Cut! Diaspora and heterogenesis evolving technique, aesthetics and politics in cinema

Corta! A diáspora da imaginação cinematográfica e a heterogênese entre técnica, estética e política

Leonardo da Silva Souza

UFSB IHAC, Brasil

Abstract

Rabiger and Hurbis-Cherrier published a chapter whose title is related to other discussions about cinema: Who can invoke the term ‘Cut!’? To deal with a question like that, it is essential to return to the foundations that contextualize filmmaking as a political act, and not only aesthetic or technical, wich is full of colonial relations of power. Considering the colonial forces that have tensioned, and still tension the environment of work and creation in cinema, the filmmaking process can be understood through a diasporic act of imagination, which goes through procedures of work, aesthetic proposals and political contexts in which the movie lies. In this sense, the Cinema Novo in Brazil, the Modern Cinema and African cinema, present themselves as references of an independent and decolonial filmmaking that shares an act of freedom: the heterogenesis that permeates technique, aesthetic and politics. As an example, we take the role of a griot author, realizing a comparison between filmmaking and a popular figure in the caste system of African society, taking notes about the film Impasse, by Issa Saga, a short filmmaker from Burkina Faso. The term author-griot proposes political engagement, not only through thematic treatment, but also in the subversion of production modes. Thus, broadening the scope of the question posed by Rabiger and Hurbis-Cherrier, about film directing and the power of interruption delegated to the role of the director, we seek to redirect the debate, shedding light less on movie directing but more on the direction of the cinema.

Keywords: Black Cinema, Direction, Heterogenesis, Diaspora, Griot.

A direção de cinema e o ‘Corta!’1

Há tantos diretores e diretoras2 quanto concepções de direção de cinema, mas as atividades com que exercem os modos de direção, por mais que se pareçam, não são suficientes para sintetizar perspectivas e nem mesmo a multiplicidade de visões dos vários e das várias agentes criadoras em um filme. Ao contrário da proposta de Rabiger e Hurbis-Cherrier (2013), que enfatizam as atividades e os procedimentos da função de direção como a marca da direção de cinema, podemos notar ainda uma multiplicidade de perspectivas, explicitadas por diretoras e diretores que compartilham os mesmos modos de direção. David Mamet (1992), por exemplo, explicita a inusitada perspectiva de que dirigir o cinema não é nada, senão ficar acordado, manter o bom humor no set, ajudar os atores a serem simples e registrar o que foi escolhido para ser registrado. Em uma outra perspectiva — brechtiniana, diga-se de passagem —, e ampliando a atuação da direção de cinema no diálogo com os/as agentes criadores/as do filme, Sganzerla (2001) descreve o ato de criação envolvido na direção de cinema moderno como sendo: a fixação de um instante (pela câmera), a amostra (pela montagem) do dispositivo cinema e o distanciamento crítico de atrizes e atores em relação à ilusão de realidade. E ainda, retomando a tradicional metáfora do homem regente, condutor de um ato coletivo de criação, Alberto Cavalcanti3(1977) ressalta a perspectiva da direção de cinema como ocupada por um maestro de uma orquestra, o qual não pode perder o gosto pela experimentação e pela experiência, aquelas que, segundo ele, fundam o cinema. Como esclarece em seu livro Filmar o Real (1977), Alberto Cavalcanti afirma que muitas histórias foram disseminadas sobre a direção de cinema e contribuíram para a invenção de uma figura que não se apresenta na realidade dos sets de filmagem. Uma cadeira com um nome, ou uma viseira de celulose, divulgou o estereótipo da direção de cinema, homogeneizando uma ampla latitude de modos de fazer que implicam diretamente nos filmes que vemos. Por estas três perspectivas, já pode-se perceber alguma diversidade em torno da figura do diretor ou da diretora de cinema, ainda que compartilhem atividades e procedimentos em suas perspectivas de realização.

Sob a proposta de uma síntese acerca da direção, Rabiger e Hurbis-Cherrier, em seu livro Direção: técnica e estética (2013), sintetizam as particularidades da direção de cinema de forma que elas se dão: na relação com o elenco, com a equipe técnica e com a produção dos filmes. Marcante nesta síntese é o emprego de Poder, viabilizado através de uma hierarquia de criação, na qual o diretor homem ocupa um lugar de regente na composição do filme, sendo, porém, obrigado a se submeter à produção. Nessa concepção, cuja síntese é marcada pela hierarquia de criação, a função de direção está atrelada à responsabilidade de liderar a equipe técnica e o elenco, a fim de alcançar a realização cinematográfica. Sob esta perspectiva, mesmo desde Cavalcanti, na década de 1950, até Rabiger e Hurbis-Cherrier, em 2005, houve algum consenso, porém tenso, sobre a palabra final da produção, e não da direção, na realização da obra. De acordo com este modo de pensar, a liderança da equipe de criação é sobreposta pelo interesse de otimização da produção do filme, pelo poder de fazer caber a imaginação cinematográfica nos moldes da eficiência e eficácia dos recursos. Tal perspectiva nos delineou, então, uma relação de poder através da hierarquia de criação, na qual a direção de cinema, que supostamente deveria liderar uma equipe sob a pecha da expertise e liberdade criativa, torna-se refém de um agente externo ao ambiente de criação cinematográfica, sendo, portanto, liderado por interesses que não condizem com as necessidades expressivas da equipe.

Marca da presença de alguma relação de poder na realização cinematográfica, o ‘Corta!’, termo utilizado em contraposição a ‘gravando!’ ou ‘ação!’, que dão início ao registro da cena, ganha outro significado. ‘Corta!’ designava, antes de mais nada, a percepção de que uma equipe, em situação de criação, chegara ao seu ponto ótimo. Mas, sob o repetido emprego de uma relação de poder de produção em série, introduzida no processo de criação através da hierarquia de produção, o ‘Corta!’ transformou-se em instrumento de contenção de energia criativa, o que tem consequências tanto para as perspectivas de direção de cinema como nos filmes em si.

A diáspora da imaginação cinematográfica

Buscando a manutenção do espaço de criação coletiva, desde o chamado período pós-guerra, movimentos artísticos contestaram fortemente a presença de hierarquias em equipes de criação cinematográfica. Produções independentes e experimentais, que envolvem várias artes como vídeo e teatro, trouxeram importantes processos diaspóricos para a imaginação cinematográfica, heterogêneses que impactaram desde a direção de cinema até as direções do cinema. Vale ponderar que os processos diaspóricos que nos referimos aqui não se referem à migração de cineastas, e sim, antes, à heterogênese, composição, entre diferentes perspectivas que necessariamente buscam resistir a processos hegemônicos de dominação da criação artística.

No Brasil, por exemplo, com o Cinema Novo, surgiu oposição à lógica industrial que estabelecia a sujeição da direção de cinema à produção, inovando, entre outras coisas, com uma equipe enxuta e polivalente na criação de um marcante movimento do cinema brasileiro. Mesmo antes do Cinema Novo, como já apontava Cavalcanti desde os anos 50, havia diretores e diretoras que desempenhavam também a função da produção, a fim de manter a integridade de seus filmes. Eles e elas, na direção de cinema, propiciaram uma heterogênese entre imaginação cinematográfica e produção eficaz, de forma que produtores e produtoras tornaram-se aliados do filme, deixando de se submeterem unilateralmente aos estúdios. Artistas como Maya Deren, Agnès Varda, Truffault, Goddard, Rocha, Resnais, Wells, Stroheim, colocaram-se a formar suas equipes em prol, não da comercialização de seus filmes, mas da viabilização da autoria através do cinema. O Cinema de Autor, que também foi um cinema de autora, foi o termo usado para designar um modo de se colocar no mundo através do cinema, pressionando a sociedade, poeticamente, para refletir sobre, entre outros, a dominação capitalista sobre o cinema e a vida. Nesse contexto, diretoras e diretores exerceram a produção de filmes e de encenações de outros diretores e diretoras, tal como no caso de Cavalcante e sua produção dos filmes de Stroheim, L’herbier, Delluc e peças Brecht. Tais exemplos demonstram que a colaboração entre as funções de responsabilidade na realização dos filmes abriu espaço para uma heterogênese que resistiu à hierarquia dos estúdios, associando modos de produção e criação cinematográficos.

Tal heterogênese é também fruto de um movimento diaspórico da imaginação cinematográfica. Sganzerla ressalta este movimento, embora não use o termo diáspora, quando apresenta o surgimento de um divisor de águas para o cinema: a descrença na humanidade pelo horror do holocausto e o constante clima de tensão imposto na guerra fria, criaram condições para que o estereótipo do herói clássico, abusado pelas produções cinematográficas industriais, caísse em decadência. Com o período do regime nazista, uma direção de cinema submetida ao discurso político, refletido nos filmes de Leni Rifenstal, associou a ideia de superação humana à de supremacia étnica, impulsionando uma geração de diretores que pontuavam sua crítica social e política através da experimentação estética no cinema a partir dos anos 1960. Neste movimento, que chamo aqui de diaspórico, não se tratou mais de lidar com o destino, mas sim, com a reimaginação da própria história, processo que abre mão de mirar o futuro e mergulha no passado trucidado rumo a uma jornada de reflexões sobre o presente.

Afetado por esse contexto, se deu, no Brasil, o florescimento de um cinema inusitado e estruturalmente político, paulista e carioca de produção, mas baiano de origem, cujo representante mais conhecido é Glauber Rocha e que tem Leon Hisman, Joaquim Pedro de Andrade e Ruy Guerra como integrantes. Segundo Paulo Emílio Sales Gomes, em seu capítulo Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento (1996), o Cinema Novo nascido na Bahia foi o que de melhor se produziu no cinema moderno no Brasil, com obras como Bahia de Todos os Santos, Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol. Rabiger e Hurbis-Cherrier, autores de uma estrutura convencional de cinema, diriam que, nos contextos da produção independente, as equipes são versáteis e comprometidas com a causa do filme, e que, em contextos de features, as equipes são contratadas, não mantendo qualquer relação com a temática tratada. Na perspectiva desses dois autores, o Cinema Novo seria lido como uma realização de baixo orçamento em que o grau de experimentação é maior, pois a dedicação extravasa a mera relação de trabalho, tendo comumente profissionais autodidatas. Tais características são ressaltadas, segundo o próprio Rocha e Alberto Cavalcanti, sobre as adaptações necessárias para a realização de filmes de baixo orçamento no Brasil. Para eles, porém, o Cinema Novo não foi somente um movimento artístico, pois, politicamente, ele instalou uma heterogênese entre as equipes de criação e produção, apropriando-se do problema do subdesenvolvimento na realização cinematográfica, valorizando, sobretudo, a polivalência em uma equipe e o comprometimento politico com a estética do filme. O Cinema Novo, na sua própria diáspora da imaginação cinematográfica, estabeleceu as bases para o que Glauber Rocha chamou de revolução cinematográfica com abordagem experimental e fins duplamente estéticos e políticos.

Não menos importante para a diáspora da imaginação cinematográfica, temos a heterogênese entre ficção e documentário. Sob a perspectiva de Rabiger e Hurbis-Cherrier, tradicionalmente, o trabalho com os atores e atrizes dividia a abordagem documental e ficcional, bem como o tratamento do enredo. Na abordagem com os atores e atrizes, Alberto Cavalcanti, desde a década de 50, quando trabalhara com o teatro Alemão de Brecht, ressaltou esta importante heterogênese: a aproximação pelo distanciamento crítico de atores e atrizes. Tal heterogênese pode também ser observada quando Sganzerla pontua que, desde o Cidadão Kane, o distanciamento da construção de ilusões no cinema, tal como em Brecht no teatro, deve proceder pela evidenciação do dispositivo cinema enquanto construção de realidade. Ampliando essa perspectiva para os filmes documentais, em Documentário Clássico e o Personagem exemplar (2007) de Consuelo Lins, a autora faz uma fundamental distinção entre os primeiros documentários e os modernos. Para ela, Flaherty dirigiu filmes com uma abordagem onipresente e uma voz omnisciente, e enunciou um ponto de vista sobre o fazer cinematográfico: onde a realidade é plenamente conhecida através de um personagem exemplar. Ressaltando o aspecto não cronológico do movimento diaspórico da imaginação cinematográfica, contrapomos estas perspectivas à de Glauber Rocha, para quem, tal como Brecht, o ser humano, e não só o personagem, é cotidiano e parcial, perspectiva que busca tornar evidente o dispositivo construtor de realidade que é o cinema. Na esteira da discussão sobre a morte do/a diretor/a-autor/a, a mesma que segue da discussão de Barthes (2004), diversos elementos emergiram para a criação cinematográfica. Desde a performance do ator e da atriz, passando pela relação com o espaço, a dramaturgia se valeu dos vários elementos que antes eram invisíveis, extra-diegéticos, e fez deles sua matéria-prima, substituindo a ação humana como fonte única do encadeamento narrativo ficcional, atestando que os próprios dispositivos de produção de imagem e som tornaram-se dispositivos de construção de realidades. Sganzerla chega a dizer que a câmera tem independência, não segue o ator e a atriz; é uma câmera cínica. Com isso, funda-se uma escrita da cena própria do dispositivo, a dramaturgia audiovisual. No mesmo sentido, podemos concordar com Sganzerla para quem, desde o cinema francês de Goddard, já se apresentava a ideia de que os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, assim como todos os grandes documentários dirigem-se à ficção.

A potência da heterogênese entre ficção e documentário brasileiros pode ser observada quando analisamos o ambíguo papel do ‘Corta!’ no filme de título Santiago, de João Moreira Salles. Neste filme, o termo, que em nenhuma hipótese pode ser reduzido a uma mera atividade do diretor-autor, remete mais à real relação de poder investida na figura do diretor-patrão sobre a personagem imigrante no filme. Em Santiago, o termo ‘Corta!’ significa, antes, uma ordem de limitação da liberdade sob a alçada da hierarquia de criação. Trata-se de um dos mais ambíguos e paradoxais exemplos em que a heterogênese entre a direção e produção, ficção e documentário, acirra conflitos nas relações de poder e experimentação estética: quando o ‘Corta!’ põe fim, não só ao ‘gravando!’, mas ao ‘façamos!’. Portanto, como se apresenta na relação entre cinema de ficção e documental, a exposição da irrealidade dos fatos construídos versus a imaginação de uma realidade, ou seja os modos de se relacionar com a diegese, abriram perspectivas para heterogêneses entre realidade e ficção, contestando e resistindo a modos hegemônicos de produção cinematográfica, gerando, portanto, diásporas da imaginação cinematográfica para as mais diversas formas de produção de novas realidades através do cinema.

O autor-griô como heterogênese da diáspora cinematográfica

Através dos anos, com as heterogêneses entre técnica, política e estética, a diáspora da imaginação cinematográfica transformou, não só a direção de cinema, mas a direção do cinema. Riesco elabora este problema da seguinte forma:

O fato de a nova arte ser filha do século XX, marcado pelo domínio ocidental, e que, por esta razão, teve, até o momento, uma natureza etnocêntrica que não considerava a específica “estética negra”, (Murphy e Williams 2007, p.17) unido à força da sua linguagem audiovisual, leva os/as autores/as africanos/as a considerá-lo o meio privilegiado de luta frente às injustiças de sua realidade. (Riesco 2012, p. 109)

Tratando, portanto, sobre e a partir da re-união de arte e política, surgem questões éticas ligadas à hierarquização da criação artística cinematográfica, mas há também uma sutil e tênue relação entre o sentir, o criar e o jogar com o poder. Riesco ressalta ainda o desafio de tal trabalho indicando que “talvez seja possível falar de um griauteur, híbrido que juntasse as características derivadas do autor na linha teórica ocidental, mas atualizando-o com as características do griô tradicional, marcando as continuidades e profundas rupturas existentes” (RIESCO, 2012. p. 108). Assim, ressaltando a resistência diaspórica que se dá através da experimentação estética cinematográfica, o cinema africano evidencia, na figura de um autor-griô, uma fundamental heterogênese: a polifonia e polissemia como testemunhas da divergência originária da convivência democrática.

Acerca da composição de heterogêneses cinematográficas que tratamos aqui, encontramos pontos de confluência com Riesco quando trata do cinema africano:

A linguagem audiovisual é, em suas mais pobres manifestações, um diálogo de duas vozes entre imagem e som. No entanto, este diálogo pode ser tão frutífero que o resultado do trabalho em conjunto cria melodias polifônicas ou de contrapontos reveladoras. Para tanto, um filme que se considere bom usará de maneira consciente e, ao mesmo tempo, criativa os instrumentos à sua disposição para oferecer espaços de encontro e de troca. (Riesco 2012, p. 101)

Nesse sentido, as heterogêneses entre som e imagem estão diretamente associadas a uma imaginação cinematográfica que, como apresentado anteriormente, está atrelada a relações de poder. Tais composições se destacam no âmbito dos processos diaspóricos da imaginação cinematográfica na medida em que seu

uso artístico subversivo e dialogador é capaz de nos mostrar com clareza decisões formais ligadas às dinâmicas de poder e dominação. Este papel revelador tem, portanto, uma interessante função positiva: a de propor possibilidades de encontro necessárias, já que, como diz Abderrahmane Sissako (informação verbal, tradução da autora): “Entre o ocidente e a África não há intercâmbio, no sentido de duas coisas que se encontram”4. (Riesco 2012, p. 102)

Riesco cita ainda um exemplo determinante para a compreensão do impacto de tais heterogêneses na forma de sentir e existir no mundo na medida em que relata que “nas línguas africanas não existe uma palavra sequer que traduza nosso termo ‘música’; as palavras que utilizam designam tanto dança quanto música; não existe tampouco um termo para distinguir a música do ruído” (Pavis apud Riesco 2012, p. 103).

Seguindo a direção de que a diáspora da imaginação cinematográfica pode ser observada através de heterogêneses entre divergências originárias de uma composição harmônica, ainda que dissonante, trazemos aqui a figura do griô e da griotte e seu imbricamento com a figura do diretor ou da diretora de cinema. Testemunhando o caráter diaspórico da imaginação cinematográfica, a heterogênese entre a narração de histórias populares e a direção de cinema se dá na medida em que:

existe uma relação evidente entre o cinema e a tradição oral africana. Além das coincidências nos modos de narrar na tradição oral popular e no cinema africano, Diawara (1996) fala sobre como este cinema incorporou conscientemente desde o início elementos da cultura popular e, fundamentalmente, a figura do griô. Este homem (ou mulher, no caso griotte) é um contador de histórias, um bardo ou um cantor-orador. Historicamente ligado a uma família ou a uma pessoa das castas mais importantes (guerreiros, os nobres e similares), sua obrigação consistia em recordar o passado, honrar o presente e, em menor medida, ainda que também importante, imaginar o futuro. (Riesco 2012, p. 106)

A imaginação do futuro a partir do resgate do passado, surge como forma de resistência e contestação de um modo de produção cinematográfico que ousa não se submeter à hierarquia de produção. Em uma das acepções históricas acerca do griô ou griotte, segundo Diwara (1996), Murphy (2007) e Riesco (2012), essa figura trazia de sua própria história uma revolta contra o poder hegemônico, sendo, antes de se consagrar como um/a contador/a de história popular, um guerreiro ou guerreira que, cansados de matar, decidiram se converter em músico e musicista, desempenhando o papel da voz e o ouvido do povo. A heterogênese entre griô e direção5 de cinema é uma aproximação pelas diferenças, atestada pela similaridade que, como destaca Riesco, é:

fácil de estabelecer entre as técnicas narrativas dessa figura tradicional e as empregadas por esses cineastas é um aspecto habitualmente assinalado: através da câmera — tal como o faz o griô ao narrar sob o seu ponto de vista — o diretor interpreta a realidade e nos oferece sua visão, mas esta não é individual (como no ocidente), e sim daquelas que se esquecem dos momentos subjetivos característicos de nossas individualistas latitudes a serviço de uma narração coletiva. (Riesco 2012, p. 107).

Podemos reforçar a heterogênese presente no paralelo entre a direção de cinema e a figura de griôs e griotes na medida em que, apesar da diferença “característica do trabalho coletivo e industrial do cinema, onde a técnica é fundamental e não se reduz a poucas mãos” é marcante que a gênese que envolve o diretor-autor-griô ou a diretora-autora-griotte reúna, em uma mesma figura, múltiplas facetas criativas: músicos, musicistas, diretores, diretoras, escritores, escritoras, atores, atrizes, cantores, cantoras. “Este aspecto, unido ao fato de que a decisão última é individual, corresponderia finalmente [na heterogênese entre] os cineastas africanos e os griôs[e griottes]” (RIESCO 2012. p. 108).

A heterogênese em Impasse

O filme Impasse6, do diretor Issa Saga, expressa, na sua melhor forma, a diáspora da imaginação cinematográfica envolta na heterogênese entre técnica, estética e política. No curta-metragem com duração de aproximadamente vinte e seis minutos, Saga e sua equipe apresentam a história de Poko, uma brilhante estudante, que é enviada à cidade por seu tio com o falso-pretexto de dar-lhe mais oportunidades para ter sucesso, e mantê-la longe de um casamento precoce. Na luta pela liberdade feminina ainda na juventude, ela é confrontada com imposições sociais para seu corpo e toda sua vida.

Este curtametragista, originário de Burkina Faso, realiza seu trabalho com jovens de vilarejos nos quais ele se situa, através do fazer cinema, como um criador de griôs. Issa Saga se coloca como griô junto às jovens e aos jovens que, como forma de honrar o presente, relembram o passado, criticam o tempo atual e reimaginam o futuro, lutando pela própria história, enquanto sujeitos dos modos de produção narrativos da contemporaneidade.

Em Impasse, a figura do autor-diretor7 não se limita, portanto, a uma figura somente, mas a uma equipe impulsionada por uma necessidade política de criar uma narrativa sobre suas vidas. Porém, esta necessidade não se deixa submeter à hierarquia tradicional do fazer cinematográfico. A equipe realizadora de Impasse, assim como relatou Issa Saga, são jovens que, na medida em que tomam propriedade sobre o fazer cinema, refletem sobre a própria história, questionando-a, mas também projetando comunitariamente um futuro. Este é o ponto fulcral em que se dá a diáspora que tratamos aqui, não a de um local a outro, mas a de fabulação do futuro pela revisão, cinematográfica, do passado. Trata-se de uma necessidade que invoca, através do cinema, a urgência do façamos juntos nossa própria história, decolozinando técnicas narrativas e de produção cinematográficos. Os corpos presentes em cena, são, portanto, dotados de uma narrativa diaspórica em que resiste, em Impasse, o melhor ato diaspórico: o descobrimento da cena cinematográfica e a invenção da própria história. Enfim, o cinema, na forma em que se apresenta em Impasse, é vertido em um dispositivo cuja heterogênese entre técnica, estética e política, pronuncia-se pela necessidade coletiva, pela resistência histórica e pela reinvenção da vida.

Em Cinema e Invenção da Vida Moderna (Charney e Schwartz 2000) temos uma apresentação do impacto da chegada do cinema na gênese da civilização moderna e industrial. Passados cento e poucos anos da época narrada por aqueles autores, estamos diante da possibilidade de que o cinema influencie uma era decolonial na civilização. Por meio dele, guiado agora por autores-griôs, não só as cidades são repensadas na sua dinâmica de produção, mas, mais profundamente, também os corpos são postos em uma perspectiva descolonial (Dantas 2018), repensados comunitariamente, juntamente com a política que com eles constrói espaços, trânsitos, percepções, desejos e história. Dantas (2008) pontua com Fanon (2008) a potência que um autor-griô tem com seu ato decolonial para a civilização pósmoderna. Ele argumenta sobre a constatação de Fanon de que um negro se integre à sociedade dos brancos, tem que se submeter aos modos coloniais de existência, sendo o principal a linguagem. Porém, quando ele se submete à linguagem do colonizador, ainda que com fluência, ele perde suas raízes. Nesse sentido, conhecer-se e produzir conhecimento a partir de si, de sua ancestralidade negra, seria um ato decolonial, tal como o é a associação que apontamos neste texto entre o diretor de cinema e o griô.

Diante da pergunta que Rabiger e Hurbis-Cherrier levantam — quem pode invocar o ‘Corta!’ ? — esperamos ter apresentado um contexto em que ela é lançada a um outro âmbito, aquele no qual prevalece a perspectiva estética e política sobre a síntese da técnica de direção. Assim, quem pode evocar o ‘Corta!’ enquanto palavra-de-cessar e invocar o ‘Corta!’ enquanto a comunhão de um momento de criação coletiva? Para lembrar as épocas de Cinema e Invenção da Vida Moderna (Charney e Schwartz, 2000), as heterogêneses que apresentamos tratam de uma nova espécie de relação entre Cinema e a Invenção da Vida Decolonizada.

Notas

1 O presente artigo foi desenvolvido a partir da mesa temática Corpo e Ancestralidade no Audiovisual do projeto de extensão Corpo, Poética e Ancestralidade realizado pelo IHAC CSC da UFSB, tendo recebido recursos para publicação do IHAC CSC UFSB em 2020, sem os quais a divulgação internacional deste paper não seria possível neste momento. Agradecemos em especial ao decano do IHAC CSC, prof. Dr. Marcos Bernardes pela apreciação da pauta em congregação.

2 Esta versão foi finalizada com a especial revisão de gênero da profa. Dra. Dodi Tavares Borges Leal, a quem agradecemos enormemente por suas preciosas contribuições.

3 Cito constantemente Cavalcanti por seu marcante envolvimento com a criação da produtora Vera Cruz, e também pela consulta encomendada por Getúlio Vargas sobre a criação das primeiras agências de cinema ligadas ao Ministério da Cultura e Educação da década de 50. Cavalcanti participou dos primórdios das políticas públicas para o cinema no Brasil, tema constantemente referenciado na história do cinema brasileiro.

4 Apresentação de Abderrahmane Sissako no 55th Robert Flaherty Film, na Universidade de Colgate, entre 26 e 29 de junho de 2009. Anotações e tradução de Riesco. Original: “Between African and the West there is no exchange, in the sense of a meeting of two things”.

5 Não obstante, é de se ponderar que a figura do griô ou griotte não eram presentes em todo o continente africano, e sim na parte ocidental, crítica pontuada por Riesco. Tal fato contesta a tese de que diretores africanos seriam os novos griôs, porém, para a finalidade deste texto, tratamos aqui de que existe um paralelo entre a/o diretor/a e a/o griô/otte e que tal paralelo remete a um deslocamento da forma de conceber, em alguma medida, o papel da direção de cinema na sua relação com o poder de criar histórias.

6 Impasse foi exibido no festival de Clermont Ferrand, mas estreou no festival Cineposible em 2010, ocasião em que o autor deste texto conheceu pessoalmente Issa Saga. Trailer do filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rdnj_z8PNB8. Acesso em 19/01/2020 às 18h06 (Paris, França).

7 Pode-se ler também autor-diretora, autora-diretor e autora-diretora.

Referências

Bamba, Mahomed e Meleiro, Alessandra (Org).2012. Filmes da África e da Diáspora: objetos de discursos. Salvador: EDUFBA.

Barthes, Roland. A morte do autor. O rumor da língua. Tradução de Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes.

Cavalcanti, Alberto.1977. Filme e Realidade. Rio de Janeiro: Arte Nova.

Charney, Leo e Schwartz, Vanessa. 2000. Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São Paulo: Cossac & Naify.

Dantas, Luis Thiago. 2018. Filosofia desde África: Perspectivas descoloniais. Tese de doutorado. Universidade Federal do Paraná.

Diwara, Manthia. 1996. “Popular Culture and Oral Traditions in African Film” In: African Experiences of Cinema.1996. Bakari, Imruh e Cham, Mbye , org. Londres: British Film Institute. p. 209-218.

Fanon, Frantz. 2008. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Renato de Silveira. Salvador: EDUFBA.

Gomes, Paulo Emílio Sales. 1996. Pequeno cinema antigo. São Paulo: Editora Paz e Terra.

Lins, Consuelo. 2007. Documentário Clássico e o Personagem Exemplar. In: O Documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo.2007. Rio de Janeiro: Zahar Ed.

Mamet, David. 1992. On directing Film. NY: Penguim Books.

Murphy, David e Williams, Patrick. 2007. Postcolonial African Cinema. Ten directors. Manchester: Manchester University Press.

Pavis, Patrice. 1996. El análisis de los espectáculos. Teatro, mimo, danza, cine. Barcelona: Paidós Comunicación 121.

Rabiger, Michael e Hurbis-Cherrier, Mick. 2013. Direção: técnica e estética.

Riesco, Beatriz Leal. 2012. A caminho de um amadurecimento na utilização da música no cinema africano In: Filmes da África e da Diáspora: objetos de discursos. 2012. Salvador: EDUFBA. p. 105-108.

Souza, Leonardo. 2018. A Poética da Heterogênese: acerca de dispositivos artísticos com aparatos computacionais. Tese de doutorado. UFMG. Belo Horizonte.

Sganzerla, Rogério. 2001. Por um cinema sem limite. Rio de Janeiro: Azougue.

Szondi, Peter. 1994. Teoria del drama moderno: tentativas sobre el trágico. Barcelona: Ed. Destino.