Abstract
The films of Edgar Pêra are, more often than not, characterized as marginal in the Portuguese context. Responsible for more than a hundred projects in different media (Cinema, Television, Comics and Transmedia) for three decades, Pêra has been active working on several projects that, in a certain way, make him “an artist who cannot be defined by way of facile comparisons and generalisations, explained through simple similes, boxed into this genre or that aesthetic” (Moller, 2019). In Pêra’s films, the screen is usually invaded by a frenetic visual panoply that combines both the serious and the comic, the ridicule and the grotesque, as well as the documentary and the fictional all in a seemingly unique anarchic movement. This is the case of Delírio in Las Vedras (2017), a film commissioned by the Torres Vedras Council where the director films Carnival – and the carnivalesque – in a movement that blurs the distinction between the real and its altered state (the surreal?). From this exercise emerges a film that explores both the Torres Vedras’ Carnival within Portuguese culture, but also how this tradition is used as a place of inquiry of the national culture. Taking this into account, the purpose of this study is to look into how Edgar Pêra uses Delírio in Las Vedras – both a documentary and a fiction film – and the Carnival as a transgressive space, both geographic and filmic.
Keywords:Edgar Pêra, Fiction, Reality, Carnival, Torres Vedras.
“O retrato de um país em mutação é, no cinema de Edgar Pêra, povoado por mutantes.”
António Preto (2017)
Introdução
O presente trabalho pretende explorar, por um lado, o cinema de pequenas nações, como é o caso do Cinema Português e, dentro desse contexto e tendo em conta algumas das suas características, olhar para um caso particular, que é o filme Delírio em Las Vedras do realizador português Edgar Pêra. Para tal, a primeira parte deste estudo centrar-se-á na ideia de cinema de pequenas nações, de acordo com Hjort e Petrie (2007) no livro The Cinema of Small Nations, tentando-a ligar ao Cinema Português. Seguidamente, será feita uma breve reflexão sobre o cinema de Edgar Pêra para, depois, se proceder à análise do filme Delírio em Las Vedras (2016). Esta análise terá como propósito maior o tentar compreender o modo como o filme é o território usado por Pêra para examinar alguns aspectos da cultura portuguesa, mas também, e ao mesmo tempo, para usar o Carnaval enquanto espaço transgressivo quer geográfico, quer fílmico, uma vez que este reflecte o jogo entre ficção e realidade próprio do cinema experimental de Pêra.
Sobre o Cinema de Pequenas Nações
O conceito de “cinema de pequenas nações” é algo complexo e tem sido alvo de várias abordagens por parte de teóricos como Mette Hjort e Duncan Petrie (2007) ou Janelle Blankenships e Tobias Nga (eds., 2015), pois como notam Bray e Packer (1993: xix), “[...] small states are not simply scaled down versions of larger states but instead have an ecology of their own”. Paralelamente, e de acordo com Hjort e Petrie, o cinema de pequenas nações tem sido relevante para a promoção de produções de alguns países, uma vez que cria novas oportunidades para os cineastas e para os interessados em promover os filmes nacionais: “national categories continue to be invoked with reference to sites of production, exhibition, acquiescence, resistance or some form of transformation” (11).
Tendo em conta estas afirmações, uma definição potencial de cinema de pequenas nações, e que serve de algum modo o propósito deste estudo, está incluída em Film History: An Introduction, em que David Bordwell e Kristin Thompson (2003: 78), o descrevem como: “shot on location”, em que realizadores “frequently sought to differentiate their low-budget films from the more polished imported works by using national literature and history as sources for their stories”. Embora esta interpretação possa ser alvo de discussão, os autores também acrescentam que a estratégia dos realizadores incorpora, por exemplo, o que é “nacional”, bem como um olhar sobre as “paisagens locais”, o que é relevante uma vez que sublinha a importância do espaço (ou dos pequenos espaços).
Neste contexto, a nação e a identidade possuem um papel central no cinema das pequenas nações, contribuindo para nos ajudar a melhor entender certos elementos nacionais. Ao mesmo tempo, o cinema de pequenas nações não pode ser confinado unicamente ao território nacional, pois o seu propósito é também, e acima de tudo, atingir um estatuto e visibilidade internacionais.
Isto está directamente ligado ao que Hjort e Petrie examinam detalhadamente na introdução ao seu livro The Cinema of Small Nations, que é a evidência de uma grande diversidade cultural do cinema de pequenas nações que se reflecte também num impulso que é simultaneamente interno e externo, e que é comum a todas as indústrias cinematográficas deste tipo (2007: 12). Este impulso é, por vezes, fonte de tensão entre muitas vozes que, dado o escopo deste trabalho, não poderá ser analisado aqui.
Contudo, estas breves descrições e aproximações a este conceito podem, em parte, ser aplicadas ao Cinema Português. O debate sobre a importância, valor e esforço do Cinema Português é algo que ainda permanece e ainda há muito para escrever. Não obstante, se tivermos em consideração tanto as referências de Bordwell e Thompson, bem como Hjort e Pieter acerca do cinema de pequenas nações, o Cinema Português pode facilmente encaixar-se neste conceito, uma vez que como explica Mariana Liz, “[t]he cinema of small nations is often political, stylistically and/or in narrative terms, and contemporary Portuguese cinema is no exception” (2018: 10).
Como desenvolve a autora, o Cinema Português reflecte e explora a nação e as questões nacionais, privilegiando paisagens locais, elementos nacionais e “visões particulares de Portugal” (2018: 12). Existem, por isso, certas características do Cinema Português que não podem ser ignoradas quando relacionadas com o cinema de pequenas nações, como é o caso do seu “carácter artesanal e das suas limitações”, especialmente a nível da indústria cinematográfica, bem como uma “consistente resistência à homogeneidade cultural” (Liz, 2018: 5) que apontam, de certa forma, para a sua marginalidade e subversão. A nível estético, o Cinema Português também é caracterizado por uma certa proximidade a uma sensibilidade cinematográfica europeia, isto é, um cinema que privilegia a política do autor e a sua visão: o material híbrido – entre a ficção e o documentário – que é difícil de precisar, com a “sobreposição de registos” (Muñoz Férnandez e Villarmea Álvarez, 2007) e o foco em criações mais experimentais são algumns dos elementos mais comuns nas produções cinematográficas nacionais.
Isto é notório em particular nos últimos anos em que o Cinema Português tem sido território especialmente fértil, tal como explicitam Muñoz Fernandes e Villarmea Álvarez:
[Portuguese Cinema] has become a privileged meeting point for several aesthetic tendencies of contemporary cinema, establishing overlapping and random relationships with other filmmakers, without stopping looking at the present and past of their country of origin. Its main filmmakers are developing new ways of storytelling away from conventions and commercial dictations (2017)
De acordo com os autores, as três últimas gerações de cineastas portugueses – que trabalham em simultâneo, isto é, são contemporâneos uns dos outros – formam um grupo heterogéneo de artistas que difere em estilos, visões e influências. No entanto, são também artistas que estão interessados em realizar filmes que, partindo de um modelo “internacional” (Liz, 2018: 7), são globais no modo como comunicam com outros filmes espalhados pelo mundo.
Por isso, enquanto alguns realizadores estão obcecados com o retrato que fazem da nação, outros estão preocupados apenas em contar histórias que, embora tenham lugar em Portugal, são apresentadas “não como histórias Portuguesas, mas como histórias apenas”. (Liz, 2018: 7). Isto exemplifica como o Cinema Português exibe características do cinema das pequenas nações. Por um lado, possui um impulso interno no qual explora os temas e obsessões nacionais e, por outro, partindo de um modelo que é internacional, tenta atingir reconhecimento à escola global, revelando, por isso, também um impulso externo.
O Cinema Experimental de Edgar Pêra
Edgar Pêra, realizador de Delírio em Las Vedras, o filme brevemente analisado aqui, é um interessante caso neste contexto. Responsável por mais de cem projectos em diferentes meios (Cinema, Televisão, Banda Desenhada ou Transmedia) há mais de três décadas, Pêra tem trabalhado activamente em vários projectos que, de certa forma, fazem dele um artista como poucos, sendo um “verdadeiro original”, como expressou Olaf Moller no curto texto que dedicou ao realizador no site do Festival Internacional de Roterdão (Moller, 2019)1. A afirmação de Moller poderia ser encarada como um comentário geral a muitos dos realizadores portugueses: são diferentes, produzem obras de arte diversas que, na sua especificidade, diferem de todos as outras mas, na realidade, Pêra é um caso à margem do Cinema Português.
Embora o realizador tenha obtido reconhecimento internacional, não existem muitos estudos sobre os seus filmes ou sobre Pêra enquanto criador/artista quer em Português, quer noutra língua. Apesar das retrospectivas ao seu trabalho – Torres Vedras/Serralves ou Roterdão, por exemplo –, ele permanece verdadeiramente um caso periférico e curioso no Cinema Português.
Essa marginalidade, contudo, confere-lhe um interesse especial dentro do contexto já diverso do cinema nacional, o que deve ser caso para celebrar. Por exemplo, nas já mencionadas retrospectivas, António Preto (2017) – o curador da retrospectiva de Serralves – refere, no comentário que faz à exposição, que os trabalhos de Pêra:
reúne[m] um conjunto diversificado de materiais representativos da pluralidade de práticas, suportes, meios, e linguagens [da] sua obra. Manifestos, textos críticos, colaborações, com a imprensa, experiências gráficas desenvolvidas no cruzamento da banda desenhada, com o vídeo e fotonovela, cadernos e outros documentos configuram um universo singular e dão conta da peculiaridade dos interesses e métodos de trabalho do autor.
Tal como Preto continua a argumentar na introdução à exposição, os trabalhos de Pêra são testemunho de um artista que está interessado em reinventar o cinema através do uso e da exploração de diferentes linguagens. Os filmes do realizador são o resultado de um processo que privilegia vários paradoxos, contradições e experiências que se tornam num “[...] observatório privilegiado dos dilemas do nosso tempo, pondo a nu o pacto secreto que une e confunde ficção e realidade” (Preto, 2017). Dentro deste contexto, será importante sublinhar que o cinema de Edgar Pêra se pode caracterizar por este impulso interno/externo referido por Hjort e Pieter quando descrevem o cinema das pequenas nações.
Assim, por um lado, e de forma geral, os filmes de Pêra centram-se em temas e territórios que são tipicamente nacionais: a nostalgia, a música, espaços, lugares ou elementos que são populares na cultura portuguesa (Soares, 2014: 11/12) são recorrentes nos seus filmes. Este movimento interno permite ao realizador questionar a sua própria nação e, ao fazê-lo, cria um espaço de reflexão sobre a cultura nacional. Pêra trabalha maioritariamente dentro do território híbrido do documentário/ficção, o que lhe abre portas para uma certa “incerteza visual” que, por sua vez, se transforma num território cinematográfico de debate sobre o modo como Portugal é representado e o significado dessa representação. Um exemplo que ilustra bem o anteriormente referido é Movimentos Perpétuos – Cine-tributo a Carlos Paredes (2006) – um trabalho em “17 movimentos” – que examina simultaneamente a relação entre espaço, música, arquivo e a imagem em movimento, bem como a figura de Carlos Paredes, um conhecido músico nacional2.
Por outro lado, o impulso exterior do cinema de Pêra deriva da sua perspectiva experimental. Embora os seus filmes abordem a cultura portuguesa, eles também possuem uma linguagem que, não só pode ser ligada à tradição cinematográfica nacional, mas também a outros movimentos internacionais. Como tal, as criações cinematográficas de Pêra estão profundamente familiarizadas com outros meios, tendências estéticas e invenções artísticas (Soares, 2014: 11).
Caracterizados como “delírios” cinematográficos que exploram a “abstracção do material fílmico”, por estarem centrados em diferentes linguagens e meios, os filmes de Pêra entram num mundo “surreal” – no sentido em que jogam com a problemática entre a realidade e ficção, tal como Richardson sublinha, “um estado de sonho” (2006: 77) –, e exploram um cinema que se recusa a ser “ditado pelo óbvio” (2006: 8).
Algumas destas características podem ser encontradas em quase todos os seus filmes, mas são mais evidentes no caso de A Cidade de Cassiano (1991), que o autor descreve como “cosmopolita e controverso”, ou Manual de Evasão Lx 94 (1994), uma experiência sobre o tempo, devaneio urbano e extrapolações filosóficas, combinada com uma estética que é devedora dos primeiros filmes mudos e das “comédias à Portuguesa”. É também aqui que são notórias outra das grandes características do realizador, que é o tom lúdico e burlesco dos seus filmes por via das personagens que cria.
Esta multiplicidade e variação de técnicas e linguagens mereceu-lhe reconhecimento internacional, como aconteceu, por exemplo, em 2006, ao vencer o prémio Pasolini ou quando colaborou em 3X3D (2013), um filme antológico com Jean-Luc Godard e Peter Greenway, no qual os realizadores exploravam a história da cidade de Guimarães em 3D. Cinesapiens, o segmento dirigido por Edgar Pêra foi o primeiro filme feito em 3D em Portugal.
Para além disso, as suas últimas criações também estrearam no estrangeiro: O Barão (2011) e o Espectador Espantado (2016) em Roterdão; Lisbon Revisited em Locarno (2014) e Caminhos Magnétykos (2018) em São Paulo. Este reconhecimento fora do contexto nacional comprova aquilo que Mariana Liz defende em Portugal’s Global Cinema (2018: 2), ao referir que o cinema Português tem visibilidade tanto nos mercados internacionais como nos diferentes fluxos culturais.
O Carnaval Segundo Edgar Pêra: Delírio em Las Vedras
O filme Delírio em Las Vedras flutua entre este movimento interno e externo, anteriormente referido, pois reflecte, por um lado, e como nota Aching (2002: 4), um desejo em produzir momentos de visibilidade para assuntos e ideias particulares – neste caso directamente relacionados com a cultura portuguesa – e, por outro, continua as experiências cinematográficas que são consistentes com o trabalho de Pêra, filmes que exploram o mundo surreal, abrupto e burlesco como forma de transcender o real.
Comissionado pela Câmara Municipal de Torres Vedras, uma cidade portuguesa perto de Lisboa, Delírio em Las Vedras era suposto ser um documentário sobre o famoso carnaval de Torres Vedras. Contudo, e como é comum nos filmes de Edgar Pêra, o ecrã foi invadido por uma panóplia visual que combina o sério com o cómico, o ridículo com o grotesco, bem como o documentário com o ficcional, tudo num único movimento anárquico que captura visualmente o espírito do carnaval de Torres Vedras.
Em Delírio em Las Vedras Pêra filma o Carnaval – e o carnavalesco – para criar um filme que “surge do cruzamento do real surreal encenado (o Carnaval de Torres Vedras) e o real ficcional espontâneo (os atores em interação com os participantes do Carnaval)” (Pêra, 2017: 276). A partir deste cruzamento emerge um filme que, não só explora a importância do carnaval de Torres Vedras no contexto da cultura portuguesa, mas também a forma como esta tradição é usada para questionar, troçar e satirizar essa mesma cultura.
O uso que Pêra faz do carnaval é um modo de olhar para um momento que, tal como Bakhtin menciona, “é organizado em torno do riso” (1984: 8) e, como acrescenta ainda Lynn E. Cohen (2011: 178), mostra um tempo em que estamos livres de restrições e normas sociais, o que permite a participantes (mas também a espectadores) “quebrar barreiras e eliminar as desigualdades de poder e hierarquias”. Relativamente a este projecto, e ao carnaval de Torres, Pêra chega mesmo a afirmar que:
O Carnaval de Torres Vedras distingue-se de outros pela sua proporção épica, que faz diluir fronteiras entre participantes e espectadores do Carnaval. Todos se mascaram, pelo que os espectadores dos cortejos carnavalescos fazem também parte do espectáculo. Para o forasteiro que nunca assistiu ao Carnaval de Torres, o espanto nasce dessa ausência de fronteiras delimitadas, do grau de surrealidade e transgressão que a realidade carnavalesca tem. (2017: 276)
Delírio em Las Vedras nasce também desta vontade de facilitar e mostrar a cultura nacional para consumo – o carnaval de Torres Vedras é internacionalmente conhecido; é também “o carnaval mais português de todos” – e, paralelamente, de conseguir captar o “espanto da surrealidade do quotidiano carnavalesco” (Pêra, 2017: 13) o que lhe permite explorar as tensões políticas, económicas e sociais do seu país.
Assim, e ainda segundo o realizador (2017: 276), para o estrangeiro que nunca visitou o carnaval de Torres Vedras, o sentimento de espanto surge através da ausência de fronteiras e da surrealidade e transgressão que é apenas possível pela realidade carnavalesca. Já para os participantes nacionais, esta é uma oportunidade única para satirizar a sua própria cultura quebrando com as barreiras existentes da realidade por via do excesso. Pêra consegue registar tudo isto através da utilização de uma câmara que “assume o papel de testemunha de uma realidade extraordinária e transgressora” (ibidem), mas também contribui para um ambiente muito particular ao combinar actores reais com os participantes do carnaval.
Deste modo, e como mencionando anteriormente, Delírio em Las Vedras torna-se um objecto que não é estanque e que é difícil de definir. Por um lado, assume uma função documental trabalhada a partir do registo de imagens do carnaval de Torres Vedras e, por outro, assume uma função ficcional porque interfere no documental com a presença dos actores contratados para participar no filme que, no entanto, interagem de forma espontânea e natural com os primeiros. De certa forma, este objecto híbrido poderia até ser classificado de mockumentary pois, como Cynthia J. Miller explica no seu livro sobre a história deste sub-género, este existe “in a place where social commentary, cultural critique, and the crisis of representation collide, where humor–whether in the form of blatant laughter or simply rueful shakes of the head–meets reflection” (2012: xi). O próprio realizador menciona a possibilidade do filme ser encarado como um mockumentary, mas recusa em parte esse dado, uma vez que, no filme, tudo é espontâneo e encenado ao mesmo tempo.
Assim, Pêra está interessado em explorar a forma como a diferença entre espectadores, actores e participantes é lentamente diluída e, simultaneamente, como é que essa diluição acontece na esfera da paródia e da sátira. Em primeiro lugar, o realizador parodia os formatos televisivos – com os actores a interpretar os papéis de repórteres televisivos para um canal de televisão português – “Gosma TV”3, um canal punk que promove a anarquia – e, em segundo lugar, satiriza os conteúdos que são apresentados. É também neste movimento de paródia e sátira que actores e participantes possuem um papel relevante. Os primeiros interagem com os segundos num modo em que a sua improvisação se torna excesso de representação. Os segundos incorrem nesse excesso por estarem livres das restrições diárias, entrando numa realidade alternativa que se alimenta da imaginação.
O corso carnavalesco é, assim, composto pelos actores e participantes que, pelo seu excesso, comentam a cultura portuguesa e os seus intervenientes. De um lado a “Gosma TV” e aqueles que a acompanham e, de outro, as “matrafonas”, as caricaturas políticas, as mensagens e críticas sociais. Neste contexto, tanto actores como participantes co-existem no mesmo plano, que deriva da alternância entre os estados naturais e artificiais, sendo que o realizador consegue atingir estes estados através de várias técnicas.
Como tal, o ambiente alucinatório e de sonho que prevalece desde logo no carnaval é aqui amplificado de diferentes modos pelo realizador: a nível do som, Delírio em Las Vedras é um filme que oscila entra a utilização do som artificial e natural. Enquanto o primeiro é importante para capturar o ambiente particular do carnaval, neste caso com canções compostas por Jorge Prendas4, o outro permite ao realizador sublinhar a sensação de delírio no filme ao capturar ruídos que “amplifica[m], altera[m] ou distorce[m] elementos da imagem” (Pêra, 2017: 221).
A forma como a câmara captura todos os intervenientes do filme também tem um papel importante neste exercício. Pêra frequentemente reduz ou acelera a imagem de forma a reforçar o estado de sonho de quem participa e de quem vê o filme o que, por sua vez, contribui para diluir a barreira entre ficção e realidade. Isto é ainda intensificado pelo facto de Delírio em Las Vedras ter sido filmado em 3D, um formato que permite ao realizador “esculpir no espaço e ao mesmo tempo criar fronteiras dimensionais entre os elementos de um plano” (Pêra, 2017).
A combinação de tudo isto oferece-nos dois momentos que funcionam em simultâneo. O primeiro momento explora a ideia de um real que não é real, mas o real imaginado possível pela rebelião carnavalesca que permite aos participantes inverter os papéis de género, insistir no corpo grotesco enquanto ridícula políticos, o governo e outros temas importante na sociedade portuguesa. O segundo momento surge pela mão dos actores que, representando papéis ficcionais, num acto paródico e satírico que é um carnaval dentro de um carnaval, invadem a ideia do real dando origem a um interessante retrato da sociedade nacional e da forma como os seres humanos se comportam em determinados contextos5.
Ao mesmo tempo, Torres Vedras torna-se simultaneamente um microcosmo simbólico das aflições e características da sociedade portuguesa e um espaço onde distopia e utopia são possíveis. A cidade incorpora, assim, as dimensões nacionais e internacionais atribuídas ao cinema de pequenas nações: a sua narrativa aponta para um espaço e contexto específicos – a nação portuguesa –, mas também é uma história atractiva internacionalmente, pois não só o carnaval é universal, e como tal reconhecido e apreciado pelo mundo inteiro, como o filme de Pêra pode funcionar enquanto estudo do comportamento humano, um reality show (?) sobre como usamos máscaras e novas formas de representar e rir sobre nós próprios.
Conclusão: Um Cinema de Excessos
Para terminar, será importante salientar ainda um outro aspecto dentro do contexto internacional. O título do filme reporta ao contexto nacional, mas fá-lo também com uma sobreposição a uma referência internacional, Las Vegas. Para além disso, o autor adiciona a palavra “delírio”, que não só posiciona o filme no ambiente alucinatório, de sonho, e surreal já descrito anteriormente, como também é uma alusão directa a um filme com um título semelhante: Fear and Loathing in Las Vegas (Terry Gilliam, 1998), baseado no romance homónimo de Hunter S. Thompson, publicado em 1971. Filmado numa cidade que “incorpora o excesso” (Blair, 2012) a criação de Gilliam é uma viagem (literal e figurativa) sob a influência de substâncias psicotrópicas que os personagens consomem e que lhes permite ter uma perspectiva alterada da cidade. A acrescentar surge o facto de Las Vegas ser uma cidade profundamente ligada à artificialidade – dos casinos, dos hotéis e da própria vida – o que estabelece uma interessante rima com o período carnavalesco em Torres Vedras – em que essa mesma ideia de artifício reina – e com o filme de Pêra, também ele marcado pelo jogo entre real e o ficcional (artificial).
Deste modo, Fear and Loathing in Las Vegas e Delírio in Las Vedras possuem semelhanças na forma como jogam com realidade, ficção, artificialidade e as diferentes perspectivas. O filme de Gilliam leva o espectador num caminho impregnado de imagens grotescas que funcionam como referência às guerras em que os Estados Unidos estiveram envolvidos nos últimos anos do séc. XX (Birkenstein, Froula & Randell, 2013: 2), sendo também como um comentário mordaz à cultura Norte-Americana. Já o trabalho de Pêra parte da celebração carnavalesca para explorar a tensão entre tradição e transgressão6 e, com isso, “criar novas formas de representação da realidade, que ainda não foram imaginadas” (Pêra, 2017: 283).
Consequentemente, Torres Vedras é transformada no território cinematográfico experimental onde participantes, actores e espectadores atravessam o tecido social português ao mesmo tempo que realizam uma viagem entre a comédia e a tragédia humana.
Notas finais
1 No primeiro parágrafo do texto Moller (2019) escreve: “This much is so certain we could say it is scientifically proven: Edgar Pêra is the single greatest unknown master of modern Portuguese cinema. And no wonder, looking at how cliché-happy international culture film is, and always has been. Pêra is unlike any other filmmaker from that so fertile country at Europe’s westernmost reaches – and unlike anybody anywhere else at all, for that matter. Pêra is a genuine original. And if (film) culture dreads one thing – nowadays maybe even more than ever – then it’s an artist who cannot be defined by way of facile comparisons and generalisations, explained through simple similes, boxed into this genre or that aesthetic”.
2 A este propósito leia-se a análise do filme por Ana Isabel Soares (2014): “Edgar Pêra desenha ambientes documentados”. Rebeca: Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, ano 3, no. 6 (Dezembro), 1-11.
3 De notar, no entanto, que, enquanto canal “punk” que promove a anarquia, o nome do canal é irónico. A “Gosma TV” é aqui utilizada como símbolo dos canais televisivos que noticiam conteúdos cada vez mais superficiais e populares, mas também como forma de indicar um certo sentimento de náusea em relação a canais que procuram viver à conta de outros sem olhar a quaisquer meios. No geral, o realizador está preocupado com o vampirismo dos media. A este propósito leia-se a entrevista que Pêra dá a Paulo Portugal para a revista Insider: https://www.insider.pt/2017/02/11/edgar-pera-retratamos-o-vampirismo-e-egocentrismo-dos-media/
4 Edgar Pêra opta por substituir as canções brasileiras típicas do carnaval por música original composta por Jorge Prendas, conferindo ao filme uma dimensão ainda mais portuguesa.
5 Esta sobreposição complica ainda mais a caracterização do filme: é um documentário, um mockumentary ou um filme de ficção? Na entrevista dada a Paulo Portugal mencionada anteriormente na nota 2, o realizador comenta que no “festival de Roterdão por exemplo, os espectadores não se deram conta que o filme tinha actores à excepção do Nuno Melo e poucos mais. Para estes espectadores Delírio em Las Vedras é um documentário” (Pêra, 2017).
6 No texto “Edgar Pêra: Uma Retrospectiva”, publicado no âmbito da retrospectiva Serralves em Torres Vedras. Edgar Pêra: Uma Retrospectiva (2017), António Preto escreve que o cinema de Edgar Pêra se foca num país em mutação e que, nos filmes do realizador, Portugal está povoado por mutantes. Esta ideia de mutação é essencial para compreender Delírio em Las Vedras, uma vez que o filme está também ele marcado por vários tipos de mutação: do real para o ficcional, dos intervenientes que se transformam, dos actores que sofrem várias mutações, mas também a mutação da imagem e do som.
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