participar da vida deles, mas no momento em que eu estivesse filmando. Isso seria dividido em três linhas: uma linha que era minha própria investigação, a busca de saber como se recebe o diagnóstico da AIDS pela primeira vez e o que significa ser um soropositivo (...)”

Após dois anos de muita atividade, além de dificuldades financeiras e buscas por financiamento, o trabalho foi finalizado. Dele resultou um filme de uma hora e meia, dois documentários de meia hora, e uma série de 8 capítulos de 15 min. Continua Belkis:

“ – Ali vi que meu compromisso, minha dor, haviam cumprido sua intenção. Passou em Cuba, Suíça, Baleares, Madrid, Barcelona, Cádis e no México. Nas apresentações, eu me sentei ao lado de cada protagonista, assim que ia começar a história. Pessoas me procuraram para falar dos filmes, partilhando suas vidas e dizendo o quanto as tocou. Então há diálogo do filme quando se sente que o filme está falando com seu público. É muito importante. (...) Eu compartilhei uma experiência vital que por sorte não me tocou de ser soropositiva. Eles entenderam que eu falei de um filme de dor e por isso dói tanto neles como em mim. Vêem que através do filme, as pessoas se dão conta de seus problemas e de seus conflitos. Creio que o documentário é uma espécie de alta voz, para as vozes silenciadas, para quem não tem voz na sociedade. Devemos compartilhar essas vozes, porque muitas são lições de vida. Essas histórias anônimas são uma lição de vida. E não voltamos a ser os mesmos depois delas. Creio que minha vida é muitíssimo mais rica por isso. Por que tive a chance de participar de experiências vitais que a mim não havia tocado (...). Delas se tira sempre uma riqueza humana. O impacto é também saber que para os protagonistas, esse filme os ajudou. Não é uma historia para seu ego. O protagonista tem que fazer parte de mim, tem que estar a meu lado, tem que sentir que não estou fazendo um filme dele, mas que nós juntos estamos fazendo um filme. Eu estou fazendo que com sua história seja compartilhada. (...) Para mim a parte fundamental do documentário é a parte humana e o impacto social da história. Eu acredito como Grierson, que fazer um documentário é como uma arma de transformação social muito forte e que justamente por isso, ele não tenha o lugar que teria na exibição normal nos cinemas. Os poderes, não gostam do documentário, porque ele toca nas feridas, nas suas garras. Mostra as problemáticas sociais que podem estar um pouco escondidas. As pessoas se identificam com coisas que não são exatamente seus problemas, mas que são histórias humanas que de alguma maneira, vêem nelas projetados seus problemas. Então, o documentário pode ser mobilizador, principalmente se chegar em muitos lugares. Em particular, meu filme ajudou a mudar a vida de muitas pessoas que não são somente soropositivo. Este era meu objetivo principal.”

Neste longo trecho, é possível constatar uma das premissas apontadas para uma investigação científica, ainda que estas não estivessem nas intenções de Belkis. Porém, no exercício documental visando eticamente evidenciar os contextos sociais, em sua lógica seja interna ou externa de relações, dilemas e conflitos, inevitavelmente são as mesmas que aparecem nos pressupostos e práticas científicos.

Seguindo ma mesma lógica, em seu depoimento Beto Novaes cita teses de doutorado sob sua orientação que se transformaram em documentário. Na medida em que sua convivência com a comunidade se ampliou e dialogou junto a projetos tanto de estudantes como o seu projeto de extensão com filmes, várias relações acadêmicas da universidade acerca de aproximação e afastamento com o objeto, ganharam sentidos radicalmente novos:

“ – foi uma evolução e ao mesmo tempo uma outra visão de ciência. Porque a gente vai ter tempo de ouvir as histórias filmadas e vai tendo tempo de refletir sobre seu trabalho dentro da academia. E esse processo de produção, sobretudo dos nossos primeiros documentários, nos aproximou muito ao sindicato. A partir disso, as liderança começaram mandar para Universidade cada vez mais novas demandas.”

Percebe-se nesse conjunto de experiências a constatação de que há uma relação simultânea entre o ato de produzir, problematizar, refletir e redefinir olhares sobre a realidade num processo contínuo e dialético de elaboração de saberes. Diante deles, pode-se indicar um segundo fator que parece provocar restrição acadêmica ao documentário: o exercício comparativo de conhecimentos. É prerrogativa da ciência que a simples apresentação do estudo de um objeto, não o torna fonte de informações plausíveis. Assim, é essencial a comparação com outros resultados de mesmo teor e temática, tanto entre teorias, como em experiências práticas. Nesses termos, vários aspectos do conhecimento a partir da prática e avaliações dos participantes que são ao mesmo tempo agentes e espectadores, ocorrem nos filmes.

A declaração de Mathias sobre o processo de pesquisa no seu filme indica isso:

” – fizemos uma filmagem mais profissional e depois levamos para o Brasil, para mestres de capoeira, mestres do candomblé e jongo. Mostramos tentando ver a reação das pessoas e foi muito interessante porque as pessoas se identificaram muito. É uma relação de familiaridade e por outro lado de distanciamento. E em Angola também foi interessante, porque as pessoas viam o berimbau, e diziam: - ah, um burumbumba, porque viam o arco musical deles. A reação de reconhecer, foi muito interessante e profunda. As pessoas acabaram se identificando com nosso projeto, com nossas propostas, com nossas perguntas. Entenderam porque a gente veio ali. O documentário foi um lugar de mediação e não de exposição. Levar para Angola, voltar para o Brasil, transitar com as imagens para favorecer esse diálogo de distanciamento e de reconhecimento, é uma das funções do documentário. O resultado mais forte, foi o das pessoas pensarem sua cultura, suas produções, mais do que o resultado do filme em si mesmo (...) Quero aprimorar o trabalho com essas lutas que descobrimos em Angola. Estamos tentando escrever mais. (...). Estamos trabalhando em artigos. A escrita mais acadêmica tem também um público mais abrangente. Fizemos não apenas uma documentação. Fizemos uma intervenção. Que às vezes é perigoso, porque pode dar errado. Havia uma intenção de provocar uma relação. A gente ficou muito entristecido, quando a gente entrevistava os mais velhos e eles diziam que ninguém mais queria fazer, continuar a tradição. A gente se sentia quase que obrigado a levantar essa bandeira”.

Percebe-se nesse discurso que a prática comparativa possui uma intenção de compromisso social. Revela a atividade da tradição como algo vivo nas relações contemporâneas, junto com seus conflitos e contradições, evidenciados no documentário. Suas imagens visualizam as tensões, os sentimentos dos protagonistas e não somente a leitura dos pesquisadores.

Num outro exercício comparativo ressaltando a importância do registro e das várias visualizações do documentário em diferentes culturas, se percebe a importância remetida à dinâmica do processo histórico, das lutas sociais e suas contextualizações, bem apontadas por Jonathan Warren:

“ – pra mim eu achei importante de contar essa história, porque tem relações dialéticas. O modelo de moderno aqui no Brasil parece que tem que estragar, desapropriar. Todo mundo quer progresso, democracia, sociedades justas, valores que todos querem. O problema é o formulário aqui. Tem gente que acha que a cultura do vale [Vale do Jequitinhonha] tinha que ser destruída para ter o progresso, mas eu acho o contrário. Tem que destruir algo da cultura para mudar, algo. Mas não tudo. Tem coisas do vale que são fundamentais para conseguir esses valores que a maioria quer. Não impor, destruir o ambiente, para que a gente fique rica? É o contrário, a destruição do meio ambiente deixa as pessoas mais pobres ainda. No Brasil, o vale é sempre visto como um vale de miséria, de pobreza, mas na verdade a submissão no país, existe no vale e deveria ter muitas comunidades assim. Queria fazer essa intervenção no Brasil e nos EUA. Criar outro modelo com meus alunos para conseguir ligações com pessoas em outra parte do mundo. (...) Para o público norte-americano precisa ter mais contexto p entender a história. Para isso, poderia ter texto ou uma pessoa contando isso dentro do filme, mas no final decidimos começar com dois parágrafos no início e só isso. Acho que por causa disso fica um pouco mais difícil entender muitos dos aspectos da história [do documentário produzido] se não tiver uma aula ou pessoas que sabem um pouquinho do Brasil ou países parecidos com o Brasil. Viram, gostaram (nos EUA), mas a reação é bem mais forte aqui no Brasil. A ligação emocional é forte. Por exemplo, o coronelismo. Para o norte-americano não há muito conhecimento dessas figuras. Fica difícil entender quais os desafios, o que foram as conquistas. É bem mais abstrato. Aqui é mais concreto. As pessoas entendem”.

São vários matizes da prática comparativa, mas em todos os pressupostos científicos estão presentes: localização e diversidade narrativa da história, especificidades culturais e de linguagem, clareza temática e de seus objetos de análise. Estes ocupam-se, entretanto, não somente com os dados objetivos observáveis, mas com as subjetividades, com o despertar dos olhares de alteridade e identidade que dialogam diante da experiência consciente e inconsciente da exibição do filme e da posterior oportunidade do debate. Também se detêm à percepção das sutilezas que motivam a visões cada vez mais atentas e detalhadas, elementos estes também pressupostos em qualquer ramo da ciência que geram inúmeros desdobramentos tanto no campo científico como para a sociedade em geral.

Para um último questionamento nesse breve recorte de possíveis elementos geradores de tensão frente ao jogo de legitimações entre documentário e pesquisa científica, torna-se pertinente transitar de suas questões analíticas internas para a dinâmica dos atores sociais que se associam em grupos de produção de conhecimento ora aliando-se ora divergindo sempre em função da defesa de suas ideias ou de seus grupos. Novamente o fator simbólico que determina a detenção do poder dessas práticas aparece concretamente entre o resultado dos trabalhos em forma escrita ou em forma de imagens. As observações de Warren contribuem nessa reflexão:

“ – eles privilegiam texto escrito e não textos visuais. É um preconceito no mundo acadêmico. (...) A realidade é essa. Quem quer entrar, deve entrar de olhos abertos. O mundo de artistas também é muito fechado. Meu primeiro documentário foi lançado em 1992. Se você não é deste mundo, eles fecham as portas. No Brasil tentei falar com pessoas que mexem com documentário e senti arrogância, me desdenharam. Chegaram a dizer que poderiam ajudar se eu tirasse coisas do filme que falavam do PT, por exemplo. Nas revistas acadêmicas tem mais expectativas muitas vezes que funcionam como censura. Dentro de um documentário, se pode ficar mais livre e dizer o que se quer, apesar de nunca sentir muita censura com meu trabalho escrito. Foi difícil, muitos não gostaram, mas nos Estados Unidos tivemos muitas possibilidades de publicar. A forma de escrita é diferente da visual. Isso cria possibilidades e fecha outras. A academia não sabe bem como avaliar este tipo de trabalho. Não é nem fator político. Normalmente o acadêmico faz livros, não filmes (risos), portanto: - vamos avaliar. É uma pena, normalmente toca muito mais pessoas. Felizmente, há um público maior utilizando essas formas. Poderia ajudar muito as disciplinas (...) É uma pena a restrição das formas de expressão. Não fomos ensinados a comunicar ideias. Só aprendemos a fazer a pesquisa e metodologias. A coisa é mais profunda, portanto. Acho que deveríamos pensar melhor nessas questões sobre comunicar melhor as ideias na aula e ao público em geral. Por isso acho que as disciplinas sociais e humanas, estão correndo perigo de serem cortadas. Mas, ao contrário, elas deveriam inspirar.”

Vemos nas observações pontos relacionados à dinâmica do jogo de campos de conhecimento que remete simultaneamente a estratégias ou a uma sistematização que ordena formas de poder acerca do que pode ser reconhecido oficialmente como saber. Nelas aparecem as esferas da cultura, da comunicação, da academia científica, as formas reconhecidas de conhecimento acadêmico, as vantagens comunicativas do uso do documentário tanto para o espectador quanto para o cotidiano do aprendizado. Esse exercício ocorre durante todo o processo de seu fazer-se: inicia-se em seus pressupostos, passa pelas disputas internas vinculadas a deliberações das instituições científicas e culmina no produto final. Durante esse trajeto narrado, permanecem as questões: O documentário não faz ciência? Seria este o problema? Por que a pesquisa traduzida em imagens recebe resistências de aceitação? seriam os dados de resultados analíticos? As forma como se problematizam fatores políticos no fazer da ciência provoca aversões? Há um tipo de documentário mais aceito como científico? Talvez não seja possível obter todas as respostas para estas questões.

Como foi visto no item anterior, durante longo período em vários países o documentário foi utilizado em diversos ramos do campo científico como modo legítimo de formação e difusão de inúmeros saberes. A busca pelo distanciamento com narrativa impessoal, em geral em off, teve uma produção considerável de filmes e contribuía para fornecer uma sensação de isenção de interesses e ideologias diante dos objetos. Seus resultados apareciam como verdades últimas, sobretudo para fortalecer a ideia de um Estado ocupado apenas com o bem comum e uma ciência desinteressada. Hoje constata-se que esta postura discursiva é uma ilusão, pois nenhum dos dois setores age puramente nessa perspectiva. Talvez a emergência do documentário tomando posição, fazendo questionamento político-social e constatando a pouca imparcialidade científica ao longo dos anos tenha desmascarado determinadas áreas, acuado outras que sentiram-se mais policiadas, tenha incomodado certos setores internos e externos à própria ciência percebendo seu potencial, isso pode ter levado a certas “cautelas” com imagens.

Entretanto, se esse conjunto de elementos deixa hoje a realização documental em situação periférica dentro do meio acadêmico, seria o caso de tornar sua prática em si, já um tema a ser investigado e pensar como age a ciência diante de seus temas. Em sua discussão sobre os usos sociais da ciência no campo científico, Bourdieu (2003) assinala questões ocupadas em discutir a dinâmica própria do campo científico, este compreendido como qualquer outro campo num espaço de disputas:

“um objeto de luta, tanto em sua representação quanto em sua realidade. (...) Um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo” e cujos agentes sociais inseridos na sua estrutura, encontram-se em posições que dependem do seu capital, desenvolvendo estratégias que dependem, em grande parte, dessas posições nos limites de suas disposições.” (BOURDIEU, 2003, p. 29).

Essas disposições implicam o lugar social de fala, de poder e de funções dentro da estrutura daqueles agentes que se movimentam nelas no sentido de atender interesses de suas práticas. O campo é um mundo social intermediário presente entre o conteúdo textual e o contexto social da produção de uma obra cultural. Possui sua autonomia, ainda que relativa diante do universo externo a ele, contém leis próprias que expandem ou limitam ações, conforme o jogo de forças para conservar ou transformar suas dinâmicas internas mantendo-se em luta com outros campos. Na ciência, ainda que usufruam de certo grau de autonomia os diferentes campos científicos recebem pressões externas e manifestam resistências que caracterizam sua autonomia, sobretudo com mecanismos de refração que seu microcosmo aciona retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou as demandas e imposições externas transfigurando-as, tendo condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas.

A posição que seus agentes (indivíduos ou instituições) ocupam na estrutura das relações objetivas, determina ou orienta o que eles podem e não podem fazer determinados pela distribuição e volume do capital científico que carregam. Como “as pesquisas dominantes definem num dado momento do tempo o conjunto dos objetos importantes, isto é, o conjunto das questões que importam para os pesquisadores” (BOURDIEU, 2003, p. 21-25), conforme a posição de influência de seus agentes inseridos na estrutura da distribuição do capital simbólico específico da ciência afirmados nela por atos de conhecimento e reconhecimento de pares concorrentes no interior do campo científico, valores, objetos e resultados que serão mais ou menos legitimados ou notados como parte integrante do conjunto de conhecimentos por juízes avaliadores decidem pela validade e grau de importância de um determinado estudo. Se nesse quadro, as ações revelam-se em imagens por um documentário, mas seus avaliadores não têm familiaridade e identificação ativas com esta linguagem, ainda que o pesquisador documentarista cumpra sua parte acadêmica tradicional com a publicação escrita de seus trabalhos, para o juiz avaliador, será o que basta. A outra parte imagética transforma-se em anexo.

Como “os campos são os lugares de relações de força que implicam tendências imanentes e probabilidades objetivas” e não se orientam totalmente ao acaso (BOURDIEU, 2003. p. 27), o jogo contínuo e mais “eficaz”, ao menos por parte da estrutura tradicionalmente já organizada para sua forma de produção escrita, não abre disposição suficiente para integrar e se integrar na linguagem audiovisual de maneira a tornar cotidiana também a imagem documental como narrativa primeira nos processos de investigação. Seus resultados aparecerão como complementos ou ilustrações haja vista os anos de acomodação dos próprios agentes no interior das estruturas em suas disposições. Se estas ocorrem diferentes das exigências do campo científico, o risco de deslocamento das regras recai negativamente sobre seus agentes. Uma das alternativas é “lutar com as forças do campo, resistir-lhes e, em vez de submeter suas disposições à estruturas, tentar modificar as estruturas em razão de suas disposições, para confortá-las às suas disposições” (BOURDIEU, 2003, p. 28-29.). considerando que no caso desta produção documental não tenha vindo de fora, de outros pressupostos de conhecimento que não sejam os próprios científicos. Ao contrário, o documentário surge deles como inerente às necessidades ao processo do objeto e das análises.

“ (...) os agentes sociais estão inseridos na estrutura e em posições que dependem do seu capital e desenvolvem estratégias que dependem, elas próprias, em grande parte, dessas posições nos limites de suas disposições”. (BOURDIEU, 2003, p. 29)

Nesse jogo, dentro da estruturas, agentes documentaristas que conseguem movimentar seu capital cientifico, podem criar estratégias que as transformem no sentido de maior flexibilidade para suas linguagens que saem do modelo vigente, ainda que a força contrária seja grande, afinal as pessoas que ocupam posições favorecidas na estrutura, tendem a conservá-las, sustentando também suas posições e disposições (trajetórias sociais) dentro do campo, mesmo dizendo que façam o discurso, ilusório, de um conhecimento, dito como um interesse desinteressado. Como suas leis encontram-se em constante mutação, há possibilidades de mudanças, porém quanto mais o campo cientifico for autônomo, mas a busca pelas leis que ele cria, serão acionadas, fazendo-se valer sua autoridade e sanções em nome de suas pressões lógicas a partir do que mais domina: argumentos, provas e refutações, teses e hipóteses, que são seus princípios de verificação (BOURDIEU, 2003, p. 32-33).

Como fazer o documentário pertencer também a esse rol de critérios avaliativos é um dos desafios dos intelectuais que com ele difundem seus trabalhos. São nesses parâmetros que se encontram os métodos comuns de validação, o contrato tácito, político e cognitivo que inaugura e dirige a objetivação e legitimação dos trabalhos realizados com suas representações ditas “realistas” e a localização de julgamentos ou o poder sobre eles fundados “numa ‘realidade’ dotada de todos os meios de impor seu veredicto mediante o arsenal de métodos, instrumentos e técnicas de experimentação coletivamente acumulados e coletivamente empregados” (BOURDIEU, 2003, p. 33)

Nesse aspecto, tanto o poder institucionalizado politicamente como o prestigio pessoal, ambos constituintes do capital científico, presentes nas mãos dos que ocupam posições reconhecidas no conjunto de pares ou da fração mais consagrada dos membros desse campo, jogam como elementos fundamentais para as necessidades de diálogo e negociação, com a pesquisa que utiliza a imagem como fonte primária e secundária para revelar o trabalho desenvolvido. A própria lógica interna do campo que inventa e traz para si as necessidades de suas lutas práticas e a demanda social própria de seu interior pode ampliar-se para novos intuitos que considerem o documentário como parte de seus pressupostos e ações (BOURDIEU, 2003, p. 47-48). Segue daí o questionamento sobre a legitimidade para julgar e saber quem será juiz dos juízes.

“A adequação e a justiça da escolha dos juízes, ou, para avançar um pouco, da escolha daqueles que têm condições de instituí-los como tais (compor as comissões examinadoras) e de fixar, mediante as comissões que eles instituem os critérios segundo os quais eles deverão julgar” (BOURDIEU, 2003, p. 63).

Em outras palavras, o horizonte mostra um árduo trabalho já desenvolvido há tempos, e ainda em processo, de intelectuais realizadores de documentários que dependem da busca pelos investimentos para suas produções, reconhecimento dentro e fora do campo cientifico e articulações contínuas para mostrar com diferentes maneiras a importância, eficácia e legitimidade dessas atividades. Aqui se vê como disposições políticas e culturais caminham juntas, mesmo que em permanente tensão. Somente no exercício constante dessas experiência pode-se vislumbrar uma mudança de panorama no campo cientifico, considerando todos os fatores que essa dinâmica apontada aqui, apresenta.

Hoje, com tantos processos de quebra de hierarquias e organização diversificada do conhecimento de maneira mais horizontalizada, talvez estes campos dimensionados por Bourdieu também estejam se configurando de novas formas, mas o lugar do documentário no meio acadêmico continua estreito.

Na procura de questionar e visualizar novos caminhos nessa prática científica, comunga-se aqui com elementos levantados pela dimensão epistemológica de Boaventura Santos (2008) acerca do paradigma de um “conhecimento prudente, para uma vida decente”, para ele, a exigência de um paradigma social que priorize o ser humano deve ser o eixo de uma ciência que busca renovar-se. O autor acredita ser o paradigma emergente, a construção de um conhecimento não dualista que se funda na superação das distinções antes vistas como insubstituíveis entre natureza/ cultura, observador/ observado, subjetivo/ objetivo, individual/ coletivo, apenas, entre outros, para situá-los dentro dessa reflexão, em que ocorre um relativo colapso nas distinções disciplinares dicotômicas (SANTOS, 2008, p. 64) tão sustentadas, como visto, pelos campos científicos em seus mais díspares interesses. O sentido e o conteúdo da importância de superação desse modelo aparece nos termos das ciências sociais que hoje são referência para ciências naturais e econômicas, quebrando cada vez mais uma visão mecanicista metodológica (SANTOS, 2008, p. 68-69). Também, o reconhecimento cada mais amplo de que a cultura influencia todas as relações e construções sociais, tem provocado a mudança de eixo cognitivo, inclusive nas humanidades.

É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. Esses efeitos são sobretudo visíveis no domínio das ciências aplicadas”. (SANTOS, 2008, p. 74)

Entretanto, ainda que haja consciência desse quadro, as medidas propostas para correções acabam em geral por reproduzi-lo de outra forma.

“Criam-se novas disciplinas para resolver os problemas produzidos pelas antigas e por essa via reproduz-se o mesmo modelo de cientificidade. (...) No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal de que fala Wigner ou a totalidade indivisa de que fala Bohm. Mas sendo total, é também local. Constitui-se em redor de temas que em dado momento são adoptados por grupos sociais concretos como projectos de vida locais. (...) Ao contrário do que sucede no paradigma actual, o conhecimento avança à medida que o seu objecto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces. Mas sendo local, o conhecimento pós-moderno é também total porque reconstitui os projectos cognitivos locais, salientando-lhes a sua exemplaridade (...). A ciência do paradigma emergente, sendo, como deixei dito acima, assumidamente analógica, é também assumidamente tradutora, ou seja, incentiva os conceitos e as teorias desenvolvidos localmente a emigrarem para outros lugares cognitivos, de modo a poderem ser utilizados fora do seu contexto de origem. Este procedimento, que é reprimido por uma forma de conhecimento que concebe através da operacionalização e generaliza através da quantidade e da uniformização, será normal numa forma de conhecimento que concebe através da imaginação e generaliza através da qualidade e da exemplaridade.” (SANTOS, 2008, p. 75-76)

Um conhecimento produzido sobre condições de possibilidades da ação humana projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local constituindo-se a partir de uma pluralidade metodológica.

“Cada método é uma linguagem e a realidade responde na língua em que é perguntada. Só uma constelação de métodos pode captar o silêncio que persiste entre cada língua que pergunta. Numa fase de revolução científica como a que atravessamos, essa pluralidade de métodos só é possível mediante transgressão metodológica. Sendo certo que cada método só esclarece o que lhe convém (...), a inovação científica consiste em inventar contextos persuasivos que conduzam à aplicação dos métodos fora do seu habitat natural. (...) A tolerância discursiva é o outro lado da pluralidade metodológica. Na fase de transição em que nos encontramos são já visíveis fortes sinais deste processo de fusão de estilos, de interpenetrações entre cânones de escrita. (SANTOS, 2008, p.77-79) (...) todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real.” (SANTOS, 2008, p. 83)

Essas perspectivas apontam claramente a potencialidade do documentário como fomentador desse processo, tornando mais perceptível os diálogos possíveis e pertinentes das abordagens e suas produções em diferentes metodologias. Distintamente do que fizeram os ingleses, apenas para se ater à referência apresentada nessa discussão, que separavam os campos de conhecimento e com grande distanciamento narrativo mostravam nos documentários suas investigações e descobertas, nos perfis dos realizadores vistos no item anterior, verifica-se a intercambialidade de assuntos, problematização integrada de análises e o envolvimento dos pesquisadores com o objeto.

No olhar integrador de Edgar Morin (2011), que segue em sintonia com Boaventura Santos, sua proposta de religar a ciência e os cidadãos, passa pela dimensão de sair do processo de atomização nos quais todos estamos mergulhados nas nossas formas de relações sociais e produção de conhecimento, para uma dimensão comunitária. Verifica que os indivíduos, membros da sociedade, por serem livres podem desenvolver inúmeras aptidões criativas, dentre elas uma solidariedade que permita que “a liberdade não seja criminosa, que cada um não se entregue livremente à agressão, à dominação do outro” (MORIN, 2011, p. 49-50). Todo conhecimento distingue e associa.

“ temos essa dupla qualidade reunida e qualquer predominância de um desses aspectos sobre o outro leva a um empobrecimento e a uma mutilação do conhecimento. Logo, o conhecimento tem necessidade de reunir (...) um conhecimento que não seja capaz de religações seria um conhecimento insuficiente” (MORIN, 2011, p. 50)

Para ele, a cultura possui essa propriedade de contextualizar e globalizar a variedade de conhecimentos e os exercícios mentais dela originados, mas esta encontra-se compartimentalizada. Então, é necessário examinar quais são os elos de ligação entre as coisas separadas com o propósito de religa-las.

“É preciso religar as duas culturas, a chamada humanista (a literatura, as artes, a filosofia) e a científica. (...) a cultura humanística está empobrecida porque ela não conta mais com o grão dos conhecimentos para colocar em seu moinho, pois esses conhecimentos permanecem herméticos, fechados nas disciplinas científicas e mesmo nos bancos de dados. Em contrapartida, o mundo da cultura científica está privado da possibilidade de reflexão, de refletir sobre o que ele faz, sobre o sentido incontestavelmente humano, político e social de seu desenvolvimento (...) O verdadeiro problema (de reforma do pensamento) é que nós aprendemos muito bem a separar. É melhor reaprender a religar (...) O conhecimento deve possuir, atualmente, instrumentos, conceitos fundamentais que permitam religar” (MORIN, 2011, p. 50-52)

Trabalhos datados de final da década de 1980, ambos possuem em comum a perspectiva da necessidade de mudança no trato do conhecimento, da inclusão horizontalizada dos saberes já em voga e emergentes há mais de 30 anos. Em tom que acena para a formulação apresentada por Bourdieu, mostrando que dentro do campo científico, novos habitus e forças se movimentavam, de lá para cá, o jogo continua. E diante do debate apresentado aqui, percebe-se o quão pertinente e dialogável é o documentário nesse contexto como produtor de conhecimento que responde metodologicamente às proposições de Boaventura Santos e Edgar Morin (ele mesmo, junto a Jean Rouch, realizador de um documentário visionário em 1961: Chronique d’un été) ao problematizar em sua própria elaboração teórico-prática, desde o processo que mescla a escrita, a experiência humana com os “objetos”, a formulação e o resultado final do filme, até posteriormente dialógico com o público, como pôde ser visto nas entrevistas pontuadas no item anterior.

Em obra posterior, abrindo o século XXI, Morin em 2000, aprofunda essa discussão sendo diretamente propositivo ao defender o que chama dos sete saberes: O conhecimento, O conhecimento pertinente, A condição humana, A compreensão humana, A incerteza, A era planetária e a Antropoética. Nesse debate apresenta três princípios para se reaprender o que já dizia sobre a religação, uma reaprendizagem do pensamento: 1- o circuito recursivo ou autoprodutivo que rompe com a causalidade linear, ou seja, entender que tudo é um processo no qual efeitos e produtos geram sua causação e reprodução, inclusive nós mesmos, 2 – relação dialógica com a vida, reconhecendo-se que em certos momento é preciso juntar princípios, ideias, afrontar realidades profundas que unem verdades aparentemente contraditórias, 3 – pensamento hologramático onde a parte está no todo, mas este está na parte. “A sociedade, entendida como um todo, também se encontra em nosso próprio interior, porque somos portadores de sua linguagem e de sua cultura” (MORIN, 2002, p. 63-65).

Seguimos um paradigma de disjunção e redução, frente ao que sugere Morin, a distinção, conjunção e a implicação mútua, exercício que cabe ao ensino muito mais do que aprender a religar, simultaneamente aprender a problematizar. Por meio da laicidade, o autor entende que precisamos reinterrogar a crença na ciência, na técnica e no progresso, não negando-os, mas reconhecendo neles a marca humana em suas ambivalências e formas dominadoras que os geram. (MORIN, 2002, p. 66-67). Novamente, o papel e a prática do documentário aparecem como pertinentes, inclusive para problematizar dentro de seu suporte e abordagens, essas questões levantadas pelo autor. Há na base imagética de maneira mais fluída e direta a possibilidade da reação imediata e também reflexiva sobre o discurso do filme que apresenta em suas imagens um conjunto simultâneo de linguagens, entre falas de depoimentos, objetos significativos nas narrativas, cenas históricas de diferentes tempos, memórias, deslocamentos espaciais, questionamentos dos pesquisadores-realizadores que favorecem novas formas de apropriação, reflexão sobre as abordagens e com isso novas práticas de conhecimento.

Nessa linha, Edward Said pensa o sentido e o lugar das representações como formas dialógicas que sintetizam, por exemplo, num mesmo filme, várias narrativas e percepções sociais. Estas que porém, precisam estar sempre ancoradas de volta à realidade que as produz e não como verdades inquestionáveis. Há portanto, necessidades urgentes de se produzir conexões não apenas como “objetivas”, mas como alternativas no sentido de evidenciar as dependências da intervenção humana e sua dinâmica nos processos. Para isso, cita Raymond Williams, sobre “a necessidade de desaprender o modo inerentemente dominador: o tipo de tom perturbador, intimidador e autoritário que hoje está presente mesmo nos Estudos Culturais. Devemos questionar isso tudo, encontrar uma abordagem mais crítica, engajada, interativa e até dialógica (...) deveríamos todos sentir é o horror diante de ortodoxias sistemáticas e dogmáticas (...)”(WILLIAMS, 2011, p. 216-2018)

No mesmo debate, Raymond Williams ao questionar o que chama de “cânone literário”, mostra que havia provavelmente de modo inconsciente, algo de inquestionável em certas obras literárias que impedia fazer nelas qualquer interpretação ou análise alternativa de suas representações bloqueando outros tipos de abordagem sobre elas. O desafio que vê então para se pensar a leitura, passa pelas condições sob as quais pode-se investigar de maneira analítica a obra extraindo-se dela as relações entre sua composição precisa e as condições de sua produção, portanto, não somente sua ideologia ou condições gerais da autoria. Trabalho especifico a que se dedicam os Estudos Culturais. A questão é saber o tipo de caráter literário, sua especificidade, como as formas são produzidas, como certas negações e ausências podem ser identificadas dentro da estrutura social e histórica. Nesse método busca-se objetivar como mesmo no detalhe da composição, uma certa estrutura social e histórica se revela e se inter-relacionam (WILLIAMS, 2011, p. 219-222)

Ainda que se trate do campo literário, Raymond Williams, também estudioso do cinema e das mídias em geral, apresenta um método, que junto a Said e os outros autores aqui citados, dialoga mais profundamente na relação intrínseca entre obra, contexto, autor e todo processo de produção imbrincado em suas relações sociais, que auxilia em alternativas de confluir diversas formas de elaboração de conhecimento, considerando-se que o campo científico está em sua tessitura, seja como forma de poder tanto político, financeiro como intelectual. Nesse âmbito, o documentário aparece como ferramenta plausível para o exercício desses elementos, por apresentar em sua dinâmica modos de leitura diferenciada dos objetos e possibilidades de leituras comparadas sob os aspectos apresentados criticamente por estes últimos autores.

Percebe-se assim, que nesse quadro as esferas de poder, o jogo de posições e análises se evidenciam e ainda que hajam resistências, a própria trajetória do campo científico apresentada aqui nesses autores, demonstra os embates e a busca de alternativas para tornar mais orgânica, democrática e participativa a criação e o acesso aos diversos saberes, dos quais o documentário tem contribuição expressiva, podendo se ampliar na medida em que veja reconhecidas em sua prática sua cientificidade e comunicabilidade enquanto veículo produtor e difusor das pesquisas. Pode-se dizer, diante da ditadura da escrita, que o documentário escreve em imagens e não com imagens, em outras palavras, sua grafia crítica está em todo percurso de sua composição - considerando-se os elementos apresentados pelos autores já incorporados aqui como pressupostos -, e não como recurso apenas para narrar fatos.

Considerações finais

Com mais indagações do que repostas, essa reflexão permanece abrindo debates. Dentre eles, olhando os relatos e as ponderações realizadas, vale dizer que: o documentário não problematiza somente os fatos, faz também uma problematização do conhecimento adquirido e construído sobre ele. Posibilita inúmeras interpretações e reinterpretações que reelaboram continuamente a noção de conhecimento apreendido enriquecendo assim, não somente os dados, mas as leituras, após as consecutivas inclusões de novas ideias e observações. Nesse patamar, marca seu caráter como permanente dado sociológico num mundo marcado pela imagem como veículo de práticas culturais.

Muitas vezes a imagem é tratada como mais sujeita à manipulação ideológica do que um texto escrito, mas sabe-se na verdade que os dois recursos estão sujeitos a isso. O documentário não é a salvação para os dilemas e mistérios do conhecimento, mas uma ferramenta dialógica que precisa ser mais percebida, respeitada e incorporada no fazer acadêmico, em lugar de ser subestimado ou subutilizado como eventualmente ocorre. Seu lugar como exercício e registro da memória, da diversidade cultural e social, como mediador que fomenta redes de solidariedade o revelam como elemento claro que auxilia num avanço qualitativo cultural no sentido de possibilidades de apropriação e utilização. Jacques Rancière ao apontar sua vocação para o real, o vislumbra com instrumento mais livre para reflexões do que outras formas de cinema. Por estar liberado das normas clássicas de verossimilhança, ele:

“Pode melhor do que o cinema dito de ficção, jogar com as concordâncias e discordâncias entre vozes narrativas e séries de imagens de épocas, de proveniência e de significância variáveis. Ele pode unir o poder de impressão, o poder de palavra que nasce do encontro da mudez da máquina e do silêncio das coisas com o poder da montagem (...)” (RANCIÈRE, 2013, 162-163)

Nesse sentido, como já apontado anteriormente, a inclusão intencional de trechos das entrevistas procurou demonstrar no próprio corpo dos discursos, as preocupações teóricas dos argumentos e intenções do texto a partir da própria experiência dos autores que produziram seus documentários, mostrando nas entrelinhas de seus discursos a presença de pressupostos conceituais ou regras de exercício do conhecimento existentes no cotidiano das práticas do campo cientifico que também aparecem difusas na vida comum das pessoas. No documentário depositam-se memórias simultaneamente e seu registro desdobra-se em vários significados delas. Não somente da narrativa contada, como o próprio documentário registro de sua época, de seu contexto e da representação que escolheu para fazer-se representado tanto cultural, politica, social como ideologicamente, inclusive em seu suporte físico como material registrado num material tecnológico, ainda que isso tenda a desaparecer nessa expansão virtual. Os primeiros filmes preservados oficialmente na Inglaterra foram aqueles do entre guerras de 1914-1918, guardados por segurança no museu imperial da guerra na Inglaterra. Os registros britânicos não incluíam a considerável cobertura de fatos franceses e norte-americanos.” (CUMBERLEGE, 1947, p. 144)

“O dever de memória constantemente ritmada pela voz, diz que não se deve esquecer essa imagem, que é preciso associá-la com tal outra, olhá-la mais de perto, reler o que ela oferece à leitura (...) . O documentário não para de explorar essas remessas de uma imagem, ou de uma montagem de imagem – que deveriam falar por si – para a autoridade de uma voz que, ao garantir o sentido, enfraquece a imagem” (RANCIÈRE, 2013, p. 168)

Esse constante exercício com a imagem nos documentários citados aqui como parâmetros da pratica cientifica e sua pertinência, proporciona significado especial quanto a essa memória de imagens. Ela só tem sentido se for viva, se responder à dinâmica social de seus espectadores e protagonistas. A história oral que neles se apresenta é o lugar do documentário como mediação, fomentador dessa prática. Representações que demonstram a forma de movimentar a linguagem para que as pessoas tenham novas dimensões sobre o vivido. O próprio registro a partir da fala dos vários protagonistas sensibiliza de uma maneira peculiar diferentes formas de percepção e desperta diversos elementos de busca de memória que possivelmente não haviam sido acionados anteriormente. Esse leque de possibilidades é a tarefa permanente do ato de documentar.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, M.C; CARVALHO, E. A. (orgs.) 2002. Edgar Morin – Educação e complexidade; os setes saberes e outros ensaios. São Paulo: Cortez.

BENJAMIN, Walter. 2011. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas cidades; Editora 34

BERNARDET, Jean-Claude. 1985. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Brasiliense.

BOURDIEU, Pierre. 2003. Os usos da ciência – por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora da UNESP.

CARMONA, Nileidys, Et al. 2010. El testigo documental – Memorias del I encuentro de documentalistas-EICTV-2009. San Antonio de los Baños: Ediciones EICTV.

CUMBERLEGE, Geoffrey. 1947. The factual film. London, NY, Toronto: Oxford University press.

PENA-VEGA, A; ALMEIDA, C.R.S; PETRAGLIA, I. (orgs.). 2011. Edgar Morin: ética, cultura e educação. 4. ed. São Paulo: Cortez.

RANCIÈRE, Jacques. 2013. A fábula cinematográfica. Campinas, SP: Papirus.

SANTOS, Boaventura de Sousa. 2008. Um discurso sobre as ciências. 5. ed. - São Paulo : Cortez.

WILLIAMS, Raymond. 2007. Política do modernismo. São Paulo: Editora da UNESP.

Sites

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572019000100901

http://www.kinoforum.org.br/guia/festival

Filmografia

De baixo para cima (From the Botton up), 2015, EUA, Dir: Jonathan Warren.

Jogo de corpo, capoeira e ancestralidade, 2013, Reino Unido, Brasil, África do sul, Dir: Richard Pakleppa, Matthias Röhrig Assunção, Cinésio Feliciano.

O que eu conto do sertão é isso, 1978, Brasil, Dir: Beto Novaes.

Retorno ao país destruído, (Heimkehr ins zerrissene Land), 1997, Suiça, Dir: Marianne Pletscher.

Vivendo no limite (Viviendo al limite), 2004, Cuba, Dir: Belkis Vega Belmonte.

Cronologia das entrevistas para este trabalho

Mathias Röhrig Assunção. Colchester, Inglaterra. Julho de 2016.

Jonathan Warren. Natal, Brasil. Março de 2017.

Belkis Vega Belmonte. San Antonio de los Baños, Cuba. Novembro de 2018.

Marianne Pletscher. San Antonio de los Baños, Cuba. Novembro de 2018.

José Roberto P. Novaes (Beto Novaes), Rio de Janeiro, Brasil. Janeiro de 2019.