AVANCA | CINEMA

The materiality of memory in non-fictional animation

A Materialidade da Memória na Animação Não Ficcional

Fabio Belotte

Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Abstract

The gesture of the author who produces manually in accordance with the chosen technique and the material specificities that determine it, a non-fictional animation that originates in memories, carries meanings beyond aesthetics. Colors, textures and shapes can be determinants in the metaphysical relationship intrinsic to the technique itself and recode the past in visual signs. Each animated technique carries unmistakable characteristics in its DNA, which, in the narrative, can perform functions far beyond aesthetics. There is still a little studied complexity about the epistemological meaning generated in each set of textures offered by the different manual animation techniques for the range of themes that non-fictional animation can encompass. Each of these textures carries a load of signs and symbologies that, in themselves, can generate meaning, which makes the choice of technique a circumstantial factor for the theme to be portrayed. In an approach on the triggering of stop motion characteristics under a documentary record, especially when memories are represented by a three-dimensional technique manually constructed, and even when there is hybridization, in the specific case, point insertions of classic 2D animation. The more the topic is confronted and deepened, the more questions arise, which allow future research for an analytical approach to the animated process as an option of documentary registration, unfolding for the metaphysical function of animation, its textures in the narrative of a non-fictional film and the network of metaphors generated by it.

Keywords: Animated Documentary, Memory, Trauma, Texture, Stop Motion.

Introdução

Cada técnica animada carrega em seu DNA características inconfundíveis, que, na narrativa, podem exercer funções muito além da estética. Há uma complexidade ainda pouco estudada sobre o sentido epistemológico gerado em cada conjunto de texturas oferecido pelas diferentes técnicas de animação manuais para a abrangência de temas que a animação não ficcional consegue abarcar. Cada uma dessas texturas carrega em si uma carga de signos e simbologias que, por si só, podem gerar sentido, o que torna a escolha da técnica fator circunstancial para o tema a ser retratado, e o sentido desse desdobramento na linguagem visual e toda sua gama de códigos gerados no uso consciente de cada material. Em uma abordagem sobre o desencadeamento das características do stop motion sob um registro documental, principalmente quando memórias são representadas por uma técnica tridimensional manualmente construída, e ainda quando há transversalidade, que neste no caso específico são inserções de animação 2D clássica. Quanto mais o tema é confrontado e aprofundado, mais questões surgem, o que possibilitam pesquisas futuras para uma abordagem analítica do processo animado enquanto opção de registro documental, desdobrando para a função metafísica da animação, suas texturas na narrativa de um filme não ficcional e a rede de metáforas que podem ser constituídas em diálogo com estética adotada.

Segundo a interpretação da professora e pesquisadora Jennifer Serra para um termo comum aos pesquisadores do tema, animatedness denomina a característica da animação de ter a sua ‘natureza animada’ sempre autoevidente, independente de quão real ou imparcial seja a realidade ou discurso por ela representada.” Pela localização do termo em estudos acadêmicos, ele está mais factível a compreender uma carga emocional pela sua abrangência às inconsistências da técnica animada ao considerar os processos autônomos e não os automáticos. A cineasta e pesquisadora Agnieszka Piotrowska discute tal processo em seu artigo, Animating the real: a case study, descrevendo o uso da animação no contexto de uma série de testemunhos documentais por imigrantes britânicos que recontam as condições que os obrigaram a deixar os países em que nasceram. Com base na teoria psicanalítica, ela discute como experiências traumáticas das testemunhas sobrecarregam sua capacidade de falar sobre tais episódios. Piotrowska, cooperando com o animador Julie Innes, trabalhou em estreita colaboração com as testemunhas para criar imagens para as quais eles não poderiam encontrar uma linguagem escrita. A animação não só produziu uma representação visual de suas experiências, mas o processo de criação das imagens se tornou uma forma de trabalhar com seus traumas, permitindo-lhes tomar parte na representação de suas próprias experiências.

Nos filmes relativos à memória há uma ocorrência de emoções, sentimentos e estados de espírito que são particularmente difíceis de representar por meio de imagens em live-action. (WELLS, 1998)

Há uma plasticidade na memória, e assim como na técnica de animação decorrente das artes visuais, que pode configurar-se flexível, a ponto de permitir-se moldar por experiências pessoais, sem com isso perder sua conexão com o real. Ohad Landesman e Roy Bendor que compartilham do mesmo argumento citam o fenomenólogo francês Merleau-Ponty para defender este ponto de vista:

O mundo da vida torna a experiência inteligível, mas ao mesmo tempo permanece intangível. Nesse sentido, o “mundo da experiência real” nunca é redutível ou empiricamente validado como ‘mundo objetivo’. Como o fenomenólogo francês Maurice Merleau-Ponty (1962) coloca: “O real é um tecido com trama muito fechada. Não esperam por nosso julgamento antes de incorporar os fenômenos mais surpreendentes, ou antes de rejeitar as invenções mais plausíveis da nossa imaginação. “Este mundo que se subtende como ‘experiência real’ e excede unidades empíricas, incluindo elementos não empíricos tais como potencialidades latentes e estados imaginados de coisas que, enquanto eles permanecem muito depois da verificação empírica, ainda são uma parte muito importante da nossa maneira de experimentar e responder à realidade. (LANDESMAN & BENDOR, 2011)

Assim como as inserções de Landesman e Bendor nos descrevem “o tecido do real como uma trama muito fechada”, a professora e pesquisadora portuguesa Eugênia Vilela também conceitua como “dimensão material” o conjunto de matéria com o qual vivemos e interagimos, e ainda observa que “o real não é senão uma densidade que se tece entre o pensamento e o fragmento.” Ao transpor a ideia de fragmento para a linguagem audiovisual, podemos chegar na unidade mínima de um filme, o frame. E no interior da técnica animada, o frame é a unidade de maior relevância, porque é onde se cria. A construção da materialidade pode ser definida na mais íntima camada de tempo, em todos os seus detalhes. Dessa forma a animação possibilita a materialização de memórias no fragmento, ampliando a dimensão material circunscrita e condicionadora. A tecitura do espaço fílmico ocorre entre o. Vilela observa que “testemunhamos que os fatos passam pelo lugar construído pelo modo como olhamos, como falamos, como sentimos”. E o lugar onde se constrói a animação, é a tecitura do espaço fílmico entre dois frames que nos conduz ao pensamento, “e cuja ligação com o acontecimento se dá a partir dos traços que o acontecimento deixou no corpo do mundo”. E nós formamos esses corpos que guardam esses registros carregados de experiências pessoais. (VILELA, 2012, p-176)

Esquecimento

O esquecimento é parte fundamental para compreender o dispositivo gerador da animação de um testemunho enquanto registro. Estruturar o esquecimento como unidade de tempo que a memória leva para encontrar alguma informação faz parte do seu mecanismo. Mais do que isso, Marc Augé coloca o esquecimento como uma necessidade para o trabalho da memória. O médico e neurocientista argentino naturalizado brasileiro Ivan Izquierdo, observa cientificamente que a imensa maioria de tudo aquilo que aprendemos e de tudo aquilo que armazenamos se extingue ou se perde com o passar do tempo. A memória pessoal e coletiva elimina aquilo que é trivial e, muitas vezes, armazena fatos que nunca sequer vivenciamos. O descarte ou a inativação de algumas memórias tem fundamental importância para a manutenção da própria memória e do próprio indivíduo, uma vez que armazenar todos os fatos e lembranças vividas acarretaria em sobrecarga de memória, o que impediria o seu adequado gerenciamento, além de que, algumas lembranças que nos causam medo, traumas, dentre outras, podem ser prejudiciais e, por isso, são providencialmente desativadas de forma inconsciente. (IZQUIERDO, 2011)

A animação não ficcional que traz como base narrativa, o testemunho, carrega alguns traços comuns que podem ser observados nestas produções, como a preferência pela materialidade oferecida pelas técnicas manuais, além da utilização da voz off, recurso muito comum ao testemunho, e que se encaixa como um exemplo de dispositivo acionado anteriormente à produção do registro cinematográfico.

Carregadas de plasticidade, seja na composição de cenas, iluminação e escolha do material, a animação em stop motion, ou no estilo gráfico e de materiais comuns à técnica bidimensional, como a tinta a óleo, a aquarela, o carvão, os pastéis (ou em alguns casos que simulam digitalmente os mesmos), atribuem à construção manual como o gesto que aproxima a memória da materialidade, e que podem ser vistos em filmes como Nyosha (2011); Black Tape (2014), Salers (2014), The night Witch (2013) , Mend and Make Do (2014), Etoile (2014) entre outros. Nota-se uma tentativa de correspondência com o mecanismo não linear que as memórias vêm à tona, que podem surgir com diferentes formatos e texturas, dependendo da fonte que as estimula, as vezes sem foco, disformes quase orgânicas, coloridas ou sem cores, abstratas, e que reforçam com esta escolha a natureza dinâmica do que é registrado e armazenado diariamente em nossa memória.

A animação não está necessariamente em causa com a realidade física, mas sim a metafísica: o significado que atribuímos à nossa experiência de realidade. Tal significado, no entanto, não necessita ser epistemológico, a animação pode trabalhar no “modo primitivo”, um estado que explora o sensorial da consciência. A animação tem o potencial para enfatizar o conhecimento pré-linguístico, em vez de reforçar a noção cartesiana de “ver para crer”. (WELLS, 1997)

Dessa forma evidencia-se uma vontade primeva de legitimar um processo ausente de filtros e organização sistêmica, em que a consciência processa as informações armazenadas ao longo da vida, como se o resultado dessa materialização fosse o primeiro tratamento dessa catarse emocional. No campo das artes visuais seria o equivalente a uma pintura apresentada em no seu primeiro rascunho, seguindo a forma mais fiel da sua origem.

Materialização da memória

Jeanne Gagnebin é uma professora, filósofa e escritora suíça, residente no Brasil, que analisa a obra de Walter Benjamin, que por sua vez analisa com muito afinco a obra de Marcel Proust, e aponta uma definição mais poética para o que a ciência determinou como “memória sensorial”: “a memória é seletiva na construção do passado, e que é também a partir do esquecimento que os fatos abrigados pela memória são reconstruídos.” Benjamin buscou ampliar a visão sobre a mímesis. Ele distingue dois momentos principais da atividade mimética, não apenas reconhecer, mas produzir semelhanças. Ou seja, a memória conserva os traços gerais do acontecido, mas a imaginação modifica e amplia. Assim, lembrar não seria apenas reviver o passado, resgatá-lo tal qual ele foi – ou acredita-se que tenha sido. Mas seria a reconstrução das experiências passadas no tempo presente. (GAGNEBIN, 2006)

Um exemplo do que foi apontado é o artigo da pesquisadora Sally Pearce, intitulado “Posso desenhar minha própria memória?”, relativo a memória de rastreamento do seu trabalho, e os problemas decorrentes deste processo. Ela mostrou um cavalo animado que vagueia através de paisagens sombrias em live action, e que representam suas memórias, que ela define como “quebradas”, atribuída a um momento dramático em que era acometida por uma doença grave. O registro da doença, ela explica que veio “direto da boca do cavalo”. Ela discutiu seu processo de tentar capturar e visualizar a memória e as frustrações que acompanham isso:

Procuro usar meu lápis como um bisturi para extrair a memória com um todo, mas a memória não será desenhada como um pedaço de tecido. Em vez disso, ele muda assim que o lápis o toca. “À medida que minha memória muda sob o lápis, eu me mudei, e me redescobri.” (PEARCE, 2017)

Pearce observou particularmente que seus desenhos podem sentir-se presos na linguagem comumente usada sobre memória e doença e ligada à metáfora que a autoriza, frustrada pelo fato de seu desenho permanecer em sua mente, trancado nas formas da palavra falada e escrita. Ela descrevia um trauma em sua lembrança, sua frustração com a limitação da palavra. Como bem descreve Eugênia Vilela acerca deste tema, “o fracasso da linguagem escrita perante certas experiências extremas”. (VILELA, 2012, p-144) O trauma, unidade da memória que sofre um bloqueio inconsciente, passando posteriormente pelo processo de esquecimento, é pouco ou quase nunca acessado. No entanto quando por algum estímulo dos sentidos o é, nos retoma de maneira orgânica, envolvendo não tão somente a ação de relembrar, mas nos afeta fisicamente.

A plasticidade das técnicas artesanais de animação em que os gestos e a intervenção direta na matéria suscita a organicidade inerente a memória, sabendo ainda que ela pode ser abstrata, nos remete a texturas, cores, cheiros mas sem necessariamente vincular uma narrativa. Materializar memórias em objetos reais dos quais podemos manipular tem efeitos para além das suas qualidades estéticas. O historiador francês Pierre Nora, descreve a memória como esse organismo vivo capaz de constantemente se atualizar, mas como todo organismo, apresenta o desgaste inerente ao tempo.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. (NORA, 1993)

A metafísica na animação e a ativação dos sentidos

No audiovisual, mais especificamente na fruição de um filme, por exemplo, dois sentidos são afetados pragmaticamente: visão e audição. Outros sentidos como o olfato podem ser suscitados à reação, porém como consequência da experiência proporcionada inicialmente. Essa ativação pode ocorrer por meio da forma como os sentidos desencadeados pela memória são interpretados esteticamente na imagem animada e seu potencial de gerar sensações para além do estímulo comum, com signos pertinentes à arte: forma, cor, composição, textura, sons. O neurocientista Ivan Izquierdo nos oferece o esclarecimento para a etapa cientifica da ativação dos sentidos “(...) a memória guarda emoções”. Por exemplo, se neste momento cair o teto em nossas cabeças, ou algo do estilo, e sairmos correndo, nos lembraremos sempre desse episódio. A parte que é informacional ou cognitiva, ou seja, a visão do teto caindo, nossa corrida, etc. pode ser armazenada ou não, no entanto a parte emocional, o susto que isto nos daria, o terror que isto nos causaria, certamente seria registrado. (IZQUIERDO, 2011)

E a forma deste registro citado é também instigante quanto aos resultados, uma vez que é possível que essas lembranças sejam abstratas ou talvez ausentes de qualquer imagem reconhecível. Ou talvez neste caso a lógica se inverta e as sensações que geram imagens, que por sua vez podem ser abstratas e ausentes de uma analogia de símbolos reconhecíveis. Outra hipótese que pode ser desdobrada a partir destas hipóteses, é que os filmes “abstratos” de animadores como Norman McLaren e Len Lye sejam resultado de memórias sensoriais, no qual a materialização pode ter acompanhado as formas genuínas e primitivas geradas a partir do que a professora e pesquisadora portuguesa Marina Estela Graça defini como ”memória muscular”. Termo que tenta ajustar o estímulo localizado entre o olhar e o gesto, a partir do contexto no qual estavam os mesmos inseridos.

A pesquisadora norte-americana Tess Takahashi, oferece um registro que ajuda na compreensão de como um conjunto de técnicas e práticas, dentre elas a animação, tem questionado o estatuto de referência documental, em que fomos condicionados a acreditar na camada que pode revelar nada mais que a verossimilhança da imagem com o mundo. Ou seja toda a abstração da “memória sensorial” materializada pelo gesto da “memória muscular” pode essencialmente conter mais sentido e sentimentos do que um registro documental em live-action.

Na última década, uma série de projetos relacionados com o estatuto de referência documental proliferou em todo o mundo, por vezes díspar do cinema mainstream, da cultura do documentário, do cinema avant-garde, e do nexo do mundo das artes de museus e galerias. Artistas, documentaristas e cineastas têm feito experiências não só com animação, mas também com a reencenação, instalação, bancos de dados baseados na web e formas de narrativa documental. Esta onipresença e variedade de técnicas, práticas e formas marcam uma preocupação generalizada com o status de referência documental em conjunto com a rápida mudança de estruturas epistemológicas. Dentro dessa proliferação de práticas do documentário, a animação tornou-se uma ferramenta fundamental para interrogar mudanças nas maneiras em que entendemos o mundo. (TAKAHASI, 2011)

Ainda mais fascinante é sugestão da pesquisadora Anne Muxel de nossa memória criar uma biblioteca de aromas para ativar a capacidade dos sentidos evocarem lembranças e, ainda que de forma efêmera, evocar/recuperar esses momentos/sensações. Impossibilitada de gravar, conservar e mesmo de arquivar, somente com o poder evocativo, a memória desses sentidos também não se transmite. Mas, é possível no âmbito da descrição referente a determinado evento, retermos o sabor das coisas. Por alguns instantes, a duração inerente à sensação vivida nos traz um aspecto qualitativo, ainda que externo e diferente da própria coisa, somos capazes de reter elementos perceptíveis por conta de uma memória voluntária: Tal gosto ou aroma nos lembra da vovó; dos jardins da nossa infância; dos almoços compartilhados pela família nas tardes de domingo. E a base dos conceitos levantados por Muxel, tem um diálogo muito forte com a experiência que o Audiovisual pode proporcionar.

Podemos refletir sobre a dinâmica metafísica que envolve o ato de materializar memórias. Ou mesmo ato de recriar fisicamente universos que compuseram uma fração da vida, ao “passar a ser”, e diretamente relacionar ao passado. A animação consegue aproximar o autor do processo de realização, que não exige grandes aparatos e equipes numerosas como o live action, aplicado de forma geral. Manipular diretamente a matéria-prima de modo a transformá-la em parte física do passado, a transporta para estado latente do presente. Projeta para tornar-se parte de uma narrativa no futuro, desloca a linha temporal e a insere em um contexto de experiências naturalmente diferentes. Esta reconexão material do passado com o presente pode representar a transposição de parte da sensorialidade das memórias, ao conseguir reproduzir texturas, formas, cores e sons.

O realizador norte americano, Lewis Klahr, constantemente reflete sobre os materiais dos quais utiliza em suas animações manuais de recorte - o que eles são, o que eles contêm, como seus significados podem ser mudados. Eles sempre carregam a carga ou o traço do contexto do qual foram retirados, revelando um detalhe que poderia passar despercebido mas que carrega a identidade do registro. “Quero que eles transmitam esse traço de suas origens como um impacto excessivo, mesmo quando são recontextualizados em meus filmes de colagem.”

Eu constantemente faço perguntas sobre os meus materiais encontrados - o que eles são, o que eles contêm, como seus significados podem ser mudados. Eles sempre carregam a carga ou o traço do contexto do qual foram retirados. Quero que eles transmitam esse traço de suas origens como um impacto excessivo, mesmo quando são recontextualizados em meus filmes de colagem. (KLAHR, 2011)

O autor realizador neste sentido tem o domínio de todo o processo, experimentando recordações no tempo real em que recria parte de seu cosmos memorialístico. Peças que um dia fizeram parte de um espaço-tempo definido, ficam suspensas no inconsciente, se fundem a outras camadas e se tornam capazes de gerar narrativas, que dizem mais sobre o indivíduo do que o contexto em que ocorreram originalmente.

Se antes tal contexto poderia ser lido apenas da fonte geradora do fato, a partir do momento em que a unidade de tempo fica no passado, torna-se uma peça íntima e individual retida no inconsciente. Quando a memória é inserida no presente, repleta de experiências pessoais, ela é devolvida ao todo, onde passa a ser novamente a fonte geradora do fato. Do todo para um e do um para o todo. As peças suspensas de memória, que remetem ao “pensamento, fragmento” de Eugênia Vilela, representam frações que podem ser armazenadas e organizadas em cadeia, dependendo de conexões sensoriais para ativá-las utilizando a lógica de reação em cadeia. Quando da materialização de um objeto ligado a uma narrativa pode suscitar o desencadeamento de narrativas paralelas, uma vez que transpor um fragmento do passado para o presente em cor, textura, forma, às vezes cheiro, ativa um conjunto de experiências sensoriais completa, diferente de uma lembrança apenas visual ou sonora. Se analisarmos animações em stop motion que se originam de memórias pessoais, podemos provocar leituras da estética refletida pela carga memorialística, como é o caso do curta “Nyosha”, da animadora israelense Liran Kapel, que explora essa carga com texturas de superfície irregulares e propositalmente desgastadas, criando um estado de latência entre o fragmento e o pensamento.

A animação digital não tem o mesmo resultado quando falamos da transformação da memória em animação, por se tratar muitas vezes de uma simulação de uma técnica manual. Há suportes originais em que a tecnologia nos oferece melhores resultados para representar memórias. Graça revela a perspectiva do gesto no fazer animação enquanto potencial catalisador de memórias por meio de técnicas clássicas (manuais) da imagem animada. Ela questiona a mediação da máquina, que suspende a relação do homem com o espaço e a massifica. Aponta o gesto como um interstício somático do mundo real, perceptível apenas para o indivíduo, e questiona: “Qual poderia ser, então, o processo pelo qual o homem assume sua humanidade e a manifesta?” (GRAÇA, 2006)

É interessante neste ponto também pensar na própria técnica como um registro da memória de um tempo. Por limitações tecnológicas de uma época, o stop motion ganhou características intrínsecas aos recursos disponíveis. No entanto, o que no presente poderia ser facilmente contornado pelo advento do CGI e de altos padrões informatizados capaz de orientarem a perfeição de um movimento, temos a simulação do registro “falho” atribuído ao passado em vários softwares de animação. Ou seja, com a tecnologia disponível hoje, necessitamos da mediação da máquina para atribuir a um filme valor estético inerente a ação humana que busca a imperfeição dada sua função de simulacro dentro da obra. Um exemplo é o filme “Debaixo d’água”, uma parceria entre os Estúdios Dreamworks e Aardman, em que a primeira modelou e animou os personagens em software 3D, e a segunda forneceu as texturas e cores das suas massas de modelar, tentando simular digitalmente um processo manual.

Ao traçar um paralelo, podemos citar que aplicativos como o Instagram surgiram como um simulador estético que atribuía a uma foto digital, características de uma câmera Polaroid. Ou seja, é um exercício importante na medida em que neste prisma das representações, há significações atribuídas à técnica que refletem as características de um tempo passado, e pode ser uma das peças suspensas deste emblemático mecanismo que é a memória.

Considerações finais

A escolha em colocar em primeiro plano as limitações da técnica escolhida impactam no trabalho que pode ser considerado ainda mais poderoso quando conscientemente opta pela “baixa tecnologia”, evidenciando a imperfeição e a fragilidade, parecendo por vezes incapaz de produzir imersão e muito menos impacto emocional, se comparado ao que é produzido hoje. No entanto quando acontece a aproximação, de repente, o mundo da imagem volta à vida e tem efeitos surpreendentes - dor, tristeza, alegria. Lewis Klahr trabalha sob as abordagens que faz com que o público reflita o que está assistindo.

Com o tempo, minhas outras estratégias de descontinuidade, especialmente a narrativa, criam um sentimento que é esmagador - que você não pode decifrar essa montagem de hieróglifos, embora pareça que deveria ser capaz de fazê-lo”. (KLAHR, 2011)

Desta maneira, o mistério renasce do excessivamente familiar. De memórias que que fizeram parte de um cotidiano. Klahr ainda completa que uma de suas convicções mais firmes sobre nossa cultura saturada de mídia contemporânea, em que somos bombardeados diariamente por imagens, é que nos tornamos insensíveis, e insensíveis a seu impacto. “As escolhas formais dos meus filmes estão tentando fazer com que o público volte a despertar para o impacto da imagem.” (KLAHR, 2011)

Retomando o que indica Paul Wells, a animação não está necessariamente em causa com a realidade física, mas sim a metafísica: o significado que atribuímos à nossa experiência da realidade. Tal significado, no entanto, não necessita ser epistemológico, mas a animação pode trabalhar no que Wells (1998) chama de “modo primitivo” - um estado que explora o sensorial da consciência. A animação tem o potencial para enfatizar o conhecimento pré-linguístico, em vez de reforçar a noção cartesiana de “ver para crer” (no sentido tradicional). Ou seja, para visualizar animações em documentários animados, como Nyosha (2011), Silence (1997) e I was a Child of Holocaust Survivors (2011) não precisamos ter vivido o Holocausto (nunca podemos compreender plenamente um evento que não vivemos), mas a experiência de memória dele. À luz deste pensamento, esses trabalhos podem ser singulares, se considerados para explicar a capacidade de sentir as superfícies do toque através de nossos olhos: tal tendência é evidenciada nessas animações e, como elas, revelam as arestas e contornos de pessoas, objetos e horizontes; expressam imagens de desintegração; deslocamento entre falha e plenitude; e explicam a construção clara do movimento (ou sua ilusão) enfatizado pela natureza quadro a quadro da animação. Tais filmes, assim, incentivam-nos a ver, compreender e sentir o mundo através de texturas dialógicas entre a técnica e a memória, que representam o tecido que conecta os organismos vivos dos fragmentos-pensamentos suspensos no espaço-tempo.

Bibliografia

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