Cinema e pintura em diálogo

Maria Fátima Nunes

ISMAI - Instituto Universitário da Maia, Portugal

Carlos Miguel Rodrigues

MEM, Portugal

Abstract

Being the cinema, heir of painting, among other arts, it is natural that these two forms of representation have been theorized either by researchers in the field of film studies (Aumont, 2004), visual arts (Manovich, 2005), by filmmakers (Eisenstein, Godard...). Much of this theorization has had the object of studying biographical films of painters (cf. the work organized by Thivat, 2011).
The question of the dialogue between cinema and painting has been posed by Queiroz (2012) ; by Nunes (2014). However, if we consider the example of the film Le Mystère Picasso, although Henri-George Clouzot filmed Picasso in the creative act, as spectators we do not have access to the genesis of the creative process, we only see the gestures and features of Picasso.
This is, the cinema has functioned as a technology of recording, memory and digital composition, as a translator of the creative process of a work of art. Hence, as part of the research project “Cinema and painting in dialogue”, we intend to question film writing (cinematographic editing) as “translator” of the genesis of the creative process of a work of art; to establish, through filmic writing, the process of creating a work of art: drawing, painting, sculpture... And bringing cinema and painting closer together in the dialogical process of receiving and appropriating the work by the public.

Keywords: Cinema, Painting, Artes Visuais, Génese do Processo Criativo

Introdução

Como sabemos, o cinema foi herdeiro da pintura, entre outras artes. Por isso, começaremos por fazer referência a alguns estudos sobre a associação entre estas duas formas de representação artística, desenvolvidos por investigadores da área dos estudos fílmicos (Aumont, 2004), das artes visuais (Manovich, 2005) e por cineastas (Eisenstein, Godard,…). Seguidamente, falaremos sobre algumas investigações que têm tido como objeto de estudo filmes biográficos de pintores (cf. a obra organizada por Thivat, 2011). Para finalizar o enquadramento teórico, falaremos, de forma sintética, da questão do diálogo entre cinema e pintura tal como tem sido teorizada por Queiroz (2012) e por Nunes (2014).

Em síntese, o cinema tem funcionado como tecnologia de registo, de memória e de composição digital, como tradutor do processo criativo de uma obra de arte. Daí, no âmbito do nosso projeto de investigação em curso, “Cinema e pintura em diálogo”, pretendemos questionar a escrita fílmica (montagem cinematográfica) enquanto “tradutora” da génese do processo criativo da obra de arte; fixar, através da escrita fílmica, o processo de criação de uma obra de arte: desenho, pintura, escultura… e aproximar o cinema e a pintura no processo dialógico da receção, da apropriação da obra pelo público.

Lumière pintor?

Comecemos por ver, no filme de Godard, La Chinoise (1967), a cena em que uma personagem interpretada por Jean-Pierre Léaud afirma que Lumière era «um pintor», «o último pintor impressionista». Ao colocar estas palavras na boca desta personagem, Godard não estava a considerar Lumière como o inventor de um aparelho capaz de reproduzir a realidade, mas um artista, um produtor de efeitos de realidade.

A chegada de um comboio à estação de La Ciotat (1895), vista1 que poderá ter estado na origem das palavras ditas por este ator, é uma forma de citação do quadro de Claude Monet La Gare Saint-Lazare (1877), na medida em que o acontecimento que esteve na origem de ambas as representações foi semelhante – a chegada de um comboio a vapor a uma estação.

Figura 1 - Claude Monet, La Gare Saint-Lazare (1877)

Figura 2 - Lumière, L’arrivée d’un train à la Ciotat (1895)

Fala-se muito da receção desta vista pelos primeiros espetadores, do medo, da fuga desenfreada decorrente da “profusão dos efeitos da realidade” (Aumont, 2004, p. 38). Só quando passamos pelas primeiras experiências de cinema 3D, percebemos o sentido desta reação dos espetadores, porque, também, nos desviávamos com receio de que algum objeto viesse de encontro a nós…, tal era o efeito do real, ainda que os filmes fossem de ficção (ex. Avatar) e não vistas do quotidiano, do trabalho, do lazer, que partiam de situações do real, como era o caso das vistas Lumière.

Do mesmo modo que para Godard, também, para Aumont (2004,33), Lumière foi “o último pintor impressionista da época” devido a dois efeitos de realidade: a quantidade e a qualidade. Passando ao primeiro efeito de realidade, o espetador fica encantado por ver numa só vista, numa só unidade de tempo (já que no início do cinematógrafo não havia cortes, tudo se reduzia a uma única cena), uma grande quantidade de atores sociais a deslocarem-se, sem ser de forma repetitiva. Na pintura

um equivalente espectatorial que faça sentir o mesmo júbilo […] é o carácter acabado do detalhe, a precisão, a impecabilidade. Valor burguês, […], a impecabilidade é igualmente cultivada pelo romântico e pelo pompier, pelo pintor de batalhas e pelo mais frívolo dos pintores mundanos” (Aumont, 2004, 33).

As vistas Lumière deslumbram também os espectadores devido à perfeição e à quantidade de pormenores que mostram, razão pela qual o cinema escapa à sua herança (o brinquedo ótico, o zootrópio…) e passa para o lado da arte, ainda que uma arte menor, como era a pintura pompier 2 (Aumont, 2004, 34).

Como referido anteriormente, o segundo aspeto dos efeitos de realidade é a qualidade, dado que as vistas Lumière captam a luz e o ar, objetos pictóricos que foram erigidos pela pintura impressionista, tornando-os “palpáveis, infinitamente presentes (Aumont, 2004, 34). Para além disso, o cinema através dos efeitos de realidade conseguiu, ainda, representar um terceiro problema pictórico e fotográfico, o tempo, o fugidio, o efémero.

A atmosfera continua aí impalpável, e, se se quiser, irrepresentável, mas não deixa de estar presente no cintilar das folhas (agitadas pelo vento, pelo ar, concluem infalivelmente os críticos: é mesmo o vento que eles querem ver). Mas sobretudo, é claro, o fugidio é enfim fixado, e sem labor. É de acordo com o trabalho pictórico que se mede o melhor do milagre do cinematógrafo: ele substitui, com efeito, as centenas de folhas duramente pintadas, uma por uma, […]. E, além do mais, elas se mexem… (Aumont, 2004, 36).

Cinema e pintura

Eisenstein (2002) foi um dos autores que mais refletiu sobre um possível diálogo entre o cinema e a pintura. Defendeu que antes de o cinema receber influências da pintura, ele já estava presente nela muito antes do nascimento oficial do cinema, em 1895, com os irmãos Lumière. Vejamos a seguinte afirmação que fez:

Es interesante señalar aquí que la luz a lo Rembrandt es introducida en la plástica mucho antes del nacimiento de Rembrandt (15 de julio de 1606) por el cineasta español El Greco. (Vidal, s/d).

Para Eisenstein os recursos pictóricos usados por El Greco, ou seja, o efeito de dinamização e sucessão de acontecimentos, a forma de representação da paisagem, são prenúncios de ferramentas cinematográficas.

Figura 3 - El Grego, El martirio de San Mauricio y la legión tebana. (1580-1582). Mosteiro do Escorial

De acordo com Barea (2017, 77) Eisenstein afirma também que

El Greco compone sus primeros planos de manera cinematográfica, alterando el sentido narrativo-funcional en virtud de necesidades expresivas. El martirio de San Mauricio implica además un tratamiento temporal que El Greco resuelve acoplando acontecimientos sucesivos en una misma imagen, lo que Eisenstein denomina “descomposición simultánea de una acción en fases separadas en el tiempo”. Gracias a este sistema de ruptura y reajuste espacio-temporal de los planos, el cineasta localiza en El Greco los precedentes del montaje fílmico, influyendo decisivamente en su propia concepción cinematográfica.

Esta questão do diálogo entre o cinema e a pintura foi abordada por Queiroz (2012) numa perspetiva dialética. Com base na teorização de Eisenstein e de Aumont, observou os pontos de aproximação, de afastamento e de fusão entre estas duas formas de expressão artísticas.

Também, Nunes (2015) aproxima a pintura e o cinema por considerar ambas expressões da cultura, da criação visual; artes da observação, da representação de realidades internas e ou externas; linguagens, formas de expressão de sensibilidades, de emoções, de memórias… e formas simbólicas, criadoras de imaginários.

Cinema, “a pintura do tempo”

Como sabemos, o aparecimento do cinematógrafo aconteceu num tempo em que o paradigma positivista se aplicava não só às ciências exatas, mas também às ciências humanas. Neste contexto, o cinema, mais do que uma forma de arte, era entendido, pelos próprios irmãos Lumière (que nunca acreditaram na longevidade da sua invenção, assim como pelos antropólogos visuais e por alguns mecenas), como uma tecnologia de registo, de armazenamento da realidade. O banqueiro e mecenas francês Albert Khan contribuiu, no início do século XX, para a construção de uma coleção de imagens fixas e em movimento, os chamados Arquivos do Planeta. O cinema como tecnologia de registo, produtor de documentos autênticos.

Figura 4 - A Paixão de Van Gogh (2017)

Com o aparecimento do digital, ainda no século XX, desapareceu “o regime do realismo visual do cinema”, decorrente do registo de forma automática da realidade visual, (considerado, por Manovich (2005, p. 382), um acidente da história da representação visual, visto que esta assentou sempre na construção manual das imagens). No entender de Manovich (2005, 382), “o cinema converteu-se num ramo particular da pintura: a pintura do tempo”.

O cinema digital não só recuperou técnicas do pré-cinema, ou seja, técnicas de construção manual de imagens, muito usadas no cinema de animação e nos efeitos especiais, como ainda as trouxe para o centro do processo cinematográfico.

Para concluir o pensamento de Manovich, vivemos numa época de redefinição da cultura da imagem em movimento, já que o realismo cinematográfico deixa de ser o modo dominante, passando a ser uma de muitas outras opções. Vivemos numa época em que, paralelamente, o cinema baseado na observação da realidade, convive com o cinema-pintura, o cinema cujas personagens e cenários virtuais são desenhados e pintados à mão com recurso a ferramentas digitais. Tomemos a título de exemplo o filme A Paixão de Van Gogh (2017), o primeiro filme do mundo totalmente pintado à mão. Trata-se de um filme biográfico de animação, para o qual foram pintados e repintados 853 quadros a óleo, feitos por mais de 100 artistas diferentes, a partir de 130 obras deste pintor holandês.

No entanto, já antes da era digital, Manoel de Oliveira, porque queria trabalhar a cor, realizou o filme O Pintor e a Cidade (1956). Um filme que, inicialmente, era uma reação contra a montagem. No entanto, apercebeu-se que a cor trouxe ao cinema mudanças em termos de duração do tempo do plano. Numa conversa sobre o filme com Lardeau (1988, p. 94), confessa que

Ao abordar a cor, senti necessidade de dar o esplendor das cores […] Para restituir a cor em toda a sua força era necessário alongar o plano, o que, praticamente, eliminava a montagem. Fazer durar cada plano de maneira a atingir, para cada um, uma visão quase cósmica, o esplendor da luz.

O cinema, arte do tempo, do espaço, do movimento e do acaso, ao representar a pintura precisa de prolongar o tempo do plano para que o espetador fique com a impressão da imagem, da cor, da luz, do tempo e da duração. Aí pode estar a alma do facto, a alma da fruição, a alma do enunciador, a alma do enunciatário, a alma do enunciado e também a alma do público...

A escrita do filme estrutura-se entre o olhar do aguarelista e o olhar do cineasta, entre o registo da pintura e o registo do cinema. Não sendo um filme biográfico sobre a vida e obra do pintor António Cruz, o filme contribuiu para mitificar o pintor. Segundo Castro (2012, 300), “o cinema fez mais pela permanência de António Cruz no universo artístico portuense do que a historiografia da arte portuguesa”.

Biografias de pintores na tela

Como filmar a criação artística? Através da biografia de um pintor e da sua relação com a arte, como se chega à reflexão sobre o ato criativo em geral e sobre o cinema em particular, enquanto dispositivo da representação? Como representar o pintor no cinema? Como uma figura heroica do aventureiro solitário que vive numa tensão permanente entre a liberdade individual e as formas de organização social? Que tipo de pintor cinematografar?

Estas são apenas algumas das questões enunciadas na obra coordenada por Thivat (2011).

No âmbito do nosso projeto de investigação, intitulado “Cinema e pintura em diálogo” o questionamento da escrita fílmica enquanto “tradutora” da génese do processo criativo é uma inquietação para a qual não encontramos resposta na literatura científica. Por isso, os objetivos que nos norteiam são os seguintes:

Questionar a escrita fílmica (montagem cinematográfica) enquanto “tradutora” da génese do processo criativo da obra de arte;

Fixar, através da escrita fílmica, o processo de criação da obra de arte: desenho, pintura, escultura…

Aproximar o cinema e a pintura no processo dialógico da receção, da apropriação da obra pelo público.

Para tentarmos responder a estas inquietações, a estes objetivos, a metodologia que adotamos, ancorada na tradição da antropologia visual e da antropologia do som emergente, passa pelo trabalho de campo intensivo, pela observação direta com tecnologias de registo fotográfico, vídeo e áudio, observação etnoacústica dos lugares3, entrevistas na residência do pintor, nos espaços praticados e referidos por ele e nos espaços da memória e pela escrita com imagens e sons.

Para uma ontogénese do ato criativo

Como referimos anteriormente, quer a teorização sobre o cinema e a pintura, quer os filmes sobre a biografia de pintores na tela, inclusive o filme de Clouzot, Le Mystère Picasso, que apesar de mostrar Picasso no ato criativo, não nos possibilita a nós, espetadores, o acesso à génese do processo criativo, vemos apenas gestos, traços e características de Picasso. Ou seja, o cinema tem funcionado como tecnologia de registo, de memória e de composição digital, como tradutor do processo criativo de uma obra de arte.

Cremos, pois, ser legítimo o tentar entender a ontogénese do processo criativo através de uma investigação antropológica.

Residindo em Vila Nova de Gaia, cidade onde está sedeada a Cooperativa Cultural dos Artistas de Gaia, a maior do país, que organiza por entre dezenas de outros grandes certames a Bienal Internacional de Arte Gaia. Cidade das Artes, nome pelo qual Vila Nova de Gaia é conhecida nos círculos da arte, gera dinamismos de intensa sinergia que emana dos eventos que organiza.

Ao longo destes últimos anos, temos vindo a persistir no esforço para a realização de filmes, tendo a vida, o pensamento e obra de artistas notáveis portugueses como objeto de estudo a partir da metodologia das Histórias de Vida. Foi com grande satisfação que a propósito do nosso filme sobre a temática dos sem-abrigo, Estrela D’Alva, em exibição na exposição temática Sem Abrigo E Se Fosses Tu?, integrada na II Bienal Internacional de Arte Gaia, o seu diretor, e também diretor dos Artistas de Gaia - Cooperativa Cultural, o pintor Agostinho Santos manifestou interesse em colaborar connosco num filme sobre a sua vida, pensamento e obra…

Figura 5 - Cerimónia de tomada de posse de Agostinho Santos como presidente dos Artistas de Gaia - Cooperativa Cultural

Como o questionamento da escrita fílmica enquanto “tradutora” da génese do processo criativo é uma inquietação para a qual não encontramos resposta na literatura científica, passamos, então, a enunciar como primeiro objeto de investigação a tela, reportando-se a observações diretas do espaço observável, das suas representações virtuais ou imagéticas ou simplesmente factos da memória. Daremos maior atenção ao espaço exterior observável, por questões de tempo e de método. Do espaço observável, percecionamos com sensibilidade que à altura, à extensão e à profundidade, que pertencem à categoria volumétrica do espaço, acrescentamos a duração e o tempo, que são também indissociáveis da realidade espaço. Einstein declara até que são a mesma realidade, onde, segundo Calderón de la Barca, cada ator representa o seu papel, desempenha e arrasta os dinamismos que lhe serão próprios. Realidade habitada pelo homem e pela sua natureza, observável através de marcas expressas pelo seu existencialismo. No espaço assim considerado, o ator social tende a construir a sua identidade através de marcas, imprimindo-lhe toda a sua singularidade de uma maneira mais ou menos voluntária, mais ou menos conscientemente, com mais ou com menos informação, formação, intencionalidade … Apenas como ponto de partida para a investigação … o propósito antropológico fundamental consiste em caracterizar nos espaços sociais, esse fenómeno, chamando a esse esforço construtivo, arte, e apenas por hipótese de trabalho na ciência antropológica e nos limites estritos deste estudo. Tentar perceber esse esforço intrinsecamente humano na construção quando, o cuidado, informado e intencional, posto em algumas das marcas dessas expressões… e aqui, tratamos de pintura.

Substituamos os termos que designam os critérios estéticos muito dependentes dos relativismos pessoais, pelo termo monumentalidade, já que esta apenas se expressa como realidade socialmente inclusiva (Rodrigues, 2015).

Admitindo, então, que a monumentalidade do real está na imagem que a luz revela na expressão cultural que a cor rematará, nos espaços que o traço deixa perceber e nos corpos que os habitam ou apenas no dinamismo conferido pela intervenção do intencionalismo grafocromático… mas também nas suas sugestões sonoras que tal como na Guernica, o súbito silêncio dos aviões da legião condor deixa apavoradamente perceber. Para a Antropologia do Som, a Guernica de Picasso, é acima de tudo, a genial pintura sonora de uma tragédia.

Admitiremos, então, que no modo real ou no representado, o tempo está para o espaço, como a luz para a imagem, como o silêncio para o som… como neste contexto, a ordem dramática, a ordem gráfica, sonora ou cromática estará para as ideias ou emocionalidades, organizadas ou não, que aí são expressas… ou que se deixam perceber.

Qual então o posicionamento etiológico do ato que as cria?

Ou seja, então, que visão intelectual interna poderão os sujeitos ter deste complexo?

Que contornos terá a visão ou estrutura dinâmica interna que cria as representações?

Também ela nasce primeiro antes de se expandir, exprimindo-se no plano da arte?

E como se operacionalizam as memórias tornadas ativas?

Assim, em jeito de grelha de observação antropológica no estudo destes temas, e em termos de proposta, mencionaremos que Vygotski, em A Formação Social da Mente, para o Homem enquanto um ser social formado dentro de um ambiente cultural historicamente definido, estabelece a chamada zona de desenvolvimento proximal (ZDP), em que o sujeito toma contacto com uma enorme quantidade de comportamentos heterogéneos e desempenhos muito variados e que são elaborados por todos os atores sociais desse ZDP. Assim se desenvolve, em cada situação específica, com base na interação com os outros, uma equação singular de ideias e posturas compostas por memória, ação e projeto, cujo resultado é sempre um construto da aprendizagem a partir das experiências socias interindividuais em que se encontra imerso. As habilidades operativas das ações especializadas desenvolvem-se praticando-as. É, assim, com base nestes paradigmas que tentamos desenvolver a etnografia de um artista, um pintor, dentro da sua ZDP.

Apresentamos, agora, uma síntese da ficha biográfica de Agostinho Santos, o pintor sobre o qual incide a nossa investigação.

Nasceu em 1960, Vila Nova de Gaia. Jornalista, pintor, curador e estudante. Diretor da Bienal Internacional de Arte de Gaia e coordenador do Projeto Onda Bienal. Presidente da direção de Artistas de Gaia - Cooperativa Cultural. Mestre em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP), 2012. Autor da dissertação Palavra / Imagem; desenvolvimentos pictóricos a partir da escrita de José Saramago. Doutorado em Museologia pela Faculdade de Letras/ Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, 2010 – 2015. Autor da tese Paleta Contemporânea - Museu de Causas / Bases de um projeto museológicos solidário: Eu e os outros. Doutorando do Curso de Arte Contemporânea do Colégio das Artes / Universidade de Coimbra. Realizou mais de 80 exposições individuais e participou em mais de 300 mostras coletivas, no país e no estrangeiro. Prémio Nacional de Reportagem / Gazeta de Imprensa (1990), instituído pelo Clube de Jornalistas, com a série de reportagens “Viana é porta aberta ao tráfico de droga”, Prémio de Reportagem Jaime Ferreira (1989) e Prémio de Reportagem Jaime Ferreira (1992), atribuído pelo Centro de Formação de Jornalistas do Porto.
Na área das artes plásticas, obteve vários prémios e distinções. Autor de diversas publicações.

Apresentamos, agora, pequenos excertos de entrevistas e observações que servirão, juntamente com elementos de outras observações, como base etnográfica para o estabelecimento da Antropologia da Arte do pintor em observação.

Jornalismo … A sorte conquista-se …. É-se jornalista 24 horas por dia. Sempre fiz aquilo de que gostava. A minha vida sempre se situou entre o Jornalismo e as Artes … O jornalismo fez-me ver as artes de outro modo … o ter convivido com outras pessoas com outras experiências com outros mundos… fizeram-me ver as coisas de modo diverso … e assim ao olhar para o papel comecei a ver caras… rostos esguios magros mas com os filhos as caras deles …a alegrias e sofrimentos… assim, mesmo naqueles dias mais difíceis de tanto escrever e trabalhar na redação …tinha a necessidade quase compulsiva de passar pelo ateliê para pintar, para exprimir esses rostos… esses lugares e esses factos… para mim pintar e desenhar é quase uma obsessão… tenho sempre comigo cadernos de desenhos … podem não ser muito bons desenhos, mas cumpriam exprimindo a minha necessidade de comunicar com o papel…

(Entrevista em 11/11/2017)

Neste excerto da entrevista, podemos depreender que para Agostinho Santos o jornalismo e a arte são duas formas de escrita que se alimentam uma da outra. As experiências vividas como jornalista estarão na origem de muitas das suas motivações para criar.

… Este espaço [o ateliê] é um espaço de reflexão é um espaço de combate… de combate, sim… Porque eu combato com as telas […] sou exigente, sou um bocado difícil de convencer e, de uma maneira geral, eu não me satisfaço com os resultados, não me consigo iludir …logo …assim … e quando eu fico mais ou menos satisfeito não é uma reação imediata. Pinto o quadro e depois viro o quadro ao contrário …. E ele lá fica depois regresso… volto-o e pode começar o namoro... No retoque…

(Entrevista em 4/10/2017)

Ficamos com a convicção de que o quadro precisava de treinar o seu aparecimento … para depois aparecer, de facto… a experimentação e o ensaio como método.

[…] Mas este espaço [ateliê] é um espaço que eu abro ao diálogo … e, de facto, há cerca de ٥ anos que temos as tertúlias quase semanais …agora não… temos tido um interregno, mas vamos recomeçar … porque sentimos que há a necessidade de pôr os artistas, de pôr os escritores a falar … há essa falta … e tem sido uma surpresa … claro que temos tido o cuidado de trazer cá pessoas de valor, pessoas de interesse intelectual e que suscitam só por si interesse … mas, independentemente disso, também tem sido fantástico ver os artistas a falarem uns com os outros … os escritores a falarem uns com os outros … e é isso que eu acho que falta … e este ateliê também é isso … um lugar de diálogo, um lugar de conversa entre todos para discutirmos os projetos. Porque eu sou defensor de que não pode haver de maneira nenhuma barreira entre os criadores …

Entre os cineastas … os realizadores, os escritores, os dramaturgos, os pintores, os escultores, não pode haver barreiras … somos tão poucos que devíamos estar todos unidos e devíamos até ter projetos em comum … era fundamental ter projetos em comum … e é isso que eu, como responsável pela Bienal, estou a tentar fazer… o nosso grande objetivo também é esse … é organizar várias iniciativas que congreguem várias expressões artísticas … tentar uma interatividade entre todas essas expressões. E é isso que nós aqui tentamos fazer também aqui no ateliê …

(Entrevista em 16/11/2017)

Contrariamente a alguns artistas que fecham o seu ateliê ao exterior, se isolam nele, Agostinho Santos, ainda que no início das tertúlias [como observávamos posteriormente a esta entrevista, respetivamente nos dias 9 de março (Tertúlia sobre Poesia) e 12 de abril de 2018 (Tertúlia sobre Arte e Literatura)], refira que tem de arrumar o ateliê e tem medo que as pessoas, ao se deslocarem, possam ir de encontro a algumas obras, ou seja, apesar dos riscos, gosta de abrir o ateliê aos amigos para promover o diálogo entre artes.

Figura 6 - Cartaz da Tertúlia arte e literatura

… o meu encontro com a literatura nasce naturalmente da minha simpatia pela leitura, eu antes de mais sou leitor, gosto de ler livros. Nem sempre … comigo as coisas, às vezes, acontecem um bocadinho já tarde … […] se no início o encontro com a literatura foi com o leitor … depois começa a haver o encontro com o pintor … começo a interessar-me pela leitura sobretudo de alguns autores: Saramago, Fernando Pessoa, António Pina, Válter Hugo Mãe, Sofia de Melo Breyner, Ilda Figueiredo poesia … […] a literatura sobretudo a de intervenção aquela que mexe com as pessoas… que inquieta … o meu ateliê é um espaço reservado à literatura … estou desenhando … Mas de vez em quando preciso de ir ao livro como quem vai ouvir uma espécie de conselheiro.

O Eugénio de Andrade, o Pina, o Saramago são meus consultores a quem eu recorro muito frequentemente … deverá haver ligação entre a literatura e as artes… os escritores são uma espécie de tapete voador…

(Entrevista em 24/10/2017)

Quase todos os escritores que refere eram frequentadores do seu ateliê e confessavam relações de amizade com o pintor, nós mesmos enquanto investigadores, testemunhamos a amizade e o convívio no seu ateliê com alguns dos maiores escritores e músicos portugueses e, também, gente do panorama mediático português.

Com a arte conquistamos alguma experiência, alguma maturidade… e, de facto, como eu estava a dizer há pouco… a arte é um caminho que se vai fazendo com o percurso e à medida que o percurso vai aumentando, que vamos ficando mais velhos, vamos ganhando novas experiências, vamos pintando, desenhando, vamos ganhando mais maturidade artística … e eu acho que vou tendo um conflitozinho entre a cabeça e a mão […]

… Esse é o meu objetivo … e repara … o desenhar tão rápido como penso leva-me a uma coisa que é importante, que é desenhar sem receio de desenhar bem … o que me interessa é apanhar as emoções, o que me interessa é apanhar aqui os sentimentos … é isso que eu quero … o desenhar bem … a máquina fotográfica já foi inventada … a mim o que me interessa é… eu estou a pensar numa coisa, estou a sentir uma coisa … estou a viver as emoções de uma determinada questão que está a mexer comigo que me está a inquietar … […] vejo por exemplo uma abertura de um telejornal … notícias de refugiados no mediterrâneo … isso mexe de tal forma comigo que eu… a primeira coisa que faço é pegar num lápis num papel e deitar cá para fora aquilo que estou a pensar nesse momento … e é isso que eu quero … o que eu quero é apanhar exatamente esse momento do pensamento … […] e deitar cá para fora para o papel … é isso o que me interessa .. é resgatar, resgatar o pensamento e passá-lo imediatamente para o papel… (ainda) …não consigo fazer isso neste momento …, mas é isso que eu julgo que com os anos … com muito exercício, muito desenho por cima … muita pintura por cima … trabalho, muito esforço, muita dedicação eu acho que isso será possível … eu acho será possível … mas tarde ou mais cedo … é isso que eu pretendo.

(Entrevista em 22/09/2017)

Figura 7 - Agostinho Santos, no seu ateliê, a pintar um quadro sobre o Holocausto

No livro 30 anos Agostinho Santos parecendo ter percebido a inquietação do pintor, José Saramago fala, a dado passo do seu texto, da pintura de Agostinho:

[…] Algo também de primitivo e fetal, formas que se estão preparando para nascer, ou que ao nascimento parecem haver renunciado, um mundo em suspensão, à beira de uma definição, como aguardando a palavra ordenadora, sem cessar anunciada e constantemente adiada…

Ilda Figueiredo, na sua qualidade de poeta e de crítica, anuncia uma outra visão da pintura de Agostinho para além da ideia dos grafismos em crescimento e da dos seus sentidos subjugados a uma predefinição superior do Sistema Nervoso Central:

[…] Deixa-me dizer-te uma coisa … […] eu acho que a tua pintura é muito mais do que isso que acabas de dizer, a tua pintura, o teu trabalho... […] Não é um trabalho de reflexão sobre o teu pensamento, é uma expressão de um conflito tremendo interior de um cruzamento de pensamentos, mas sobretudo de emoções, tu podes gostar ou não gostar mas a realidade da tua pintura é o que exprime independentemente do teu gosto, independentemente de te exprimires oralmente sobre o que fazes … está ali na nossa frente um trabalho teu… que é uma escultura-pintura onde é claro que tu não pensaste previamente que o trabalho que ias fazer ia dar o que está ali … o que passou para ali foi esse cruzamento de sentimentos de reações e de impulsos que no final deram aquele belíssimo trabalho … mas que não foi fruto de uma reflexão prévia… então a tua obra é muito mais rica e criativa que a tua expressão oral sobre ti próprio e sobre a tua obra… ela é muito mais rica do que isso …

(Entrevista em 1/11/2017)

[…] Eu não era muito bom estudante e o meu pai … porque, entretanto, comecei a interessar-me pela política... O meu pai tinha uma fábrica com cerca de setenta funcionários… e quando eu chumbava metia-me lá na fábrica... (a trabalhar) claro que eu ia para lá uns tempos […] era só quando as notas chegavam (chumbava) e o meu pai metia-me lá … e dizia aos encarregados que eu tinha que ser tratado como um funcionário qualquer … e isso só acontecia nos primeiros dias … e no princípio até me obrigavam a estar às oito da manhã a estar ali como os outros funcionários … mas depois passados uns dias isso tudo acabava e em julho eu ia de férias para o Algarve.

(Entrevista em 11/09/2017)

Figura 8 - Capa do jornal Observador e imagem da reportagem sobre Os Albergues Noturnos do Porto

A experiência na fábrica que o pintor reporta repercutiu-se na sua vida profissional e na sua vida social por uma certa filantropia que se traduz em um amor às causas sociais e nas suas ideias políticas. Agostinho, enquanto jornalista, empreendeu vários estudos de âmbito jornalístico sobre os sem-abrigo os toxicodependentes os mendigos… e os peregrinos religiosos, os de Fátima, por exemplo. Realizou esses estudos integrado na qualidade dos grupos de pessoas que estudava… sem-abrigo, toxicodependente, pedinte sem abrigo … a Bienal Internacional de Arte de Gaia tem esse mesmo ápodo - Arte com Causas.

Conclusão

Dado que o nosso projeto de investigação ainda está em desenvolvimento, decidimos apenas mostrar sequências da escrita fílmica do processo de criação da obra de arte: desenho, pintura, escultura… O estudo da aproximação do cinema e da pintura no processo dialógico no momento da receção, da apropriação da obra pelo público desenvolver-se-á numa fase ulterior, quando o produto final, o filme, for projetado na tela.

Notas finais

1 Vista designa um todo, já que devido a questões técnicas só era possível realizar uma única tomada de vista com duração inferior a 50 segundos.

2 Pintura pompier é uma denominação com sentido pejorativo associada ao academicismo francês da segunda metade do séc. XIX

3 Observação etnoacústica é um método que se aplica para listar os sons que se produzem na cidade localizando os diversos campos acústicos, contendo os planos dos produtores sonoros que pretendemos observar. Os sons não são de geração espontânea, são produzidos por objetos no interior de um qualquer processo e destinam-se a serem ouvidos ou simplesmente percebidos no interior de outros processos, ou seja, requer sempre uma interpretação.

Referências bibliográficas

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