Abstract
The elements of cinematographic language can be used in many ways to portray a story. It appears that, over the years, many conventions have been established in different areas of cinematographic making. In this article, we aim to highlight the conventions of the science fiction genre, with a focus on the art direction of movies that portray the future. For this, films such as Ex_Machina (Alex Garland, 2014), Equals (Drake Doremus, 2015) and Blade Runner 2049 (Denis Villeneuve, 2017) are analyzed. Also noteworthy, is the feature film Her (Spike Jonze, 2013) as a work that goes against the others, which presents an approach to the future that stands out among so many other movies with scenarios and costumes similar to each other. As a basis for the research, the study of conventions by sociologist Howard Becker is used, in addition to the work by theorists David Bordwell, Rick Altman, Stephen Neale, Marcel Martin, Vincent Lobrutto, among others. Directors and their artistic departments use colors, shapes, materials, textures, and elements that have become conventions in science fiction films and few are those who dare to produce something aesthetically different.
Keywords: Conventions, Art direction, Science fiction, Future, Cinema.
Introdução
Os teóricos David Bordwell e Kristin Thompson (2013) esclarecem que as obras de arte envolvem os espectadores porque engajam os seus sentidos, sentimentos e mentes num processo que lhes desperta interesse, aumenta o seu envolvimento e os estimula a participar da ação. O cinema é o único empreendimento criativo que engloba todas as artes – literatura, fotografia, pintura, teatro, música, dança e arquitetura – no qual o realizador deve enfrentar o desafio de narrar uma história por meio de imagem e som, traduzindo a trama do papel para a tela. Conforme Marcel Martin (2005), inicialmente, as obras eram espetáculos filmados ou simples reprodução do real, no entanto, com o passar do tempo, o cinema tornou-se uma linguagem, ou seja, um meio de conduzir uma narrativa ficcional e de veicular ideias. Os autores afirmam ainda que, como todas as obras de arte, os filmes possuem uma forma e são compostos por peças que se relacionam entre si com o intuito de afetarem, de alguma maneira, o espectador. O cinema é, portanto, uma arte complexa e coletiva e a maioria das obras audiovisuais é fruto da integração de muitos profissionais especializados nas mais diversas áreas.
No que diz respeito à aparência de um filme, Vincent LoBrutto (2002) afirma que ela é proporcionada pela trindade composta pelo diretor, diretor de fotografia e diretor de arte. Dentre esses profissionais, o diretor de arte é o chefe do departamento artístico e deve coordenar o trabalho de diversos profissionais em prol da construção de um universo coeso. A direção de arte é o elemento da linguagem cinematográfica responsável pelos cenários, figurinos, maquiagens e cabelos, além de eventuais decisões no âmbito da finalização. O diretor de arte é, destarte, o responsável pelo processo de transcrição do roteiro para o mundo físico do filme através de um conceito visual que dialoga com outros departamentos de criação.
É a partir dessa perspectiva que a análise da direção de arte de filmes pode trazer à tona questionamentos relativos às escolhas estéticas da produção dentre uma incontável miríade de possibilidades e, a partir de tais escolhas, quais mensagens o filme busca transmitir para o espectador. É perceptível que os profissionais envolvidos na arte de um filme, assim como os profissionais de outros departamentos, utilizam convenções que auxiliam a compreensão e identificação imediata do espectador com o conceito apresentado e, consequentemente, com um determinado espaço-tempo e realidade da narrativa. Apoiam-se, deste modo, em gêneros, experimentos, fórmulas codificadas, testadas e decodificadas ao longo da história do cinema e que definiram e hoje combinam e redefinem o que passou a ser entendido como gêneros.
Rick Altman (1999) em seu livro sobre gêneros fílmicos estabelece pilares de sustentação da noção de gênero. Para Altman, gêneros são trans-históricos, compartilham determinadas características estáveis, têm um desenvolvimento previsível e são localizados em um tópico e em uma estrutura particulares, além de terem uma função ritual e ideológica. Gêneros são, portanto, complexos, com inúmeras nuances de análise e possibilidades de enfoque. Para este trabalho, a despeito dessa multiplicidade, busca-se recortar as convenções utilizadas pela direção de arte no gênero de ficção científica, mais precisamente naquelas obras que se desenrolam em um tempo futuro.
A ficção científica surge antes mesmo de ser um gênero cinematográfico próprio, presente na literatura com Jules Verne e H.G. Wells e na primeira infância do cinema, com A Viagem à Lua (George Méliès 1902). É com o estabelecimento formal do gênero que começam a se definir suas marcas, seus componentes semânticos e sintáticos, para utilizar a designação de Altman. Vivian Sobchack (1997) aponta que a ficção científica está incluída em um gênero mais amplo, o fantástico, que engloba também os filmes de horror e os próprios filmes de fantasia, como O Mágico de Oz (Victor Fleming 1939). Todos esses gêneros lidam com a construção de realidades e visualidades alternativas e “[...] contam histórias de experiências impossíveis que desafiam a lógica racional e as leis empíricas habitualmente conhecidas” 1 (1997, 312), além de todos fazerem uso de efeitos especiais. Para a autora,
[...] os filmes de ficção científica, todavia, mesmo quando suas narrativas são prudentes em relação a coisas como invasões alienígenas e criaturas monstruosas, excedem os limites do conhecimento empírico contemporâneo mais confiável; a entrada do gênero no ‘desconhecido’ é caracterizada pela ousada curiosidade epistemológica e sua satisfação limitada, e é alimentada por um adiamento ‘infinito’ e ‘progressivo’ de qualquer satisfação final. Desta forma, o slogan da série televisiva O Caminho das Estrelas, ‘audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve’, ressoa como uma abertura e otimismo tecnológico e empírico que finalmente supera qualquer trepidação estrutural.2 (Sobchack 1997, 313,315).
Sobre o gênero de ficção científica, Neale (2000, 92) reforça ainda que “[...] a ciência, ficção ou não, sempre funciona como motivação para a natureza do mundo ficcional, seus habitantes e os eventos que ocorrem nele, independentemente de a ciência ser ou não um tópico ou tema” 3. Uma grande parcela dos filmes assim classificados, apresenta histórias que se passam no futuro. Em algumas, esse futuro é visto sob um prisma excessivamente tecnológico e ascético, no qual as máquinas possuem grande destaque. Outras obras mostram um futuro sombrio, distópico e apocalíptico. Há ainda aquelas que apresentam ambas as perspectivas em complementaridade. Nessas obras, cria-se uma oposição estética atrelada às demandas da narrativa. Percebe-se, na aparência desses filmes, muitas semelhanças na maneira como o futuro é retratado, o que demonstra uma visualidade característica e típica do gênero. É possível classificar essas semelhanças como convenções que foram estabelecidas ao longo das décadas pelas quais a ficção científica enquanto gênero se desdobrou.
Tomando as visualidades rotineiras da ficção científica como contraponto, busca-se, neste artigo, ressaltar as convenções nos filmes de ficção científica relacionadas com as soluções encontradas pelo departamento artístico dessas obras. Procura-se ainda apontar um estudo de caso que opera dentro de uma terceira visualidade, desprendida do tensionamento dos blocos dos componentes semânticos mais habituais do gênero. Para tanto, as ideias sobre os “mundos da arte” e suas convenções, do sociólogo estadunidense Howard Becker, foram escolhidas como alicerce para a pesquisa que ora se desenvolve, assim como a análise prioritária do filme Uma história de amor (2013), de Spike Jonze.
Convenções de gênero e arte
Os gêneros cinematográficos despertam expectativas nos espectadores que, na maioria das vezes, são respondidas, ou seja, a escolha por assistir a determinado filme é atrelada a desejos. Ao assistir a uma obra de um gênero como o western, por exemplo, o espectador espera que a história seja ambientada em um local desértico e árido e que apresente um duelo entre personagens de índoles distintas com indumentárias específicas. Por outro lado, ao ver um filme de terror, o espectador anseia por suspense e sustos em determinados momentos a partir de códigos visuais e estruturais já previamente estabelecidos, conhecidos e, muitas vezes, previsíveis. Cada gênero possui, portanto, convenções que os auxiliam a saciar as expectativas de reconhecimento por parte de um certo tipo de público especializado e fluente no gênero. De acordo com Neale (2000, 2), o gênero é um fenômeno multidimensional que abrange “[...] sistemas de expectativa, categorias, rótulos e nomes, discursos, textos ou corpora de textos, e as convenções que governam tudo isso” 4.
A pesquisadora Raphaëlle Moine (2008, 12), por sua vez, sublinha que a noção de gênero é um conceito central na indústria cinematográfica, bem como na história do cinema. Trata-se de uma noção familiar a “qualquer espectador que procura um filme para assistir, que descreve uma obra em poucas palavras para um amigo ou que busca identificar, caracterizar e distinguir grupos de filmes com traços comuns” 5. Não obstante, Moine ressalta que é mais fácil reconhecer um gênero do que defini-lo, uma vez que verifica-se, na maioria dos filmes, uma hibridização de gêneros, o que dificulta qualquer tentativa de alcançar uma taxonomia rigorosa. De acordo com a autora (2008), mudanças sociais e culturais afetam a produção de filmes e a sua audiência, o que possibilita o surgimento de subgêneros e até mesmo de novos gêneros. Ademais, um filme pode ser enquadrado em mais de uma categoria de gênero simultaneamente. Segundo Luís Nogueira (2010, 13), em algum momento, todos os gêneros terão suas convenções desafiadas e seu cânone refeito, às vezes “dentro da sua própria lógica temática e dos seus valores estéticos, noutros casos através de estratégias provocadoras como a paródia ou a sátira, e, noutros ainda, acolhendo elementos de outros gêneros na sua arquitetura conceitual”.
Em seus estudos sobre os gêneros cinematográficos, Rick Altman (1999) afirma que o gênero pode ser apreendido como modelo, estrutura, rótulo ou contrato. O gênero deve, portanto, possuir traços recorrentes em um conjunto de filmes que apresente certa coerência. Conforme Altman (1999, 84), para que um gênero exista, “um número expressivo de filmes deve ser produzido, amplamente distribuído, exibido para um público extenso e recebido de maneira bastante homogênea” 6. Altman observa, assim como Moine, que mesmo no contexto do cinema hollywoodiano, “gêneros puros” nunca foram a regra, mas sim a exceção. Para o autor, é possível, por exemplo, que um filme mobilize a semântica de um determinado gênero e a sintaxe de outro.
Os gêneros não consistem apenas em filmes para Neale (2000). Eles consistem também em sistemas específicos de expectativa e de hipótese que o público carrega consigo ao assistir a um filme e, ao longo da exibição da obra, fornecem aos espectadores meios de reconhecimento e compreensão. Esses sistemas auxiliam a tornar os elementos dos filmes inteligíveis e oferecem uma maneira de descobrir o significado do que acontece na tela.
O departamento artístico de uma produção audiovisual é um dos pilares para a produção das imagens exibidas na tela. LoBrutto (2002) o destaca como um dos grandes responsáveis pela criação do universo fílmico e, consequentemente, pela transmissão da história. Segundo Andrew Horton (2003), apesar da direção de arte ser uma área algumas vezes negligenciada nas produções cinematográficas, ela possui um grande valor, uma vez que é responsável por toda uma conceitualização de cor, forma e imagem que resulta na ambientação do filme.
Bordwell e Thompson (2013) lembram que cada filme integra várias técnicas na constituição de sua forma geral. Conforme os autores, uma técnica cinematográfica pode direcionar a atenção do espectador e/ou guiar as suas expectativas, assim como elucidar ou enfatizar significados, moldando, consequentemente, a resposta emocional do público. No caso da direção de arte, os profissionais envolvidos em sua realização utilizam objetos, cores, texturas, formas e efeitos, etc. para criar a atmosfera da obra. Observa-se que no trabalho desse departamento muitas das escolhas da equipe acontecem em decorrência de convenções já conhecidas e passíveis de decodificação pelo público alvo. Por conseguinte, espera-se que o espectador tenha um lastro cultural que o auxilie a compreender um determinado cenário ou figurino, traduzindo-os em sensações, apreendendo as mensagens que aquele ambiente/objeto está́ comunicando.
Ronaldo de Noronha esclarece que “uma convenção é um acordo sobre determinada atividade ou assunto que obedece a entendimentos prévios e a normas baseadas na experiência recíproca, implicando em práticas comuns pressupostas antes de começarem”, destaca ainda que “toda convenção implica uma estética e uma moralidade associada a ela” (2005, 22). De acordo com o autor, nos mundos da arte, as convenções artísticas auxiliam a construção e a definição do estilo pessoal que constitui a identidade de cada artista, permitindo-lhe distinguir-se dos demais, até́ mesmo pela ruptura com as convenções estilísticas aceitas. Noronha observa ainda que, para Becker, a noção de convenção equivale à de entendimentos compartilhados. Trata-se, por exemplo, do que possibilita a um grupo de músicos tocarem juntos, assim como ao público apreciar o que ouve.
Na maioria das vezes, segundo Noronha, as convenções são implícitas e dependentes de interpretações, ou seja, raramente são estabelecidas formalmente e, por isso mesmo, têm a possibilidade de serem exploradas e de adquirirem novos usos e sentidos. Outrossim, as convenções não existem isoladamente, pois relacionam-se umas às outras em sistemas interdependentes, de forma que a alteração em uma delas resulta em mudanças correspondentes em outras. Para o autor, esse é um dos motivos que dificulta a produção e a aceitação de mudanças mais profundas em convenções aceitas e já estáveis, frequentemente utilizadas, limitando o âmbito de inovações radicais que os artistas podem executar.
A escolha de optar por fazer o mais provável e obter o resultado pretendido acarreta em uma maior probabilidade da mesma solução ser adotada na próxima ocasião, o que aumenta ainda mais a chance dessa escolha se tornar unânime no futuro. Para Becker,
diferentes grupos de participantes detêm o conhecimento de diferentes partes do conjunto de convenções utilizadas por um mundo da arte. Em geral, conhecem aquilo que lhes é indispensável para facilitar a sua parte da ação coletiva [...]. No intuito de organizar a cooperação entre alguns de seus participantes, cada mundo da arte recorre a convenções conhecidas de todos, ou quase todos, os indivíduos plenamente integrados na sociedade onde estão inseridos (Becker 2010, 59).
Becker explica que, em determinados casos, o mundo da arte apoia-se em convenções propriamente artísticas, todavia de tal modo enraizadas na vivência das pessoas, que estão incorporadas na sua bagagem cultural. O autor salienta ainda que “as convenções mais familiares a todos os membros de uma sociedade proporcionam algumas das formas mais básicas e importantes de cooperação características de um mundo da arte” (2010, 62). Esse tipo de convenção permite a criação de um público formado por indivíduos que possuem pouco ou nenhum conhecimento sobre uma determinada área artística. Ou seja, tratam-se de convenções que possibilitam ao público leigo escutar música, ler livros, assistir a filmes ou a espetáculos e apreender algo das obras. Portanto, as formas de arte que visam atingir um público o mais abrangente possível exploram essas convenções compreensíveis por um grande número de indivíduos.
Segundo Becker, há convenções que emergem no seio do próprio mundo da arte e são conhecidas somente por aqueles que lidam com esse mundo, assim como pelos estudantes das artes. É interessante lembrar que cada equipe pode possuir suas convenções específicas, visto que os indivíduos procuram maneiras próprias de lidar com seus objetos de trabalho, e que este não é um fenômeno restrito ao cinema e seus gêneros ou ao departamento artístico.
Segundo Becker, existem também convenções familiares tanto aos produtores como aos espectadores. É possível citar como exemplo uma cena com pouca luz, acompanhada por uma “música de suspense”, na qual o espectador acredita que será surpreendido por algo, assim como observa-se também a existência de convenções próprias a cada gênero (western, noir, terror, entre outros.). Há ainda convenções que, como menciona o autor, são reconhecidas apenas pelo público alvo da obra.
Para tratar das convenções no cinema, é importante, portanto, retornar às especificidades próprias de cada gênero cinematográfico, que acontecem sob duas possibilidades normalmente pensadas separadamente, mas que para Altman (1999) são complementares. O gênero está localizado na interseção dos eixos semântico (conteúdo narrativo) e sintático (estruturas nas quais se inserem os elementos narrativos) de uma série de obras. De um lado os componentes semânticos, pouco explicativos, no entanto de fácil identificação, que tensionam os blocos que constroem os gêneros ou, como aponta Marc Vernet, que enfatizam os elementos básicos de um gênero, como cenários, objetos, figurinos (o que dialoga diretamente com os esforços do departamento de arte de um filme), tipos de personagens e elementos técnicos específicos. De outro lado os componentes sintáticos, que priorizam a estrutura na qual a direção de arte se organiza e que têm mais aplicabilidade7. Ou seja, a identificação com o gênero se dá pela complementaridade de componentes semânticos e sintáticos, mas pode também priorizar uma ou outra forma de identificação e reconhecimento dos códigos.
Nesse sentido, para o estudo que ora se desenvolve sobre a direção de arte, prioriza-se uma taxonomia semântica de blocos de elementos básicos utilizados na direção de arte do gênero de ficção científica, ou seja, seus ambientes, objetos, texturas e cores, de modo a entender como essa visualidade se repete e se diferencia nos filmes aqui analisados. Dessa maneira, pode-se perceber como esses filmes reiteram ou rompem com as convenções habituais da ficção científica no âmbito da direção de arte.
Direção de arte dos filmes de ficção científica
Dentre os gêneros cinematográficos, destaca-se neste estudo a ficção científica, considerada por Nogueira (2010, 29) como “todo o relato que efabula ou especula sobre mundos e acontecimentos possíveis a partir de hipóteses logicamente verossímeis”. No livro Science fiction film, J. P. Telotte (2001) defende que o termo ficção científica compreende qualquer narrativa que tenha algum tipo de distanciamento da realidade, o que implica na abrangência de muitas características.
Ao analisar a história do gênero em questão, Neale (2000, 93) reforça a importância do já citado Viagem à lua (George Méliès 1902), que contribuiu para o estabelecimento do “vínculo entre ficção científica, tecnologia de efeitos especiais e cenografia que permaneceu uma característica do gênero desde então” 8. Posteriormente, a década de 1950 se estabeleceu como a idade de ouro da ficção científica cinematográfica 9, na qual os temores da Guerra Fria estavam muito presentes, como afirma Nogueira (2010). Para o autor (2010, 30), atualmente, a ficção científica é “uma área de constante e reiterado interesse criativo, com temas que vão do ciberespaço à exploração espacial, das drogas sintéticas à criogenia”. Há um conjunto de categorias ou tendências encontradas nos filmes de ficção científica como
os filmes de invasão, recorrentes durante o período da Guerra Fria, que usaram muitas das personagens e situações para construírem alegorias ou denúncias políticas; as distopias, que se preocupam com as consequências negativas, ao nível político e social, das mudanças tecnológicas ocorridas; os filmes da cibercultura, que se centram na questão da mais avançada tecnologia de ponta e da sua hibridação com o ser humano, tanto ao nível físico como mental; as space-operas, que transportam para as aventuras no imenso espaço sideral as situações dramáticas e narrativas típicas do melodrama e do romance (Nogueira 2010, 31).
Essas categorias são sintetizadas por Tellote (2001), que apresenta três vertentes dos filmes de ficção científica. A primeira diz respeito a um contato com o “não-humano” e outros mundos, a segunda lida com as mudanças da sociedade decorrentes da tecnologia e a terceira foca nas alterações tecnológicas, nos robôs e nas inteligências artificiais. Para Telotte, apesar da recorrente presença de aliens e robôs nas histórias de ficção científica, as narrativas visam investigar a humanidade e seu papel na constituição de um mundo humano, para tanto, lançam mão de metáforas.
Dentre os diversos temas tratados nos filmes de ficção científica, o futuro é um dos mais recorrentes. Nogueira (2010) elucida que o anseio por antecipar ou especular acerca do futuro deve-se, sobretudo, ao apelo do desconhecido e da sua inteligibilidade. Se o que passou é considerado como algo conhecido, o que há́ de vir é motivo de inquietação e, constantemente, provoca suspeita e preocupação, o que leva à produção das distopias. De acordo com o autor, no cerne da ficção científica está́, frequentemente, um questionamento das consequências dos avanços tecnológicos e científicos sobre o destino da humanidade:
A ficção científica procura, então, projetar o futuro da humanidade nas suas mais diversas dimensões: os cenários (cibernéticos, metropolitanos, espaciais ou apocalípticos), os objetos (podendo mesmo falar-se de um design futurista, indo dos transportes ao mobiliário ou as interfaces comunicacionais) e as personagens (aliens, robôs, cyborgs e androides da mais variada espécie) contam-se entre os elementos que maior atenção criativa suscitam. Do mesmo modo, as formas de organização social ou política são temas determinantes, retratadas muitas vezes naquilo que comumente se designa por distopias, isto é, uma visão pessimista e agressiva daquilo que espera a humanidade, seja essa agressividade consequência da revolta de robôs ou androides, de entidades extraterrenas invasoras, da poluição, do sobreaquecimento ou da sobrepopulação.
(Nogueira 2010, 30).
Desse modo, essas formas de representar o futuro, naturalmente, precisam se diferenciar de modo contundente de outros gêneros que são contemporâneos em seu espaço-tempo, o que é refletido na maneira como se conceitualizam e se criam justamente os cenários, os objetos e os personagens e seus figurinos. Essa demanda favorece a criação de uma estética do excesso visual, não necessariamente por serem ambientes com muitos elementos, mas com muitas marcas simultâneas de futuro que, em todas essas possibilidades (cenários, objetos, figurinos), os diferenciam do contemporâneo. Assim, os filmes de ficção científica tendem ao uso de determinadas soluções - o que se poderia qualificar como blocos semânticos semelhantes -, de fórmulas visuais que se repetem com o objetivo de uma identificação clara e imediata do espaço-tempo e, consequentemente, de identificação do gênero. Nesse sentido, Vivian Sobchack lembra que embora “não possua uma iconografia informativa, abranja a maior variedade possível de tempo e local e flutue constantemente em sua representação visual dos objetos, o filme de ficção científica ainda tem um “olhar” e “sensação” de ficção científica no tocante à sua aparência” 10 (2001, 87). Para a autora,
essa “conexão visual” entre os filmes de ficção científica reside no uso consistente e repetitivo, não de imagens específicas, mas de tipos de imagens que funcionam da mesma maneira de filme para filme para criar um mundo imaginativamente realizado, que é sempre removido do mundo que conhecemos ou que sabemos sobre. A “aparência” de todos os filmes de ficção científica nos apresenta um confronto entre uma mistura daquelas imagens às quais respondemos como “alienígenas” e aquelas que sabemos que são familiares 11 (Sobchack 2001, 87).
Ou seja, apesar do número expressivo e da grande variedade dos filmes de ficção científica, a aparência das obras tende a buscar estratégias semelhantes para gerar essa distinção em contraponto ao contemporâneo. Na produção de um filme futurista, portanto, o departamento de arte se rende a algumas convenções para a construção daquele universo, através da escolha de materiais, cores, formas e objetos para a constituição dos cenários, dos figurinos e da caracterização. É possível perceber alguns elementos recorrentes em determinados tipos de narrativas futuristas e aquelas que fogem desses códigos se sobressaem em meio às demais. Frequentemente, nos filmes futuristas, é apresentado um universo extremamente tecnológico que, normalmente, é abordado por meio de duas perspectivas diferentes: um universo futurista imaculado e/ou um universo poluído.
A perspectiva imaculada surge com o filme 2001: odisseia no espaço (Stanley Kubrick 1968) e que rapidamente influencia outros filmes como THX 1138 (George Lucas 1971) e Star Wars (George Lucas 1977). Em filmes tributários desse tipo de conceito de arte são utilizadas, frequentemente, as cores branco, cinza e, de maneira mais sutil, verde, azul e vermelho. Percebe-se uma uniformidade nos cenários e nos figurinos. No tocante aos ambientes cênicos, nota-se que possuem poucos objetos de cena - e, portanto, são claramente identificáveis -, as formas tendem a ser mais geométricas e menos orgânicas e há muitos objetos de superfície lisa que parecem gélidos ao toque. Destaca-se, ainda, a constante presença de materiais como metal, concreto e vidro, ou materiais que remetem a esses elementos. Em harmonia com os cenários, os figurinos são confeccionados em materiais rígidos, pouco ou nada esvoaçantes e possuem cortes retos.
Esse é o caso de filmes mais contemporâneos como Iguais 12 (Drake Doremus 2015) e Ex_machina 13(Alex Garland 2014) (Figuras 1 e 2). No primeiro, a história se passa em um local com um visual similar ao de hospitais. Os ambientes são, em sua maioria, brancos, vazios e iluminados por uma luz fria, com toques pontuais de luzes coloridas. A aparência do concreto é recorrente em muitos ambientes, assim como a do vidro. Grande parte dos personagens, independentemente do gênero, veste um uniforme branco.
Figura 1 - Frames do filme Iguais. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=XBdFc8y0diE&t=19s
Diferentemente de Iguais, Ex_machina é, em muitos aspectos, visualmente similar ao presente. Tanto os cenários, como os figurinos, poderiam compor uma trama que se passa nos dias atuais. Não obstante, a direção de arte é gélida. A história possui como cenário principal a casa de um milionário programador. Trata-se de um ambiente elegante e espaçoso. Assim como em Iguais, o concreto e a cor cinza estão presentes em grande parte dos ambientes.
Figura 2 - Frames do filme Ex_machina. Fonte: https://www.looke.com.br/History/Play?m=37106
A outra perspectiva constantemente utilizada em filmes futuristas é aquela na qual o futuro se apresenta de maneira menos imaculada e mais sombria e distópica. Em oposição à perspectiva anterior, observa-se a recorrente utilização das cores como preto, cinza, azul e, em menor quantidade, verde. Nos cenários, há a aparência constante de materiais variados como vidro, concreto, ferragens, fiações e até mesmo lixo. Nos figurinos, nota-se a presença de vinil, de couro e de tecidos rígidos, algumas vezes também mais sujos e rasgados, com marcas de uso.
Vale ressaltar que, em muitos filmes, ambas perspectivas são apresentadas na mesma história, mostrando, então, duas faces do mesmo universo futurista. É possível perceber ambientes imaculados, assim como ambientes poluídos, em inúmeros filmes como, por exemplo em Blade Runner 2049 14 (Denis Villeneuve 2017) e em Elysium 15 (Neil Blomkamp 2013) (Figuras 3 e 4).
Alguns ambientes de Blade Runner 2049 remetem ao primeiro filme Blade Runner (Ridley Scott 1982). A cidade é retratada por meio de um cenário escuro e repleto de fumaça, prédios, sinais luminosos e hologramas. Por outro lado, há também ambientes nada poluídos, constituídos por muitas linhas retas e ângulos precisos.
Figura 3 - Frames do filme Blade Runner 2049. Fonte: https://www.telecineplay.com.br/filme/Blade_Runner_2049_15420
A história do filme Elysium se passa no ano 2154 e apresenta dois mundos completamente distintos. A estação espacial Elysium é um ambiente, limpo, organizado e luxuoso, há muitas plantas e seus habitantes vivem em casas enormes. Em contraponto, o planeta terra é apresentado em ruínas, a população vive aglomerada em moradias pequenas, as ruas são repletas de lixo e os figurinos sujos e amassados. Muitos objetos de cena e vestimentas, de ambos os mundos, poderiam estar presentes em uma história contemporânea. Percebe-se uma combinação de elementos que existem atualmente com outros extremamente futuristas e tecnológicos.
Figura 4 - Frames do filme Elysium. Fonte: https://play.google.com/store/search?q=elysium&hl=pt-br
Independentemente do prisma sob o qual, se imaculado ou poluído, esse futuro é observado, percebe-se também pouca ou nenhuma presença de estampas nos figurinos ou nos objetos de cena. Além disso, cores quentes como laranja e rosa são utilizadas poucas vezes e o amarelo, quando aparece, está mais atrelado à ideia de um amarelo opaco do que de um amarelo vibrante. Além disso, o vermelho, cor que aparece pontualmente, é saturado e remete, na maioria das vezes, ao perigo. A madeira é utilizada eventualmente nos cenários, mas sempre como uma superfície de textura lisa (tátil e visual).
Observa-se, portanto, que raramente a direção de arte contribui para a criação de um universo futurista aconchegante, uma vez que, normalmente, a atmosfera é construída por meio de elementos “frios”, que não transmitem alegria e aconchego para o espectador. Nenhuma das obras aqui exemplificadas apresenta uma visão otimista do futuro, mas fica evidente como as escolhas e os conceitos desenvolvidos pela direção de arte dos filmes contribuem para erigir essa visão pessimista e como os cenários e figurinos são utilizados de maneira a reiterar um futuro gélido e sombrio.
Apesar dessas convenções estarem presentes na maioria dos filmes de ficção científica, ocasionalmente são lançadas obras que abordam o futuro através de um viés similar ao presente, sem evidenciar elementos futuristas impactantes. Entretanto, essas obras ainda precisam da ficção científica e necessitam deslocar a história para outro espaço-tempo para poder tratar de conflitos-limite que não poderiam ser localizados na cronologia presente. É o caso de filmes como Fahrenheit 451 (François Truffaut 1966) e Laranja Mecânica (Stanley Kubrick 1971), que apontariam uma terceira via mais sutil com relação à representação de futuro a partir do trabalho da direção de arte. Neles, a mistura de objetos de diversas épocas e apenas alguns poucos ambientes, objetos ou peças de figurino com um design diferenciado são suficientes para que o filme crie sua identidade particular de futuro com base na atemporalidade. As cores variam, não são majoritariamente frias e ao invés dos extremos imaculados ou poluídos, tendem a uma atmosfera realista que aproxima a narrativa da realidade contemporânea, tornando-a um futuro de fato possível e palpável, talvez até próximo. Na última década, um filme futurista trabalhou a direção de arte tributária desse conceito.
Uma história de amor (Spike Jonze 2013) é uma obra que apresenta uma abordagem que se sobressai em meio aos filmes de ficção científica conceitualizados em seus extremos. O longa-metragem em questão narra a história de Theodore (Joaquin Phoenix), um homem em processo de divórcio que se apaixona por um sistema operacional, denominado Samantha (Scarlett Johansson). Diferentemente da maioria dos filmes de ficção científica, em Uma história de amor o avanço tecnológico não é algo que salta aos olhos do espectador. Grande parte do público está acostumada com as convenções na construção visual de filmes de ficção científica citadas anteriormente, no entanto, Uma história de amor vai de encontro à essas convenções, o que pode causar surpresa ao espectador.
Em seus estudos sobre ficção científica, o pesquisador Alfredo Suppia (2016) destaca o termo lo-fi e elucida que, ainda que não seja uma definição hermética, os filmes assim classificados são, em sua maioria, independentes e de baixo orçamento. Além disso, costumam focar mais na narrativa do que nos efeitos especiais. O autor (2016, 309) comenta que “o qualificativo lo-fi aplicado ao cinema de ficção científica não deve sugerir exatamente “precariedade” ou “aspereza”, mas sim um determinado caráter de “artesania” e um eventual apelo “retrô”. Para Suppia, esses filmes remetem aos produtos “feitos à mão” e “sob medida” e salienta também que, mesmo em contextos fantásticos, há uma busca pelo “realismo”.
É possível, então, estabelecer uma associação entre Uma história de amor e o conceito de lo-fi, a partir do momento em que o filme, apesar de apresentar um primor estético, não situa a história em um universo fantástico tão distante da realidade atual. A obra não busca impactar o espectador visualmente com uma tecnologia avançada, como carros voadores, mas direciona a sua atenção para a narrativa e a interferência que uma tecnologia avançada imprime em uma história de amor banal. A tecnologia é um elemento latente da narrativa e não concretizada visualmente em aparelhos e ambientes. Boa parte da tecnologia mostrada no filme, aliás, com exceção do sistema operacional com emoções, já está disponível na atualidade. Essa inversão na maneira como a tecnologia (não) aparece no filme proporciona ao espectador uma reflexão acerca do modo como os personagens se comportam diante da tecnologia e dos relacionamentos.
É interessante observar que o futuro representado em Uma história de amor é semelhante ao presente e evoca ainda traços do passado, principalmente das décadas de 1960 e 1970 (Figura 5). Trata-se de um futuro colorido e, até mesmo, aconchegante. Nos cenários há, entre muitos outros elementos, azulejos antigos, variedades de cores, poltrona de couro marrom e madeira que trazem uma sensação de calor, aconchego e paz ao futuro. Elementos que costumeiramente aparentam ser metalizados e transmitem a ideia de frieza, são apresentados, no filme, de maneira pontual.
Dentre os objetos de cena, a decoração busca demonstrar o futuro através da mistura de objetos que não demarcam, juntos, uma época específica, tornando os ambientes atemporais. Poucos são os objetos que apresentam um design futurista e que permitem o espectador fazer uma imediata relação com o futuro - essa mesma estratégia é utilizada pelo production designer John Barry em Laranja Mecânica, na violenta cena da invasão e estupro na residência de um casal. Nos apartamentos de Uma história de amor, a ausência de cortinas ou as cortinas coloridas, atípicas de um ambiente considerado habitual, conferem alguma estranheza e sutilmente demonstram que aquele ambiente é incomum. Os computadores, por sua vez, aparatos que normalmente em filmes de ficção científica traduzem intensamente o futuro tecnológico, são, na sua maioria, brancos e com um design antiquado. Não se sobressaem em meio ao ambiente, contradizendo o futuro, realçando o conceito de atemporalidade, especialmente em contraponto ao jogo holográfico projetado na sala de Theodore. Ademais, o aspecto diminutivo, o couro e a cor vermelha do smartphone do personagem transmitem uma estética “retrofuturista”.
Com relação aos figurinos, salienta-se a presença de estampas e a utilização de diversas cores, muitas delas vibrantes e alegres, como amarelo, rosa e laranja. O vermelho é um matiz recorrente, especialmente nas camisas de Theodore, como também nos cenários. Trata-se de um vermelho alaranjado, que salta aos olhos do espectador, mas não remete ao perigo e sim ao amor e à paixão. Os óculos utilizados pelo protagonista possuem um design característico da década de 1970. Observa-se ainda que muitos dos tecidos utilizados em Uma história de amor aparentam ser macios ao toque, como a lã e o feltro, além da presença de técnicas como o tricô, o crochê e o bordado, não apenas nos figurinos, como também nos objetos de cena. Um detalhe importante que colabora para a transmissão desse sentimento de nostalgia está na própria caracterização do protagonista. A utilização apenas do bigode, sem a presença de barba, remete ao passado, visto que à época do lançamento do filme (2013), o bigode era pouco usado sem barba.
As calças masculinas, quase sempre cinzas, de atípica cintura alta e sem cinto têm um corte moderno e são um dos elementos futuristas que se destacam na obra. Essa estratégia do figurino explicitar marcas de futuro mais do que o cenário ou os objetos de cena está presente também no filme Fahrenheit 451, em que o diretor de produção e figurinista Tony Walton realçou o futuro através das vestimentas dos bombeiros.
É importante, contudo, retornar à paleta de cores do filme que se mostra original e se diferencia até mesmo dos filmes de futuro atemporal aqui relacionados. Prioriza-se em Uma história de amor cores solares e terrosas 16, mas sempre através de tons pastéis. Essa paleta junto aos ambientes organizados criam uma atmosfera imaculada, porém quente e humanizada, onde os tons azulados e o metálico-máquina pouco aparecem. A presença dessas cores evoca a natureza e se opõe ao conceito frio, metálico e sem vida dos filmes mais tradicionais de ficção científica. A importância do orgânico e da natureza é atípica aos filmes do gênero em questão, mas presentes em Uma história de amor, que busca humanizar os ambientes e trazer o futuro para a contemporaneidade. Isso pode ser visualizado, por exemplo, nas cenas que acontecem na praia, no elevador do prédio em que Theodore mora, onde se projetam silhuetas de galhos e árvores, na cabana em meio à natureza para onde Theodore viaja em companhia da Samantha.
Observa-se que o filme é solar. Os cenários dos apartamentos de Theodore e Mia, com grandes janelas sem cortinas ou em cores distintas, contam com entrada de sol, intencionalmente trabalhada pelo fotógrafo holandês Hoyte Van Hoytema. Foram utilizados espelhos em helicópteros posicionados para criar uma iluminação e grafismo que remete ao pintor Edward Hopper e à solidão em planos gerais (Figura 6), frequentemente retratada pelo artista e que se coaduna com o conflito do protagonista de Uma história de amor. Como lembra o fotógrafo brasileiro Edgar Moura,
em Hopper o interesse está nas projeções de luz que entram pelas janelas. Elas causam belos desenhos geométricos nas paredes. Os outros elementos que interessam em Hopper são evidentes: as cores fortes e planas e os grandes brancos. Na realidade, as imagens de Hopper transmitem mais um clima contagiante do que alguma ideia específica de luz. Todo mundo no cinema foi se banhar um pouco em Hopper. Os fotógrafos nas luzes. Os diretores nas imagens de solidão. Os diretores de arte, nos cenários estilizados e sintéticos. Hopper é um clima geral. Como quando um filme é bom: boa foto, boa arte e boa direção (Moura 2001, 216).
Figura 5 - Frames do filme Uma história de amor. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/7984605/
Figura 6 - Office in a Small City (Edward Hopper 1953. Fonte: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/488730?searchField=All&sortBy=Relevance&ft=hopper&offset=0&rpp=20&pos=8
Pode-se dizer assim que o filme aqui analisado, intencionalmente ou não, dialoga através da fotografia e da direção de arte para aproximar a ficção científica do contemporâneo, do futuro possível, de um realismo que muitas vezes o gênero de ficção científica busca, senão o oposto, apenas a verossimilhança. Assim sendo, encontra-se na relação entre o pintor Edward Hopper e as imagens do filme uma compreensão do conceito buscado pelo diretor. De acordo com Pascal Bonitzer, em Hopper também estão presentes
[...] essas composições aparentemente realistas, profundamente fantasmáticas e vazias, assim como assombradas. Seguindo a Hopper, e sempre em uma relação implícita mais ou menos estreita com o cinema, o hiper-realismo produziu ademais uma espécie de visão expletiva (que serve para preencher ou completar), recorrendo a insólitos desenquadramentos e acentuando todos os signos do desafeto e do vazio (motéis desertos, snack-bars vitrificados sem clientela, excesso de objetos de consumo frente à nula presença humana: pintura congelada de um mundo de simulacros) [...] 17 (Bonitzer 2007, 70).
É nesse conceito de direção de arte, portanto, que o filme Uma história de amor se destaca ante as convenções da ficção científica. Sejam elas as de polos opostos, entre uma representação de futuro imaculada e organizada ou poluída e sombria e mesmo diante de filmes que buscam uma conceitualização mais delicada e possível de ficção científica, que tentam se aproximar da realidade através da atemporalidade e dos detalhes.
Conclusão
Visando a criação de uma história verossímil, os profissionais envolvidos em uma produção audiovisual utilizam de diversos artifícios. O departamento artístico é o responsável pela constituição do conceito estético de cores, formas e imagens que tomam forma no universo físico da trama. Percebe-se que essas decisões são, constantemente, baseadas em convenções que dialogam de maneira autorreferente com a própria história do cinema, seus gêneros e filmes. Como foi discutido aqui anteriormente, essa é uma característica não apenas do cinema e dos gêneros, lembrando Howard Becker que reforça que as convenções, presentes em diversos mundos da arte, não são notadas com frequência pelo público leigo.
Dentre esses mundos, encontra-se o cinema. As convenções auxiliam, então, a facilitar as etapas de produção, distribuição e exibição dos filmes, assim como o reconhecimento e sua compreensão pelo espectador. Cada gênero fílmico possui suas características particulares e os filmes de ficção científica que abordam o futuro também trabalham suas convenções, reorganizam, em um jogo de montar, elementos e componentes semânticos que caracterizam o filme visualmente como ficção científica. Na direção de arte dessas obras são utilizadas frequentemente convenções, o que contribui para a similaridade entre o visual dos filmes.
Retornando a Altman, Uma história de amor faz um caminho aparentemente inverso às produções tradicionais de ficção científica. Enquanto essas evidenciam o gênero através da representação visual e imagética de seus componentes semânticos, muitas vezes até prioritariamente à estruturação sintática do gênero, o filme é sutil na representação visual do futuro, trazendo-a ao máximo para a realidade contemporânea. Assim, o futuro está presente nas relações estruturais do filme, que também obedecem às convenções sintáticas do gênero.
Como lembra Sobchack, a ficção científica, assim como os outros gêneros de fantasia, apresenta mundos que “[...] escapam das limitações do conhecimento empírico contemporâneo e do pensamento racional, mas reside, na probabilidade, em nossos mais temíveis pesadelos, sonhos utópicos e desejos intencionais. [...] O filme de ficção científica concretiza o espaço-tempo não visto do passado e do futuro.” 18 (1997, 316).
A sutileza de Uma história de amor não enfraquece a sua direção de arte diante do gênero de ficção científica, pelo contrário. Ao se aproximar do real, permite ao espectador vislumbrar a representação do filme como uma realidade possível, aproximando-o de temer seus desejos e desejar seus sonhos.
Notas finais
1Tradução livre. No original: “[...] tell stories of impossible experiences that defy rational logic and currently known empirical laws.”.
2Tradução livre. No original: “The SF film, however, even when its narratives are cautionary in relation to such things as alien invasions or monstrous creatures, exceeds the bounds of contemporary empirical knowledge more sanguinely; the genre’s drive into the ‘unknown’ is characterized by bold epistemological curiosity and its limited satisfaction, and is fueled by an ‘infinite’ and ‘progressive’ deferral of any final satisfaction. Thus, the slogan of the television series Star Trek, “To boldly go where no man has gone before” resonates with an empirical and technological optimism and openness that ultimately overrides any underlying trepidation.”
3Tradução livre. No original: “[…] in science fiction, science, fictional or otherwise, always functions as motivation for the nature of the fictional world, its inhabitants, and the events that happen within it, whether or not science itself is a topic or theme”.
4Tradução livre. No original: “[…] genre is a multi-dimensional phenomenon, a phenomenon that encompasses systems of expectation, categories, labels and names, discourses, texts and groups or corpuses of texts, and the conventions that govern them all”.
5Tradução livre. No original: “Cinematic genre is a notion that is familiar to any viewers seeking to choose which film they wish to see, to describe a film in a few words to a friend, or to identify, characterize, and distinguish groups of films that have common traits”.
6Tradução livre. No original: “For a genre to exist, an expressive number of texts must be produced, broadly distributed, exhibited to an extensive audience and received in a rather homogeneous manner”.
7Essa distinção é apontada por Felipe Muanis (2014, p.110), por exemplo, ao comparar comerciais de televisão que dialogam com o western. Um dos comerciais, que se passa em um posto de gasolina, pode ser identificado com o gênero apenas reproduzindo preferencialmente os componentes sintáticos estruturais do western sem muitos componentes semânticos.
8Tradução livre. No original: “[…] helped establish the bond between science fiction, special effects technology and set design that has remained a feature of the genre ever since.
9Uma análise mais acurada da estética da ficção científica deve levar em consideração este período chave do gênero, o que será tratado posteriormente no aprofundamento desta pesquisa, uma vez que este não é o foco deste trabalho.
10Tradução livre. No original: “Although it lacks an informative iconography, encompasses the widest possible range of time and place, and constantly fluctuates in its visual representation of objects, the SF film still has a science fiction “look” and “feel” to its visual surfaces”.
11Tradução livre. No original: “This ‘visual connection’ between SF films lies in the consistent and repetitious use not of specific images, but of typesof images which function in the same way from film to film to create an imaginatively realized world which is always removed from the world we know or know of. The visual surface of all SF film [sic] presents us with a confrontation between a mixture of those images to which we respond as ‘alien’ and those we know to be familiar”.
12A história de Iguais se passa após uma grande guerra ter dizimado grande parte do planeta e quase toda a população. Nesse contexto, os indivíduos não possuem emoções. No entanto, surge uma doença misteriosa capaz de ativar sentimentos em suas vítimas, o que leva Silas (Nicholas Holt) e Nia (Kristen Stewart) a se apaixonarem.
13Em Ex_machina, Caleb (Domhnall Gleeson), um jovem e excelente programador, recebe a oportunidade de passar uma semana na casa do CEO da empresa, Nathan (Oscar Isaac). No local, ele precisa conviver com um robô que possui uma sofisticada inteligência artificial e o corpo de uma bela mulher.
14A história de Blade Runner 2049 se passa trinta anos após os acontecimentos do primeiro filme Blade Runner (Ridley Scott, 1982). Nesta trama, o policial K (Ryan Gosling) é encarregado de caçar clones rebeldes e descobre um segredo há muito tempo escondido. Ele parte, então, em busca de respostas e de Rick Deckard (Harrison Ford), lendário Blade Runner desaparecido há anos.
15O filme Elysium apresenta o ano de 2154, no qual os ricos vivem em uma estação espacial, enquanto o resto da população mora no planeta Terra, que está arruinado. Max Da Costa (Matt Damon), um cidadão da Terra, assume uma missão arriscada que poderia trazer igualdade aos mundos polarizados e a secretária do governo, Jessica Delacourt (Jodie Foster), faz o possível para preservar o estilo de vida luxuoso da estação espacial.
16O diretor Spike Jonze se inspirou nas cores da loja de sucos Jamba Juice para definir a palheta de cores do filme, em diferentes tons de rosa, amarelo, laranja, vermelho e verde.
17Tradução livre. No original: “[...] esas composiciones aparentemente realistas, profundamente fantasmáticas y vacías, como embrujadas. Seguiendo a Hopper, y siempre en una relación implícita más o menos estrecha con el cine, el hiperrealismo produjo además una suerte de visión expletiva, recurriendo a insólitos desencuadres y acentuando todos los signos del desafecto y del vacío (moteles desiertos, snack-bars vitrificados sin clientela, excesso de objetos de consumo frente a la nula presencia humana: pintura congelada de un mundo de simulacros)”.
18Tradução livre. No original: “escape the constraints of our current empirical knowledge and rational thought, but reside, none the less, in our most fearful nightmares, utopian dreams, and wilful wishes. […]. The SF film concretizes the unseen space and time of the past and future”.
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