Abstract
In this paper, we focus on the resource of documentary film used to analyse and discuss the urban gentrification process in a city or district. Our proposal is provoking a reflection on how the cinema can bring light to the issue as well as searching possible solutions and ideas to avoid or mitigate the impact of this process that evicts citizens from their own neighbourghood or city.
At the same time, we are interested in the creative view of the filmmaker concerning this thematic and how the documentary cinema can approach aesthetically a crucial cultural and political moment of a neighbourghood. For this analysis we propose a comparison of the following documentaries that have portrayed recently processes of gentrification in European cities: “En Construcción” by José Luis Guerín (Spain, 2001), “Bye, Bye Barcelona”, by Eduardo Chibás Fernández (Spain, 2014) and “O que vai acontecer aqui?” by Left Hand Rotation (Spain/Portugal, 2019).
Keywords: City, Documentary Cinema, Urbanism, Gentrification, Urban space.
Introdução
O cinema documental teve um grande desenvolvimento nos últimos anos como forma de entretenimento, competindo com as mais recentes películas hollywoodianas, como pode ser atestado na recente onda de documentários retratando a vida de diversos artistas e grupos de rock. Entretanto, da mesma forma, o cinema documental tornou-se uma ferramenta de divulgação e debate de diversas problemáticas político sociais ao redor do mundo.
Neste contexto e tendo como recorte a urbe e seus problemas, buscamos neste artigo exemplificar como documentários com diferentes enfoques podem ser utilizados como ferramenta educativa e de denúncia sobre determinada questão, e ainda, tornarem-se uma peça artística de forte impacto estético.
A dinâmica das cidades, a sua forma física e orgânica tem desde sempre fascinado a produção artística, desde o teatro greco-romano. A cidade, suas questões e a forma como esta impacta a vida de seus habitantes tem sido tão importante quanto o enredo dramático proposto em uma peça ou filme. No caso desta análise específica, podemos dizer que o personagem em questão é a cidade e o processo em discussão é a gentrificação. O termo foi criado pela socióloga britânica Ruth Glass e se destinava a descrever e analisar transformações observadas em diversos bairros operários de Londres no início da década de 60. Originalmente, “gentrification”, proveniente de “gentry”, “pequena nobreza”. Em sua obra London: Aspects of Change (1964), a autora destaca processos de mudança do ambiente urbano, dos usos e significados de áreas antigas e/ou populares que apresentam sinais de degradação física, passando a atrair moradores de rendas mais elevadas devido ao seu custo menor e consequentemente atrativo financeiro.
Os “gentrificadores” (“gentrifiers”) mudam-se gradualmente para estas áreas, e a concentração destes novos moradores tende a provocar a valorização econômica da região, aumentando os valores do mercado imobiliário e o custo de vida no local, levando à expulsão dos antigos residentes - em geral, classes operárias e comunidades de imigrantes. Estes, impossibilitados de acompanhar a alta do custo de vida, transferem-se para outras áreas distantes da cidade, o que resulta na redução da diversidade social do bairro em questão.
Basicamente, dentro da lógica do mercado imobiliário, a gentrificação desconsidera e busca tornar invisível tudo o que seja matéria humana, não computável em seus cálculos. É neste contexto que o cinema documental busca captar exatamente esta essência, que se opõe aos números do processo gentrificador. A humanidade, os sentimentos dos personagens, explícitos ou não, contrapõem-se a ele, e desafiam o processo de gentrificação, estritamente baseado na lucratividade dos empreendimentos. O espaço urbano presencia a interação humana, esta teia suave, composta por diversas camadas. Os vários níveis de interação, a complexidade, esta receita mágica da urbanidade que é impossível criar em laboratório e folhas de “excell”.
Em 1965, Christopher Alexander, publicou o texto “A cidade não é uma árvore”, considerado como umas das mais relevantes críticas ao funcionalismo e à cidade modernista (Lamas, 1992; Salingaros, 2000, 2004). Esta análise também pode se aplicar ao processo gentrificador. Alexander (apud Lamas, 1992) diferencia os dois tipos de cidades - as projetadas, denominadas por ele tipo “árvore”, dado o seu sistema de galhos não conectados, onde não há entrelaçamento e as que crescem naturalmente, tipo “entrelaçado”, onde diversos níveis de interações sociais acontecem nos ambientes urbanos, através do entrelaçamento de habitação, trabalho e percursos. Para Alexander, não é possível projetar a cidade “entrelaçada” pois ela seria demasiado complexa para o cérebro humano, portanto as cidades projetadas, tipo “árvore”, onde as conexões são limitadas, resultam em locais com pouca ou nenhuma interação social.
Acrescente-se à questão da gentrificação provocada pelo mercado imobiliário, a gentrificação ocasionada pelo turismo massificado. Este é o tema recorrente dos documentários mais recentes analisados aqui.
A dramaturgia dos documentários, os seus “personagens”, sutilmente recriados, compõem o panorama do que está se passando. O cotidiano, seja acompanhado por meses de filmagens, ou composto de forma quase jornalística, atesta esta mudança.
Documentários e a cidade em transição: reflexões sobre gentrificação através de imagens e informações
Como base para estas reflexões foram selecionados três documentários focados nas cidades europeias de Barcelona e Lisboa. Numa escolha cronológica, os documentários também acompanham a ordem em que estas cidades foram afetadas pelo processo de gentrificação, seja por especulação imobiliária, pelo turismo massificado ou por ambos. São eles: “En Construcción” (Espanha, 2001), “Bye, Bye Barcelona”, (Espanha, 2014) e “O que vai acontecer aqui?” (Portugal/Espanha, 2019).
A escolha destes documentários baseia-se especificamente na variedade das linguagens cinematográficas. Podemos afirmar que “Bye, Bye Barcelona” e “O que vai acontecer aqui?” tenham um caráter mais objetivo e informativo, enquanto “En Construcción” captura o processo em sua essência, fornecendo o mínimo de dados e informações, deixando que o espectador, a partir das imagens apresentadas, formule as suas próprias reflexões e conclusões. Ou não. Que apenas desfrute a viagem, o passeio.
a) En Construcción
O documentário “En Construcción” foi desenvolvido durante o curso de master de Documental de Creación da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona, em uma colaboração entre alunos e professor. Ao misturar sem qualquer pudor, ficção e realidade, o realizador consegue a desejada imersão do telespectador no dia a dia do bairro.
O filme inicia com imagens em preto e branco do bairro Raval, também conhecido como bairro El Chino de Barcelona. Conhecemos de relance o seu passado boémio e operário, através das torres da antiga central elétrica e das imagens de bares e cafés em suas ruas estreitas. No final desta sequência de imagens, seguimos os passos de um marinheiro ébrio pelas ruas agitadas do bairro de outrora até chegarmos ao momento presente.
Logo ficamos sabendo que, aproveitando-se do estado deteriorado do bairro, o capital imobiliário encontra forma de revitalizá-lo, regenerá-lo. Somos apresentados à placa informativa de revitalização, onde vemos as novas obras planejadas para o bairro. Nove olhos desenhados em um muro, observam o espaço tomado por pombos enquanto ao fundo ouvimos o bater das estacas, preparando as fundações para o novo imóvel que irá ser construído. Surge o primeiro “personagem”, o senhor Atar que explica despretenciosamente a alguém na rua, de onde vem o investimento para a tal obra de revitalização. Em meio à demolição de diversos imóveis, as crianças brincam, os idosos seguem conversando, a vida que anteriormente habitava aquele espaço, insiste em seguir. Como pano de fundo, vemos murais de graffiti e pichações com protestos contra a reabilitação. Aos poucos são apresentados mais dois “personagens”, Juana e Iván, prostituta e namorado que habitam um dos apartamentos, prestes a serem demolidos. Conversam sobre a família de Iván e assuntos diversos enquanto vemos na parede um quadro desbotado.
A técnica utilizada pelo realizador, conforme apontado por Longi Gil Puértolas em seu livro “Guías para ver y analizar cine” (2010) é colocar os personagens “em situação” e deixá-los agir livremente, filmando diversas vezes, até que possam interagir e conversar naturalmente, e praticamente esqueçam que a equipe de filmagem está ali. Como a filmagem ocorreu em um período de três anos, desde o início das obras, a primeira aventura que surge no documentário é a descoberta de um cemitério romano do século 300 A.D. exatamente no local da obra.
Como que por ironia, a destruição do tecido do bairro, encontra como empecilho um passado histórico muito anterior ao passado recente que já se configura como entrave. O evento torna-se motivo para muitos debates e conversas, entre os habitantes do bairro, crianças da escola vizinha e transeuntes.
Nestas conversas, percebemos a pluralidade dos moradores do bairro, ouvimos diálogos em várias línguas: espanhol, catalão e árabe. Mesmo com o achado arqueológico, as demolições e construção seguem. O comércio local, o dia a dia das pessoas insiste em prosseguir. Enquanto amigos conversam, na televisão, o noticiário fala sobre a alta dos preços dos imóveis. No pano de fundo da construção vemos a catedral de San Pol, que será o chamado capital cultural que irá ajudar a valorizar e vender o novo imóvel. Os pedreiros constroem uma escada, o mais velho ensina o mais novo, deixando transparecer o amor por seu trabalho. Diz:
A pessoa tem de estar enamorada de seu trabalho, como se fosse sua namorada, senão não se interessa por ele. (Santiago Segade, tradução nossa)
Conta histórias da sua vida, menciona que depois de tanto tempo trabalhando nas obras, até hoje não teve dinheiro para comprar um bom relógio. Comentam que o prefeito está determinado a modernizar o bairro Chino e que com certeza irá consegui-lo. Outro pedreiro conversa com uma vizinha, falam da varanda para a obra, e mais tarde vamos descobrir que a moça terá, obviamente, que se mudar para um bairro mais distante. A obra avança, a fachada é antiga, e o interior será todo novo. Na televisão, o filme sobre a construção das pirâmides faz um paralelo à construção do novo bairro. Os construtores da pirâmide morrem dentro da mesma, levando o seu segredo. Fim.
Passamos para uma conversa entre pedreiro e engenheiro sobre a diferença entre a construção civil no passado e no presente, sobre a edificação das pirâmides no Egipto, a escolha do arquiteto. O pedreiro fala com paixão e conta a história do mesmo filme. Ao fundo vemos a igreja Sant Pau del Camp. A filha de um dos pedreiros chega, conversam. Há comentários sobre as crianças que virão morar nestes apartamentos. Comentam também sobre outras que brincam na obra desenhando nas paredes. Rabiscos que de seguida veremos sendo destruídos. As demolições prosseguem, expulsando os moradores e seus pertences para a rua. O quadro outrora pendurado em uma casa está em uma caçamba, transeuntes retiram o que lhes interessa da pilha de coisas.
Projeto cofinanciado em 85% pelo fundo de coesão da comunidade europeia (tradução nossa)
Vemos um imenso painel promocional com a imagem do projeto: uma grande praça rodeada de palmeiras. Em seguida a prostituta Juana conta a um cliente como sua casa foi destruída. Os pedreiros trabalham durante a noite levantando um muro, Abdel Aziz, pedreiro marroquino, entoa uma canção, segue-se o diálogo filosófico entre ele e Santiago Segade:
Aziz: O capitalismo não durará para sempre, ele não é eterno.
Segade: Olha, o capitalismo existiu, existe e existirá.
Aziz: Não, não, não existirá. Ele passará, da mesma forma que a escravidão, que o feudalismo. Se você me entende…
Segade: A escravidão não existiu.
Aziz: A escravidão existiu em uma sociedade primitiva. E depois da escravidão, o feudalismo e
Segade: Fale-me de outras coisas e deixe de falar de política.
Aziz: É a luta das próprias pessoas por seus direitos…
Segade: Estou muito mais tranquilo sem pensar nisso e sem me lembrar de nada. (tradução nossa)
Seguem falando sobre Deus e religião enquanto o muro vai se compondo. Aziz diz que toda a manhã canta a internacional e que esta é a religião dos pobres… Juana e Iván estão dentro da obra, já que sua casa foi demolida.
Pedreiros trabalham com a catedral ao fundo e conversam sobre as pirâmides e outros assuntos em árabe. A demolição segue e os olhos desenhados no muro que vimos no início do filme são destruídos pouco a pouco. O senhor Atar, com seu boné, um souvenir turístico, conversa com amigos em um café antigo, mostra seus pertences, peças velhas diversas: um relógio antigo, brinquedos, isqueiro, máscara de mergulho cor de rosa e diz que sua paixão é o mar. Depois o vemos na rua com os seus pertences amontoados em sacos de lixo.
O edifício vai ficando pronto, vemos a escolha das campainhas para os novos apartamentos. Noite de ano novo. Um mendigo dorme dentro da obra e assiste aos fogos de artifício. Chegam os corretores com compradores, pedreiros cantam ao instalar as portas. Os interessados veem a vista agradável da igreja Sant Pau del Camp e da escola, a corretora fala sobre as ruínas romanas encontradas. Compradores preocupam-se com a segurança e com os vizinhos. Esperam que com o tempo sejam todos apartamentos remodelados ao redor e vistas melhores. Não querem que os vizinhos estendam roupas. Nem a câmara municipal quer, diz a corretora.
Ela garante que a vizinhança ficará melhor e que as roupas não serão mais entendidas nas fachadas dos edifícios. Outros interessados chegam com crianças e tentam interagir com os vizinhos. Juana e Iván partem para outro bairro, outras casas em demolição que possam habitar. Ela o carrega nas costas e depois ele a carrega.
b) Bye, Bye Barcelona
O documentário de 2014 trata exclusivamente do tema da gentrificação provocada pelo turismo massificado na cidade de Barcelona e podemos afirmar que tenha sido um dos primeiros a se debruçar sobre este tema em um período pós-crise económica no qual ainda se via o turismo como salvador das economias europeias. Ele se contrapõe à ideia corrente de que, com o turismo, a urbe só tem a lucrar e mostra o outro lado do processo, através de entrevistas com a população, intercaladas às imagens do turismo massificado.
Qual é o problema? Nós estamos reproduzindo itinerários turísticos, hábitos e atividades turísticas que são muito repetitivas, e às vezes, muito distantes do que realmente a cidade é. E essas atividades estão mudando o conceito, a essência e a idiossincrasia desta cidade. (Santiago Tejedor, tradução nossa)
Para Simmel (1976), a metrópole é um local de concentração e reprodução do capital, não importa de que forma isso ocorra. Trazendo esta análise para a atualidade, a forma encontrada para tal foi o turismo massificado. Como mencionado por um dos entrevistados do documentário, a cidade tornou-se um parque temático. O ambiente físico da cidade, anteriormente organizado para atender às necessidades de seus moradores, passa a ser organizado de forma a atender unicamente ao turismo. “A cidade perdeu o seu charme”, diz.
O tempo na cidade passou a ser dividido da forma mais racional possível em uma série de atividades, focadas no turismo, tornando esta mecanizada, fria, despersonalizada e totalmente alheia à vida cotidiana dos seus moradores. Antes local de encontro e de ideias, ainda mais por ser um porto, a cidade apresentava a diversidade necessária à criação de obras primas, agora reféns do turismo. A diversidade que gerou criatividade está sendo destruída pela mono-funcionalidade de um sistema económico baseado no turismo.
As pessoas que passam, que vem aqui só por um período, somente uma parcela muito pequena é que fica neste bairro. Os próprios guias já têm seus lugares onde devem levar os turistas, como devem levá-los, a forma como devem levá-los. Somente trazem o grupo para visitar o templo, irem embora e nada mais. (Pepe Collado – tradução nossa)
Paradoxalmente, tudo o que havia de interessante, de vivo, de especial, de original que atraiu o turismo para Barcelona está sendo destruído e explicitamente, esta é a linha de pensamento que deu origem ao título do documentário. Um adeus triste e saudoso.
Uma colocação de Gehl em Cidades para Pessoas (2013), a respeito da vida nas cidades, fala sobre a constatação de que o que é realmente interessante em uma cidade são as próprias pessoas. Ele cita o poema épico islandês, Hámaval: “o homem é a maior alegria do homem”. Este poema descreve o encanto e interesse humano pelos outros humanos e como nada é mais fascinante do que isso. Indo mais além, Gehl calcula o nível de interesse de uma cidade pelo tempo que as pessoas gastam nos espaços públicos.
Toda a análise de Gehl sobre as cidades é norteada pelo pensamento segundo o qual as cidades têm de propiciar convites aos seus usuários. Contrário ao pensamento modernista, que vê as áreas públicas apenas como espaço de passagem de um ponto a outro, a qualidade de uma cidade, ou a sua “urbanidade”, é medida de acordo com o tempo que as pessoas gastam nos espaços urbanos, não na quantidade de pessoas nas ruas, deslocando-se de um ponto ao outro, sejam turistas ou não, mas efetivamente no tempo gasto em lazer e interações sociais nestes locais. Ou seja, em resumo, uma cidade é para ser desfrutada.
Entretanto, se a urbe passa a ser um local somente de passagem de turistas, com tempo cronometrado, onde não há cotidiano, não há histórias, não há um fio condutor de acontecimentos, consequentemente, não há a sensação de pertencimento e a cidade deixa de ser interessante pois perde a sua originalidade.
De acordo com os estudos mais recentes, Barcelona é a quarta cidade mais dececionante como destino turístico. Eles vêm visitar a cidade motivados pelas experiências de outras pessoas, também pelo impacto positivo que a cidade mostra nas mídias sociais e por uma boa campanha de marketing que tem se intensificado desde os jogos olímpicos de 1992. Chegam aqui e encontram um número de destinos muito interessantes, mas claro, muito lotados, e em segundo lugar inseguros, devido ao excesso de pessoas. Esta massificação e insegurança levam à uma perda de qualidade. (Santiago Tejedor – tradução nossa)
Portanto, se a monocultura do turismo é instalada, e se a sua massificação torna impossível aos moradores permanecerem na cidade seja por quais motivos forem, se são expulsos e levados a procurar novos locais para habitar, a cidade perde não só os seus residentes, mas também o valor cultural dessas populações, e consequentemente, o atrativo original da cidade. O chamado poder do capital simbólico coletivo. Conforme descrito por Harvey em A produção Capitalista do Espaço estes são “‘o poder dos marcos especiais de distinção vinculados a algum lugar”. (2005, p. 233). E ele aponta ainda:
O problema para o capital é achar os meios de cooptar, subordinar, mercadorizar e monetizar tais diferenças apenas o suficiente para ser capaz de se apropriar das rendas monopolistas disto.
(2005, p. 238).
O documentário didaticamente percorre as áreas mais afetadas da cidade, apresentando dados, entrevistas destacando os problemas específicos de cada uma das áreas mais turísticas: Cidade Velha (descaracterização, expulsão dos moradores), Basílica da Sagrada Família (problemas de tráfego, ruído, trânsito, problema de espaço nos passeios para os próprios moradores). Além disso, uma moradora ressalta:
O que está acontecendo é que o comércio tradicional está sendo substituído por lojas de souvenirs e bares de comida rápida. Por que eu tenho de renunciar a um bairro que eu gosto porque eles só têm em consideração as pessoas que vem visitá-lo por uma hora? Isso é justo? (Conchi Roque – tradução nossa)
Ainda que os residentes tenham orgulho de seus monumentos e edifícios de interesse, ainda que gostem de mostrá-los, não parece justo que tenham de abdicar da própria cidade para isso. E o documentário segue visitando a próxima atração, o Parque Güell. O problema da lotação do parque chegou ao limite em que a câmara decidiu fechá-lo e cobrar o acesso, inclusive dos residentes, o que obviamente ocasionou diversos protestos.
Foram eles próprios que geraram este problema. Eu concordo que precisamos dos turistas, mas o que pode ser é ser desta forma massificado. Se você tem um restaurante com quatro mesas, não traga 300 pessoas. E agora querem fechar o parque. Eles não podem fechar um parque público que todos sabem que foi uma doação da família Güell para Barcelona. (Rodrigo Arroyo – tradução nossa)
O último ponto a ser tratado no documentário é o do alojamento local e seus efeitos danosos. Se já há tantos hotéis, porque é necessário afetar também a oferta de moradia na cidade. Muitos proprietários fazer de tudo para se livrar de inquilinos para fazer com que saiam do edifício.
Se esvaziamos de vida todos os edifícios, estamos destituindo a cidade de vida e é algo que vamos pagar dentro de um tempo. É uma reflexão que temos de fazer. O patrimônio arquitetónico quando não está ligado a uma vida, ao final cria uma cidade de cartolina e essa não é a cidade em que queremos viver. (Reme Gómez – tradução nossa).
c) O que vai acontecer aqui?
Como exemplo mais recente de documentário sobre gentrificação, podemos dizer que este filme mistura as características principais dos outros dois, porém com a diferença de ser desenvolvido não por um autor, mas por um coletivo, conforme descrito em sua página do Facebook:
Left Hand Rotation é um coletivo artístico que, desde 2005, desenvolve projetos que articulam intervenção, apropriacionismo, gravação e manipulação de vídeo. O coletivo é estruturado como uma entidade impessoal não associada ao indivíduo / autor e aborda cada projeto com a consideração de que a comunidade recetora não é um espectador, mas uma parte ativa essencial na transformação da realidade social. A vontade das comunidades de testemunhar sua situação possibilita articular a ação.
Tirando partido da estonteante beleza da cidade de Lisboa, o documentário busca através do recurso do contraste, salientar o aspeto dramático relacionado com a injustiça dos acontecimentos relatados. Assim como as imagens, a banda sonora é selecionada da mesma forma, com a clara intenção de envolver o espectador pela qualidade sonora, enquanto transmite informações extremamente desconfortáveis.
Como primeira imagem, temos o por do sol sobre o rio Tejo, ruas turísticas, aviões aterrando e navios de cruzeiro chegando. Essas imagens alternam-se com cenas domésticas, habitações demolidas e pobreza. Vemos em seguida as placas informativas oficiais obrigatórias pela câmara municipal de Lisboa, contendo todas as informações da obra e com o título: O que vai acontecer aqui?
Através de entrevistas com membros de diversos organismos —Associação Habita (Rita Silva e Maria João Costa), Associação Morar em Lisboa (Luís Mendes) e Stop Despejos — didaticamente somos instruídos sobre o processo de gentrificação não só em Lisboa, mas em todo o país. Enquanto isso, alternam-se cenas em que a população afetada pelos despejos decorrentes do processo se organiza. Vamos aos poucos conhecendo a história de cada um destes “personagens”. Começamos a ver obras e reabilitações de edifícios. Rita Silva da Associação Habita explica:
Os esquemas financeiros que existem de crédito, do dinheiro a viajar de um lado para o outro e de especulação, juros, crédito, de todas essas operações, são tudo processos que utilizam algo que é real, que é o real estate, não é? Que é habitação, aquilo que é construído, ou o próprio espaço, (usados) para alavancar todos estes processos financeiros que acontecem nessa estratosfera financeira que é cada vez maior.
Alternam-se diversos anúncios imobiliários e em grande plano vemos sempre as obras e paisagens turísticas, que de fato, nada tem a ver com a vida real das pessoas, mostrada em plano menor. Vamos pouco a pouco nos aproximando do painel dramático que se apresenta: pessoas sendo despejadas por senhorios que ninguém sabe quem são, pelo fato de serem fundos e fazerem parte do mercado financeiro, da estratosfera mencionada por Rita Silva. As portas dos imóveis são retiradas, buracos são abertos no chão e no teto, como forma de intimidar os moradores a saírem dos imóveis. Como descrito por Harvey (1992) a transição para a acumulação flexível do capital tem como consequência a financeirização do mercado imobiliário. Rita Silva usa como exemplo um edifício em Lisboa:
O prédio Santos Lima é muitíssimo interessante para compreender estas transições dentro do processo do capitalismo. O prédio Santos Lima era de uma empresa que era uma empresa que tinha atividade industrial na zona aqui do porto de Lisboa e tinha casas para albergar as famílias dos trabalhadores que serviam essa indústria, não é? O prédio Santos Lima tem como função que as famílias de trabalhadores tenham um teto onde se possam reproduzir para terem trabalhadores para trabalhar na sua indústria. Bastante isto, ainda assim havia um rosto, havia um senhorio, havia uma relação, em que a relação de exploração era o trabalho sobretudo e não era tanto a habitação. Hoje em dia, nós tamos num outro momento em que a exploração tá no trabalho, mas a exploração também tá no sítio em que as pessoas vivem e a explorar as pessoas em muitas dimensões da sua vida. A função daquele prédio já não é albergar pessoas que trabalham e que vivem assim na sociedade pelo trabalho, mas já tem uma outra função que era o short term, arrendamento de curta duração, provavelmente turístico e de luxo.
Somado à questão da especulação financeira no mercado imobiliário, há a “turistificação” da cidade, que nada mais é do que a hegemonia do turismo sobre o espaço urbano. A cultura monofuncional do turismo destrói não só a diversidade populacional, o tecido social, mas também a estrutura económica da cidade. Quando tudo gira em torno do turismo, a economia fica em uma situação extremamente vulnerável, uma vez que está à mercê dos mercados internacionais.
A habitação vazia que serve simplesmente para especular não tem valor para a sociedade. É uma coisa que não interessa à sociedade. E aquilo que é preciso é habitar as casas. Foi para isso que as casas foram feitas, não é? E se o prédio estiver habitado, na verdade o prédio não se valoriza tão facilmente até porque tá habitado, tem movimento humano que é um empecilho para a venda e a revenda e estes esquemas de valorização. (Rita Silva)
O documentário vai além do tema da gentrificação, quando aborda a transversalidade da problemática para o caso das mulheres e negros. Obviamente que a questão da habitação afeta estas minorias de forma mais profunda. As mulheres, por serem cuidadoras de filhos, pais e parentes, muitas vezes, não tem rendimentos próprios. E o racismo, ainda que velado no país, dificulta não só a obtenção de empregos, mas também a possibilidade de ser aceito como inquilino. Talvez seja por isso que vemos as mulheres e negros à frente da luta. Eles não têm outra alternativa.
A estratégia da narrativa com certeza é angustiar o espectador, já sufocado em uma avalanche de informações. Último tema: habitação social. Se há 20% de pobres no país, como há somente 2% de habitação social. O problema não é novo e vemos imagens da década de 70. Rita Silva mais uma vez clarifica a questão da mercantilização do espaço público:
(…) na verdade, é um investimento baseado na especulação que não cria valor na sociedade em termos de redistribuição, não é? Daquilo que é o valor produzido por este tal investimento. Na verdade, o que este investimento está a produzir é uma polarização da sociedade, ou seja, maior desigualdade, porque como as pessoas que vivem e que trabalham no nosso país tem cada vez menos acesso à habitação ou tem que pagar cada vez mais por uma habitação, elas estão a empobrecer.
Portanto, a reabilitação urbana prometida e que vemos no filme não é para todos, é apenas para alguns. Entretanto, quase como um final hollywoodiano, mais uma vez, utilizando os contrastes, vemos imagens de manifestações e ocupações pelas ruas, organizadas através das redes sociais, música e “performances”. O que a “turistificação” destituiu, transformando a urbe em imagem plastificada, genérica, os movimentos reivindicatórios trouxeram de volta: uma cidade viva e autêntica. E como círculo, o documentário, termina com a mesma pergunta, na fala de Rita Silva:
E na verdade é isto, ou seja, é preciso criar um polo do lado das pessoas, construir poder, construir organização e resistência contra esses outros grandes interesses que tem muito poder. Agora vamos ver o que acontece.
Concluindo
A realização desta análise em ordem cronológica não foi ao acaso. É interessante perceber como a própria temática foi evoluindo, no sentido de que o primeiro documentário, “En Construcción” começa abordando somente a especulação imobiliária, mostrando os moradores como vítimas quase que indefesas, a não ser por alguns graffitis nos muros. No segundo documentário “Bye Bye Barcelona”, acrescenta-se mais uma temática, a gentrificação promovida pelo turistificação do espaço urbano e neste já vemos alguma reação e organização da população.
No último, “O que vai acontecer aqui?” são abordados todos os assuntos, com profusão de informações e finalizando apoteoticamente com a reação da população e retomada do espaço urbano.
Em termos estéticos, “En Construccíon” organiza a sua narrativa através de imagens cruas e trilha sonora constituída pelos sons do bairro. Sua banda sonora são as canções espanholas entoadas pelos vizinhos, canções em árabe do pedreiro, canções das crianças da escola vizinha e ruídos do cotidiano. “Bye, bye Barcelona, apresenta sempre um caráter mais jornalístico e simples, com gráficos e números, mas que de fato, transmitem de forma eficaz a informação que se pretende.
“O que vai acontecer aqui” faz uso da imagem e banda sonora com a propriedade de quem realiza um filme de arte. Enquanto o primeiro é cru e busca envolver o telespectador pela lentidão do cotidiano do bairro, este último busca arrebatar o espectador pela beleza, que traz em si, de forma quase subliminar, a informação. Em seu final, a população prejudicada toma a questão em suas próprias mãos e, ela mesma é, através do coletivo Left Hand Rotation, responsável por este documentário.
Esta reação fílmica ao processo de gentrificação, além de ser uma peça de arte, tem sua função contestatória ampliada quando passa a tomar parte em diversos eventos sobre gentrificação em várias partes do globo. Torna-se um veículo político de denúncia e debate global sobre o tema. Uma luta organizada e criativa.
Referências bibliográficas
Puértolas, Longi Gil. 2010. En Construcción, José Luis Guerín (2001), Valencia, Barcelona: Nau Libres, Ediciones Octaedro, Colección Guías para ver y analizar cine.
Harvey, David. 2005. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume.
Jacobs, Jane. 2000. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.
Lefèbvre, Henry. 2001. O Direito à Cidade. Tradução Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro.
Left Hand Rotation, Gentrificación no es un nombre de señora 2010/2017. 2017. Bellas Artes Universidad Complutense de Madrid.
Glass, Ruth. 1964. London: Aspects of change, Londres, MacGibbon & Kee.
Simmel, G. 1976. A metrópole e a vida mental. in: VELHO, Otavio G. O fenômeno urbano. 3. ed., Rio de Janeiro.
Turner, G. 1987. Cinema como prática social, São Paulo: Ed. Summus.
Livro eletrônico e textos em linha:
https://www.facebook.com/lefthandrotation/. Acedido em 22 de abril de 2020
http://www.lefthandrotation.com/. Acedido em 22 de abril de 2020
http://www.museodelosdesplazados.com/. Acedido em 23 de abril de 2020
http://lefthandrotation.blogspot.com/. Acedido em 23 de abril de 2020
Filmografia
En Construcción (Work in Progress), 2001, Spain; Dir.: José Luis Guerín.
Bye, Bye Barcelona (Bye, Bye Barcelona). 2014, Spain; Dir.: Eduardo Chibás Fernández.
O que vai acontecer aqui? (What´s going to happen here?), 2019, Spain; Dir.: Left Hand Rotation.
Terra dos Faraós (Land of the Pharaohs), 1955, EUA; Dir.: Howard Hawks